quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

O homem, as máquinas e o futuro

Entrevista com João Camillo Penna.
(João Camillo Penna é graduado e especialista em Letras Modernas, pela Universidade de Paris, onde também realizou o mestrado na mesma área. Doutorou-se em Literatura Comparada, pela Universidade da Califórnia, nos EUA. É pós-doutor, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é, atualmente, professor adjunto. É autor de A imitação dos modernos (São Paulo: Paz e Terra, 2000).
Pensar as mudanças que acontecerão no mundo no futuro é imponderável. Alguns prognósticos que transcendem o mundo conhecido e tem como horizonte a possibilidade virtual foram estudados pelo professor João Camillo Penna e apresentados no Programa Cultura e Pensamento, que aconteceu em setembro, no Rio de Janeiro. Nele, Penna apresentou o trabalho “Máquinas Utópicas e Distópicas”, no qual, a partir do movimento das evoluções, analisa algumas produções de ficção científica e pensa na construção de um “mundo possível”. Sobre este assunto, João Camillo Penna falou à IHU On-Line, por e-mail.
Nesta entrevista, o doutor em Literatura Comparada fala sobre a dependência e independência do homem em relação às tecnologias, das nanotecnologias e tecnociências como utopias e distopias desenvolvidos no mundo contemporâneo e as diferenças entre o homem e as máquinas. Segundo ele, “a substituição do trabalho humano pela tecnologia gerou uma classe de inúteis ao sistema produtivo, dispensável e excrescente, ao invés de energia livre para o ócio, ele próprio integrando o ciclo reprodutivo da produção”.

IHU On-Line - A sociedade contemporânea está cada vez mais dependente das máquinas e das tecnologias para acompanhar o desenvolvimento do mundo. No entanto, essa mesma sociedade nega essa dependência. Porque a pessoa humana precisa fazer essa negação para afirmar sua humanidade, em sua opinião?


João Camillo Penna - A discussão sobre a dependência das máquinas depende e está ligada à da independência delas, as duas proposições sendo contemporâneas uma da outra, e interdependentes. Precisamos estar dependentes das máquinas, sentirmo-nos quase escravizados por elas, em uma fantástica inversão dos desígnios que deram origem a elas, sob a forma de um pesadelo, para podermos, então, nos libertar delas. O que me impressionou em meu estudo sobre ficção científica é que o sonho de um outro ser, semelhante ao ser humano, mas artificial e por ele produzido, que desembocará na temática da automação e dos robôs, uma máquina das máquinas, capaz não apenas de cumprir programas estabelecidos pelos homens, mas reprogramar-se e produzir programas. Ele consiste imediatamente em um alerta contra os perigos que isso representaria para a humanidade. A máquina é em si a imagem deste perigo, é refletido nelas que nos vemos como dependentes/independentes. Ela existe para que afirmemos a partir dela a nossa liberdade e libertação dela.
Há um roteiro clássico que reaparece de forma recorrente tanto em ficção científica, quanto nos relatos de viagem, e que hoje em dia estrutura reality shows, como Survivor (1) e No limite (2), que consiste em imaginar um grau zero da técnica: uma nova sociedade estabelecida em uma ilha fechada, onde faltam o conforto e as conquistas da civilização, e para onde são jogados estes náufragos da cultura. O que estes relatos contêm é uma imagem da reinvenção da civilização a partir da sua tábula rasa, e constituem pesadelos organizados sobre precisamente o problema que ecoa em sua pergunta: o que fazer quando não temos mais nenhuma máquina em que nos apoiar? Precisaríamos nos desvencilhar delas, treinarmo-nos asceticamente a não mais depender delas para no momento preciso não sentirmos tanto a sua falta?
Esta seria uma reação programada por este pesadelo, que é posto em prática incessantemente hoje em dia pelos mais diversos grupos refratários aos avanços tecnológicos. Mas o que invariavelmente se comprova nestes reality shows? Que os humanos são plenos de recursos, têm “muitos truques”, como se dizia de Ulisses, na Odisséia de Homero (3), e invariavelmente prevalecem sobre as agruras da natureza, reconstituindo a civilização inclusive e, sobretudo, no que ela tem de mais terrível: a competição e o critério seletivo dos melhores. O que este laboratório darwiniano-capitalista demonstra é que nos refazemos invariavelmente, prevalecemos necessariamente, que somos de fato os melhores e que prevalecem os melhores. Que isso tudo se dê na superfície da tela da televisão - uma máquina de imagens, e das mais poderosas, sintoma central de nossa “dependência” delas - significa o que dizia no início: que a máquina é quem produz tanto o sonho de um mundo no qual seríamos independentes delas (utilizaríamo-nas, sem ser contaminados por elas), em que elas representariam um acréscimo de conforto em nossa existência social, quanto o pesadelo de sermos delas dependentes (sem elas morreríamos).


IHU On-Line – No texto "máquinas utópicas e distópicas", o senhor fala sobre as projeções que se faziam na ficção científica dos anos 1960, 1970. Essas projeções eram, geralmente, otimistas, ou seja, imaginavam um futuro repleto de tecnologias (muitas surreais ainda hoje) e o homem totalmente conectado a elas. As ficções científicas produzidas hoje são bastante pessimistas. Elas projetam um mundo caótico e o fim dos seres humanos. Para o senhor, o desenvolvimento da tecnociência e das nanotecnologias são uma distopia ou uma utopia? Viveremos num mundo diferente do que conhecemos?


João Camillo Penna - A ficção científica é o relato sobre o futuro e, especificamente, sobre a parte que a tecnociência desempenhará neste futuro. O progressismo do século XIX gerou uma série de projeções otimistas sobre o futuro da humanidade, em um mundo que seria de fato melhorado pela mecanização. Este mesmo otimismo está presente na futurologia de Herman Kahn (4) nos anos 1960, ou na ficção científica de Isaac Azimov (5), na série de relatos otimistas sobre os robôs (Eu, robô [6]) - ambos correspondendo à perspectiva da tecnocracia estadunidense, que desembocará nas epopéias espaciais e interplanetárias, que desdobram o imaginário da “corrida espacial” entre Estados Unidos e União Soviética, uma ficcionalização tecnológica da Guerra Fria.
Há, no entanto, uma outra linhagem da ficção científica, que se inicia precisamente na pós-Segunda Guerra Mundial, quando tanto Hiroshima e Nagazaki, de um lado, e os campos de concentração e extermínio nazistas, de outro, ambos produtos diletos da tecnociência, demonstraram de forma insofismável que nem tudo eram flores no que tocava à tecnociência. Vem daí esta corrente de fato dominante hoje em dia na ficção científica, de relatos distópicos, com uma forte ênfase em uma temática biológico-genética, que projetam um futuro entrópico: o que ocorreria à humanidade após uma grande catástrofe, freqüentemente nuclear, que erradicaria a vida na superfície do planeta? A ficção científica tem uma certa veleidade preditiva, pode representar horizontes possíveis de nosso futuro, mas não é de fato esta a sua pretensão mais essencial.
Assim, quando assistimos ao maravilhoso 2001 – Uma odisséia no espaço (1968), de Stanley Kubrick (7), percebemos que de fato as viagens interplanetárias ainda não se transformaram em episódios corriqueiros explorados por linhas áreas comerciais. É possível que um dia isso venha a ocorrer, embora a hipótese seja cada dia menos verossímel. O mais importante aqui, no entanto, não é o fato de que 2001 passou e esta representação do futuro esteja bem longe de ser confirmada, demonstrando a falha preditiva de A. C. Clarke (8) e de Kubrick. O importante no filme e no livro sobre o qual é baseado, como na ficção científica em geral, é que constituem um espelho analógico a partir do qual podemos ver o nosso presente, refletir sobre o que significa o humano, esta a pergunta essencial da ficção científica.



IHU On-Line - Esse desenvolvimento das tecnologias, tornando tudo cada vez menor, mas nos tornando cada vez mais cidadãos dessa aldeia global, como pensou Mcluhan (9), pode mudar nossa moral e os valores que predominam hoje na sociedade? De que forma?


João Camillo Penna - Mcluhan descreveu de forma aguda, nos anos 1960, o mundo contemporâneo a partir da invenção da eletricidade, que introduziu a simultaneidade de espaços-tempos, a aproximação, coexistência e inclusão recíproca de mundos, por oposição à especialização, segmentarização, seqüenciamento do mecanismo, a revolução tecnológica anterior. Esta descrição do mundo unificado em uma “aldeia global”- formulação que, diga-se de passagem, foi transposta na logomarca da TV Globo, a ponto de não mais poder dela ser distinguida (sendo contemporânas: Compreendendo a mídia: as extensões do homem é de 1964, e a fundação da Globo de 1965) - corresponde de fato à uma representação possível, parcialmente realizada no mundo atual. Com a sabedoria que um certo olhar retrospectivo lança sobre o insight de Mcluhan, percebemos, no entanto, que a eletricidade, ou sua derivação, a informática e a comunicação, não apenas juntou o mundo, mas resegmentarizou-o, permitiu a coexistência de diversos mundos simultâneos, ao mesmo tempo separados e internamente articulados.
Se a hipótese da integração crescente, tendendo à simultaneidade e à unificação dos mundos em um mundo único gerava uma perspectiva universalista de fundo iluminista, com o eventual predomínio de uma ética progressista e libertária, ocidental, vemos hoje em dia que um movimento inverso também se deu: uma inesperada reação entrópica, arcaizante, que reage a esta dissolução dos mundos violentamente produzindo o ressurgimento de particularismos. A aldeia de Mcluhan no campo da moral seria de fato o relativismo: a transcendência das hierarquias, fundadora dos sistemas morais, sendo substituída por uma horizontalidade imanente dos mundos em um mundo, afirma-se então que tudo é certo, e que, portanto, qualquer perspectiva auto-justificada é certa e pode e deve legitimamente coexistir com as outras.


IHU On-Line - Se mudarmos esses valores, estaremos caminhando para uma ética mundial, onde haverá uma unidade entre as nações, ou as diferenças e singularidades ficarão ainda mais em evidência predominando o estado de exceção?


João Camillo Penna - Minha hipótese é que na política contemporânea o estado de exceção deixou precisamente de ser uma exceção, isto é, uma eventualidade, mesmo que implícita a todas as constituições nacionais modernas, e passou a ser a regra. Estamos diante de um paradoxo: a exceção perdeu o seu status excepcional e passou a constituir o nosso cotidiano político de cidadãos que vivem no mundo hoje em dia. O estado de exceção é na verdade a condição para a vigência do estado de direito (que em tese se oporia a ele). Há largos segmentos de populações inteiras do mundo hoje em dia que vivem em um estado de exceção explícito, indisfarçado. Ao contrário do que queria um certo relato da modernização progressista, que entendia que gradativamente o círculo modernizante se expandiria, atingindo um número cada vez maior de pessoas, é necessário que estes bolsões de estado de exceção existam, para que aqueles onde vige o estado de direito possam subsistir.
É provável que a coexistência necessária destas duas ordens esteja ligada à revolução tecnológica de que estamos falando: uma ordem única globalizada ou mundializada, horizontal e imanente, subsumindo singularidades as mais diversas, diversos mundos em um mundo, estados de exceção e estado de direito. A descrição lógica disso seria o seguinte: uma igualdade geral entre segmentos desiguais, que subsumem desigualdades internas a cada sistema. O que é certo é que o horizonte das revoluções tecnológicas é o mesmo do estado de exceção: ambos têm origem na modernidade (a primeira formulação do estado de exceção data do terror revolucionário francês), no programa de uma revolução racional social. Que esta revolução tenha ao mesmo tempo ocorrido (dado certo), e rotundamente fracassado, é um dos enigmas que a política contemporânea nos apresenta.


IHU On-Line - O senhor cita autores que dizem que o robô, ou seja, a máquina é o escravo ideal do homem. No entanto, o senhor afirma, também, que o homem é a tecnologia. Quais são as principais diferenças entre o homem e a máquina que de fato definem quem é o criador e quem é o dominado?


João Camillo Penna - A palavra robô vem do tcheco robota, “trabalho tedioso e maçante”, com fortes conotações feudais do trabalho escravo e servo. Ela surge justamente na ficção científica, na obra dos irmãos Karel e Josef Capek (10), nos anos 1920. A tese do que Marx e Engels chamaram de “socialismo utópico” do século XIX era baseada na hipótese de que a mecanização da sociedade produziria uma melhoria em nossas vidas, fazendo com que parte ou eventualmente a totalidade dos trabalhos de sustentação social seja realizada pos máquinas. Na utopia de Saint-Simon ou nos falanstérios de Fourier, teríamos uma sociedade sem trabalhadores, com homens exercendo funções de chefia no exército e na empresa. Podemos dizer com segurança que, mais uma vez, a profecia maquínica utópica ao mesmo tempo realizou-se e fracassou. É verdade que as máquinas se ocupam de certas funções antes exclusivas a humanos, no entanto isso não liberou o nosso tempo para termos uma vida melhor.
Pelo contrário, a arqueologia prova que o homem do neolítico trabalhava muito menos do que nós, seu dia sendo constituído por longos períodos de espera e ócio, pontuados de atividades circunscritas. A substituição do trabalho humano pela tecnologia gerou uma classe de inúteis ao sistema produtivo, dispensável e excrescente, ao invés de energia livre para o ócio, ele próprio integrando o ciclo reprodutivo da produção. Tudo indica que esta perspectiva da máquina como escravo ideal, tão presente nas ficções científicas, não se efetivou na realidade. Mas a ficção científica não sendo preditiva, entende-se então por que os robôs fornecem tão somente analogias para com as relações humanas. A partir deles, a ficção científica formula a sua questão essencial: o que é o humano?
Pergunta complexa já que o homem é essencialmente técnica, isto é, artifício, sua natureza sendo por assim dizer artificial, constituído que é, em sua diferença específica, como fala articulada, a partir de um sistema fonador que se instala como prótese em um sistema vocal digestivo. Debruçando-se sobre este paradoxo, a ficção científica vai constantemente perguntar-se: o que nos diferencia das máquinas? Esta, na verdade, é a razão de ser das máquinas na ficção científica. E partirá freqüentemente da resposta rousseauiana à pergunta: o que nos diferencia é a compaixão, a piedade, no léxico rousseauiano, a capacidade de se identificar com a dor do outro. Esta resposta precária, constantemente expandida, contradita, mas renovada, é o ponto de partida da pergunta sobre a paradoxal natureza técnica do humano.


Notas:


(1) Survivor é um reality show competitivo popular nos EUA e produzido em vários outros países. No programa, participantes são isolados em um local remoto onde competem por um prêmio em dinheiro e outros prêmios. Seu formato foi criado no Reino Unido em 1992 por Charlie Parsons, e sua primeira produção foi o programa sueco Expedition Robinson em 1997. A versão estadunidense é conhecida como a mãe dos reality shows americanos devido ao seu pioneirismo na TV americana e pelos altos índices de audiência nos EUA. Seu produtor é Mark Burnett, o mesmo responsável por sucessos como "O aprendiz".


(2) No Limite é a versão brasileira (não-autorizada) de Survivor editada por três vezes pela Rede Globo.

(3) Homero foi o primeiro grande poeta grego cuja obra chegou até nós. Teria vivido no século VIII a.C. período coincidente com o ressurgimento da escrita na Grécia. Consagrou o gênero épico com as obras Ilíada e Odisséia.

(4) Herman Kahn foi um estrategista e teórico do sistema militar empregados na Rand Corporation, nos EUA. Suas teorias contribuíram para o desenvolvimento da estratégia nuclear dos EUA.

(5) Isaac Asimov foi um escritor e bioquímico famoso como popularizador da ciência e como autor de ficção científica, sendo suas séries mais populares Fundação e Robôs. Nesta última criou as famosas Três Leis da Robótica. Sua obra de ficção destaca-se por introduzir ao leitor leigo conhecimentos científicos e a idéia do método científico.

(6) Eu, Robô é um filme futurista estadunidense lançado em 2004. É baseado em uma história de Isaac Asimov, mais precisamente, nas Três Leis da Robótica criadas pelo escritor. Nos contos da série, Asimov brincava com as diferentes implicações da lógica das leis, criando situações absurdas e perigosas para os humanos envolvendo os robôs, mas sempre elegantemente resolvidas também de forma lógica.

(7) Stanley Kubrick foi considerado um dos cineastas mais importantes do século XX, responsável por uma obra polêmica, mas que gozou de uma excelente recepção crítica, 2001 - Uma odisséia no espaço (1968). Cinco anos de produção foram necessários para o desenvolvimento de 2001, para muitos, a melhor ficção científica já filmada. Foi escrito ao mesmo tempo em que o livro homônimo de Arthur C. Clarke estava em produção.

(8) Arthur Charles Clarke é um escritor e inventor britânico, autor de obras de divulgação científica e de ficção científica, como por exemplo os contos The Sentinel, A estrela, A muralha das trevas, As canções da terra distante e os romances 2001 - Uma odisséia no espaço, A revelação de Rama e As fontes do paraíso. Talvez sua contribuição de maior importância seja o conceito de satélite geoestacionário como futura ferramenta para desenvolver as telecomunicações.

(9) Herbert Marshall McLuhan foi um filósofo e educador canadense. McLuhan introduz o impacto sensorial, o meio é a mensagem e aldeia global como metáforas para a sociedade contemporânea, ao ponto de se tornarem parte da nossa linguagem do dia-a-dia. Teórico dos meios de comunicação, foi precursor dos estudos midiológicos. Seu foco de interesse não são os efeitos ideológicos dos meios de comunicação sobre as pessoas, mas a interferência deles nas sensações humanas, daí o conceito de "meios de comunicação como extensões do homem" (título de uma de suas obras), ou "prótese técnica".


(10) Karel Capek nasceu em 1880 e seu irmão, Josef, em 1887, na Checoslováquia. Karel foi novelista, dramaturgo e encenador. Simultaneamente, foi o editor do jornal de Praga, fundador e diretor do "Vinohradsky Art Theater", em Praga, e ensaísta político. É reconhecido pelas suas peças, sendo a R.U.R. a mais famosa. Realizada em 1921, retrata uma fantasia dramática em que cada uma das personagens é desumanizada pela máquina da idade. R.U.R. é a sigla de "Rossum´s Universal Robots" e foi nesta peça que surgiu a palavra Inglesa robot. Já Josef é conhecido com um notório pintor, escritor e poeta. Inventou a palavra robô que foi usada por seu irmão. Primeiramente, foi um pintor cubista, mas inventou seu próprio estilo, chamado playfull. Escreveu poemas do campo de concentração de Bergen-Belsen-Belsen, onde morreu em 1945.

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