quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Sobre sonhos...(7)




Gostaria aqui de descrever um insight que me ocorreu nesta madrugada, durante o estado hipnagógico. Foi uma "mensagem" clara, o que me leva a uma mudança de abordagem.



Resumindo :



- considero que a porta de entrada para os sonhos lúcidos - ou seja, entrarmos em sonho já lúcidos - requer que estejamos lúcidos desde o "primeiro momento", ou seja, desde o momento em que os sonhos começam a se formar;



- pelo que observei, os sonhos se formam primeiramente por meio de "visualizações" - "cenários" completos, providos de grande detalhamento, realismo etc. A diferença entre as "visualizações" e o sonho normal é que o Ego onírico ainda não está formado. Somos apenas espectadores de um "filme";



- portanto, para entrarmos nos sonhos já lúcidos devemos dominar a técnica de entrarmos lúcidos nessas visualizações;



- o que eu vinha tentando até ontem, era entrar lúcido nas visualizações por meio da retenção da atenção lúcida desde o estado precedente, que é o estado hipnagógico. O raciocínio era simples: mantendo-se lúcido durante esse estado e não deixando-se hipnotizar completamente, fatalmente as visualizações surgiriam, sendo uma questão de dosagem, persistência e treino: o sonho se formaria com a atenção ainda firme;



- porém, a novidade foi o insight de ontem: pareceu-me que o estado hipnagógico é uma etapa a ser cumprida tão somente para colocarmo-nos numa frequencia cerebral adequada - um estado de relaxamento profundo. Ele é utilizado pela mente para desconstruir as referências egóicas (corpo, tempo, espaço), quebrar as resistências. Porém, não devemos nos manter nesse estado por muito tempo, na tentativa de prolongar a atenção ao máximo. Ao contrário. Devemos abrir mão de toda a atenção - aceitando e até acelerando o processo de quebra dos referenciais - lançando-nos no "dilúvio" de fluxos a fim de que as imagens (as visualizações) se formem o mais rápido possível.


A sutileza aqui é a seguinte: substitui-se a "atenção" pela "vontade" (prefiro dizer "firme propósito"). Ao nos lançarmos com firme propósito no fluxo (mas sem retenção de atenção), parece que nos transportamos para os cenários oníricos ainda com um certo grau de lucidez. A lucidez é mantida por meio desse "firme propósito" e não por meio da atenção. É como se a atenção estivesse embutida na vontade...




Essa abordagem envolve uma mudança de pressuposto acerca do que seja o "Ego onírico" (e talvez possamos até estender esse questionamento para o Ego normal). Pois usualmente compreendemos o Ego onírico dos sonhos lúcidos como o mesmo que usualmente identificamos na vigília. Se o insight revelar-se correto, a matriz do Ego (onírico e na vigília) é a "vontade", sendo esta que servirá para sua "reconstrução" no novo cenário onírico. Portanto, a mente deve sempre, necessariamente, quebrar todos os referencias do Ego (corpo, tempo, espaço e...a atenção, que depende destes) sobrando apenas o núcleo de "vontade". A partir desta - e não da atenção - é que a lucidez se forma nos sonhos lúcidos.


E de fato, quanto mais tentamos reter "lucidez" (atenção) durante o estado hipnagógico, mais este se prolonga, retardando a entrada "em cena" das visualizações (o início dos sonhos). Retarda-se o sonho. É uma luta injusta para com a mente, pois se queremos entrar nos sonhos, a mente deverá quebrar, previamente, seus referenciais, incluindo aí a "atenção". Pretender manter a atenção firme dá origem a um conflito exaustivo, pois estamos pedindo duas coisas contraditórias: sonho e atenção-egóica.




Assim, tudo isso é bastante coerente com o que já disse acerca da perda de referências, que ocorre justamento no estado hipnagógico. Pois se a mente (a consciência) perde seus referencias, torna-se mesmo impossível manter a atenção, ao menos aquela atenção "consciente" que usualmente utilizamos. O que sobra, então após a "desconstrução" do "Eu" ocorrida no estado hipnagógico (e que é condição necessária para a mente nos transportar para o mundo onírico) ? Sobra a "vontade" (o firme propósito) que será a matriz para a formação do Ego onírico, já na fase de sonho.




Portanto, creio que tudo isso faz sentido: devemos passar pelo estado hipnagógico como transição necessária para a perda dos referencias; detectando que a frequencia cerebral já está baixa e o processo de hipnose avança, devemos lançar-nos no fluxo com maior ímpeto ainda, com esse firme propósito (o propósito mais firme servirá para conferir maior lucidez para o Ego onírico), buscando aquela instância misteriosa e profunda em que as imagens (visualizações) são formadas e que nos transporta para o universo onírico.


Uma vez lá, percebemos que esse firme propósito se traduz em uma firme lucidez.



terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A revolução "inumana"






A crescente tensão entre a realidade biológica e a realidade tecnológica resulta na condição inumana. A opinião é de Ollivier Dyens, professor do Departamento de Estudos Franceses da Universidade de Concordia (Montreal), que estuda há mais de quinze anos o impacto das novas tecnologias na sociedade em entrevista ao Le Monde, 27-01-2008. Dyens é autor do livro La Condition inhumaine (A condição inumana), assunto desta entrevista. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

O devastador aumento do poder da tecnologia digital vai transformar-nos profundamente?

Há alguns anos eu pensava que a tecnologia iria mudar o ser humano. Hoje, penso que vai mudar a percepção que temos do ser humano. Eu acredito cada vez menos no fantasma cyborg ou no homem-máquina. Mas a visão que temos de nós mesmos vai ter de mudar para se adaptar à realidade tecnológica de amanhã.

Seu último livro se intitula "A condição inumana". Por que o título?

O termo "inumano" não é usado aqui no sentido de crueldade, mas no sentido do que está para além do homem. Às questões essenciais que o homem se coloca desde o início dos tempos - Quem sou eu? De onde venho? -, a ciência e a tecnologia podem fornecer respostas que, cada vez mais, contrariam o que dizem nossos sentidos e nosso espírito. É essa crescente tensão entre a nossa realidade biológica e a nossa realidade tecnológica que eu qualifico de "condição inumana". Historicamente, consideramos as ferramentas e a linguagem como estruturas que existiam para atender às nossas necessidades. É fundamental repensar esta relação.

Por que a crescente interdependência destas duas realidades, biológica e tecnológica, nos perturba tanto?

Para explicar este mal-estar, um roboticista japonês criou uma imagem, a do ‘vale do desconhecido’. Tanto que robôs que continuam bem diferentes de nós, não nos perturbam. Mas se eles estão muito próximos caem no ‘vale do desconhecido’. A mão artificial se torna inquietante no momento em que ela se torna uma mão verdadeira, quando a podemos tocar ou fechá-la como se fosse natural. Estamos à volta com a revolução digital que está se tornando cada vez mais "inteligente", cada vez mais "viva"... Isso nos preocupa, porque se assemelha muito a nós.

A civilização das máquinas nasceu com este milênio?

Lembre-se do 31 de dezembro de 1999 e do famoso medo do bug do milênio. Este receio era real, inclusive entre as maiores empresas de informática do mundo. Naquele dia, a humanidade toda prendeu a respiração à espera do veredicto das máquinas, para saber se chegariam ou não à ‘compreensão’ dos três zeros da nova data. E o que aconteceu? Os softwares, em todo o mundo, conseguiram se adaptar, nenhuma catástrofe aconteceu. A moral da história é que os sistemas informáticos tornaram-se muito complexos para sermos capazes de determinar o que os torna eficazes ou não. Um pouco como a previsão meteorológica que se tornou muito complexa para prever para além de alguns dias.

Ollivier Dyens

Sendo assim, podemos ser esquecidos pelas máquinas que nós mesmos criamos, assustador não?

Para alguns, sim. Mas outros acreditam que este é um processo normal da evolução. Que o importante é a dinâmica da vida, que se encontra no DNA ou no silício. De qualquer forma, a tecnologia já nos obriga a redefinir o nosso lugar na hierarquia mundial. A nos situar não mais no topo da pirâmide, mas numa dinâmica tendo em conta as máquinas como parte integrante da espécie humana.

E se não chegarmos a isso?

Então corremos o risco de, num futuro mais ou menos próximo, desembocar num mundo polarizado, maniqueísta, violento, no qual a maioria da humanidade encontrar-se-á descolado de um mundo cheio de representações, idéias, teorias e da cultura. Um mundo de frustração e desespero e de uma nova alienação: aquela do conhecimento. Esse risco já está acontecendo: temos uma crescente dificuldade para distinguir claramente a informação de sua síntese – dito de outra maneira, do conhecimento. Por quê? Porque a cultura gerada pelas máquinas nos ultrapassa. Para usar uma imagem marítima: a quantidade de informações disponíveis na Net é um oceano, mas não conhecemos mais a arte de navegar. É cada vez mais claro que permanecemos na superfície desse oceano - "surfar" tornou-se uma questão de sobrevivência. Mas os seres humanos ainda navegam como antigamente tanto o conhecimento nos parece ligado à idéia do aprofundamento. A superfície e o profundo: vamos ter de aprender a conciliar essas duas noções.

A "condição inumana" terá conseqüências positivas?

Menos guerras, talvez. Quanto mais países estiverem enredados economicamente e culturalmente, menos razões teremos para ver os outros como estranhos, e, portanto, para combatê-lo. As tecnologias digitais e da Web são uma aproximação entre os seres. O e-mail, os chats, os blogs podem nos unir para além da geografia do corpo, da cor da pele. Em nossa história, nunca se gastou tanto tempo para se comunicar, mas também para enriquecer-nos e debater através das redes.

A internet vai gerar novas formas de inteligência coletiva?

Estou convencido de que sim. Os meios de comunicação oferecidos à humanidade, as redes digitais instantâneas parecem ter um objetivo principal: alimentar ou criar uma coerência global. Um blog adquire a sua legitimidade se for identificado com outros blogs, e o primeiro sítio que surge no Google é aquele que é ‘hyperligado’ pelo maior número de sítios... Essa legitimação por parte da coletividade carrega os seus perigos: ela se defende contra o individual e despreza aquilo que é marginal ou fora dos padrões. Mas também representa um enorme potencial que pode mudar profundamente a nossa relação com o mundo. O humano da condição inumana está bem mais próximo da formiga - que vive, existe e compreende o universo através de sua coletividade – que não é o de um indivíduo autônomo, consciente e singular.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Sobre sonhos...(6)


Volto à questão dos sonhos, desta vez para abordar a tentativa de obter a lucidez onírica já a partir do momento em que os sonhos se iniciam. Ou seja, entrar em estado de sonho sem perder a lucidez.


A fim de obter esse resultado - ou seja, entrar no sonho já lúcido - tenho procurado prolongar o estado de atenção ao máximo, o que tem me levado a interessantes experiências durante o estado hipnagogico, que é aquele estado "intermediário". O prolongamento desse estado por até 1 hora acabou tornando-se uma espécie de "meditação", um estado muito particular de "conciência alterada" e que me deram alguns insights.


Percebi que os pensamentos fluem cada vez mais livremente, numa espécie de hipnose e que esse processo exerce uma espécie de "sedução" sobre a minha "consciência". Se deixarmos o processo ir adiante, o estado de atenção tende a diminuir e, repentinamente, o sonho surge, não como decorrência daquelas idéias e sensações do estado hipnagogico, mas abruptamente, como ruptura, surgindo imagens completas e cenários com grande dose de realismo que não guardam, via de regra, relação imediatamente identificável com as sensações do estado precedente.


Diria que, nesse ponto, o sonho já se formou, porém, o "Ego onírico" ainda não atua, não está formado, ficamos apenas como "espectadores". Creio que o "Ego onírico" só se forma e atua (interage) com as imagens num segundo momento, quando estas se estabilizam.


Recentemente, senti o seguinte: no estado hipnagogico, parece que uma das primeiras coisas que ocorre é a perda do referencial corporal, ou seja, as idéias, imagens e sensações se sucedem, porém sem que o corpo esteja presente como referencial.


O que me veio durante esse estado é que a Razão precisa desse referencial – por isso ela é a primeira "vítima" da perda do corpo. A Razão desaparece, sobrando apenas sensações e um encadeamento aparentemente desconexo de idéias, imagens etc.


Se voce prolongar mais tempo esse estado, pode ocorrer uma sensação de confusão, pois como não há mais o referencial do corpo, é como se o Ego (ou a consciência ordinária) não tem mais ao que se apegar - valendo dizer, o Ego ordinário perde seus referenciais.


E esse é o dilema que me encontro agora. Pois se o estado hipnagogico leva à dissolução do Ego, torna-se necessária a formação de um outro tipo de consciência - ou seja, um outro tipo de atenção - para que possamos entrar no sonho já lúcidos: um tipo de consciência não ancorada nos apegos ordinários (o corpo, o meio físico etc).


Lendo o Livro Tibetano dos Mortos, percebi que há descrições muito semelhantes sobre o processo da morte: parece que, com a perda dos referenciais físicos e emocionais, o que resta de "consciência" enfrenta um dilema:


1) se esse “Eu” não conseguir "transcender" ou desapegar dos apegos ordinários, viverá um grande estado de confusão, buscando, posteriormente, desesperadamente outras coisas a que se apegar. Daí, segue-se a encarnação em um dos 6 reinos. Aqui, tratando-se de sonhos, o que proponho é que esta "encarnação" se faz por meio do sonho ordinário, que fornece a resposta adequada à pergunta de um Ego comum - por meio dos sonhos convencionais;


2) ou, alternativamente, se a "consciência", agora desprovida de referenciais, consegue transcender, ruma para a iluminação. Aqui, no caso dos sonhos, uma consciência sem apego entra já lúcida no sonho - ou mesmo um outro tipo de estado de consciência.

A questão, portanto é: como manter a atenção sem que o Ego ordinário atue ?

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

SONHOS: UMA PORTA ESQUECIDA - "A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje"


Por: Cleber Monteiro Muniz
http://gballone.sites.uol.com.br/colab/cleber.html#1



Texto registrado.A divulgação deste artigo é autorizada desde que citados a fonte e o autor.








"I was but a traveler floating endless through the sea, on the other side of knowledge through the pliancy of dream."
(Solitude Aeturnus)



Nos tempos antigos, os sonhos eram considerados como a expressão de um mundo verdadeiro e diferente deste. O mundo espiritual era visto como importante e real, ao contrário do que ocorre hoje. As visões oníricas eram tomadas como o contato do homem com a dimensão desconhecida da existência. Disso decorria a grande importância atribuída aos sonhos nas culturas antigas e confirmada por Sanford (1988) ao abordar a questão da depreciação dos sonhos nos dias atuais:
"(...) enquanto nosso tempo ignora e despreza o assunto dos sonhos, nos tempos antigos eles eram muito mais valorizados. Tanto quanto conheço, não existe nenhuma cultura antiga na qual os sonhos não fossem vistos como extremamente importantes." (p.12)

Ao contrário do que ocorre na cultura moderna, na qual não se presta atenção cuidadosa aos sonhos e se os considera desprezíveis, o homem antigo atribuía importância extrema às experiências oníricas. Essa valorização demonstra que eram entendidos como portadores de alguma forma de realidade pois do contrário não seriam tomados em tamanha consideração. Não se dá importância ao que não existe. Até mesmo uma mentira ou um boato precisam existir, ainda que seja sob a forma de uma idéia vaga na cabeça de alguém, para que se dê a eles alguma importância.

Os comportamentos irracionais do homem, presentes ainda no mundo de hoje, seriam, para os primitivos, sinais da existência de uma realidade espiritual que envolveria forças que os ultrapassavam. Tais forças, incompreensíveis, moveriam os seres humanos e os arrastariam a comportamentos subversores do controle consciente, sendo, além disso, parte de um universo invisível e poderoso mas acessível por meio dos sonhos, nos quais também irromperiam. O mundo espiritual manifestado em sonhos corresponderia a uma forma específica de realidade que seria sinalizada pelo comportamento humano irracional. Haveria ligação entre o ato de nos comportarmos como se estivéssemos possessos e os sonhos pois um seria sinal do outro:

"O comportamento humano não é racional e a humanidade se comporta em todo o mundo como se fosse possessa. Para o homem primitivo tudo isso era sinal óbvio da realidade do mundo espiritual que lhe aparecia nos sonhos. (...) Persistimos em nosso materialismo racionalista, sob a ilusão de que somos racionais e os outros não. Se há distúrbios em nossos sentimentos e em nossa afetividade, atribuímos a causa ao que os outros nos fazem e continuamos pensando que só tem sentido o que nos parece lógico e racional, que só é real o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e provamos. Os sonhos tem sentido, mas um sentido que não é lógico. São muito reais, mas sua realidade não é apreendida por nenhum dos sentidos do nosso corpo." (idem, p. 14, grifos meus)

Nos dias atuais, acreditamos que aquilo que não compreendemos não existe. Segundo essa forma de pensar, a existência não possuiria um aspecto desconhecido, um lado não entendido; o incompreensível seria inexistente. Levada ao extremo, tal idéia nos leva a crer que sabemos tudo, que não há mistérios. Trata-se de uma violenta inflação egóica. Em decorrência dessa inflação, rechaçamos o mundo dos sonhos enquanto modalidade especial de realidade por não compreendê-lo. Nosso ceticismo arbitrário não nos permite aceitar a existência daquilo que não conseguimos compreender através dos cinco sentidos. Esses são os únicos instrumentos que sabemos usar em nossos processos de cognição. Ignoramos que o problema está em nós e não no mundo onírico e que temos uma consciência adormecida e medíocre que nos impede de experimentar outras realidades. Não colocamos atenção sincera na limitação dos nossos sentidos usuais. Não percebemos os sonhos diretamente pelos órgãos sensoriais externos e, por isso, pensamos que eles não existem, nos esquecendo de que a realidade possui níveis ou facetas usualmente não-sensoriais. Em tais condições, tudo se passa, para nós, como se o usualmente não-sensorial fosse o nada. Se isso fosse verdade, não haveria um espectro contendo sons inaudíveis e feixes luminosos invisíveis ao olho nu, detectáveis apenas com o uso de equipamentos modernos.

Nem mesmo a religião conseguiu ampliar nossa consciência na direção de captar mais diretamente as realidades internas, apesar de aparentemente se posicionar contra o arbitrário ceticismo reinante. A igreja "já poderia nos ter resgatado dessa filosofia materialista e arrogante, se ela mesma não tivesse renegado suas próprias tradições e, como tudo o mais, sucumbido ao materialismo racionalista dos nossos dias.(...) Ao enfatizar a vida da instituição mais do que a da alma, deixou de lado os sonhos.(...) Foi o que minou a base da vida espiritual da igreja, expondo-a ao mesmo materialismo e racionalismo que ela combatia e que se estendeu pelo mundo inteiro. A igreja preferiu ignorar o fato de que a rejeição aos sonhos ia contra a visão contida na bíblia e no cristianismo primitivo." (ibidem, p.14).
O significado que o mundo dos sonhos possui para os religiosos de hoje seria completamente estranho às comunidades cristãs do séc I. Ao rechaçá-lo, nossa igreja teve suas bases espirituais minadas. A vitalidade espiritual perdeu seu alicerce.

Certos sonhos que servem de fundamento às experiências religiosas possuem impressões de realidade tão impactantes que chegam ao ponto de aterrorizar o sonhador (Sanford, 1988). Eles "parecem carregados, de modo especial, com energia psíquica. São os sonhos chamados 'numinosos'. A palavra vem do latim numen, que significa a divindade ou a força espiritual atuante. Dizemos que experimentamos algo numinoso quando isso parece nos levar a participar da natureza de uma realidade espiritual diferente, que existe para além de nossa natureza pessoal. (...) A santidade de Deus é a própria numinosidade. [Rudolf] Otto enfatiza que, diante do Deus de Israel, o homem sente temor, admiração, horror, enfim, sente o ser próprio de criatura. A numinosidade constitui a matéria-prima da experiência religiosa." (pp. 33-34, grifo meu).
Experiências oníricas numinosas nos dão a sensação de participar de uma realidade transpessoal. Sentimos estar em contato com algo verdadeiro que está além de nós mesmos e nos ultrapassa. Obviamente, a experiência não provocaria terror se o seu conteúdo não fosse tomado como real.

Segundo a Bíblia, a realidade transcendente se revela ao homem durante as horas do sono, embora ele não perceba:

"(...)Deus fala de um modo, sim, de dois modos mas o homem não atenta para isso.Em sonho ou em visão de noite, quando cai o sono profundo sobre os homens, quando adormecem na cama, então lhes abre os ouvidos e lhes sela a sua instrução, para apartar o homem do seu desígnio e livrá-lo da soberba; para guardar a sua alma da cova e a sua vida de passar pela espada." (Jó 33. 14-18, grifo meu)

Deus instrui o homem dentro do mundo onírico e torna-o receptivo à Sua instrução. Ele o protege e o ajuda a evitar a morte e a espada do inimigo. Isso não seria possível se o mundo dos sonhos fosse tomado como irreal.

Na autobiografia de um filósofo e teólogo persa do século XI, Al-Ghazzali (apud James, 1995), a realidade dos sonhos chegava a ser vista como a de um estado similar ao de Deus e fornecer o dom da profecia. Ele considerava que:

"Deus aproximou o profetismo dos homens ao dar-lhes um estado análogo a Ele em seus caracteres principais. Esse estado é o sono. Se dissésseis a um homem sem nenhuma experiência com um fenômeno dessa natureza que existem pessoas capazes, em dados momentos, de desmaiar de modo que pareçam mortas e que [nos sonhos] ainda percebam coisas que estão ocultas, ele o negaria [e exporia suas razões para isso]. Não obstante, suas alegações seriam refutadas pela experiência real." (p. 253)

Segundo Harnisch (1999), os sonhos, enquanto acontecimentos pertencentes a uma realidade paralela à vígil, eram levados a sério pelos índios da América do Norte. Os Sioux acreditavam que o mundo físico era apenas uma sombra do onírico, o qual chamavam de "mundo real", como vemos na história de Cavalo Doido (Brown, 1987):

"Desde o tempo da juventude, Cavalo Doido soubera que o mundo onde viviam os homens era apenas uma sombra do mundo real. Para chegar ao mundo real tinha que sonhar e, quando estava no mundo real, tudo parecia flutuar ou dançar. No seu mundo real, seu cavalo dançava como se estivesse furioso ou doido e por isso é que se chamou Cavalo Doido. Aprendera que, se sonhasse consigo no mundo real antes de ir para uma luta, poderia resistir a qualquer coisa." (p.210)

Segundo a história, foi por meio do conhecimento adquirido em sonhos que Cavalo Doido venceu sua maior batalha.

Além de real, o mundo dos sonhos era visto como tendo conexões com o mundo externo. Uma conexão de tal natureza pode ser encontrada em um relato de Enoch, infelizmente depreciado pela igreja e pouco divulgado, a respeito dos momentos que antecederam sua viagem através dos sete mundos celestes:

"No primeiro dia do primeiro mês, estava eu sozinho em minha casa descansando no meu leito, quando adormeci.E quando estava adormecido, uma grande tristeza tomou conta do meu coração e chorei durante o sono, e não podia entender que tristeza era aquela ou o que iria acontecer-me.E então me apareceram dois homens, extraordinariamente grandes, como eu nunca vira antes na Terra; suas faces resplandeciam como o sol, seus olhos eram como uma chama e de seus lábios saía um canto e um fogo variados, de cor violeta na aparência; suas asas eram mais brilhantes do que o ouro, suas mãos mais brancas do que a neve.Eles estavam em pé, na cabeceira do meu leito e puseram-se a chamar-me pelo nome.Acordei e vi claramente aqueles dois homens, de pé, na minha frente."(O livro dos Segredos de Enoch 1: 4-8)

Os homens que Enoch viu em sonho estavam na cabeceira de sua cama. Ao acordar, ele diz ter visto os mesmos homens à sua frente. De acordo com o relato, parece haver ocorrido uma sincronicidade: ele sonhou com algo e logo em seguida vivenciou a mesma cena no mundo externo. Os mesmos homens vistos por Enoch durante o sonho eram os que estavam em pé próximo à sua cama quando ele acordou.

Um contato com o mundo espiritual na ausência da vigília pode ser encontrado em uma revelação de Isaías. O profeta teve uma visão durante a qual perdeu os sentidos externos. Ele se manteve em silêncio e foi dado como morto pelos que o observavam:

"E enquanto Isaías falava sob a inspiração do Espírito Santo, e todos o escutavam no mais profundo silêncio, o seu espírito foi elevado acima dele mesmo, e ele não mais enxergou os que estavam em pé diante dele.E seus olhos permaneciam ainda abertos, mas a sua boca não proferia mais palavras, e o seu espírito foi levado acima dele mesmo.Ele, no entanto, vivia ainda; mas estava imerso numa visão celeste.E o anjo que lhe fora enviado para revelar-lhe esta visão não era um anjo deste firmamento, nem um desses anjos gloriosos deste mundo: era um anjo descido do sétimo céu.E o povo que lá se encontrava com a assembléia dos profetas acreditou que a vida de Isaías tinha-lhe sido subtraída.E a visão do santo profeta não foi deste mundo aqui, mas uma visão do mundo misterioso no qual não é permitido ao homem penetrar."(O Livro da Ascensão de Isaías 6: 10-15)

De acordo com o escrito, nos momentos em que os olhos de Isaías deixaram de captar as pessoas à sua frente, ele tinha uma visão de outro mundo, misterioso e impenetrável. Seus olhos se mantiveram abertos durante o contato, um possível indicador de que seu estado era o de um sonâmbulo ou algo semelhante. O fato do povo reunido julgá-lo sem vida é um indicador de que certas funções corporais típicas de quem está vivo, como o movimento e a fala, haviam sido suspensas (cadáveres normalmente não se movem). O estado do seu corpo não era vígil uma vez que não havia consciência desta realidade externa. A mesma ausência de consciência ocorre no sono usual, no sonambulismo, no desmaio, na meditação, no transe ou no coma: em todos esses estados o funcionamento das exopercepções é interrompido e o corpo desfalece. Entendo que sua consciência deixou o mundo externo e penetrou na dimensão onírica ou fez algo muito próximo disso, pois o profeta não dava sinais de estar acordado. O universo onírico existe paralelamente ao físico sob a forma psíquica (os mundos interno e externo são simultâneos e paralelos) e, em geral, quando se abandona um se vai para o outro. Em todo caso, o mundo acessado nessa experiência foi considerado real, o que favorece a afirmação de que os antigos não depreciavam a realidade interior.

Como se vê, os estados em que a consciência deixava o corpo físico eram a ponte para a realidade espiritual. As experiências que se tinha durante o sono funcionavam como portas ou "portais", através dos quais o homem poderia contatar outras realidades, distintas da usual. O universo além dos limites do estado vígil não era considerado irreal e nem visto como algo que tivesse uma existência vaga e ilusória ou, para ser mais exato, uma pseudoexistência. O fato de ser tratado como uma forma de manifestação divina demonstra que esse mundo era tomado em consideração seriamente.

A experiência mística era obtida enquanto se dormia. E nesse estado se poderia obter a autoridade de quem teve uma revelação de Deus. Uma autoridade de tal natureza, proporcionada pela experiência religiosa profunda, pode, segundo Willian James (1995) chegar a destruir as bases da formal concepção lógico-racional de realidade pois os "estados místicos, quando bem desenvolvidos (...) quebram a autoridade da consciência não mística ou racionalista, que se baseia apenas no intelecto e nos sentidos. Mostram que esta não passa de uma espécie de consciência. Abrem a possibilidade de outras ordens de verdade nas quais, na medida em que alguma coisa em nós responda vitalmente a elas, possamos continuar livremente a ter fé." (p. 263, grifo meu).
Para ele, há várias formas de consciência que dão acesso a vários tipos de realidades e a religiosa, aquela que se tem nos estados místicos, seria uma delas. Deste modo, as experiências religiosas possuiriam um fundamento real, peculiar ao tipo de consciência que lhe corresponde, e não falso. Foi o que ocorreu com Enoch e Isaías, que tiveram experiências religiosas em estado extra-vígil e autênticas à sua maneira, desde um ponto de vista espiritual.

Atualmente, a valorização dos sonhos parece estar retornando. O ceticismo arbitrário, aquele que está fixo na dúvida unilateral e busca adaptar os fatos à teoria (crença) e aos métodos ao invés de adaptar estes últimos às evidências, está retrocedendo e a realidade do mundo onírico sendo levada em consideração. Sanford (1988) entende que hoje a ciência está investigando com mais cuidado e seriedade os desafios cognitivos que lhe são lançados pelos sonhos:

"Atualmente, estamos nos aproximando da mudança. Durante o século XX, o sonho volta a se tornar objeto válido de estudo e investigação. E temos, por exemplo, as pesquisas sérias relativas ao sono e aos sonhos que começaram a ser feitas depois da Segunda Guerra Mundial." (p.15)

Compreender a importância de explorar o mundo dos sonhos ao invés de esquivar-se ingenuamente dos problemas postos por ele é ampliar as fronteiras da ciência. É também aproximar-se mais da visão de Isaías, Enoch, Jó, dos povos ágrafos atuais e das culturas antigas e "pagãs", recuperando as bases verdadeiramente espirituais do cristianismo primitivo, descartadas pela igreja .

A idéia de um mundo interior real é compartilhada por Saiani (2000) para quem o pressuposto de que a "realidade objetiva" e o "puramente subjetivo" diferem é preconceituoso uma vez que a realidade abrange eventos físicos e psíquicos. Levada adiante, isso significa que existem objetos psíquicos assim como existem objetos físicos e que nem sempre o psíquico é subjetivo.

Além disso, Jung (1986) entendia que o eu está contido em um mundo, que esse mundo era a alma e que seria razoável atribuir-lhe a mesma validade que se atribui ao mundo empírico uma vez que ela possui tanta realidade quanto ele. Segundo seu pensamento, a psicologia deveria reconhecer que o físico e o espiritual coexistem na psique e que, por razões epistemológicas, esse par de opostos foi cindido pelo homem ocidental ( idem).

Dentro do homem há um universo verdadeiro, feito de imaginação, que se faz notar incessantemente por meio de pensamentos, sentimentos, recordações e dos sonhos, quando então se faz mais espesso e tangível. Esse mundo no qual a ciência está penetrando aos poucos, pertence a uma dimensão desconhecida do espírito humano. Nós a chamamos de inconsciente porque não temos, usualmente, contatos conscientes e diretos com ela (Sanford, 1988):

"(...)eis uma teoria básica sobre os sonhos: originam-se em outra dimensão de nossa personalidade a qual, pelo fato de não termos consciência da mesma, é chamada de inconsciente. (p.29, grifo meu)
Além desta dimensão em que vivemos durante a vigília, há outra: a dimensão do inconsciente. As regiões de onde os sonhos provém parecem ainda ser pouco acessíveis à investigação científica no nosso atual estágio de desenvolvimento. Entretanto, a consideração séria dos mesmos enquanto realidade passível de estudo livre e dos relatos de pessoas que os experimentam conscientemente pode abrir novas portas nesse campo e ajudar a dissipar nossa ignorância, além de ocupar um espaço que de outra forma poderia ser destinado ao charlatanismo e às mistificações irresponsáveis.

Dados do autor para bibliografia:
Monteiro Muniz C - A realidade do mundo dos sonhos nos tempos antigos e hoje, in. PsiqWeb Psiquiatria Geral, 2001, disponível em http://gballone.sites.uol.com.br/colab/cleber.html

Referências bibliográficas:

JAMES, William. As Variedades da Experiência Religiosa: Um Estudo sobre a Natureza Humana. (The Varieties of Religious Experience). Trad. de Otávio Mendes Cajado. Décima edição, 1995. São Paulo, Cultrix.

JUNG, C.G. & Wilhelm, R. (organizadores). O Segredo da Flor de Ouro: Um Livro de Vida Chinês. Trad. de Dora Ferreira da Silva e Maria Luíza Appy. Terceira edição. Petrópolis, Vozes, 1986.

O Livro da Ascensão de Isaías. In TRICCA, Maria Helena de Oliveira (org. e comp.). Apócrifos : Os Proscritos da Bíblia. Edição de 1995. São Paulo, Mercúrio, 1992.

O Livro de Jó. In: A Bílblia Sagrada: O Antigo e o Novo Testamento. Trad. de João Ferreira de Almeida. Segunda edição. Barueri, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

O Livro dos Segredos de Enoch (II Enoch). In TRICCA, Maria Helena de Oliveira (org. e comp.). Apócrifos : Os Proscritos da Bíblia. Edição de 1995. São Paulo, Mercúrio, 1992.
SAIANI, Cláudio. Jung e a Educação: Uma análise da relação professor/aluno. Primeira edição. São Paulo: Escrituras, 2000.

SANFORD, J. A. Os Sonhos e a Cura da Alma (Dreams and Healing). Trad. de José Wilson de Andrade. Terceira edição. São Paulo, Paulus, 1988

A água, recurso estratégico no século XXI (2): Conflitos por água doce




Conflitos por água doce


Por: Gilberto Dupas


"A importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm", constata Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 19-01-2008. Segundo ele, a "América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos".

Eis o artigo:



Na medida em se torna globalmente mais escassa, a água doce deixa de ser considerada um bem público. De acordo com o poder dos diferentes grupos, ela se torna propriedade cada vez mais privada e menos comum, gerando um grave conflito ecológico distributivo. No caso do Brasil, a complexa e pouco aprofundada polêmica sobre a transposição das águas do Rio São Francisco é um importante ensaio inicial sobre essa questão.

Os severos estragos que a poluição por resíduos químicos e o aquecimento planetário estão fazendo nos estoques mundiais de água doce os colocam como prioridade na discussão estratégica sobre poder - e pode abrir imensas oportunidades para a América do Sul. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), já há mais de 1 bilhão de pessoas no planeta com severa carência de água potável; e vários cenários internacionais consideram que a disputa pelo acesso a ela poderá conduzir a inúmeros conflitos regionais. Uma pesquisa feita pela CIA, pelo Ministério de Defesa britânico e pela PriceWaterhouseCoopers prevê várias possibilidades de futuras guerras por água no Oriente Médio, Ásia e África subsaariana. Na Europa, enquanto bilhões de euros são gastos na despoluição dos seus rios, cresce o mercado de importação desse líquido vital. A água doce não poluída de superfície já não é suficiente para atender à população dos EUA. Mais grave ainda é a situação das águas subterrâneas, envenenadas progressivamente por produtos químicos e bactérias, pela marcha da industrialização. A redução da disponibilidade de água já está gerando pesadas disputas naquele país. Os consumidores consideram-na um bem público essencial à saúde e à vida. Já os fornecedores negam qualquer relação entre acesso à água potável e temas como direitos humanos e questões sociais. Em busca de novas possíveis fontes de água, a atenção dos norte-americanos volta-se para o sul do continente. Alguns especialistas detectam estar-se moldando uma Doutrina Monroe ambiental, segundo a qual os recursos naturais do Hemisfério devem levar em conta as prioridades dos EUA. O México, com situação ainda tranqüila, pode vir a ser o primeiro a ser pressionado.

Esse quadro crítico, no entanto, se inverte na América do Sul, onde a água doce ainda é abundante. Com 12% da população mundial, possuímos 47% das reservas de água globais, e boa parte delas se encontra submersa. Às grandes Bacias do Amazonas, do Orenoco e do Prata, mais inúmeros rios, lagos e estuários, se somam aqüíferos de grande porte, entre os quais o Guarani - o terceiro maior do mundo -, espalhado pelos territórios do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e da Argentina. Muitos estudiosos acreditam que quem controlar os recursos ambientais da tríplice fronteira - o que inclui aquele aqüífero - terá a seu dispor matérias-primas essenciais para a manutenção da vida e para a sustentabilidade de processos produtivos geradores de desenvolvimento econômico e social em amplas áreas do Cone Sul.

Quanto à exportação de água, é preciso lembrar que sua forma mais eficaz ocorrerá de maneira crescente por via indireta, por meio de alimentos e produtos industrializados que a utilizem em seu processo produtivo. São necessários 1.650 litros de água para produzir 1 kg de soja, 1.900 para 1 kg de arroz, 3.500 para 1 kg de aves e 15 mil para 1 kg de carne bovina. O mesmo ocorre com produtos industrializados. São 10 litros de água para 1 de gasolina, 95 para 1 kg de aço, 324 para 1 kg de papel e 600 litros para 1 kg de cana-de-açúcar voltada para a produção de etanol. Como se vê, a importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm. A América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos. No caso dos industrializados, a água agrega ainda mais valor em função do maior preço. Se esses fatores não forem adequadamente incluídos nos preços, a divisão internacional do trabalho e da produção poderá impor mais uma vez restrições futuras importantes aos países sul-americanos.

Há quem chame também a atenção para eventuais ações norte-americanas na América do Sul. Estudo realizado por John Ackerman, do Air Command and Staff College da US Air Force, diz: “Nós (EUA) deveremos passar progressivamente da guerra contra o terrorismo para o novo conceito de segurança sustentável.” E cita, como motivações para intervenções armadas, secas, crises da água e eventos meteorológicos extremos. O Center for Naval Analysis, em relatório recente, asseverou que “a mudança climática é uma realidade e os EUA, bem como o Exército, precisam se preparar para as suas conseqüências”. Na mesma perspectiva, o Plano do Exército Argentino 2025 vê “a possibilidade de conflito com outros Estados pela posse de recursos naturais”, com destaque para o Aqüífero Guarani, como o problema que mais tem possibilidades de conduzir a conflitos bélico com vizinhos. E afirma que o país “deverá desenvolver organizações militares com capacidade para defender a nação de um inimigo convencional superior”, incluindo a organização de resistência civil.

Como vemos, a América do Sul pode ter na escassez da água doce global uma enorme vantagem mundial, ou meter-se em encrencas internas e hemisféricas. Tudo depende de bom senso, visão estratégica e articulação conjunta entre os países da região. Essa é uma oportunidade preciosa, num mundo que caminha para difíceis impasses.



A água, recurso estratégico no século XXI (1)




23/1/2008

Atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada na produção de alimentos e tecidos



"Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina", constatam Klaus Schwab, undador e presidente-executivo do World Economic Forum; e Peter Brabeck-Letmathe é presidente e chief-executive officer da Nestlé, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 23-01-2008.


Informando que este será um dos temas a ser discutido em Davos, eles afimam que "não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura".

Eis o artigo.


Com economias e populações crescentes, o mundo está à beira de uma crise de abastecimento de água. É importante ter consciência exatamente de qual o montante de água necessário para fazer a economia funcionar. Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina. Até a produção das necessidades mais básicas da economia, como cimento, aço, químicas, mineração e geração de energia precisam de toneladas de água.

Em 2007 testemunhamos o impacto nos preços dos alimentos causado pela combinação de seca e migração de safras para a produção de biocombustíveis. A água é o maior problema que podemos ver nesse assunto, pois tem o potencial de gerar um impacto muito mais profundo nos consumidores e eleitores. Nas áreas agrícolas ao redor do mundo, que ajudam a alimentar populações urbanas de rápido crescimento, estamos nos aproximando do momento em que serão necessárias concessões dolorosas. Devemos usar a água tão escassa para alimentos, combustível, pessoas e cidades ou para o crescimento industrial? Qual a quantidade exata de água de um rio que pode ser represada? Como encontramos medidas para garantir que cada participante da economia consiga receber a água necessária para suas necessidades humanas e aspirações culturais e econômicas? E como podemos garantir a preservação do meio ambiente e seu desenvolvimento?

São perguntas difíceis. Ao contrário da redução de carbono, não existe uma alternativa, nenhum substituto. E não existe uma solução global que possa ser negociada. A água é local, por isso bacias de água serão pontos de grande tensão no futuro. São áreas grandes, que alimentam os maiores rios do mundo. Essas regiões abrigam milhões de pessoas, áreas para agricultura, florestas, cidades, indústrias e, freqüentemente, atravessam várias fronteiras políticas. A água utilizada para agricultura, na produção de alimentos e tecidos, será estudada com atenção - atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada nesses setores.

A pedido do International Water Management Institute, 500 cientistas testaram a água usada para a agricultura. O relatório desse estudo levou cinco anos para ser produzido e mostrou que não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura.

As mudanças climáticas devem acelerar esse processo, tornando-o ainda pior. O último relatório do IPCC mostrou que, se as temperaturas médias globais subirem em 3 graus Celsius, centenas de milhões de pessoas sofrerão com a falta de água. Esse é o alerta que precisávamos para começar a agir.

Os indícios dessa crise devem começar a aparecer nos próximos anos. E isso tudo em conjunto com a situação moralmente indefensável de 20% da população global que ainda vive sem acesso à água potável.

Mas ainda não é uma catástrofe. A solução se encontra em uma ação coletiva. As empresas podem otimizar a utilização da água e conseguir avanços significativos. Existem muitos casos de sucesso. Mas todos devem trabalhar juntos para mudar o cenário. Isso torna o desafio ainda mais difícil. Ainda há tempo para enfrentar esse problema. Com rapidez, inovação e novas formas de colaboração entre governo e empresas essa crise ainda pode ser evitada.

É nesse contexto que estaremos nos reunindo no Encontro Anual do World Economic Forum para debater o perfil político e econômico da água - para conscientizar colegas de trabalho, políticos e a sociedade sobre a necessidade de mudança para enfrentar esse desafio. Como podemos começar agora para garantir um mundo com água suficiente para todos no futuro, inclusive para nossos próprios negócios, até 2020? O nosso objetivo nessa reunião em Davos, na Suíça, é de criar uma Parceria Público-Privada inédita, de alto impacto, para ajudar a encontrar meios de gerir as necessidades futuras de água antes que haja uma crise.





terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Sobre a música...


À medida em que apuramos nossa sensibilidade, parece ocorrer um fenômeno ímpar: não apenas ficamos mais à vontade com a diversidade, como também a percebemos em todos os lugares. É como se começássemos a enxergar beleza onde antes víamos o caos ou confusão. Ao sentirmos beleza e harmonia, por sua vez, abrimos as linhas de defesa, e tornamo-nos ainda mais receptivos, num ciclo virtuoso.
Esse processo atinge também nossos gostos: começamos a tomar contato com o diverso e também a apreciá-lo, não mais nos sentindo estranhos, entediados ou desconfortáveis, mas ficamos instigados e tocados diante dele. Esse fenômeno não é de maneira alguma trivial, mas produz um efeito profundo no nível inconsciente - e quiçá em outros niveis... - provocando uma verdadeira mudança de perspectiva acerca do mundo.
É sabido que nosso inconsciente é sensível não apenas ao discurso "manifesto" - aquele que o consciente racional identifica de maneira imediata - mas antes à forma como a mensagem é dita. Em outros termos, para o inconsciente, "a estrutura é a própria mensagem". Se, por exemplo, algém te diz "eu te amo" de maneira pouco sincera, é bem provável que no nível inconsciente você entenda: "esse sujeito é um mentiroso etc" e você ficará inseguro(a) na relação.
É como se estivéssemos diante de vários níveis de linguagem e de conexão com o mundo: 1) um nível mais grosseiro, consciente, "manifesto", racional, explícito. Esse é o nível do pensamento, onde as idéias são formadas de maneira aparentemente autônoma. É o nível lógico; 2) um nível já mais sutil de ser apreendido, que poderíamos chamar de linguagem emocional e que já finca raízes no inconsciente; 3) um nível ainda mais sutil, que poderia chamar "espiritual", onde apreendemos que a harmonia subjaz exatamente onde os níveis "racional-consciente" e "emocional" percebem apenas o tédio ou o caos (ou seja, onde esses níveis não atribuem significado algum). Aqui, eu situaria a compaixão, o respeito, a delicadeza...; 4) outros níveis, que, sinceramente, ainda não vivenciei...
Fiquemos, portanto apenas nos três primeiros níveis.
Esses níveis de linguagem e de apreensão-interpretação do mundo interagem entre si, de alguma forma produzindo a visão total pelo qual o indivíduo apreende o mundo e sente sua vida. Porém, conforme a "perspectiva" adotada pelo indivíduo, haverá uma cisão maior ou menor entre eles. Ou melhor, penso que a real ou mais significativa diferença entre os seres - a maneira pela qual eles apreendem o mundo e vivenciam suas existências - reside e resulta exatamente no/do grau de separação entre os níveis; e que se traduz no grau de liberdade e de felicidade com que cada um vivencia sua existencia. Em suma, não importa o grau de erudição, de riqueza etc., o que importa é: até que ponto sou um ser livre, até que ponto sou realmente feliz, mesmo que trancado sozinho em um quarto escuro ? A resposta a essas indagações encontram-se exatamente no grau de cisão psíquica, de separação entre os níveis acima.
É nesse sentido que gostaria de falar algo sobre a música pop.
Ainda que estejamos diante de uma música "discursivamente" contestadora (portanto, no nível "consciente"), parece-me que a estrutura musical (no nível "inconsciente") consiste em uma infindável repetição e, sobretudo, em previsibilidade (basta voce ouvir os primeiros segundos da música, que voce já sabe o que esperar do resto; e, o que é pior, uma música tanto fará mais sucesso quanto mais competente for no cumprimento dessa previsibilidade). É como se, para o inconsciente, a mensagem musical fosse: É ISSO, É ISSO, É ISSO, É ISSO... O que também significa dizer: ESPERE ISSO MESMO, É ISSO QUE VAI ACONTECER, ESPERE ISSO MESMO, É ISSO QUE VAI ACONTECER... etc. Independentemente do discurso adotado. Ou seja, um processo ideológico de reafirmação é produzido em consonância com (e por) um universo simbólico que busca suprimir o inesperado, o diverso, o singular. Uma ideologia que apenas reafirma o senso-comum e, mais ainda, busca convencer os indivíduos de que "fora do senso-comum, só há barbárie...".
Ora, aqui surge, em minha opinião, um diferencial importante em relação à música erudita. Esta expressa algo bem diverso daquela reafirmação, pois sua estrutura é infinitamente mais complexa, harmoniosa e, sobretudo, inesperada.

É normal, portanto, que no processo de sensibilização, o gosto musical se transfira para a música clássica, cuja linguagem é mais harmoniosa ao nível inconsciente para o indivíduo agora "mais desperto" para as singularidades.

Porém, mesmo no interior do campo da chamada "musica erudita", penso haver uma diferenciação nesse sentido. Pois se a música romântica tem um inegável apelo emocional, compositores como Bach, Vivaldi, Mozart inserem-se dentro de um campo de maior harmonia, mais sutil, diria mesmo "espiritual".

E é nessa mesma linha que avanço um pouco mais, ao propor que o mais harmonioso dos sons é o som produzido pelo próprio mundo, com sua infinita diversidade, imprevisibilidade e, por que não dizer, harmonia !


segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O colapso do agronegócio e a agricultura do futuro




21/1/2008


Por: Gerson Teixeira

“A pequena produção agroecológica se credencia para dominar a paisagem agrária do futuro”, afirma Gerson Teixeira, coordenador geral da Associação Brasileira de Reforma Agrária - ABRA, no DF, em artigo publicado no jornal Valor, 21-01-2008. Segundo ele, “a pequena produção agroecológica se habilita para hegemonizar, no futuro, a paisagem agrária, principalmente em países como o Brasil”. Assim, ele defende que “mais do que nunca, reforma agrária, agricultura familiar e meio ambiente devem passar a ser pontos de convergência das agendas das lutas populares no campo. E cumpre que se perceba a necessidade de luta pela revisão do Pronaf à medida que, na concepção atual o programa nivela as formas de gestão e produção dos camponeses às bases de organização da agricultura produtivista. Isto não ajuda a construir o futuro!”

Eis o artigo.

A interação de dois fenômenos estruturais são preditivos de uma atividade agrícola no futuro, organizada sob bases incompatíveis com a manutenção do agronegócio nos termos atuais. O primeiro fenômeno, de ordem econômica, subproduto da modernização conservadora da agricultura, diz respeito à trajetória erosiva, no longo prazo, dos níveis de rentabilidade econômica da base primária da atividade, decorrente do gap continuado entre preços agrícolas e custos de produção. Esse descompasso teve início com a auto-suficiência alimentar da Europa no final da década de 1970. À título de exemplo, de acordo com a FAO, entre 1980 e 2005, os níveis reais dos preços do milho, arroz, trigo e algodão declinaram, respectivamente, 55%, 50%, 46%, 60% e 54%.

Interagem com esse fenômeno os ganhos de produtividade agrícola em escalas incapazes de convergir as curvas dos preços e custos. A este respeito, vale consultar na Central de Informações Agropecuárias da Conab (www.conab.gov.br) os dados sobre a evolução dessas variáveis, para várias culturas, no período de 1998 a 2007.

Nos países ricos, o colapso da agricultura, por força desses fenômenos, tem sido evitado por políticas protecionistas vigorosas que incluem bilhões de dólares em ajuda aos agricultores.

No Brasil, a grande exploração agrícola tem resistido, com competitividade internacional, graças ao concurso de fatores como: a "cultura" da inadimplência no crédito rural, a precarização do trabalho, os baixos preços relativos da terra, o uso predatório dos recursos naturais e os incentivos da Lei Kandir.

Decorre das tendências acima, portanto, a rota desestruturante da base primária da agricultura empresarial, ao que tudo indica, inevitável, à medida que resultante de fatores dificilmente reversíveis, a exemplo do protecionismo agrícola, da imanência excedentária do modelo agrícola e dos processos de concentração e a centralização econômica dos capitais industrial, financeiro e comercial no entorno da atividade agrícola.

Poder-se-ia contra-argumentar que a economia dos agrocombustíveis imporá inflexão nessas tendências. Mas, o governo brasileiro, os agrosenhores e os seus agro-intelectuais garantem que não haverá competição com a produção de alimentos! Aliás, recomenda-se àqueles que ainda apostam na mega-economia dos agrocombustíveis, a interpretação política da lista de bens ambientais, sem o etanol, apresentada em Bali na COP 13, pelos EUA e Europa, em atropelo e desrespeito, como de praxe, às negociações entabuladas pelos mais de 150 membros do Comitê de Comércio e Meio Ambiente da OMC.

Esta ameaça à agricultura empresarial perde intensidade no caso da agricultura familiar e camponesa por conta dos valores e relações com a terra não restritos à lógica marginalista.

Com esta maior blindagem e levando em conta os efeitos do segundo fenômeno tratado na seqüência, a pequena produção agroecológica se habilita para hegemonizar, no futuro, a paisagem agrária, principalmente em países como o Brasil.

O segundo fenômeno deriva dos impactos na atividade agrícola das mudanças climáticas globais e, ao mesmo tempo, das contribuições da agricultura para o aquecimento global.

O mundo se depara com o grandioso (e ao que tudo indica, irrealizável) desafio de reduzir, entre 50% e 80% as emissões de gases de efeito-estufa, nos próximos 50 anos, para evitar que a temperatura global ultrapasse os 2 graus centígrados. E as medidas nesta direção devem ser implementadas, nas hipóteses mais otimistas, no prazo de até 15 anos.

A agricultura contribui de forma importante e será fortemente afetada por esse processo. Calcula-se que esta atividade seja responsável por 30% das emissões globais de gases geradores do efeito estufa. Afora as queimadas em países como o Brasil, o principal fator da contribuição da agricultura para o aquecimento global é o emprego intensivo de fertilizantes químicos. Daí decorre o seguinte dilema: sem a redução massiva da utilização dos agroquímicos não há possibilidade de redução do aquecimento global e, ao mesmo tempo, sem o uso crescente desses insumos a agricultura produtivista estará inviabilizada.

Neste quadro, no qual a grande exploração agrícola conspira contra a sua própria sobrevivência e a do planeta, os impactos do aquecimento global desestabilizadores da agricultura, previstos no último Relatório do IPCC, exigirão mudanças de profundidade na base técnica da agricultura sob pena de severas ameaças à segurança alimentar da população mundial.

É óbvio que os centros de pesquisa em todo o mundo já vêm se empenhando por soluções técnicas agronômicas para as situações de superstress que advirão do aquecimento global. Todavia, se, por exemplo, é possível a obtenção de variedades compatíveis com adversidades ambientais previstas, não parece razoável supor uma atividade agrícola no futuro ultra-intensiva em fertilizantes. A não ser que a opção seja pela destruição do planeta! Não sendo assim, é possível imaginar o atual modelo agrícola, sem os agroquímicos? Aí já seria um outro modelo agrícola!

Do mesmo modo, muitos cientistas asseguram que a agricultura com biodiversidade será essencial para a convivência com os desdobramentos dos mudanças climáticas. Como isto seria possível com um tipo de agricultura no qual a biodiversidade tem sido uma das suas principais vítimas? Além disso, sem monocultivos em escala não há possibilidade de viabilidade econômica para a base primária do agronegócio, nos termos atuais. De novo, agora por razões ambientais, a pequena produção agroecológica se credencia para dominar a paisagem agrária do futuro.

Em suma, se fatores desestabilizadores da natureza e da economia tendem a criar essa oportunidade de hegemonia para a agricultura familiar e camponesa, no futuro, resta que, na política, as suas organizações atuem para tal sob perspectiva estratégica.

Para tanto, mais do que nunca, reforma agrária, agricultura familiar e meio ambiente devem passar a ser pontos de convergência das agendas das lutas populares no campo. E cumpre que se perceba a necessidade de luta pela revisão do Pronaf à medida que, na concepção atual o programa nivela as formas de gestão e produção dos camponeses às bases de organização da agricultura produtivista. Isto não ajuda a construir o futuro!



Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=11776

Jameson. Um pensamento crítico que acertou em cheio.

Fredric Jameson


Por: Benedetto Vecchi



"Para Jameson, o desenvolvimento do capital mina, de fato, pela raiz o projeto do Moderno, radicalizando, todavia, algumas tendências já presentes na modernidade", comenta Benedetto Vecchi, em artigo publicado pelo jornal Il Manifesto, 29-12-2007. Segundo ele, "Pós-modernismo foi, de fato, uma obra seminal sem a qual teria sido impossível pensar um pensamento crítico na altura da grande mutação do capitalismo mundial".

Eis o artigo.

Estranho destino aquele do ‘Pós-modernismo’, o volume de Fredric Jameson que acaba de sair em italiano. Uma obra que assumira as orientações de alguns ensaios publicados na “New Left Review” quando o Muro de Berlim parecia uma presença destinada a durar ainda por séculos, mas que fora publicado nos anos em que as ruínas daquele muro eram vendidas como suvenir de uma era distante no tempo. Um punhado de anos, o tempo exato para inscrever Jameson entre as fileiras dos glorificadores da nova ordem mundial. Um verdadeiro e próprio escárnio para um estudioso que considerava o pós-moderno unicamente como a lógica cultural do capitalismo maduro. O ardil para desmontá-lo. Jameson não mostra realmente nenhuma indulgência com a retórica sobre o fim das grandes narrações que um filósofo francês seu contemporâneo, Jean-François Lyotard, distribuía a mãos cheias através dos seus ensaios.

Lyotard


O capitalismo maduro, argumentava Jameson, é uma totalidade que, no interior da oscilação entre homologação e diferença, prefere esta última para alimentar um pluralismo dos estilos de vida e a presença de identidades prêt-à-porter.

E, para melhor exemplificar sua reflexão, preferia seccionar manufaturas culturais entre si heterogêneas, obras arquitetônicas que devem ostentar o poder das multinacionais ou o aburguesamento das metrópoles americanas, aos romances de Thomas Pynchon, que desestruturam a progressão linear do tempo histórico. Para Jameson, o desenvolvimento do capital mina, de fato, pela raiz o projeto do Moderno, radicalizando, todavia, algumas tendências já presentes na modernidade. Uma mina de sugestões, a sua, que abriu filões de pesquisa até então desconhecidos, chegando a apresentar as obras do último Derrida ou de Michel Foucault não como testemunhos filosóficos, e sim como expressões, embora sofisticadas, de uma sociologia do capitalismo maduro.

A história seguiu depois o seu curso e as teses de Jameson foram liquidadas como um sofisticado exercício acadêmico. Em lugar da pílula pós-moderna se substituíram as fortes identidades baseadas na religião ou no sangue, um pensamento liberal-democrático que escolhe como sua raiz um iluminismo depurado de sua dialética e que aponta o indicador contra os postulados igualitários da democracia, enquanto a ressaca plúmbea do tsunami da globalização abriu caminho à guerra infinita ao terrorismo. Em suma, o pós-moderno de Jameson podia ser deixado à “crítica rotativa dos tópicos”. Mas, diversamente de quanto sustentam os críticos passados e atuais, era, sim, justo arquivar sua reflexão, mas somente porque havia acertado em cheio. Pós-modernismo foi, de fato, uma obra seminal sem a qual teria sido impossível pensar um pensamento crítico na altura da grande mutação do capitalismo mundial. O problema, se for o caso, é continuar sua exploração do presente, considerando a revitalização social-democrática ou as retóricas em torno das fortes identidades como variantes daquela condição pós-moderna que Jameson ensinou a encarar sem se ficar petrificado.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Cotidiano ?




Texto de Rudolf Steiner


Podemos habituar-nos a ser homens vigilantes. Então, muito se poderá observar. Se estivermos vigilantes, não passará um só dia sem que aconteça um milagre em nossa vida. Podemos inverter esta proposição, dizendo que, caso não nos aconteça um milagre em qualquer dia de nossa vida, será simplesmente porque o perdemos de vista. Tentem fazer à noite uma retrospectiva da vida: nela encontrarão um acontecimento pequeno, grande ou médio do qual poderão dizer que entrou e aconteceu em sua vida de maneira totalmente curiosa. Conseguimos perceber isso quando pensamos de forma suficientemente abrangente, quando compreendemos com a visão espiritual as circunstâncias da vida de maneira bastante ampla. No entanto, normalmente não procedemos assim, pois deixamos de indagar, por exemplo, que acontecimento pode ter sido impedido por um fato qualquer.
Em geral não nos preocupamos com os acontecimentos impedidos, os quais, se realizados teriam alterado profundamente nossa vida.Muito daquilo que nos torna vigilantes oculta-se atrás dessas coisas que, de uma maneira ou de outra, são eliminadas de nossa vida. Quantas coisas poderiam ter-me acontecido hoje? Se eu me fizer esta pergunta todas as noites, tendo em vista determinados fatos capazes de apontar esta ou aquela conseqüência, tal pergunta engendrará reflexões que introduzirão a vigilância na autodisciplina.
Isto pode constituir um começo que nos conduzirá cada vez mais longe, finalmente a não só investigar o que significa em nossa vida o fato de que, ao nos termos disposto a sair de casa às dez e meia da amanhã, no último momento um homem qualquer veio-nos reter; ficamos furiosos pelo atraso que causou, mas não indagamos: o que poderia ter acontecido se tivéssemos saído na hora planejada? O que mudou com isso?

O Caminho do Xamã



Por: MICHAEL HARNER

(*) Extraído de http://holosgaia.blogspot.com

Quando o breve crepúsculo equatoriano foi substituído pela escuridão, Tomás pôs um quarto do líquido numa cabaça e disse-me que o bebesse. Todos os índios observavam. Senti-me como Sócrates entre os compatriotas atenienses, aceitando a cicuta — pois me ocorrera que um dos nomes alternativos que o povo do Amazonas peruano dava à ayahuasca era "a pequena morte". Bebi a poção rapidamente. Tinha um sabor estranho, ligeiramente amargo. Então, esperei que Tomás também bebesse, mas ele disse que afinal resolvera não participar.


Amarraram-me na plataforma de bambu, sob o grande teto feito de colmo da casa comunal. A aldeia estava silenciosa, exceto pelo cricrilar dos grilos e os guinchos do macaco ruivo, nas profundezas da selva.


Enquanto olhava para cima, na escuridão, tênues linhas de luz apareceram. Tornaram-se mais nítidas, mais intrincadas e explodiram em cores brilhantes. De muito longe vieram sons, como os de uma cascata, e foram se fazendo cada vez mais fortes, até encherem meus ouvidos.


Minutos antes eu me sentira desapontado, certo de que a ayahuasca não ia ter efeito sobre mim. Agora, o som da água em movimento inundava meu cérebro. Meu maxilar começou a ficar entorpecido, e aquele entorpecimento ia subindo para as têmporas.


Sobre a minha cabeça, as linhas indistintas formavam um dossel que parecia um mosaico geométrico de vidro pintado. A brilhante tonalidade violeta formava um teto que se expandia sem cessar sobre mim. Dentro daquela caverna celestial, ouvi o som da água aumentar e pude ver figuras nebulosas, que faziam movimentos espectrais. Quando meus olhos se ajustaram ao escuro, a cena movimentada reduziu-se a algo que se assemelhava a um imenso parque de diversões, a uma orgia sobrenatural de demônios. Ao centro, presidindo as atividades, e olhando diretamente para mim, havia uma gigantesca cabeça de crocodilo mostrando os dentes, de cujas mandíbulas cavernosas jorrava uma enxurrada torrencial de água. Lentamente, a água foi subindo, até que a cena transformou-se em simples dualidade de céu azul sobre o mar. Todas as criaturas se haviam desvanecido.


Então, da posição onde eu estava, próximo à superfície da água, comecei a ver dois barcos estranhos, vagando de cá para lá, flutuando no ar em minha direção e aproximando-se cada vez mais. Lentamente, juntaram-se, formando uma só embarcação, com imensa cabeça de dragão na proa, não muito diferente de um barco viking. No meio do navio erguia-se uma vela quadrada. Aos poucos, enquanto o barco serenamente flutuava de cá para lá sobre mim, ouvi um som rítmico sibilante e vi que se tratava de uma galera gigantesca, com centenas de remos, movendo-se em cadência com o som.


Tornei-me consciente, então, do mais belo cântico que tinha ouvido em minha vida, em alto som, e etéreo, emanado de miríades de vozes a bordo da galera. Olhando com mais atenção para o convés, pude distinguir grande número de seres com cabeça de gaio azul e corpo de homem, bastante parecidos com os deuses do antigo Egito, com cabeça de pássaro, que eram pintados nas sepulturas. Ao mesmo tempo, uma essência de energia, advinda do navio, começou a flutuar em meu peito. Embora eu pensasse que era ateu, fiquei inteiramente certo de que estava morrendo, e de que aquelas cabeças de pássaro tinham vindo buscar a minha alma para levá-la ao barco. Enquanto o fluxo da alma continuava a sair do meu peito, percebi que as extremidades do meu corpo iam fazendo-se entorpecidas.


Começando pelos braços e pelas pernas, vagarosamente, tive a impressão de meu corpo estar se tornando de concreto. Eu não podia me mover, nem falar. Aos poucos, esse entorpecimento fechou-se sobre o meu peito, na direção do coração, e tentei usar a boca para pedir ajuda, para pedir um antídoto aos índios. Por mais que tentasse, entretanto, não conseguia dominar a minha força o bastante para pronunciar uma palavra. Simultaneamente, meu abdômen parecia se tornar de pedra, e tive de fazer um tremendo esforço para manter meu coração batendo.


Comecei a chamar meu coração de amigo, meu mais querido amigo, a falar com ele, a encorajá-lo a bater, com toda a força que ainda me restava.


Fiz-me consciente do meu cérebro. Senti — fisicamente — que ele tinha sido dividido em quatro níveis distintos. Na superfície superior estava o observador, o comandante, consciente da condição do meu corpo e responsável pela tentativa de manter o coração funcionando. Percebi, mas apenas como espectador, a visão que emanava do que pareciam ser as partes mais profundas do cérebro. Imediatamente abaixo do nível mais alto, senti uma camada entorpecida, que parecia ter sido posta fora de ação pela droga, e ali não estava. O nível seguinte era a fonte de minhas visões, inclusive a do barco da alma.


Agora, eu me sentia virtualmente certo de que estava para morrer. Enquanto tentava avaliar meu destino, uma parte ainda Interior do meu cérebro começou a transmitir mais visões e in-formações — "disseram-me" que esse novo material me estava sendo apresentado porque eu ia morrer e, portanto, estava "pronto" para receber aquelas revelações. Informaram-me que se tratava de segredos reservados aos agonizantes e aos mortos. Apenas vagamente, pude perceber os que me transmitiam esses pensamentos: répteis gigantes, repousando apaticamente na mais ínfima região da parte de trás do meu cérebro, no ponto onde ele encontra a parte superior da coluna espinhal. Eu só podia vê-los de forma nebulosa e, assim, pareciam-me profundezas sombrias, tenebrosas.


Depois, eles projetaram uma cena diante de mim. Primeiro, mostraram-me o planeta Terra tal como era há uma eternidade atrás, antes que nele houvesse vida. Vi o oceano, a terra nua e o brilhante céu azul. Então, flocos pretos caíram do céu, às centenas, e pousaram diante de mim, na paisagem nua. Pude ver que esses "flocos" eram, na verdade, grandes e brilhantes criaturas negras, com reforçadas asas que assemelhavam-se ás dos pterodátilos e imensos corpos como o da baleia. Suas cabeças não eram visíveis a mim. Tombaram pesadamente, mais do que exaustas pela viagem feita, que durara épocas infinitas, Explicaram-me, numa espécie de linguagem mental, que estavam fugindo de alguma coisa, no espaço. Tinham vindo ao planeta Terra a fim de escapar desse inimigo.


Essas criaturas mostraram-me, então, como haviam criado a vida sobre o planeta, com o intuito de se ocultarem sob diversas formas e assim disfarçar sua presença. Diante de mim, a magnificente criação e a especificação das plantas e dos animais — centenas de anos de atividade — foram feitas em tal escala, e com tamanha intensidade, que me é impossível descrever. Aprendi que essas criaturas semelhantes a dragões estavam, assim, dentro de todas as formas de vida, inclusive no homem.* Eram elas os verdadeiros senhores da humanidade e de todo o planeta, foi o que me disseram. Nós, humanos, não passávamos de seus receptáculos e servos. Por isso é que podiam falar comigo de dentro de mim.


Surgindo a partir das profundezas da minha mente, essas revelações alternavam-se com as visões da galera flutuante que quase terminara por levar minha alma para bordo. O barco, com sua tripulação de cabeças de gaio azul no convés, ia aos poucos se afastando, puxando minha força de vida com ele, enquanto seguia em direção a um grande fiorde, flanqueado por algumas colinas erodidas e áridas. Eu sabia que tinha apenas um momento para viver e, estranhamente, não sentia medo daquele povo de cabeças de pássaro, não me importava ceder-lhe a minha alma, se a pudesse manter. Receava, entretanto, que de alguma forma a minha alma não pudesse se manter no plano horizontal do fiorde, mas, por meio de processos desconhecidos, embora sentidos e temidos, fosse capturada, ou recapturada pelos alienígenas das profundezas, com seu aspecto de dragões.


Subitamente senti, de maneira clara, a minha condição de homem, o contraste entre a minha espécie e os antigos répteis ancestrais. Desatei a lutar contra a volta dos antigos, que começavam a parecer cada vez mais alienígenas, e que seriam, possivelmente, perversos. Voltei-me para o auxílio humano.


Com um último esforço, que não pode sequer ser imaginado, mal pude balbuciar uma palavra para os índios: "Remédio!"; vi que corriam para preparar o antídoto e senti que não conseguiriam prepará-lo a tempo. Eu precisava de um guardião que pudesse derrotar os dragões e, desesperadamente, procurei evocar um ser poderoso para proteger-me contra aqueles répteis alienígenas. Um deles apareceu diante de mim e, nesse momento, os índios abriram à força minha boca e nela derramaram o antídoto. Aos poucos, os dragões desapareceram, recuando para as profundezas. O barco das almas e o fiorde já não existiam. Eu, aliviado, relaxei.


O antídoto melhorou radicalmente o meu estado, mas não evitou que viessem novas visões, de natureza mais superficial. Com estas podíamos lidar, eram agradáveis. Fiz viagens fabulosas, á vontade, através de regiões distantes, mesmo para fora da Galáxia, criei arquiteturas incríveis, usei demônios de sorrisos sardônicos para realizar as minhas fantasias. Muitas vezes, dei comigo rindo alto, pelas incongruências das minhas aventuras.


Finalmente, adormeci.


Raios de sol infiltravam-se pelas gretas do telhado de colmo quando acordei. Estava ainda deitado sobre a plataforma de bambu e ouvia os ruídos normais da manhã em tomo de mim: os índios conversando, os bebês chorando e um galo cantando. Descobri, com surpresa, que me sentia repousado e tranqüilo, Enquanto ali ficava, olhando para o padrão lindamente tecido do forro de colmo, as lembranças da noite anterior passavam pela minha mente. Detive-me momentaneamente entre essas lembranças para apanhar meu gravador que estava na bolsa de pertences do meu trabalho. Enquanto remexia na bolsa, vários dos índios vieram cumprimentar-me, sorrindo. Uma mulher idosa, esposa de Tomás, deu-me uma tigela com peixe e molho de lanchagem, que tinham delicioso sabor. Então, retomei à plataforma, ansioso por colocar minhas experiências noturnas no gravador antes que me esquecesse de alguma coisa.


O trabalho de recordar foi fácil, exceto por um trecho do transe de que não podia me lembrar. Ficou em branco, como se a fita não tivesse sido usada. Lutei durante horas para lembrar o que acontecera durante aquela parte da experiência e, virtualmente, trouxe-a à força de volta à minha consciência. O material recalcitrante era a comunicação feita pelas criaturas em forma de dragões, incluindo a revelação do papel que tinham tido na evolução da vida deste planeta e o domínio inato que exerciam sobre a matéria viva, inclusive sobre o homem. Fiquei bastante animado ao descobrir de novo esse material, e não pude deixar de sentir a sensação de que eles não haviam imaginado que eu pudesse trazê-lo de volta das regiões mais recônditas da mente.


Tive até mesmo uma sensação muito peculiar de medo em relação à minha segurança, porque agora possuía um segredo que, segundo as criaturas, estava reservado aos mortos, aos agonizantes. Imediatamente, resolvi repartir essa parte do meu conhecimento com os outros, para que o "segredo" não ficasse somente comigo e minha vida não fosse ameaçada. Coloquei meu motor de popa numa canoa feita de um só tronco e parti para uma missão evangélica americana que ficava nas proximidades.


O casal da missão, Bob e Millie, era objeto de maior estima que os missionários comuns enviados pelos Estados Unidos: eram hospitaleiros, dotados de senso de humor e compassivos.[1] Contei-lhes minha história. Quando descrevi o réptil de cuja boca esguichava água, marido e mulher se entreolharam, foram buscar a Bíblia, e leram para mim o seguinte trecho do Capítulo 12 no Livro do Apocalipse:


"E a serpente lançou pela boca um rio de água..."


Explicaram-me que a palavra "serpente", na Bíblia, era sinônimo das palavras "dragão" e "Satã". Continuei a minha narrativa. Quando cheguei ao trecho sobre as criaturas com aspecto de dragão a fugir de um inimigo que estava além da Terra e caindo aqui para escapar aos seus perseguidores, Bob e Millie ficaram impressionados e, de novo, leram para mim algo mais, da mesma passagem do Livro do Apocalipse:


"E houve uma batalha no céu: Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão. O dragão e seus anjos combateram, mas não conseguiram vencer, nem se encontrou mais seu lugar no céu. E o grande dragão, a antiga serpente, chamado Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro, foi expulso; foi atirado à Terra, e seus anjos com ele."


Ouvi com surpresa e assombro. Os missionários, por sua vez, pareciam tomados de respeitoso temor diante do fato de um antropólogo ateu aparentemente poder, por haver bebido um líquido de "feiticeiros", receber algo do mesmo material sagrado do Livro do Apocalipse. Quando terminei minha narrativa, senti-me aliviado por ter repartido meu novo conhecimento, mas também estava exausto. Caí adormecido no leito dos missionários, deixando-os a prosseguir com a conversa sobre aquela experiência.


Ao entardecer, quando voltei à aldeia em minha canoa, minha cabeça começou a latejar no ritmo do ruído do motor de popa; pensei que estava enlouquecendo; tive de tapar os ouvidos com a mão para evitar essa sensação. Dormi bem, mas no dia seguinte notei um entorpecimento ou pressão na cabeça.


Agora, tinha muita vontade de pedir a opinião profissional do índio que mais entendia de assuntos sobrenaturais, um cego que fizera muitas viagens ao mundo dos espíritos com a ajuda da ayahuasca. Parecia-me bastante apropriado que um cego pudesse ser o meu guia no mundo das trevas.


Fui à cabana dele, levando meu caderno de anotações, e descrevi as visões que tivera, segmento por segmento. Primeiro, falei-lhe apenas das luzes brilhantes; então, quando cheguei às criaturas com aspecto de dragões, omiti o trecho em que chegaram do espaço e disse apenas: — Havia animais negros, gigantescos, algo assim como enormes morcegos, maiores que esta casa, e eles disseram que eram os verdadeiros senhores do mundo.


— Não havia a palavra dragão para os Conibo, assim "morcegos gigantescos" era o que de mais parecido havia para descrever o que eu tinha visto.


O índio fixou em mim seus olhos sem luz e disse, careteando um sorriso: — Ah! Eles estão sempre dizendo isso. Mas são apenas senhores das Trevas Exteriores.


Fez um movimento despreocupado com a mão, rumo ao céu. Senti um arrepio percorrer a parte inferior da minha espinha, porque eu ainda não lhe tinha dito que em meu transe eu os tinha visto chegar do espaço.


Fiquei estupefato. O que eu havia experimentado já era familiar para aquele xamã cego e descalço, conhecido por ele em suas próprias explorações do mesmo mundo oculto no qual eu me aventurara. A partir desse momento, decidi aprender tudo quanto pudesse sobre xamanismo.


E houve algo mais que me encorajou em minha nova indagação. Depois que contei toda a minha experiência, ele me disse que não conhecia ninguém que tivesse encontrado e aprendido tanto em sua primeira viagem com a ayahuasca.


— Sem dúvida, o senhor vai ser um mestre xamã — disse ele.





* Em retrospecto, seria possível dizer que era quase como o DNA, apesar de que, naquele tempo, 1961, eu nada sabia sobre o DNA (ácido desoxirribonucléico).




[1] Seus nomes foram mudados.


Do livro O Caminho do Xamã, de Michael Harner

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Filme: Zeitgeist, O Filme


(*) Agradeço a Luís Barreiros por ter-me apresentado/recomendado o filme


Trata-se de um documentário produzidos nos EUA em 2007, sem fins lucrativos, podendo inclusive ser ("oficialmente") assistido pela Internet, por meio do YouTube, por exemplo.

O link do filme com legendas em português segue abaixo:




(Fazendo um pequeno parênteses, trata-se aqui de mais um exemplo da face "Janus" do atual sistema, (majoritariamente) fascista e, ao mesmo tempo, (minoritariamente) anárquico. No caso, aproveita-se a inserção criada pelo próprio "sistema" hegemônico - a Internet e suas funcionalidades - para uma finalidade "contestatória-anárquica").

Introduzo a apresentação do filme com esse pequeno texto extraído da Wikipedia, para, ao final, tecer alguns comentários pessoais:

"Zeitgeist, the Movie é um filme estadunidense de 2007 sem fins lucrativos produzido por Peter Joseph que pretende, segundo o autor, inspirar as pessoas a investigarem o mundo de uma perspectiva diferente.

O filme é dividido em três seções:

Primeira parte: "The Greatest Story Ever Told" ("A maior história já contada")
Segunda parte: "All The World's A Stage" ("O mundo inteiro é um palco")
Terceira parte: "Don't Mind The Men Behind The Curtain" ("Não se preocupe com os homens atrás da cortina")
Uma versão deste filme foi apresentada no 4th Annual Artivist Film Festival & Artivist Awards.[1]

Desde que a versão online deste filme foi lançada ao público em Junho de 2007, este filme já foi visto mais de seis milhões de vezes, contando somente a versão integral em inglês disponível em Google Vídeo. Na realidade esse número de telespectadores é referente ao final do mês de novembro, quando a contagem de visualizações fora misteriosamente suprimida do site. Especula-se que esse número já tenha superado largamente os dez milhões, visto que "Zeitgeist, the movie" tem sido, dia após dia, desde o mês de outubro, o vídeo on-line mais assistido em todo o mundo.[2]

Estrutura do filme

Primeira Parte: The Greatest Story Ever Told
A primeira parte do filme é uma avaliação crítica do cristianismo. O filme opina que Jesus é um híbrido literário e astrológico e que a bíblia se trata de uma miscelânea de histórias baseadas em princípios astrológicos pertencentes a civilizações antigas. A atenção do filme foca-se inicialmente no movimento do Sol e das estrelas, fato este que é uma das características das religiões pré-cristãs.

Segunda Parte: All The World's a Stage
A segunda parte do filme foca-se nos ataques de 11 de setembro de 2001. O filme opina que governo dos Estados Unidos tinha conhecimento destes ataques e que a queda do World Trade Center foi uma demolição controlada. O filme assegura que a NORAD, entidade responsável da defesa aérea dos Estados Unidos, tinha sido propositadamente baralhada no dia dos ataques com exercício simulado em que os Estados Unidos estavam a ser atacados por aviões seqüestrados.

Terceira Parte: Don't Mind The Men Behind The Curtain
A terceira parte do filme defende que o sistema bancário mundial tem estado a conspirar para obter uma dominação mundial total. O filme opina que a Reserva Federal dos Estados Unidos da América foi criada para roubar a riqueza dos Estados Unidos. O filme demonstra, como exemplo, o lucro que foi obtido pelos bancos durante a Primeira Guerra Mundial, Segunda Guerra Mundial, Guerra do Vietname, Iraque, Afeganistão, e a futura invasão à Venezuela para obtenção de petróleo. O filme descreve a conspiração destes banqueiros, argumentando que o objetivo deles é o controle sobre toda a raça humana. Criando um só governo, uma só moeda.

O filme também aborda, a sociedade humana sendo microchipada. Para transações bancárias, passe de identidade, localização, sem alusão a ficção.

Referências
↑ News Blaze (November 10, 2007) 4th Annual Artivist Film Festival & Artivist Awards "Merging Art & Activism: Saturday Night Film "Zeitgeist"
↑ Google Video ZEITGEIST, The Movie - Official Release - Full Film

Ligações externas
Zeitgeistmovie.com website oficial
Zeitgeist - Legendado em Português
Obtido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Zeitgeist,_o_Filme "


Meus comentários


Inicialmente, devo dizer que não obtive maiores informações sobre o filme além daquelas expostas acima e daquelas disponíveis no excelente site oficial. De fato, nada mais detalhado pude encontrar acerca do suposto produtor do filme, Peter Joseph, o que é no mínimo curioso, pois estamos aqui tratando de um filme extremamente bem realizado e que deve ter contado com uma equipe técnica e de pesquisa razoavelmente bem estruturada. Em alguns sites sobre teorias conspiratórias traçam-se ligações com os Iluminati etc. De qualquer forma, este Blog está devendo a seus leitores informações detalhadas e confiáveis. Espero poder complementá-las em breve.
Além disso, o filme é, por si só, um dos maiores fenômenos de "mídia independente" que se tem notícia, suspeitando-se que se trate do vídeo mais assistido na Internet, não obstante ter menos de 1 ano. (Digo "suspeitando-se" porque, mesmo em relação a esse aspecto, encontramos informações difusas, pois parece que o YouTube suprimiu inexplicavelmente o contador de acessos quando o filme já se encontrava na marca de 6 milhões).

Em relação ao conteúdo propriamente dito, achei as duas partes finais mais interessantes que a primeira, que trata da "desmistificação" do cristianismo, mais especificamente do texto bíblico.

De fato, a impressão das cenas iniciais é de que iria se tratar de mais um panfleto "cientificista" e anti-religião, como uma espécie de libelo positivista. Se era essa a intenção, não creio que tenha funcionado, pois, para aqueles que já entendiam a Bíblia cristã dentro de uma linguagem metafórica, as "revelações" do filme não apenas não abalam suas crenças, como as instigam ainda mais...

Penso então que essa primeira parte tem um "alvo certo": o público protestante norte-americano acostumado às interpretações literais do texto bíblico e, ainda, o fundamentalismo neo-con norte-americano que pretende, inclusive, ressuscitar o criacionismo. Mesmo assim, a primeira parte traz inúmeras informações sobre as origens egípcias e astrológicas de passagens fundamentais da Bíblia.

Na minha opinião, o filme melhora a partir de segunda parte, atingindo seu climax ao final da terceira parte, quando trata do neo-fascismo, assunto inteiramente pertinente a este Blog.
Por fim, peço que quem tiver informações mais aprofundadas acerca dos produtores do filme, poste seus comentários.