sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Paul Virilio: por uma História das rupturas

Paul Virilio
20/10/2008

O crash atual representa o acidente integral por natureza'. Entrevista com Paul Virilio


Há trinta anos o filósofo Paul Virilio analisa as catástrofes como a conseqüência inelutável do progresso técnico. Ele vê na crise financeira o exemplo mais acabado de sua tese, na qual as vítimas não são mais os mortos, mas os milhares de desabrigados que perdem suas casas. Ele vê na crise financeira o exemplo mais acabado de sua tese, na qual as vítimas não são mais os mortos, mas os milhares de desabrigados que perdem suas casas. Virilio diz que "nossas proezas técnicas são grandes promessas catastróficas".

A entrevista é de Gérard Courtois e Michel Guerrin e publicada pelo jornal Le Monde, 18-10-2008. A tradução é da Agência Carta Maior, 19-10-2008.

Paul Virilio é urbanista, filósofo, ensaísta, ex-diretor da Escola de Arquitetura de Paris, autor de, entre outros livros, A Arte do Motor, Velocidade e Política, A Bomba Informática e A Estratégia da Decepção.

Eis a entrevista.

Em 2002, sob o título “O que acontece”, você apresentou à Fundação Cartier uma exposição sobre o acidente na história contemporânea: Chernobyl, 11 de setembro, tsunami...Uma fórmula de Hannah Arendt guiava sua demonstração: “O progresso e a catástrofe são as duas faces de uma mesma moeda”. Com o crash das bolsas, onde estamos?

De fato, em 1979, no momento do acidente da central nuclear de Three Mile Island, nos EUA, eu evoquei um “acidente original” - desses que nós mesmos fabricamos. Eu dizia que nossas proezas técnicas são grandes promessas catastróficas. Antes, os acidentes eram locais. Com Chernobyl, passamos aos acidentes globais, às conseqüências inscritas na duração. O crash atual representa o acidente integral por excelência. Seus efeitos se difundem ao longe, e ele integra a representação dos outros acidentes.

Faz trinta anos que se produz o impasse sobre o fenômeno de aceleração da História e que essa aceleração é a fonte de multiplicação dos grandes acidentes. “A acumulação põe fim à impressão de acaso”, dizia Freud a propósito da morte. Sua palavra-chave aqui é acaso. Esses acidentes não são casuais. Nos satisfazemos neste momento em estudar o crash das bolsas sob o ângulo econômico ou político, com suas conseqüências sociais. Mas não se pode compreender o que se passa se não se põe sob investigação uma economia política da velocidade, gerada pelo progresso das técnicas, e se não a relaciona ao caráter acidental da História.

Vamos dar só um exemplo: dizemos que tempo é dinheiro. Eu acrescento que a velocidade – a Bolsa o prova -, é o poder. Nós passamos de uma aceleração da História a uma aceleração do real. É isso o progresso. O progresso é um sacrifício consentido.

Não estudamos os acidentes suficientemente?

A historiografia dominante se limita a analisar os fatos de longa duração. Eu defendo, ao contrário, uma história acidental, feita unicamente de rupturas. O historiador François Hartog fala do “presentismo” dominante. É preciso ir além. Nós vivemos no “instantaneísmo”.

Para compreender os acidentes, é preciso estudá-los, mas também os expor. O acidente é uma invenção, um trabalho criativo. Quem, melhor que os artistas, poder fazer sentir a dimensão trágica do progresso? Daí a exposição “O que acontece” - nela eu abordava o crash da bolsa -, que prefigurava um museu ou um observatório dos grandes acidentes a que chamo de meus votos. Não para causar medo, mas para enfrentar.

Como definir, para além de seu aspecto de surpresa, o acidente das bolsas?

Como para todo acontecimento contemporâneo, é preciso levar em conta uma série de sincronizações em nível mundial. Sincronizações de hábitos, de costumes, de maneiras de reagir, mas também das emoções. Passamos de um comunismo de classe a uma mundialização instantânea e simultânea dos afetos e dos medos – e não mais das opiniões. Foi o caso do World Trade Center ou com o tsunami.

Com este crash da bolsa é a mesma coisa. Depois de uma curta fase técnica – quebra de bancos, queda de preços -, passamos a um período de “histericização” exagerada das reações. Fala-se de “loucura dos mercados”, de reações “irracionais”, quase de fascinação pelo fim do mundo. Os terroristas compreenderam muito bem esse fenômeno e jogam com ele.

Você crê como certo que o capitalismo se aproxima do seu fim?

Penso antes que é o fim que se aproxima do capitalismo. Eu sou urbanista. O crash mostra que a terra é pequena demais para o progresso, para a velocidade da História. Daí a repetição dos acidentes. Nós vivemos com a convicção de que temos um passado e um futuro. Ora, o passado não passa; ele se tornou monstruoso, ao ponto em que não o tomamos mais como referência. Quanto ao futuro, ele é limitado pela questão ecológica, o fim programado dos recursos naturais, com o petróleo. Resta, portanto, o presente a habitar. Mas o escritor Octavio Paz dizia: “O instante é inabitável, como o futuro”. Nós estamos vivendo isso, inclusive os banqueiros.

É aqui e agora que isso está em jogo. Um novo aspecto se criou. Não é a finitude que é triste, é a realidade. É preciso aceitá-la. O crash nos ensina que é preciso vivê-lo na sua grandeza própria, num mundo acabado. Nós temos uma obrigação de inteligência de fazer isso.

A finança não inventou um mundo virtual?

A velocidade fazia com que se ganhasse dinheiro, a finança quis impor o valor-tempo ao valor-espaço. Mas o virtual também faz parte da realidade. E além do mais, o soi-disant mundo virtual, no qual se pode englobar paraísos fiscais, é o do exotismo, que eu assimilo ao do colonialismo; é o mito de um outro planeta habitável.

À diferença dos outros acidentes, o crash da bolsa permanece hermético à maioria do público. Isso é grave?

Não compreendemos, mas intuímos e isso é suficiente. É preciso intuir o que acontece. Evidentemente, a incompreensão reforça o medo. Mas, ao mesmo tempo, não temos mais tempo de ter medo. O mais inquietante é a aparição de uma dissuasão civil, individual, íntima, que ganha todos os domínios da vida. Somos dissuadidos de fazer tal ou tal coisa como indivíduos. Desde o 11 de Setembro fomos tomados por um medo civil, em função da industrialização do acidente. Para verificar a solidez dos automóveis, efetuamos os testes de colisão. O crash da bolsa é um teste de colisão de natureza grandiosa. Até o divórcio se industrializa. Poderia se introduzir uma cotação nos divórcios, como para medir se o casal e a família se tornaram ilusões.

Pode-se falar de moral do crash, no sentido em que ele também pune aqueles que ganham fortunas?

Eu não sou um justiceiro. Compreendo os críticos que dizem que alguns obtiveram lucros indecentes. Eu não nego os estragos da acumulação de riquezas. Mas criticar essa aceleração dos lucros e da História, essa “avareza galopante”, como dizia Eugène Sue, permanecer no quadro materialista do lucro é uma análise redutora, insuficiente.

O que está em jogo é mais sofisticado e grave. Nós passamos por algo de uma outra natureza. Essa economia da riqueza se tornou uma economia da velocidade. É de resto o problema da esquerda. Eles aplicam os velhos esquemas, proclamam a morte do capitalismo, esperando mais justiça social. Esse diagnóstico é um pouco apressado. Temos realmente um grande bebê no colo...Se o Estado não assume a medida desse futurismo do instante, poderíamos ao contrário ver chegar um capitalismo sem limites.

Você disse que “A Airbus, ao inventar um avião de 800 lugares, criou 800 mortos potenciais”. Mas o crash das bolsas não causou mortes...

Não é a peste, não há milhões de vítimas, não é tampouco o 11 de Setembro. E não é a mortalidade que conta agora, afora alguns suicídios. As vítimas são outras. De onde parte a crise atual? Dos subprimes, das casas à venda a crédito em condições impossíveis. Do solo. As vítimas são algumas centenas de milhares de pessoas que perderam suas casas. A noção de sedentariedade já está posta em causa com os imigrantes, deportados, refugiados, o deslocamento das empresas, etc. O fenômeno vai se acentuar. Até 2040, um milhão de pessoas serão forçadas a se mudarem do lugar em que vivem. Eis aí as vítimas. Nós estamos na noção do stop/eject. Paramos e ejetamos.

Você acredita no caos?

Depois do sistema financeiro haver se destabilizado, o crash ameaça desestabilizar o Estado, a última garantia de uma vida coletiva. Neste momento ele tenta tranquilizar. Mas se a Bolsa continua a cair, é o Estado que irá à falência, e porá as nações no caos. Não se trata de catastrofismo de minha parte. Eu não acredito no pior, não acredito no caos; é absurdo, é arrogância intelectual, mas não se deve se impedir de pensar. Diante do medo absoluto, eu oponho a esperança absoluta. Churchill dizia que o otimista é alguém que vê uma oportunidade em cada calamidade.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

CODEX Alimentarius: os últimos dias de liberdade na saúde?


(Fonte: enzimato.blogspot)


A partir de 01 de Janeiro de 2010 entra em vigor o polêmico Codex Alimentarius.

Mas você não sabe exatamente o que é isso, pois não?... Pois é exatamente o que eles querem!

O Codex Alimentarius é um Programa Conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação - FAO e da Organização Mundial da Saúde - OMS. Trata-se de um fórum internacional de normalização sobre alimentos - sejam estes processados, semiprocessados ou crus - criado em 1962, e suas normas têm como finalidade "proteger a saúde da população", assegurando práticas equitativas no comércio e manuseio regional e internacional de alimentos. Sua influência se estende a todos os continentes e seu impacto na saúde dos consumidores e nas práticas do comércio de alimentos em todo o planeta será incalculável.

As normas Codex abrangem ainda aspectos de higiene e propriedades nutricionais dos alimentos, código de prática e normas de aditivos alimentares, pesticidas e resíduos de medicamentos veterinários, substâncias contaminantes, rotulagem, classificação, métodos de amostragem e análise de riscos.

Olhado assim, na versão oficial (exceto as aspas), parece uma coisa boa, certo? Bem, não exatamente... e, na verdade o Codex é olhado com total "desconfiança" (para usar uma palavra elegante) por todos os que denunciam que essa regulação tão "abrangente" virá a ser uma fonte poderosa de controle sobre as grandes populações e de apreciável lucro para as grandes corporações, especialmente as dos ramos químico e farmacêutico.

Quem controla a comida, controla o mundo!

Traduzido em miúdos, o Codex vai trazer severas restrições à nossa já precária LIBERDADE de escolha em termos de alimentação e prevenção/tratamento de doenças. Sem falar que considerações mais complexas podem ser feitas sobre o impacto dessas medidas no controle populational do planeta e na concentração de riquezas...

Os opositores do Codex fizeram uma síntese do que representará essa complexa rede de regulamentações, que, quando implementadas, serão MANDATÓRIAS para todos os países membros, cerca de 170 - o que inclui o Brasil:

- Suplementos nutricionais, como vitaminas, por exemplo, não poderão mais ser vendidos para uso profilático ou curativo de doenças; potências de qualquer suplemento liberado, estarão limitadas a dosagens extremamente baixas, sub-dosagens, na verdade, e somente as empresas farmacêuticas terão autorização para produzir e vender esses produtos (preferencialmente na sua forma sintética) em potências mais altas - no caso da vitamina C, por exemplo, qualquer coisa acima de 200mg será considerada "alta", e será necessária uma receita médica para se poder comprá-la.

- Alimentos comuns, como o alho ou o hortelã, por exemplo, poderão ser classificados como drogas, que somente as empresas farmacêuticas poderão regulamentar e vender. Qualquer alimento ou bebida com qualquer possível efeito terapêutico poderá ser considerado uma droga.

- Alimentos geneticamente modificados não precisarão ser identificados como tal, e não saberemos a origem do que estamos comendo; a criação de animais geneticamente modificados também já consta dessa mesma pauta, ou seja, vai ser difícil saber que bicho se está comendo.

- Aditivos alimentares, a maioria sintéticos, como o aspartame, por exemplo, serão aprovados para consumo sem que se tenha conhecimento dos efeitos a longo prazo de cada um nem das interações entre eles a curto e longo prazos.

- Todos os animais destinados ao consumo humano, deverão receber hormônios e antibióticos como medida profilática; sabe aquele "gado orgânico", criado solto em pastagens e tratado só com homeopatia?... nunca mais!

- Todos os alimentos de origem vegetal deverão ser irradiados antes de serem liberados para consumo: frutas, verduras, legumes, nozes... nada mais chegará à nossa mesa como a natureza fez - tem gente brincando de Deus, mas desta vez não para criar, e sim para DEScriar.

- Os produtos "orgânicos" estarão completamente descaracterizados, pois terão seu padrão de pureza reduzido a níveis passíveis de atender às necessidades de produção em grande escala; alguns aditivos químicos e várias formas de processamento serão permitidos; tampouco haverá obrigatoriedade por parte do produtor de informar que produtos usou e em que quantidades - rótulos não serão obrigatórios na era pós-Codex.

- Para a agricultura convencional, os níveis residuais aceitáveis de pesticidas e herbicidas estarão liberados em níveis que ultrapassam em muito os atuais limites de segurança! Em outras palavras, estarão envenenando nossa comida.

Em síntese: os objetivos do Codex incluem (1) globalização das normas, (2) abolição da agricultura/criação orgânica, (3) introdução de alimentos geneticamente modificados, (4) remoção da necessidade de rótulos explicativos de qualquer espécie, (5) restrição de todos os remédios naturais, que serão classificados como drogas.

O Codex, na verdade, já começou a "acontecer" por aqui - alguém já reparou que não se consegue comprar nada numa farmácia de manipulação sem ter uma receita médica? Nem uma inocente vitamina C... Em compensação pode-se comprar praticamente qualquer coisa SEM receita médica numa farmácia regular, que vende produtos industrializados, mesmo se forem antibióticos, anti-inflamatórios... - e até aquela mesma vitamina C que nos negaram há pouco na outra farmácia...

Indicar aquele chazinho para um amigo? Ou quem sabe informar ao vizinho que farelo de aveia ajuda a reduzir o colesterol? Sugerir que mamão solta e banana prende?... Nem pensar! Poderá ser considerado "prática ilegal da medicina"! Não se poderá dizer que produtos naturais curam doenças porque não são medicamentos e, na era pós-Codex, só medicamentos APROVADOS pelas novas regras poderão ser referidos para tratar doenças... e assim mesmo, só por um médico!

Exagero? Quem sabe? - já teve gente presa na França por vender 500mg de vitamina C... é que lá essa potência já é considerada "remédio", e não pode ser vendida sem receita médica.

Medicina alernativa, tibetana, ayurveda, homeopatia, essencias florais... só se a turma do Codex disser que pode. Se esse "programa" entrar em vigor (daqui há pouco mais de 1 ano) da forma como vem sendo "curtido" há mais de 45 anos, e alertado mundo afora, teremos perdido nossa liberdade de optar por uma medicina e nutrição naturais, poderemos vir a precisar de receita médica até para ir à feira...

Se isso acontecer, não vai ter graça nenhuma.

Vale a pena saber mais!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Sri Nisargadatta Maharaj


Estes são pequenos trechos de um livro chamado Eu sou Aquilo, de Sri Nisargadatta Maharaj. Não sei se já tem tradução brasileira. Ele morou na India e faleceu em 1981.

A OBSESSÃO COM O CORPO

Sri Nisargadatta Maharaj

Do livro I Am That

D: Maharaj, você está sentado aí, diante de mim e eu estou aqui a seus pés. Qual a diferença básica entre nós?
M: Não há nenhuma diferença básica.

D: Mas, ainda assim parece ter alguma diferença real. Eu vim a você, você não veio até mim.
M: É porque você imagina essas diferenças que você veio aqui e vai ali em busca de uma pessoa superior.

D: Mas você é uma pessoa superior. Você alega conhecer a realidade enquanto eu não.
M: Eu por acaso lhe disse que você não sabe nada e, portanto, que você é inferior? Deixe aqueles que criaram essas distinções, prová-las. Eu não alego conhecer algo que você não conhece. Na verdade eu sei muito menos do que você.

D: Suas palavras são sábias, seu comportamento é nobre e sua graça é poderosa.
M: Eu não sei nada sobre tudo isso e não vejo diferença nenhuma entre você e eu. A minha vida é uma sucessão de eventos exatamente como a sua. A única coisa é que estou desapegado e vejo o show que passa somente como um show que passa enquanto você se apega às coisas e vai com elas de um lado para o outro.

D: O que o torna uma pessoa tão imparcial?
M: Nada em especial. Aconteceu que eu acreditei no meu Guru. Ele me disse que eu não sou nada além de mim mesmo, e eu acreditei nele. Acreditando nele, eu passei a me comportar de acordo e parei de me preocupar com tudo o que não era eu ou que não era do meu ser.

D: Por que você foi tão bem aventurado em acreditar totalmente no seu professor enquanto nossa fé é nominal e verbal?
M: Quem pode dizer? Isso simplesmente aconteceu. Coisas acontecem sem causa e sem razão e, de qualquer forma, que diferença faz quem é quem? A sua elevada opinião sobre mim é apenas a sua opinião. A qualquer momento você pode mudá-la. Por que dar tanta importância a opiniões, mesmo que sejam as suas?

D: Ainda assim você é diferente. Sua mente parece estar sempre quieta e feliz e milagres acontecem a sua volta.
M: Eu não sei nada sobre milagres. E fico pensando se a natureza admite exceções às suas leis, a menos que concordemos que tudo seja um milagre. Para mim, isso não existe. Há uma consciência onde tudo acontece. Esses milagres são bastante óbvios e fazem parte da experiência de todos. Você apenas não olha com o cuidado suficiente. Olhe atentamente e veja o que eu vejo.

D: E o que você vê?
M: Eu vejo o que você também pode ver aqui e agora, mas pelo foco errado da sua atenção. Você não dá atenção a si próprio. Sua mente está cheia de coisas, pessoas e idéias, nunca com você mesmo. Coloque a si mesmo dentro do foco. Torne-se consciente da sua própria existência. Veja como você funciona, verifique os motivos e os resultados das suas ações. Estude a prisão que você, inadvertidamente, construiu a sua volta. Descobrindo o que você não é você acabará se conhecendo. O caminho de volta a si mesmo vai através da recusa e da rejeição. Uma coisa é certa: o real não é imaginário, não é produto da mente. Até mesmo o sentido de "eu sou" não é continuo, apesar de ser um sinalizador útil; ele mostra onde procurar mas não o que procurar. Apenas dê uma boa olhada nisso. Uma vez que você estiver convencido de que você não pode dizer verdadeiramente nada sobre si próprio, exceto "eu sou", e de que nada para o que você possa apontar pode ser você mesmo, a necessidade do "eu sou" termina. Você não mais tentará verbalizar o que você é. Tudo o que você precisa é livrar-se da tendência de definir a si mesmo. Todas as definições aplicam-se somente ao seu corpo e às suas expressões. Uma vez que esta obsessão com o corpo termine, você reverterá ao seu estado natural, espontaneamente e sem esforço. A única diferença entre nós é que eu estou consciente do meu estado natural, enquanto você está a devanear. Assim como o ouro usado numa jóia não leva nenhuma vantagem em relação ao ouro em pó, exceto quando a mente as cria, assim também somos uno em essência - diferimos apenas na aparência. Descobrimos isto sendo sinceros, procurando, inquirindo, questionando diariamente, a toda hora, dedicando uma vida a essa descoberta.


O SELF ESTÁ ALÉM DA MENTE

Sri Nisargadatta Maharaj - I Am That

Questionador: Quando criança, eu freqüentemente experimentava estados de completa felicidade, chegando ao êxtase. Mais tarde, eles cessaram. Mas desde que vim para a Índia eles reapareceram, principalmente depois que o encontrei. Ainda assim, esses estados, embora maravilhosos, não são duradouros. Eles vão e vêm sem que eu saiba quando voltarão.
Maharaj: Como alguma coisa pode permanecer estável em uma mente, quando ela mesma não é estável?

Q: Como posso tornar minha mente estável?
M. Como pode uma mente instável tornar-se a si mesma estável? É claro que não pode. É natureza da mente ficar vagando. Tudo que se pode fazer é deslocar o foco da consciência para além da mente.

Q: Como se faz isso?
M: Recuse todos os pensamentos, exceto um: o pensamento "Eu Sou". A mente se rebelará no início, mas com paciência e perseverança, ela irá render-se e ficar quieta. Uma vez quieta, as coisas começarão a acontecer espontânea e naturalmente, sem nenhuma interferência da sua parte.

Q: Posso evitar esta batalha com minha mente?
M: Sim, você pode. Apenas viva sua vida da maneira como ela se apresenta, mas fique alerta, vigilante, permitindo que cada coisa aconteça da maneira que acontecer, fazendo as coisas naturais de um jeito natural, sofrendo, regozijando-se, da forma como as coisas vierem. Esta também é uma maneira.

Q: Bem, então eu posso também me casar, ter filhos, tocar um negócio... ser feliz.
M: Certamente. Você pode ser feliz ou não, a escolha é sua.

Q: Bem, eu quero a felicidade.
M: A verdadeira felicidade não pode ser encontrada em coisas que mudam e se vão. Prazer e dor se alternam inexoravelmente. A felicidade vem do self e pode ser encontrada somente nele. Encontre o seu self real (swarupa) e tudo mais virá com ele.

Q: Se o meu verdadeiro self é paz e amor, por que ele é tão inquieto, tão agitado?
M: Não é seu ser real que é agitado, mas seu reflexo na mente é que parece agitado, pois a mente é agitada. É como o reflexo da lua na água movimentada pelo vento. O vento do desejo agita a mente e o "eu", que nada mais é do que o reflexo do Self na mente, parece mutável. Mas essas idéias de movimento, inquietação, prazer e dor estão todas na mente. O Self está além da mente, consciente, mas sem envolvimento.

Q: Como alcançá-lo?
M: Você é o Self, aqui e agora. Deixe a mente em paz, fique consciente, não se envolva e você irá perceber que permanecer alerta mas desprendido, assistindo os acontecimentos indo e vindo, é um aspecto da sua natureza real.

Q: Quais são os outros aspectos?
M: Os aspectos são em número infinito. Conheça um e você conhecerá todos.

Q: Diga alguma coisa que possa me ajudar.
M: Você é quem sabe melhor o que você necessita!

Q: Eu não tenho descanso. Como posso obter paz?
M: Para que você quer paz?

Q: Para ser feliz.
M: Você não é feliz?

Q: Não, eu não sou.
M: O que o torna infeliz?

Q: Eu tenho o que não quero, e quero o que não tenho.
M: Por que você não inverte a situação: queira o que você tem e não se importe com o que não tem?

Q: Eu quero o que é prazeroso e não quero o que é doloroso.
M: Como você sabe o que é prazeroso ou não?

Q: Em função da experiência passada, é claro.
M: Guiado pela memória você tem perseguido o prazeroso e fugido do não prazeroso. Você tem obtido sucesso?

Q: Não, não tenho. O prazeroso não dura. A dor instala-se novamente.
M: Que dor?

Q: O desejo pelo prazer, o medo da dor, ambos são estados de angústia. Existe um estado de prazer puro?
M. Cada prazer, físico ou mental, necessita de um instrumento. Tanto os instrumentos físicos como mentais são materiais, eles cansam e tornam-se batidos. O prazer que eles proporcionam é necessariamente limitado em intensidade e duração. A dor é o pano de fundo de todos os seus prazeres. Você os quer porque você sofre. Por outro lado, a busca pelo prazer é a causa da dor. É um círculo vicioso.

Q: Eu posso ver o mecanismo da minha confusão, mas não vejo a forma de sair dele.
M: O exame detalhado do mecanismo mostra o caminho. Afinal, sua confusão está só na sua mente, que nunca lutou muito contra a confusão e nunca se agarrou tanto a ela. Sua mente se rebela apenas contra a dor.

Q: Então, tudo o que tenho a fazer é permanecer confuso?
M: Fique alerta. Questione, observe, investigue, aprenda tudo que puder sobre a confusão, como ela opera, o que ela faz a você e aos outros. Ao esclarecer a confusão você se livrará dela.

Q: Quando olho para dentro de mim, percebo que meu desejo mais forte é criar um monumento, construir alguma coisa que possa durar mais do que eu. Mesmo quando eu penso em um lar, esposa e filhos, é porque eles são uma testemunha duradoura e sólida de mim mesmo.
M: Certo, construa um monumento para você. Como você pensa fazer isso?

Q: Importa pouco o que eu construo, desde que seja permanente.
M: Certamente, você vê por si mesmo que nada é permanente. Tudo se desgasta, quebra, dissolve. O próprio chão onde você constrói também desaparecerá. O que você pode construir que dure mais que tudo?

Q: Intelectualmente, verbalmente, estou consciente de que tudo é transitório. Ainda assim, de alguma forma meu coração deseja permanência. Quero criar algo que dure.
M: Então você precisa construir isso com alguma coisa duradoura. O que você tem que é duradouro? Nem seu corpo, nem sua mente duram. Você precisa procurar em outro lugar.

Q: Eu anseio pela permanência, mas não a encontro em nenhum lugar.
M: Você, você mesmo não é permanente?

Q: Eu nasci e meu destino é morrer.
M: Você pode verdadeiramente dizer que você não era antes de nascer e você pode possivelmente dizer quando estiver morto: "Agora eu não sou mais"? Você não pode dizer, pela sua própria experiência, que você não é. Você só pode dizer "Eu sou". Os outros também não podem dizer-lhe "você não é".

Q: Não há "Eu sou" no sono.
M: Antes de fazer tais afirmações examine cuidadosamente seu estado de vigília. Você logo descobrirá que ele está cheio de falhas, quando a mente fica em branco. Perceba como você se recorda pouco mesmo quando totalmente acordado. Você não pode dizer que você não estava consciente durante o sono. Você apenas não se lembra. Uma falha na memória não é necessariamente uma falha na consciência.

Q: Posso lembrar, por mim mesmo, meu estado de sono profundo?
M: É claro! Eliminando os intervalos durante suas horas de vigília você gradualmente eliminará os longos intervalos de ausência da mente, que você chama de sono. Você ficará consciente de que está dormindo.

Q: Mas o problema da permanência, da continuidade do ser, ainda continua sem solução.
M: A permanência é mera idéia, nascida da ação do tempo. O tempo, por sua vez, depende da memória. Por permanência você entende uma memória que não falha através de um tempo que seja contínuo. Você quer eternizar a mente, o que não é possível.

Q: Então o que é eterno?
M: Aquilo que não muda com o tempo. Você não pode eternizar uma coisa transitória - somente o imutável é eterno.

Q: Estou familiarizado com o sentido geral do que você diz. Não desejo mais conhecimento. Tudo que eu quero é paz.
M: Você pode obter toda paz que você quer apenas pedindo.

Q: Eu estou pedindo.
M: Você deve pedir com um coração não dividido e viver uma vida integrada.

Q: Como?
M: Desprenda-se de tudo que não deixa sua mente descansar. Renuncie a tudo que perturba sua paz. Se você quer paz, mereça-a.

Q: Certamente todos merecem paz.
M: Somente a merecem aqueles que não a perturbam.

Q: De que forma eu perturbo a paz?
M: Sendo um escravo de seus desejos e medos.

Q: Mesmo quando eles são justificáveis?
M: Reações emocionais, nascidas da ignorância e da inadvertência, nunca se justificam. Procure uma mente clara e um coração limpo. Tudo que você precisa é manter-se bem alerta, investigando a verdadeira natureza de você mesmo. Este é o único caminho para a paz.

O espelho quebrado


O MOMENTO DA PSICANÁLISE

Por: Fábio Herrmann

Os seres humanos são pessoas muito estranhas e até absurdas. Se você já o percebeu, acho que andou a terça parte do caminho para se tornar psicanalista. O segundo terço do caminho consiste em aprender algumas coisas: o método, a teoria e a técnica psicanalíticos, de que lhe vou falar um pouco neste livrinho. Quanto à última e mais difícil etapa, que é a de você mesmo descobrir que é também uma pessoa estranha e absurda, isto é, que é um ser humano, lamento não poder ajudá-lo a percorrer, pelo menos escrevendo: talvez fosse preciso fazer análise.


Todavia, como estava dizendo, os homens são pessoas estranhas e absurdas. Enquanto outros bichos têm relativamente pouco trabalho em construir sua residência, porque parecem satisfeitos com o mundo que encontram — o que os cientistas chamam "sistemas ecológicos" —, os homens têm passado seu tempo tentando construir uma casa para si, gastando nisso um trabalho insano, sem nunca ficarem contentes com o resultado. Construíram instrumentos de osso e de eletrici­dade; domesticaram as plantas, os primos animais e até seu próprio pensamento selvagem; edificaram cidades, sistemas filosóficos, ciência e tecnologia. Tudo fizeram para ter um mundo sob medida, quer dizer, um mundo na medida humana.

Mas não desprezemos os homens por causa disso. Coitados, eles talvez não tivessem outro jeito de sobreviver! Em primeiro lugar, quando os bebês humanos nascem e por longo tempo depois são muito indefesos e incapazes para a vida: não conseguem comida sozinhos, não sabem defender-se do frio, queimam-se com a própria urina etc. Logo, era mesmo necessário viver em grupo, construir abrigos e um sistema social. Por outro lado, os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer de comer e o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso — coisa a que os psicanalistas chamam "satisfação aluci­natória do desejo". Alguns talvez até morram de fome, sonhando, sonhando. Por fim, enquanto os animais ferozes quase nunca matam os de sua espécie — "inibição da agressividade intra-espeçífica—, é como os estudiosos do comportamento animal (ou etólogos) chamam a essa prova elementar de sensatez —, os homens chegam a gostar de fazê-lo. Para sobreviver, então, ou pelo menos para se poderem dominar e matar civilizadamente, foi preciso que os homens domesticassem a natureza.

Por que, entretanto, esse trabalho não tem fim e nem é considerado satisfatório? Bem, se você pertence a uma família mais ou menos rica, prova­velmente já mudou de casa algumas vezes. De cada vez, a casa era perfeita, não é verdade? — construída sob medida para o desejo de sua família, com tantos quartos, garagens e televisões quantos bastassem para fazê-los felizes —, porém, quando lá moravam, descobriam que ainda não estavam satisfeitos nem felizes. Aí mudavam, reformavam a casa ou compravam um videocassete; e, insatis­feitos ainda, tornam a mudar ou instalam uma mesa completa de som. Se esta é sua história habitacional, não se culpe, nem a seu pai: culpe a casa; e estará bem integrado com o resto da humanidade.




É que a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos,não sabemos bem o que desejamos.

Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que "somos dese­jados" desta, ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e, dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito freqüentes. Ora, se o tempo e o espaço são infinitos demais, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?

Numa palavra, ao domesticar o mundo, os homens irritam-se ao ver que construíram uma casa que os retrata maravilhosamente bem, que exprime seu desejo, tanto naquilo que gostam, como naquilo, que odeiam — a esta última parte de seu desejo chamam desumana, dizem que não ,é deles, que é um resto que deve ainda ser dominado.

Talvez por esta última razão, a construção do mundo humano se tenha ultrapassado. Você já viu alguém fazer uma lição com má vontade, pensando que quer realmente fazê-la bem. Aparecem erros a cada linha, manchas de tinta, lapsos de português, e o estudante começa a escrever adoidado, obsessivamente, errando e copiando errado. Assim, a espécie humana adquiriu uma estranha obsessão de domesticar, familiarizar, educar. Se seus pais o educaram assim, você provavelmente será exatamente como eles o desejaram; e, no entanto, tanto eles como você mesmo terão a impressão de que tudo saiu às avessas, pela simples razão que ambos ignoram boa parte do modelo que foi impresso e não o reconhecem depois de pronto. Domesticar significa adaptar às normas da casa (que em latim se diz domus); familiarizar significa tornar algo familiar, como que "da família". Mas, como os homens negam-se a admitir grande parte de seu desejo, quanto mais doméstico e familiar vai ficando o mundo, mais estranho e desumano lhes parece. Desumano, que calúnia!

Sucedeu então que este grande projeto de construir um mundo à medida humana, que é o de todas as culturas, acelerou-se subitamente e estreitou-se. Uma das maneiras de realizá-lo parece dominar todas as outras; e, não tendo contra quem competir, pôs-se a tentar ser mais veloz que a própria sombra. Nem é preciso dizer que a maneira dominante é a civilização tecnológica, a qual se vale de uma racionalidade exacerbada, de cálculo, medida das Ciências Naturais, tendo a Física por modelo. Quanto à sombra, é o que veremos mais adiante.

Por enquanto, basta observar que o mundo onde vivemos, sobretudo nas grandes cidades, tornou-se tão construído, tão fabricado, que uma crise muito curiosa se desencadeou. As pessoas come­çaram aos poucos
a duvidar de que o lugar onde vivem seja mesmo real. Antes, quando o contato com a natureza era mais estreito, nos tempos em que qualquer criança podia ver, digamos, ordenhar uma vaca, a sensação de realidade vinha diretamente desse tipo de experiência: podia-se dizer real como uma pedra ou como uma árvore. De repente, contudo, os fatos começam a vir pelos jornais, depois pela televisão, e você tem de se perguntar, a cada momento, se o que ouve e vê é assim mesmo, se é uma interpretação ou se é uma tentativa de enganá-lo. Quer dizer, a realidade começou a perder confiabilidade.

As máquinas funcionam hoje quase como gente, as pessoas quase como máquinas. A cada ação que você pretende executar, fica sempre a dúvida se não está servindo a um propósito que ignora e que talvez ache abominável. Se você quer ser original, se quer recusar tudo o que está por aí, acabará provavelmente descobrindo que faz parte duma indústria da originalidade, usando um uniforme de original.

Pois bem, a ruptura com a natureza e a fabri­cação excessiva da nossa vida cotidiana constituem exatamente o êxito completo da construção da casa dos homens. Mas o homem mesmo não se sente à vontade na casa que criou. Esse retrato que vê no seu mundo parece-lhe absurdo. Ele se pergunta: "Sou assim?". E responde: "Claro que não; é que falta dominar, organizar e calcular uma última coisa, a mente humana".





Veja que estranho. A loucura do nosso mundo é simplesmente o resultado da maneira pela qual o construímos. Porém, preferimos dizer que essa espécie de sombra, a irracionalidade das relações entre os homens e a irrealidade do mundo cotidiano, é produto de outra coisa, não da razão, mas da falta de razão, da loucura. Assim, lá pelos fins do século passado, fez-se um grande esforço para compreender a loucura, para medi-la, para dividi-la em tipos e explicá-la cientificamente.

No começo isso não deu muito resultado. É verdade que surgiu uma classificação das doenças mentais que até hoje é bastante útil. Mas, em matéria de cura, pouco avanço houve. Principal­mente, a loucura do dia-a-dia permanecia inexpli­cável e intratável.

E foi assim que nasceu a Psicanálise. As Ciências Exatas tiveram de pedir ajuda -a uma espécie de primo pobre: a interpretação. Só a interpretação era capaz de abarcar os sonhos, as emoções, a loucura etc. Até aí, tudo bem. Entretanto, ao procurar elucidar a loucura — domínio que se lhe havia concedido —, o método interpretativo acabou tendo de ir mais longe, por descobrir que aquilo que não parecia ser loucura, a vida comum, não era também muito diferente. Posta em movi­mento, a interpretação não se soube deter, nem é bom que se detenha, como veremos no próximo capítulo, que trata do método interpretativo da Psicanálise.

Tudo se passa como numa história de fadas, quando depois de chegar ao limite da pobreza a princesa recebe o príncipe e o reino — ou quando depois de gozar da maior felicidade ao abusar um pouquinho mais da sorte, um homem se desgraça. Vamos chamar a isto "princípio do absurdo": quando algo chega ao limite e ultra­passa-o, transforma-se em seu contrário. Em nosso caso, o projeto de tornar bem racionais todas as coisas, quando pretendeu dominar uma fran­jinha que faltava, a loucura, criou um instrumento capaz de entender e curar a loucura, é certo, mas que, junto com ela, entende e mostra irraciona­lidade e loucura onde não se suspeitava que houvesse. A história das idéias é assim: irônica e vezes, vingativa. Vingança foi fazer ver ao homem que, no desconhecimento de seu próprio desejo, criava o que queria e o que não queria, sendo portanto absurdo para si , mesmo. E isto quando ele pretendia erradicar os restinhos de absurdo e loucura de seu mundo.

Aliás; a atmosfera de conto de fada não pára aí. Só nas histórias infantis é que uma pessoa isolada inventa algo que modifica o mundo, e o faz quase sozinho. Nossa ciência, infelizmente, sugere que o impossível aconteceu. Com efeito, Freud, prati­camente só, inventou um método para interpretar o lado irracional, ou melhor, o lado da mente que obedece a regras duma racionalidade diferente daquela da consciência. Digo infelizmente, porque isso aumenta muito a dificuldade que temos os psicanalistas, de continuar e, eventualmente, vir a superar sua obra. Penso que os grandes psicana­listas estão, quase sempre, começando de novo.

É claro que Freud não estava interessado, origi­nalmente, em denunciar toda a loucura da crise do real de que há pouco eu falava. Como um médico honesto, ele queria curar doenças. Foi assim que se dedicou a tratar doentes histéricos — pessoas que sofriam de ataques de angústia, de paralisias ou dores sem causa orgânica (física) e outros sintomas parecidos. Pode-se dizer que, ao tentar fazê-lo, foi como se puxasse o gatilho do "princípio do absurdo", pois dos sintomas histéricos teve de passar aos sonhos, dos sonhos aos atos falhos — por exemplo, esses escorregões de linguagem, tão inoportunos, que nos fazem dizer a verdade quando não queremos — e daí à vida mental como um todo. Isso, porém veremos ao longo de nosso livrinho.





No momento, apenas desejo que você guarde a idéia central. O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso e o homem a ver-se, malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo. Ora, se a Psica­nálise foi inventada por uma pessoa chamada Freud, no fim do século, em Viena, a idéia psicanalítica — isto é, o método interpretativo —não foi inventado ninguém. Ela era a resposta certa para o problema da loucura de nosso tempo. Por assim dizer, quando o momento estava maduro, saiu do lugar onde esta guardada, no grande depósito das idéias dominantes numa dada época, para vir a habitar a ciência que Freud fundou. Sua missão, portanto, é apresentar ao homem o absurdo que o constitui e, se possível, ajudá-lo a reconciliar-se com ele, com o absurdo, e consigo mesmo.




Fonte: "O QUE É PSICANÁLISE", Fábio Herrmann, Abril Cultural / Brasiliense, 1984


(Extraído do Blog Holosgaia)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Geopolítica perspectivista


A ascensão do resto do mundo: os desafios da Nova Ordem Mundial


Os Estados Unidos não são mais capazes de suportar a crise mundial. Mas quem assumiria o seu lugar? A Rússia, o Brasil, a China e a Índia estão em ascensão, mas eles estão competindo também com a Europa e os Estados Unidos por recursos naturais finitos

Por: Wolfgang Nowak

"Os norte-americanos... só são capazes de nadar em um único mar. Eles jamais desenvolveram a capacidade de ingressar no universo dos outros povos" - Fareed Zakaria.

Estamos vivendo uma era na qual não há uma única potência dominante. O globo está acossado por crises - mudança climática, escassez de recursos, crises de alimento e financeira, proliferação nuclear e Estados fracassados. Nenhum país é capaz de elaborar soluções para problemas desse tipo. Nem mesmo as Nações Unidas estão a altura dessa tarefa. De fato, conforme admitiu o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, na Conferência de Governança Progressista, em abril último, em Londres, as organizações internacionais criadas logo após a Segunda Guerra Mundial não atendem mais às necessidades atuais.

Faz apenas 17 anos que o jornalista norte-americano Charles Krauthammer falou a respeito do alvorecer de uma nova era na qual, nas décadas vindouras, os Estados Unidos funcionariam como o epicentro da ordem mundial. Apenas cinco anos se passaram desde que o então secretário de Estado, Colin Powell, disse a uma audiência em Davos que os Estados Unidos reservavam o direito de iniciar ações militares unilaterais.

Mas a Guerra do Iraque esfacelou o sonho de uma era de "imperialismo liberal", na qual os Estados Unidos disseminariam os seus valores ideais utilizando meios coercivos. A crise financeira dos últimos dois anos acelerou ainda mais o deslocamento de poder - dos Estados Unidos e Europa para a Índia, a China e a Rússia, bem como para os Estados árabes do Golfo Pérsico.

Vários livros recentemente publicados nos Estados Unidos descrevem essas mudanças no cenário político. O novo governo que chegar em Washington em 2009 deve cogitar a leitura atenta dos livros "The Post American World" ("O Mundo Pós-Americano"), de Fareed Zakaria, "The Second World" ("O Segundo Mundo"), de Parag Khanna, "The Great Experiment" ("A Grande Experiência"), de Strobe Talbott, "Rivals" ("Rivais"), de Bill Emmott e "The War for Wealth" ("A Guerra pela Riqueza"), de Gabor Steingart. Todos estes autores aceitam a premissa de um mundo multipolar, embora as suas análises e prescrições políticas sejam muito diversas. Bill Emmott, Fareed Zakaria e Gabor Steingart visualizam a continuação da liderança norte-americana ou transatlântica, enquanto Parag Khanna enxerga uma competição cada vez maior entre a Europa, a China e os Estados Unidos pelo apoio de Estados como a Rússia e a Índia, que ele descreve como pertencendo ao "segundo mundo". Porém, quaisquer que sejam as diferenças entre eles, cada um dos autores analisa com clareza as realidades atuais - ao contrário dos neoconservadores que foram os principais responsáveis pela condução da política externa norte-americana nos últimos oito anos.

O ex-presidente George Bush teria afirmado: "Não podemos cometer os erros errados". Um governante que queira evitar "os erros errados" encontrará o seu lugar na nova ordem multipolar.

Quais são as potências decisivas nesta nova ordem mundial? Os Estados Unidos, a Rússia, a Índia, a China, o Brasil e a União Européia estão sem dúvida entre elas. É interessante que estes países estejam se aproximando cada vez mais. A atual crise financeira demonstrou como as relações entre eles se aprofundaram. Outras similaridades são também reveladoras. Com a exceção dos europeus, cada um desses países contém aspectos do primeiro, do segundo e do terceiro mundo. Na megalópole Mumbai, por exemplo, a maior favela da Ásia fica ao lado de uma próspera área econômica. Uma pessoa que faça uma viagem pela Rússia encontrará tanto uma riqueza impressionante quanto uma pobreza absoluta. Até mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, parte da população luta para ter um padrão decente de vida.

Esses países não são nem inimigos nem amigos uns dos outros; eles são "frenemies", competidores na busca por escassos recursos mundiais. Eles asseguram aos seus povos que são capazes de modelar a próxima ordem global e de garantir o futuro bem-estar da população, mas as respectivas idéias de futuro podem variar bastante. Um potencial "choque de futuros" paira na linha do horizonte do mundo multipolar.

Nem todos os "frenemies" são democracias no sentido ocidental. Os sucessos de Cingapura e da China, bem como dos Estados do Golfo Pérsico, provam que os países não precisam ser democráticos para garantir um alto padrão de vida aos seus povos. Mas isto não precisa ser motivo para pessimismo. Nas novas potências mundiais não democráticas, elites produtivas estão substituindo as elites parasitas. Onde as elites produtivas adquirem a supremacia, elas criam um sistema mais livre e justo do que aquele que herdaram. O objetivo delas é desenvolver a economia e corrigir as desigualdades sociais. Elas sabem que onde houver favelas haverá "cidades fracassadas" e "Estados fracassados".

A Sociedade Alfred Herrhausen, o fórum internacional do Deutsche Bank, está organizando um novo projeto chamado Foresight (Previsão) para analisar e comparar as visões de futuro das potências mundiais existentes e emergentes. Por meio da discussão e do debate, espera-se que o projeto encontre os elementos para um futuro comum. O evento inaugural, ocorrido em Moscou, reuniu participantes do Brasil, da China, da Europa, do Japão, da Índia, da Rússia, dos Estados Unidos e de outras partes do mundo para a discussão do papel da Rússia em um mundo multipolar. Mais simpósios estão previstos nos Estados Unidos, após as eleições presidenciais, na Europa, no Japão, na Índia, na China e na América Latina. Esses eventos também incluirão participantes de alto nível da África, do mundo árabe e dos países asiáticos banhados pelo Oceano Pacífico.

Um dos principais objetivos desta série de eventos é ver o mundo segundo a visão dos outros, e não apenas através da ótica oriental e ocidental.

Novas alianças que jogam os países uns contra os outros não serão capazes de resolver os desafios do século 21. Novas formas de cooperação internacional, consulta e compromisso precisarão desempenhar um papel central em um mundo multipolar. É um absurdo que a Itália pertença ao G8, mas a China e o Brasil não. E que espécie de significado pode ter um conselho de segurança global quando a Índia, o Brasil e a União Européia são deixados de fora, enquanto a França e o Reino Unido são membros permanentes?

São necessárias novas formas de governança: em um mundo com cada vez menos recursos e no qual há uma mudança climática acelerada, os Estados podem sentir-se tentados a atender aos seus próprios interesses a fim de obter vantagens de curto prazo. O desafio será elaborar uma nova estrutura internacional e um equilíbrio organizado de interesses. Somente um futuro comum - "mudança através do bom relacionamento" e não "um choque de futuros" - poderá nos impulsionar para adiante.

Não há dúvida de que os últimos dez anos forneceram muitos motivos para pessimismo. Para que os próximos dez anos sejam um sucesso, nós precisaremos nos fortificar com um otimismo crível, ainda que cético.

Wolfgang Nowak é porta-voz da diretoria-executiva da Sociedade Alfred Herrhausen, o fórum internacional do Deutsche Bank.



quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Um Movimento Democrático Global está prestes a estourar.




Por: Paul Hawken, Orion Magazine

Ao longo dos últimos quinze anos tenho oferecido perto de mil palestras sobre o ambiente. Depois de cada palestra um pequeno grupo de pessoas se junta para conversar, perguntar, e trocar cartões de visita. Estas pessoas oferecendo os seus cartões trabalham nos assuntos mais pertinentes aos nossos dias: mudança de clima, pobreza, desmatamento, paz, água, fome, conservação, direitos humanos e mais. São do mundo das ONG´s também conhecido como a sociedade civil. Cuidam de rios e baias, educam os consumidores sobre a agricultura sustentável, colocam painéis solares em casas, fazem “lobbies” nos governos estaduais sobre poluição, enfrentam políticas de comércio favoráveis às corporações, se esforçam a tornar verdes as favelas, ou ensinam as crianças sobre o ambiente. Simplesmente, estão tentando resguardar a natureza e garantir a justiça.Depois de uma viagem de uma semana ou duas, voltava com centenas destes cartões enfiados em vários bolsos. Eu arrumava-os na mesa da minha cozinha, lia os nomes, olhava os logotipos, imaginava as missões e ficava admirado a ver o que um grupo pode fazer a favor de outro. Depois, os colocava em gavetas ou sacos de papel, lembranças daquela viagem. Não conseguia jogá-los fora.
Ao longo dos anos os cartões se amontoavam, chegando aos milhares, e quando olhava aquelas sacolas no meu armário, chegava a me perguntar: alguém sabe quantos de tais grupos existem? No começo, era questão de curiosidade, mas lentamente comecei a desconfiar que alguma coisa maior estava acontecendo, um movimento social significativo que estava escapando o radar da cultura vigente.

Comecei a contar. Olhava os dados governamentais de diversos paises e, utilizando diversos métodos para aproximar-me do número de grupos ambientais e de justiça social a partir de dados de censo para impostos, eu inicialmente estimava que tinham umas trinta mil organizações ambientalistas no mundo, quando acrescentava justiça social e organizações indígenas, o número ultrapassava cem mil. Eu então pesquisei movimentos sociais do passado para ver se tinha algum igual em escala e escopo, mas não encontrei nada.

Quanto mais pesquisava, mais eu descobria e os números continuavam a aumentar. Em levantar uma pedra descobri uma formação geológica. Descobri listas, índices, e pequenos bancos de dados específicos para certos setores ou áreas geográficas, mas nenhum conjunto de dados aproximou-se nem de longe a descrever o tamanho do movimento. Extrapolando dos arquivos acessados, me dei conta que o estimativo inicial de cem mil organizações estava errado por um fator de pelo menos dez. Agora achava que existem mais de um milhão de organizações trabalhando em prol de sustentabilidade ecológica e justiça social. Talvez dois.

Se for definir de uma forma convencional, isto não é um movimento. Os movimentos têm lideranças, ideologias. Você se torna membro de um movimento, estuda os propósitos e se identifica com um grupo. Você lê a biografia do(s) fundador(es) ou os escuta em fita ou em pessoa. Movimentos têm seguidores, mas este movimento não funciona assim., É disperso, sem formas definidas e ferozmente independente. Não há manifesto ou doutrina, nenhuma autoridade para verificar.

Procurei um nome, mas não há.

Historicamente, os movimentos sociais surgiram primariamente por causa de injustiças, desigualdades e corrupção. Estes males continuam presentes, mas uma nova condição existe que não há precedente: o planeta está com uma doença que ameaça a vida e que é marcada por degradação ecológica maciça e mudança de clima súbita. Ocorreu-me que talvez eu estivesse vendo alguma coisa orgânica, se não biológica. Em vez de ser um movimento no sentido convencional, será que é uma resposta coletiva à ameaça? É fragmentado por razões que são inerentes ao seu propósito? Ou é simplesmente desorganizado? Mais perguntas seguiram. Como funciona? Qual a velocidade de crescimento? Como é conectado? Porque está sendo em geral ignorado?

Depois de gastar anos pesquisando este fenômeno, inclusive criando com meus colegas uma banco de dados global destas organizações, tenho chegado à conclusão: este é o maior movimento social em toda a história, ninguém sabe do seu escopo. Como funciona é mais misterioso do que aparenta.

O que fica aparente é conclusivo: dezenas de milhões de pessoas ordinárias e nem tão ordinárias assim dispostas a confrontar o desespero, o poder e dificuldades incalculáveis para restaurar algum semblante de graça, justiça e beleza a este mundo.

Clayton Thomas-Muller fala para um encontro comunitário da nação Cree sobre os lixões no seu território em Alberta, Canadá, lagos de despejos tóxicos tão grandes que podem ser vistos do espaço. Shi Lihong, fundadora do Wild China Films (Filmes da China Silvestre) faz documentários com seu marido sobre os migrantes deslocados pela construção de grandes represas. Rosalina Tuyuc Velásquez, membro do povo Maya-Kaquchikel, luta para que sejam responsabilizados os esquadrões da morte, que já mataram dezenas de milhares de pessoas na Guatemala. Rodrigo Baggio resgata computadores de Nova York, Londres, e Toronto e os instala em favelas do Brasil onde ele e seus funcionários ensinam habilidades de informática a crianças pobres. O biólogo Janine Benyus fala para mil e duzentos executivos num fórum de negócios em Queensland sobre desenvolvimento inspirado pela biologia. Paul Sykes, voluntário para the National Audubon Society ( que luta em prol dos aves nos Estados Unidos) completa seu 52em Contagem de Pássaros de Natal em Little Creek, Virgínia, se juntando a cinqüenta mil outras pessoas que contam 70 milhões de pássaros em um único dia. Sumita Dasgupta lidera estudantes, engenheiros, jornalistas, agricultores e Adivasis ( povo tribal) numa viagem a pé de dez dias através do Gujarat, explorando o renascimento de sistemas de captação de águas da chuva que está trazendo a vida de volta para áreas propensas à secas na Índia. Silas KpananÁyoung Siakor, que mostrou os elos entre a política genocidal do então presidente Charles Taylor e o desmatamento ilegal em Libéria, agora cria políticas de certificação de madeira sustentável.

Estas oito pessoas, que talvez nunca venham a se conhecer, fazem parte de uma coalizão composta de centenas de milhares de organizações sem centro, crenças codificadas ou líderes carismáticas. O movimento cresce e se alastra em cada cidade e país. Praticamente toda tribo, cultura, língua, e religião faz parte, desde os Mongóis até Uzbekianos até Tamils. É composto de famílias na Índia, estudantes na Austrália, agricultores na França, os sem terra no Brasil, os bananeiros de Honduras, os “pobres” de Durban, aldeões em Irian Jaya, tribos indígenas na Bolívia, e donas de casa no Japão. As lideranças são agricultores, zoólogos, sapateiros e poetas.

O movimento não pode ser dividido porque está fragmentado - pequenos pedaços com elos frouxos. Forma, se junta, e dissipa rapidamente. Muitos dentro e fora o desprezam por ser sem poder, mas já derrubou governos, companhias e lideranças através do testemunhar, informar e amassar.

O movimento tem três raízes básicas: Movimento para justiça ambiental e social, e a resistência de culturas indígenas contra a globalização - todos dos quais se entrelaçam. Surge espontaneamente de diferentes setores econômicos , culturas, regiões e agrupamentos, resultando num movimento global, sem classe, diverso , alastrando mundialmente sem exceção. Num mundo complexo demais para ideologias construtivas, a palavra movimento pode ser pequena demais , porque este é o maior agrupamento de cidadãos da história.

Têm institutos de pesquisa, agências de desenvolvimento comunitário, organizações baseados em povoados e cidadãos, corporações, redes, grupos baseados em crenças, fundações . Defendem contra políticos corruptos e mudança de clima, predação corporativa e morte dos oceanos, indiferença do governo e pobreza endêmica, formas industrializadas de agricultura e plantio de madeira, esgotamento do solo e da água.

Descrever o tamanho deste movimento é como tentar segurar o oceano na sua mão. É tão grande assim. Quando uma parte aparece, o iceberg abaixo fica invisível. Quando Wangari Maathai ganhou o Prémio Nobel da Paz, os serviços de notícias não mencionaram a rede de seis mil organizações diferentes de mulheres na África plantando árvores. Quando escutamos de um despejo químico num rio, nunca é mencionado que quatro mil organizações nos Estados Unidos adotaram um rio, riacho ou córrego. Podemos ler que a agricultura orgânica é o setor de maior velocidade de desenvolvimento nos Estados Unidos, Japão, México e Europa, mas nenhuma conexão é feita com as mais de três mil organizações que educam agricultores, fregueses e legisladores sobre a agricultura sustentável.

É a primeira vez na história que um enorme movimento social não se juntou por volta de um “ismo”. O que junta são idéias e não ideologias. A maior contribuição deste movimento é a ausência de uma idéia grande: no seu lugar oferece milhares de idéias práticas e úteis. No lugar dos “ismos” são processos, preocupações, e compaixão. O movimento demonstra um lado flexível, ressonante e generoso da humanidade.

Não é possível de definir. As generalidades são em grande parte imprecisas. É não-violento e de base; não tem bombas, exércitos nem helicópteros. Um vertibrado macho carismático não está no comando. O movimento não concorda em tudo e nunca concordará, porque isto seria uma ideologia. Mas compartilha um conjunto básico de compreensões fundamentais sobre a Terra, como funciona, e a necessidade de justiça e igualdade para todos os povos que participam nos sistemas do sustento da vida no planeta.

Este movimento sem nome promete oferecer soluções parta o que parecem ser dilemas insolúveis: pobreza, mudança de clima global, terrorismo, degradação ecológico, polarização da renda, perda de cultura. Não é atrapalhado com síndrome de tentar salvar o mundo: está tentando refazer o mundo.

É feroz. Não existe outra explicação para a coragem crua e o coração visto repetidas vezes nas pessoas que marcham, falam, criam, resistem e constroem. É a ferocidade do que significa saber que somos humanos e queremos sobreviver.

Este movimento não desiste e está sem medo. Não pode ser pacificado, amenizado ou oprimido. Não haverá um momento “Muro de Berlim”, nenhuma assinatura de trégua, nenhuma manhã para acordar para o momento quando os super-poderes abandonam. O movimento continuará nas suas formas diversas. Não descansará. Não haverá nenhum Marx, Alexandre ou Kennedy. Nenhum livro pode explica-lo nenhuma pessoa pode representa-lo nenhuma palavra pode engloba-lo, porque o movimento é o testamento vivo e sentiente do mundo vivo.

Acredito que prevalecerá. Não quero dizer conquistar ou causar danos a alguém. E não estou fazendo esta previsão como oráculo. Quero dizer que o pensamento que informa a mente do movimento - de criar uma sociedade condutiva à vida na Terra - reinará. Ela logo permeará a maioria das instituições. Mas até lá, mudará um número suficiente de pessoas para começar a reverter séculos de auto-destruição desenfreada.

A inspiração não é conhecida de litanias do que é defeituoso; reside na vontade da humanidade de restaurar, reformar, recuperar, reimaginar e reconsiderar. Curando as feridas da Terra e do seu povo não requer santidade ou um partido político. Não é uma atividade liberal ou conservadora. É um ato sagrado.

Paul Hawken é empreendedor e ativista social morando na Califórnia. Este artigo é tirado do livro Blessed Unrest, a ser publicado pelo Viking Press, e é utilizado com permissão.

(extraído do site: http://sitiocurupira.wordpress.com/curupiranews/)