sexta-feira, 29 de maio de 2009

Xamãs do Alto Rio Negro


Povos do alto rio Negro


Por contraste, caberia mencionar, a região do alto rio Negro, o noroeste amazônico, morada de povos de língua Tukano. No início dos tempos, antepassados míticos criaram o mundo que, antes, não existia. Das entranhas de uma cobra grande ancestral, que fazia o percurso do rio, saíram, em pontos precisos daquele percurso, os primeiros antepassados de cada um dos vários povos da região, determinando, assim, seus respectivos territórios, suas atribuições específicas e um padrão hierarquizado de relacionamento entre eles.

Em muitas cosmologias, as relações entre humanos e os demais seres são pensadas através da idéia da predação, numa metáfora que simbólica e logicamente aproxima caça, guerra, sexo e comensalidade.

Ainda no alto rio Negro, o xamã parece estar encarregado de garantir que fluxos e volumes de energia vital compartilhada por humanos e animais mantenham-se em níveis adequados. Exageros na matança de animais deflagrariam, como contrapartida, epidemias e malefícios entre os homens, provocados por espíritos protetores dos animais. Um equilíbrio vital nas lembranças e o convívio com a idéia da morte são experiências diárias na apreciação e na condução da vida.

Fonte: ISA - Instituto SocioAmbiental

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Comunicado 4 - O Fim do Mundo





Hakim Bey


Mais precisamete porque se fez necessário numa época sensacional de gripe econômica, gripe ambiental, gripe política, suina, enfim. Na espera pelo gradissíssimo espirro final do progresso.

"A AAO declara-se oficialmente entediada com o Fim do Mundo. A versão canônica tem sido usada desde 1945 para nos manter acovardados diante do medo da Inevitável Destruição Mútua e em chorosa servidão aos nossos políticos super-heróis ( os únicos capazes de lidar com a fatal Criptonita Verde)...

Qual a importância de termos descoberto uma forma de destruir a vida na Terra? Quase nenhuma. Nós imaginamos isso como uma forma de fuga da contemplação de nossas próprias mortes individuais. Criamos um emblema para servir como imagem-espelho de uma imortalidade descartada. Como ditadores dementes, desfalecemos ao pensar em levar tudo conosco para o fundo do Abismo.

A versão não oficial do Apocalipse envolve uma nostalgia lasciva pelo Fim e por um Éden pós-Holocausto onde os sobreviventes (ou os 144 mil eleitos das Revelações) podem se entregar indolentemente às orgias de histeria dualista, aos intermináveis confrontos finais com um demônio sedutor...

(...)

Hakim Bey


Qualquer um que pode ler a história com os dois hemisférios do cérebro sabe que um mundo termina a todo instante - as ondas do tempo lavam tudo e deixam apenas as memórias de um passado fechado e petrificado - memória imperfeita, ela mesma moribunda e outonal. E a todo instante também é gerado um mundo novo - apesar dos protestos dos filósofos e dos cientistas cujos corpos se paralisaram - uma atualidade na qual todas as impossibilidades se renovam, em que arrependimentos e premonições dissipam-se em nada num único gesto presencial, psicomântrico e hologramático.

O passado "normativo'' ou a futura morte do universo significam tão pouco para nós quanto o PIB do ano passado ou a degeneração do Estado. Todos os passados Ideais, todos os futuros que ainda não passaram, simplesmente obstruem a nossa consciência da vívida presença total.

Certas seitas acreditam, que o mundo (ou "um'' mundo) já chegou ao fim. Para as Testemunhas de Jeová, aconteceu em 1914 (isso mesmo, senhores, estamos vivendo o Livro das Revelações agora). Para certos ocultistas orientais, aconteceu durante a grande Conjunção dos Planetas em 1962. Joaquim de Fiore proclamou a Terceira Era, a do Espírito Santo, que substituiu a do Pai e do Filho. Hassan II de Alamut proclamou a Grande Ressurreição, a imanência do eschaton, o paraíso na Terra. O tempo profano terminou em algum ponto da Idade Média. Desde então, vivemos em tempos angelicais - só que a maioria de nós não sabe disso.

Ou, partimos de um ponto de vista monista ainda mais radical: o Tempo nunca começou. O Caos nunca morreu. O Império nunca foi fundado. Não somos e nunca fomos escravos do passado ou reféns do futuro.

Sugerimos que o Fim do Mundo seja declarado um fait acompli; a data exata não importa. Os ranters, em 1650, sabiam que o Milênio se inicia agora em cada alma que desperta para si mesma, para o seu próprio centro e divindade. "Regozije-se, companheiro'', era o cumprimento que usavam. "Tudo é nosso!''

Eu não quero participar de qualquer outro Fim do Mundo. Um garoto sorri para mim na rua. Um corvo negro pousa numa árvore de magnólias rosadas, grasnando enquanto o orgônio se acumula e é liberado numa fração de segundo sobre a cidade... o verão começa. Eu posso ser seu amante... mas cuspo em cima do seu Milênio."




Hakim Bey - CAOS - Terrorismo Poetico e Outros Crimes Exemplares


Fontes:

http://amescachees.blogspot.com/2009/05/comunicado-4-o-fim-do-mundo.html

e

Trazer a mente para casa



Por : Sogyal Rinpoche


A dádiva de aprender a meditar é o maior presente que você pode se dar nesta vida. Porque é apenas através da meditação que você pode empreender a jornada para descobrir sua verdadeira natureza e assim encontrar a estabilidade e a confiança de que necessitará para viver e morrer bem. A meditação é o caminho para a iluminação.




Há tantas formas de apresentar a meditação, e devo ter ensinado isso milhares de vezes, mas a cada vez é diferente, de um modo direto e sempre novo.

Felizmente vivemos numa época em que pelo mundo todo muita gente se familiariza com a meditação. Tem sido cada vez mais aceita como uma prática que atravessa as barreiras culturais e religiosas e se eleva acima delas, permitindo àquele que a busca estabelecer um contato direto com a verdade do seu ser. É uma prática que a um tempo transcende o dogma e é a essência das religiões.

Via de regra desperdiçamos nossas vidas distraídos do nosso eu verdadeiro, numa atividade sem fim; a meditação é o caminho para trazer-nos de volta a nós mesmos, onde podemos realmente experimentar e provar nosso ser completo, além de todos os padrões habituais. Nossas vidas são vividas em intensa e ansiosa luta, num turbilhão de velocidade e agressão, competindo, apegando-nos, possuindo e conquistando, sobrecarregando-nos sempre de atividades irrelevantes e de preocupações.

A meditação é o exato oposto disso.

Meditar é interromper por completo o modo como "normalmente" operamos, em benefício de um estado isento de cuidados e tensões em que inexiste competição, desejo de posse ou apego a qualquer coisa, sem a luta intensa e ansiosa, sem fome de adquirir. Um estado desprovido de ambição onde não cabe nem o aceitar nem o rejeitar, nem a esperança nem o medo, um estado em que lentamente começamos a libertar-nos das emoções e dos conceitos que nos aprisionaram, até chegarmos a um espaço de simplicidade natural.

Os mestres da meditação budista sabem o quão flexível e maleável é a mente. Se a treinamos, tudo é possível. Na verdade, já somos perfeitamente treinados pelo samsara e para ele, treinados para ficar ciumentos, treinados para o apego, treinados para ser ansiosos e tristes e desesperados e ávidos, treinados para reagir com raiva ao que quer que nos provoque. Somos treinados, de fato, até o ponto dessas emoções negativas surgirem de modo espontâneo, sem que tentemos produzi-las. Assim, tudo é uma questão de treino e do poder do hábito. Dedique a mente à confusão e logo veremos - se formos honestos - que ela se tornará uma mestra sinistra na confusão, competente no seu vício, sutil e perversamente dócil em sua escravidão. Dedique a mente na meditação à tarefa de libertá-la da ilusão e veremos que com tempo, paciência, disciplina e o treinamento adequado, ela começará a desembaraçar-se e a conhecer sua bem-aventurança e claridade essenciais.

"Treinar" a mente não significa, de modo algum, subjugá-la pela força ou submeter-se a uma lavagem cerebral. Treinar a mente é, antes de tudo, ver de maneira direta e concreta como ela funciona, um conhecimento que você tira dos ensinamentos espirituais e da experiência pessoal na prática da meditação. Aí você pode usar a compreensão para domar a mente e trabalhar habilmente com ela, fazendo-a mais e mais dócil, de modo a poder tornar-se mestre da sua própria mente, empregando-a em seu potencial mais amplo e benéfico.



O mestre budista do século oitavo, Shantideva, dizia:

Se este elefante da mente é atado por todos os lados pelo cordão da presença mental,

Todo medo desaparece e a felicidade completa emerge.

Todos os inimigos: tigres, leões, elefantes, ursos, serpentes [das
nossas emoções;

E todos os guardiões do inferno; os demônios e os horrores,

Todos se submetem à maestria da sua mente,

E pelo domar dessa mente, todos são subjugados,

Porque é da mente que procedem os temores e penas infinitas. (3)

Como o escritor que só domina a espontânea liberdade de expressão depois de anos de estudo muitas vezes estafante, e tal como a simples graça de uma bailarina só é conquistada com enorme e paciente esforço, quando começamos a entender onde a meditação nos levará, saberemos aproximar-nos dela como sendo o grande empenho da nossa vida, aquele que demanda de nós a mais profunda perseverança, entusiasmo, inteligência e disciplina.

O coração da meditação

O propósito da meditação é despertar em nós aquela natureza da mente que nos lembra o céu, e levar-nos àquilo que realmente somos - nossa consciência pura e imutável que subjaz ao todo da vida e morte.

Na imobilidade e no silêncio da meditação, retomamos num lampejo àquela profunda natureza interior que há tanto perdemos de vista para o mundo dos negócios e das distrações da nossa mente. Não é extraordinário que ela só possa se acalmar por uns poucos instantes sem aferrar-se a uma distração? Nossa mente é de tal forma inquieta e preocupada que às vezes penso que viver numa cidade ê em nosso mundo de hoje é já viver como os seres atormentados do estágio intermediário que se segue à morte, quando se diz que a consciência é angustiosa mente inquieta. De acordo com algumas autoridades, mais de 13% das pessoas nos Estados Unidos sofrem de algum tipo de desordem mental. O que isso diz sobre o modo como vivemos?

Somos fragmentados em tantos aspectos diferentes! Não sabemos quem de fato somos, com que aspectos de nós mesmos devemos nos identificar, ou em quais devemos crer. Tantas vozes, comanandos e sentimentos diferentes lutam pelo controle de nossa vida interior que vemo-nos dispersos por toda parte, em todas as direções, deixando a casa sem ninguém. A meditação, é então, trazer a mente para casa.

No ensinamento do Buda dizemos que há três fatores que fazem toda a diferença entre a nossa meditação ser um modo de propiciar relaxamento, paz e felicidade temporários, ou tornar-se um fator poderoso para a nossa iluminação e a de outros. Nós os chamamos: "Bom no Começo, Bom no Meio e Bom no Fim".

Bom no Começo nasce da consciência de que nós e todos os seres sencientes temos como nossa essência mais profunda a natureza búdica, e do entendimento de que realizá-la é ficar livre da ignorância e acabar com o sofrimento. Toda vez que iniciamos nossa meditação, assim, é essa consciência que nos move e nos inspira com a motivação de dedicar essa prática e a nossa vida à iluminação de todos os seres, no espírito desta oração que todos os budas do passado fizeram:

Pelo poder e pela verdade desta prática:

Possam todos os seres ter a felicidade, e as causas da felicidade;

Possam todos se ver livres do sofrimento, e das causas do
sofrimento;

Possam todos jamais se separar da sagrada felicidade que é
isenta de sofrimento;

E possam todos viver na equanimidade, sem muito apego nem
muita aversão,

E viver acreditando na igualdade de tudo que é vivo.

Bom no Meio é a atitude da mente com que entramos no coração da prática, inspirada na realização da natureza da mente, de onde surge uma disposição para o desapego livre de toda e qualquer referência conceitual, e surge também a consciência de que todas as coisas são inerentemente "vazias", ilusórias e semelhantes ao sonho.

Bom no Fim é o modo com que trazemos nossa meditação até o final dedicando todo o mérito dela obtido e orando com real fervor: "Possa qualquer mérito vindo desta prática conduzir à iluminação de todos os seres; possa tornar-se uma gota no oceano da atividade de todos os budas em seu incansável trabalho pela liberação de todos os seres". Mérito é o poder positivo e benéfico, a paz e a felicidade que irradiam da sua prática. Você dedica esse mérito ao benefício supremo e a longo prazo de todos os seres, à sua iluminação. Num nível mais imediato, você o dedica a que haja paz no mundo, a que todos possam ser inteiramente livres do desejo e da doença, e possam experimentar total bem-estar e felicidade duradoura. Então, compreendendo a natureza de sonho e ilusão da realidade, você reflete sobre o fato de que, no sentido mais profundo, você que está dedicando a prática, aqueles a quem você a dedica, e mesmo o próprio ato de dedicação são todos inerentemente "vazios" e ilusórios.

Diz-se nos ensinamentos que isso fecha a meditação e assegura que nenhum dos seus poderes puros perca-se ou escape, e que nenhum dos méritos da prática jamais se desperdice.

Esses três princípios sagrados - a motivação hábil, a atitude de desprendimento que protege a prática e a dedicação que a fecha - são o que torna sua meditação verdadeiramente iluminadora e poderosa. Eles foram descritos com beleza pelo grande mestre tibetano, Lonngchenpa, como "o coração, o olho e a força vital da verdadeira prática". Ou como Nyoshul Khenpo diz: "Para obter a completa iluminação, mais do que isso não é necessário; porém menos que isso insuficiente".

A prátca da presença mental

A meditação consiste em trazer a mente para casa, e isso se conquista primeiramente através da prática da presença mental.

Uma vez uma mulher veio até o Buda e lhe perguntou como meditar. O Buda lhe disse para ficar consciente de cada movimento de suas mãos enquanto tirava água do poço, sabendo que se ela fizesse isso logo entraria naquele estado de atenção e calma cheia de espaço que é a meditação.

A prática da presença mental, de trazer de volta para casa a mente dispersa e assim colocar em foco diferentes aspectos do nosso ser é chamada "Permanência Serena". A Permanência Serena realiza três coisas. Primeira, todos os fragmentados aspectos de nós mesmos que estavam em guerra, assentam-se, dissolvem-se e tornam-se amigosvislu. Aí começamos a nos compreender melhor e às vezes até a ter mbres da radiância de nossa natureza fundamental.

Segunda, a prática da presença mental dissolve nossa negatividade, agressividade e as emoções turbulentas que podem ter reunido poder ao longo de muitas vidas. Mais do que suprimir emoções ou ser complacente com elas, aqui é importante vê-las, bem como os pensamentos que há na sua mente e qualquer coisa que apareça, com aceitação e generosidade tão amplas e abertas quanto possível. Os mestres tibetanos dizem que essa sábia generosidade tem o sabor do espaço ilimitado, tão caloroso e aconchegante que você se sente envolvido e protegido por ela como por uma manta de raios de sol.

Gradualmente, ficando aberto e atento e usando uma das técnicas que explicarei depois para concentrar mais e mais sua mente, sua negatividade aos poucos se dissolve. Começa a se sentir bem em seu ser, ou como dizem os franceses, être bien dans notre peau (sentir-se bem na sua pele). Disto vem descontração e profundo bem-estar. Penso nessa prática como a mais efetiva forma de terapia ou autocura.

Terceira, essa prática descerra e revela o seu Bom Coração essencial, porque dissolve e remove a crueldade e a destrutividade que há em você. Só nos tornamos de fato úteis aos outros quando removemos a destrutividade em nós. Pela prática, assim, tirando de nós a crueldade e a destrutividade permitimos que o nosso autêntico Bom Coração, essa bondade e gentileza fundamentais que são a nossa verdadeira natureza, resplandesça e se torne o clima caloroso no qual florescerá nosso verdadeiro ser.

Você verá agora porque chamo a meditação de a verdadeira prática da paz, a verdadeira prática da não-agressão e da não-violência, o autêntico e o maior desarmamento.


A grande paz natural

Quando ensino meditação, freqüentemente começo dizendo:

"Traga sua mente para casa. E solte. E relaxe".

Toda a prática da meditação pode ser resumida nesses três pontos cruciais: trazer sua mente para casa, soltar e relaxar. Cada fase contém significados que ressoam em muitos níveis.

Trazer a mente para casa quer dizer conduzir a mente pela prática da presença mental até o estado de Permanência Serena. No seu sentido mais profundo, trazer a mente para casa é voltá-la para si mesma, e repousar na sua própria natureza. Essa é em si a mais elevada meditação.

Soltar significa soltar a mente da prisão da atitude de agarrar, já que você reconhece que toda dor, medo e aflição resultam da ânsia da mente que quer agarrar. Num nível mais profundo, a realização e a confiança que surgem da sua crescente compreensão da natureza da mente inspiram uma generosidade profunda e natural, que com que você se torne capaz de liberar do seu coração toda vontade de agarrar, deixando-o livre para mergulhar na inspiração do meditar.

Por último, relaxar significa ter espaço e descontrair as tensões da mente. Num sentido mais profundo, você relaxa na verdadeira natureza da sua mente, o estado de Rigpa. As palavras tibetanas que evocam esse processo sugerem o sentido de "relaxar sobre Rigpa". É como derramar um punhado de areia numa superfície plana - cada grão cai onde bem entende, obedecendo às forças naturais. É assim que você relaxa na sua verdadeira natureza, deixando que todos os pensamentos e emoções se aquietem e se dissolvam no estado da tureza da mente.

Quando medito, sempre me inspiro neste poema de Nyoshul Khenpo:

Descanse na grande paz natural

Essa mente exausta,

Impotente diante do carma e do pensamento neurótico,

Que golpeiam com afúria implacável de incessantes ondas

No infinito oceano do samsara.


Descanse na grande paz natural.
Acima de tudo, esteja à vontade, seja tão natural e vasto quanto possível. Escape da cilada do seu ansioso eu habitual, abandone todo apego e relaxe na sua verdadeira natureza. Imagine o seu eu ordinário, emocional e dirigido pelo pensamento, como um bloco de gelo ou tablete de manteiga deixado ao sol. Se está se sentindo rígido e frio, deixe que essa agressividade que está em você derreta ao sol de sua meditação. Deixe que a paz trabalhe em você, tornando-o capaz de reunir sua mente comum à presença mental da Permanência Serena e de despertar em si mesmo a consciência e a compreensão da Clara Visão. E você verá desarmada toda sua negatividade, dissolvida sua agressão e sua confusão evaporando-se lentamente, como névoa no vasto e imaculado céu da sua natureza absoluta.4

Tranqüilamente sentado, o corpo ereto, a fala silenciada, a mente em paz, deixe pensamentos, emoções e o que quer que surja dentro de você chegar e ir embora, sem se apegar a nada.

Com o que se parece esse estado? Dudjom Rinpoche costuma sugerir que imaginemos um homem que chega em casa depois de um longo e penoso dia de trabalho no campo e afunda na sua poltrona favorita em frente à lareira. Trabalhou o dia inteiro e sabe que conseguiu realizar o que queria; não há nada mais com que se preocupar, nada foi deixado por fazer e ele pode abandonar por completo seu cuidado e preocupações, contente; ser simplesmente.

Assim, quando você medita, é essencial criar o correto ambiente interior da mente. Todo esforço e luta vêm de não darmos o espaço suficiente. Assim, criar esse ambiente interior correto é vital para que a sua meditação verdadeiramente aconteça. Quando há humor e amplidão de espaço, a meditação surge sem esforço.

Às vezes quando medito não uso nenhum método específico.

Apenas deixo que minha mente descanse, descobrindo, especialmente quando estou inspirado, que posso trazê-la para casa e relaxar bem depressa. Sento quieto e descanso na natureza da mente. Não me interrogo ou levanto dúvidas sobre se estou no estado "correto" ou não. Não há esforço nenhum, apenas uma rica compreensão, um estado desperto e uma certeza inabalável. Quando estou na natureza da mente a mente ordinária não está mais ali. Não há necessidade de manter ou confirmar a percepção de ser: eu simplesmente sou. Uma confiança fundamental está presente. Não há nada especial a fazer.


Fonte: O Livro Tibetano do Viver e do Morrer, de Sogyal Rinpoche - pp. 86 e segs.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Pensamentos no Momento da Morte




Por: RAM DASS

(Ram Dass (Richard Alpert, Ph.D.) é famoso por suas pesquisas na área psicodélica na Harvard University, e por sua subseqüente investigação e divulgação da ioga e da filosofia oriental em livros tais como Be Here Now e The Only Dance There Is. É o fundador da Seva Foundation e consagra hoje sua vida à ajuda de pacientes contaminados pela AIDS.)




A seguinte história me foi contada por um indiano, há alguns anos, sobre o meu guru, Neem Karoli Baba:

"Certa vez, em Bhumiadhar, onde Baba ia passar a noite, nós todos havíamos comido nossa refeição noturna e nos havíamos recolhido as dez e meia. Por volta da uma hora da madrogada, Baba se pôs a gritar dizendo que estava com muita fome e que queria dal [lentilhas] e chapattis. Acordei e lembreI a ele que já havíamos comido. Mas ele insistiu, afirmando que precisava de dal e de chapattis. Quem pode compreender o que se passa com um ser como ele? Por isso acordei Brahmachari Baba (o sacerdote) e este acendeu uma fogueira e preparou a comida. Já eram cerca de duas horas da madrugada, e estávamos a observar Baba consumir a comida com grande apetite. Então voltamos todos a nos recolher.

"Por volta das onze horas da manhã seguinte, chegou um telegrama avisando que um dos velhos devotos de Baba morrera numa aldeia das planícies (distante cerca de 150 milhas de onde estávamos) na noite anterior, às duas horas da madrugada. Quando leram o telegrama para Baba, ele disse: "Estão vendo, era por isto que eu precisava de chapattis e de dal." Isto despertou a nossa curiosidade pois não estávamos entendendo nada. Insistimos, mas ele não quis acrescentar mais nada. Finalmente, diante de nossa insistência, ele disse, dois ou três dias depois: "Não compreendem? Ele [o homem que morrera] estivera desejando chapattis e dal, e eu não quis que ele levasse consigo esse desejo ao penetrar na morte, pois isso teria afetado um futuro renascimento."

Esta história reflete uma visão da vida e da morte com a qual tenho convivido nestes últimos vinte e oito anos. Quando pergunto a mim mesmo como é que sei que alguma coisa continua depois da morte, reconheço que minha fé tem por base três fontes: minhas próprias experiências, as visões expressas por pessoas que eu conheço e nas quais confio (como as da história que contei acima), e a extrapolação da literatura espiritual que tenho lido. É uma combinação dessas fontes que produz em mim uma convicção tão forte de que nem tudo termina no momento da morte.

Ram Dass


Minhas experiências pessoais dizem respeito a entrar e sair de vários estados alterados de consciência. Enquanto explorava esses estados, experimentei de tempos em tempos um estado de desprendimento de minha identidade com o corpo e com a personalidade, o que me permitiu o acesso a um estado de percepção que parece ter pouco a ver com nascimento ou morte, com vir ou ir. Graças à prática da meditação intensiva e ao meu trabalho com drogas psicodélicas, testemunhei a maneira pela qual a mente cria realidades, e atingi o domínio que fica além do pensamento. Um dos resultados disso foi que cheguei a uma certa compreensão intuitiva dos estados post-mortem - compreensão que foi a seguir corroborada pelas duas outras maneiras de conhecer mencionadas acima.

É óbvio que as conclusões que vou apresentar a respeito do que acontece depois da morte não são "conhecidas" por mim no sentido científico usual, que determina os critérios para conhecer o que conhecemos. Na verdade, é somente porque eu ouço e respeito meu coração-mente intuitivo, considerando-o como meio de conhecimento, embora esse meio não esteja aberto aos critérios de reprodutibilidade pública, que pude dispor de abundantes informações sobre os estados post-mortem.

Observei que, devido a essas experiências pessoais, assim como às oportunidades que aproveitei familiarizando-me com pessoas sábias e com a literatura que dá apoio a essas experiências, meus próprios temores com relação à morte foram profundamente atenuados. Conseqüentemente, tenho sido capaz de trabalhar com pessoas que estão agonizando e proporcionar-lhes qualidades de equanimidade e paz diante do desconhecido - qualidades que parecem lhes ter sido benéficas. Durante os momentos que tenho passado junto a pessoas que estão se aproximando da morte, descobri que a única coisa que funciona é a verdade; sou assim forçado a examinar e a reexaminar minha fé na vida após a morte. É este, então, o cadinho pelo qual passou aquilo que vou compartilhar com vocês.

Nas tradições espirituais do Oriente afirma-se que as formas-pensamento às quais estamos ligados no momento da morte determinam o que acontecerá a seguir. Como disse certa vez o meu guro: "Basta-lhe desejar o próximo hausto de ar e você terá um novo nascimento." É devido a esse efeito imediato de nossos pensamentos e desejos no momento da morte que, nos países onde é muito difundida a crença na reencarnação, dedica-se tanta atenção à preparação para esse momento. Os tibetanos, por exemplo, descrevem maneiras de evitar ficar atolado na sensação de peso que surge quando o elemento "terra" do corpo é dissolvido; ou na sensação de secura, quando é o elemento "água" que se dissolve; ou na sensação de frio, quando o elemento "fogo" é dissolvido; ou na sensação de que a expiração é mais prolongada que a inspiração, que ocorre com a dissolução do elemento "ar".

Esta ênfase atribuída no Oriente à importância das formas-pensamento no momento da morte é apoiada pelas evidências fomeddas pelos estudos sobre o xamanismo e pelas pesquisas da consciência. Os xamãs, por exemplo, sabem que a natureza dos pensamentos que se tem quando se inicia a "viagem" xamanista através de estados alterados de consciência possui uma importância crucial para a detenninação da natureza dessa viagem - definindo se as visões encontradas serão paradisíacas ou infernais. (Daí a ênfase na "purificação" - seja através do jejum, da transpiração ou de outras práticas ascéticas - antes das iniciações xamânicas.) De maneira semelhante, os pesquisadores ocidentais das drogas psicodélicas descobriram bem cedo que a disposição mental de uma pessoa no início da experiência psicodélica é um fator determinante para a qualidade dessa experiência. Desse modo, se é de fato provável que os estados post-mortem se assemelham a estados alterados de consciência, parece igualmente provável que o estado da mente de um indivíduo no momento de sua morte exercerá uma poderosa influência sobre a natureza de sua experiência após a morte.

Podemos nos referir à parte do indivíduo que atravessa o véu da morte física como sendo a "alma", muito embora possamos considerar que essa "alma" é, ela própria, apenas uma forma-pensamento mais sutil, que eventualmente se dissolve ao se realizar a plenitude do que se expressa no termo budista anatta (não eu). Aquilo em que a alma finalmente se dissolve está, sem dúvida, além do que as palavras conseguem descrever, como testemunharam muitos seres iluminados. Há, no entanto, muitos símbolos que apontam para essa verdade suprema. Muitas palavras, tais como Deus, Nirvana, Aquele que não tem Forma, e assim por diante, são usadas para indicar o Mistério. Essas palavras, porém, são apenas "dedos apontando para a Lua"; pois a mente humana cognoscitiva, com todas as suas muletas conceituais e simbólicas, deve ser deixada para trás quando o indivíduo morre e imerge na verdade suprema.

Intelectualmente, podemos compreender que do ponto de vista da verdade suprema, a própria reencarnação é uma ilusão; no entanto, não somos capazes de nos desenredar da teia dessa ilusão até que os últimos impulsos de apego da mente sejam apaziguados. Na viagem evolutiva, a maioria de nós não precisa se preocupar por enquanto com a dissolução no nada, pois ainda possuímos carma (inércia de apegos passados) suficiente para nos levara transmigrar, como almas, ao longo de muitos nascimentos vindouros.

Os grandes mestres espirituais sustentam que aquilo que experimentamos após a morte também é função de nossa evolução como almas - evolução que se reflete da maneira mais clara na qualidade da manifestação da vida que estamos completando. Agrada-me pensar que o nascimento humano é mais ou menos como inscrever-se num curso de grau intermediário: ali permanecemos enquanto se faça necessário para que nossa alma conquiste nesse grau específico aquilo de que precisa; depois disso, estamos naturalmente preparados para prosseguir em nossa evolução ao deixannos esta vida. Desse modo, a alma deixa o plano físico no momento exato: nem um instante antes, nem um instante depois. A maneira de deixá-lo faz parte do currículo da alma. E o que ela leva consigo ao deixá-Io é a essência daquilo que foi a sua vida - uma essência que a alma conhece ainda que tenha sido deixado para trás o cérebro que promove o pensamento.

De acordo com várias escolas de filosofia perene, essas "jovens almas" profundamente entrincheiradas no apego ao corpo físico morrem imersas num invólucro físico sutil no qual experimentam uma espécie de "sono" confuso. Afirma-se que sua identificação com a grosseira materialidade do corpo faz com que elas estejam mal preparadas para perceber que continuam a existir depois de terem morrido; daí a sua confusão e algumas débeis tentativas de seguir adiante como se estivessem vivas. Tenho a impressão de que elas se surpreendem bastante quando ninguém, no plano físico, toma conhecimento delas. Esses seres são então, de maneira totalmente inconsciente, reprogramados pela inércia de seu carma (uma espécie de "ADN psíquico") para ingressarem em seu próximo nascimento. Aqueles que possuemem apegos físicos extremos, geralmente estabelecidos pela ganância ou pelo rancor, com freqüência continuam no plano físico, ou em suas proximidades, como aquilo que, ãs vezes, as pessoas percebem como fantasmas ou poltergeists.

Quando a alma está mais evoluída, sucede que por volta do final de sua encarnação sobre a terra ela chega a ficar suficientemente desperta para se dar conta de sua situação de modo a desvencilhar-se de um ou mais de seus "invólucros" ou "véus" - isto é, dos seus diversos corpos ou veículos de consciência (físico, astral, emocional, mental e espiritual) descritos no vedanta, na ioga e em outras tradições meditativas. Uma alma que esteja nesse nível de evolução percebe de imediato, um momento após a morte, o que aconteceu, e sente-se expandir à medida que se liberta do receptáculo da encarnação. A alma pode hesitar durante algum tempo, enquanto se sente tolhida entre o prazer por estar livre da encarnação e a atração exercida pelo amor que a prende àqueles que deixou para trás. Mas depois de algum tempo ela compreende a maneira como as coisas têm de ser, e, sozinha ou acompanhada por um guia, prossegue, entrando em outro domínio.

Nesse estágio, a alma pode ingressar num domínio mental, se os seus apegos estiverem aí, ou então nos domínios vital ou emocional. Estes últimos freqüentemente são chamados de domínios astrais, ou, no budismo Mahayana, bardos ou "ilhas intermediárias". Ao morrer nesses domínios, os tibetanos dizem que a alma pode conservar a consciência e ter aí experiências detalhadas - por exemplo, atravessar túneis de luz, sentir-se repleta de imensa alegria e de profundo amor, encontrar seres com corpos sutis luminosos e que são familiares à alma, vivenciar domínios de cores e de sons intensos, e assim por diante.

Depois de passar algum tempo nesse domínio, afirma-se que a alma - sozinha ou com a ajuda de guias - reflete sobre a sua viagem cármica anterior e, como resultado dessas reflexões, se prepara e se programa para sua próxima encarnação. Evidências fornecidas por pessoas que, durante contatos imediatos com a morte, tiveram "lembranças panorâmicas" nas quais vivenciaram uma profunda compreensão do significado de toda a sua vida parecem confirmar a veracidade desse ensinamento.

Na ioga e no vedanta, ensina-se que uma alma ainda mais evoluída, que, por ocastao de sua morte, rompe sua identificação com seus corpos sutis pode atravessar, plenamente consciente, o portal da morte e ingressar nos domínios mais elevados ou "causais" (por vezes denominados "campos de Brahma"), e permanecer em sua forma essencial mais sutil durante algum tempo, em sua viagem.

Em algumas escolas, acredita-se que, a menos que essa alma seja iluminada, ou completamente liberada da ilusão da separatividade, depois de passar nesses domínios sutis um período mais ou menos prolongado, ela inevitavelmente enveredará por uma outra encarnação num corpo físico. Intimamente, no entanto, eu não tenho muita certeza de que uma alma deva encarnar-se por meio de um nascimento físico antes de sua libertação final da ilusão da separatividade. O trabalho final talvez possa realizar-se em outros domínios, ou talvez não. Neste estágio de meu desenvolvimento, eu simplesmente não o sei, e terei de esperar para ver. O que eu sei é que o momento da morte (ou o "soltar o corpo", como dizem na Índia) é o momento mais excitante da vida. E acredito que a melhor maneira de se preparar para ele - assim como é a melhor maneira de viver a própria vida - é Estar Aqui e Agora, plenamente presente e atento neste exato momento.

Quando praticamos o exercício de permanecer atentos ao momento presente, insistindo sempre em trazer a mente de volta à atividade que estamos exercendo a cada momento - seja ela a tarefa de lavar pratos, de erguer o pé ao caminhar ou simplesmente a de inalar o próximo hausto de ar - mais cedo ou mais tarde a mente deixa de reagir com apego ou aversão aos pensamentos ou às sensações. Este desprendimento permite que nossa consciência se desloque sem "bagagens" de um momento para o momento seguinte. Como disse Cristo: "Vejam, faço novas todas as coisas."

Essa prática envolve o deixar que o momento passado morra ao emergir o novo momento. Então, deixaremos de amarrar o passado no presente, e o presente no futuro. Embora seja relativamente fácil manter esse tipo de prática em situações que envolvem pouca ou nenhuma tensão, é difícil permanecer imune à atração ou à aversão quando são intensos os estímulos presentes na situação. No entanto, com bastante prática isso é possível. Estamos então preparados para manter nossa atenção num estado de constância e de disponibilidade para o momento que vem a seguir, mesmo que este seja o momento da morte física, quando estão ocorrendo muitos estímulos poderosos. Desse modo, não levamos conosco nenhuma bagagem ou "velho carma" quando atravessamos o portal da morte. Na verdade, ninguém está atravessando o portal da morte. Pois até mesmo a idéia de um eu foi deixada para trás.

Quando perguntaram a Buda, um ser plenamente evoluído, para onde ele iria quando chegasse o momento de sua morte, ele respondeu: "Para onde vai o fogo depois que o combustível se consume?" Aí está!


(Texto extraído do livro: "Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte" - Gary Doore, Ph.D. - Ed. Cultrix)

Qual é a natureza do poder de alguém sobre nós?



Por: Walter da Silva Barbosa (*)


Poder é a expressão máxima do Ser, de nossa condição divina, também se definindo como Vontade. Amor e Sabedoria são os pilares do Poder, fazendo assim com que esse atributo seja exercido de maneira resoluta pela Vontade, mas também com doçura e compaixão pelos homens que alcançaram a condição de santos ou iluminados. Em especial, esse poder - às vezes chamado de "Presença" - não fere nem obriga ninguém.

Tudo o que é divino reflete-se no mundo humano, onde aquelas virtudes vão germinar e se expandir em cada criatura. Nas limitações desse mundo, porém, o poder vira dominação, o amor descamba para a sensualidade e a sabedoria se conforma com as tinturas do intelecto.

A vida no mundo humano é feita de relacionamentos, onde o poder transfigurado em dominação exerce a sua tirania. Para haver um tirano, tem que haver um "tiranizado", situação que pode estar sendo vivenciada pelas duas partes com ou sem consciência. Por que uma pessoa se submete a outra? A resposta mais fácil é: "Por ser dependente ou indefesa". Na condição de uma criança ou de um doente o argumento pode ser irretorquível. E fora daí?

Bem conhecidos são os jogos do poder, onde os pares se apóiam mutuamente na expectativa de recompensas futuras. Noutra escala, a fraqueza de caráter aliada à ganância faz com que uma pessoa se aninhe servilmente à sombra de alguém, para se servir das migalhas que respingam do banquete. Em corações mais sensíveis, contudo, estados de dominação e manipulação podem estar envolvendo relações que a pessoa não quer enxergar, fraquezas que poderiam ser superadas se ela pudesse abrir os olhos para "aquilo que é".

Temos uma grande dificuldade de nos entregar ao que "é", de nos abrir para o reconhecimento de uma limitação pessoal ou de um abuso, de perceber que tudo poderia mudar num estalar de dedos se a consciência da situação realmente ocorresse. Evitamos esse confronto, resistimos a ele, por medo das conseqüências. Enquanto isso, o sofrimento nos consome.

Falando da entrega que poderia mudar esse quadro - a entrega "ao que é" - Eckart Tolle (Praticando o Poder do Agora, Editora Sextante) diz: "Se a sua situação de vida é insatisfatória ou mesmo intolerável, somente através da entrega você vai conseguir quebrar o padrão inconsciente de resistência, que permite a permanência dessa situação".

Sair de determinada situação, porém, não significa "reagir" a ela, assim como a "entrega" não significa conformar-se a ela. Reagir ou conformar-se são maneiras de alimentar o jogo dos opostos, fugindo da percepção da realidade, da percepção do poder de sua Presença. Quando você sai de uma situação pelo caminho da fuga, a tendência é cair em situação semelhante logo depois, porque nesse caso a lição não foi aprendida, não gerou consciência.

"Somente alguém inconsciente vai tentar usar ou manipular os outros, mas a verdade é que somente as pessoas inconscientes podem ser usadas e manipuladas. Se você reage ou se opõe ao comportamento inconsciente dos outros, também fica inconsciente", diz Tolle.

Entregar-se significa permitir a si mesmo "ver as coisas como elas são". Esse "ver" tem o sentido de observar a situação atual pelos fatos que ela acarreta (as imagens de uma submissão vivida, por exemplo), assim evitando-se os rótulos gerados pelo pensamento. Novas imagens podem então ser criadas em nosso campo mental, para que as mudanças almejadas aconteçam. Veja a si mesmo na situação nova, sinta-se dentro dela, lembrando que tudo começa na mente. Aí já não haverá reação, mas sim a ação decorrente de um impulso novo, de um "insight".

A consciência, como faculdade espiritual, encontra-se além dos processos de pensamento, expressando-se como "Luz da Presença", como manifestação de nosso próprio poder. Diante desse poder nenhuma submissão real pode continuar existindo, ainda que a situação externa não mude de imediato, até por nossa própria escolha. Nesse caso, porém, ela não deve mais gerar sofrimento, pois será uma opção consciente de nossa parte.

--------------------------------------------------------------------------------
(*) Walter da Silva Barbosa é professor, economista, membro do Conselho Nacional da Sociedade Teosófica e diretor da Associação Educacional Annie Besant, em Campo Grande - MS

terça-feira, 19 de maio de 2009

Temos de parar de comer os Oceanos




Sea Shepherd: Temos de parar de comer os oceanos

05.05.2009

Os oceanos são como a galinha dos ovos de ouro. Enquanto ela estava viva, botava um ovo dourado cada dia, mas depois o agricultor ganancioso decidiu matá-la para obter todo o ouro de seu interior, mas nada encontrou, e a galinha não botou mais seus ovos porque estava morta.
Durante séculos, os oceanos têm alimentado a humanidade. Mas, no século passado, os ecossistemas dos oceanos foram abusados pela ganância humana com uma ignorância insana.
Não como peixe, porque sou um ecologista e tenho visto a diminuição de peixes em todos os mares da minha vida. Fui criado em uma aldeia de pescadores e fui criado em uma dieta de bacalhau, sardinha, cavala, smelts, amêijoas, lagostas, solhas e truta. Eu vi com meus próprios olhos a progressiva diminuição de peixes, lagostas e crustáceos. E pelo que eu comi quando criança, eu escolhi o que não comer hoje, pela simples razão de que há muitos de nós em terra comendo os poucos deles que vivem nos mares.

O pescador agora se tornou um dos mais destrutivos ocupadores do planeta. É tempo de pôr de lado a imagem antiquada, independente, 'sal-do-mar', do pescador trabalhando corajosamente para alimentar a sociedade e sustentar sua família.

A maioria dos pescadores não vão mais ao mar com linhas e pequenas redes. Hoje, operam navios que valem alguns milhões de dólares, equipados com uma complexa e dispendiosa tecnologia, destinada a caçar e capturar todos os peixes que possam encontrar.

Um fabricante de localizador eletrônico de peixes - Rayethon, se orgulha de seu produto, dizendo o peixe pode correr, mas não pode se esconder.E para os peixes não há lugar seguro, sendo caçados impiedosamente mesmo em reservas marinhas e santuários. Nós, seres humanos, temos travado uma intensa e implacável exploração de praticamente todas as espécies de peixes no mar, e esses estão desaparecendo. Se não pormos um fim aos navios de pesca industrializada muito em breve, vamos matar os oceanos e, ao fazê-lo, vamos nos matar.

Nesta semana, cientistas revelaram que a desnutrição é generalizada, afetando peixes, pássaros, animais e populações dos nossos oceanos. Não só estamos esgotando as suas reservas, estamos matando de fome os sobreviventes.

Estamos alimentando gatos com peixes, porcos e galinhas, e nós estamos sugando dezenas de milhares de pequenos peixes do mar para a alimentação de peixes maiores criados em cativeiro. Gatos domésticos estão comendo mais peixe do que focas, porcos comem mais peixes do que tubarões, e galinhas comem mais peixes do que albatrozes.

Com outros fatores, como o aumento da acidez, aquecimento global, poluição química e diminuição da camada de ozônio, provocamos declínio das populações de plâncton, travando um ataque global sobre toda a vida nos nossos oceanos. Os peixes não podem competir com as nossas exigências excessivas. Já eliminamos 90% dos grandes peixes comerciais do mar. Os chineses procuram barbatanas de tubarão, o que está destruindo praticamente todas as espécies de tubarão no oceano.

Considerando que a indústria da pesca, uma vez segmentada, destruiu os grandes peixes, agora está se focalizando nos menores, os peixes que sempre alimentaram o peixe maior. Das dez principais pescarias no mundo de hoje, sete estão no alvo dos peixes pequenos. Se os peixes são muito pequenos para alimentar as pessoas, são simplesmente misturados na farinha para alimentar os animais domésticos e agrícolas, que criam salmão ou atum.A aqüicultura surgiu agora também como o maior desperdício de peixes, e é o motor econômico na condução da exploração intensiva de peixes pequenos. Atualmente, japoneses e noruegueses extraem dezenas de milhares de toneladas de plâncton do mar para produzir proteína rica a fim de alimentar animais.

Nesta semana, um relatório sobre o estado do Mundo da Pesca e da Aqüicultura liberado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO, concluiu que 80% de todos os peixes marinhos estão atualmente sendo explorados, sobrexplorados, empobrecidos ou esgotados, incluindo reservas das sete maiores pescas. Poucas populações de peixes marinhos permanecem com o potencial para sustentação, enquanto a humanidade segue em crescimento, e muitos já atingiram seu limite.

A Sea Shepherd Conservation Society não está tomando a posição dos direitos animais quando dizemos que as pessoas devem parar de comer peixe e parar de comer carne de animais que foram alimentados por peixes. A nossa posição baseia-se unicamente sobre a realidade ecológica que a pesca comercial está destruindo os oceanos.

Todos nós sabemos disto. Estamos todos conscientes dessa diminuição. A realidade ecológica não está somente à nossa frente, está acertando nossos queixos. O problema é a negação absoluta, se nos recusamos a reconhecer que extinguindo a vida do mar iremos comprometer o alicerce para a nossa sobrevivência na terra.

Esta negação é tão arraigada que mesmo o Greenpeace serve peixe para sua tripulação a bordo dos seus navios, enquanto apóia campanhas de se opôr à pesca predatória.
Um povo indígena no Brasil, chamado de Kaiyapo, chama aqueles que destroem as florestas de 'povo-cupim', porque eles devoram as árvores. Nós temos humanos parasitas sugando a vida dos oceanos e dando nada em troca. Nós, seres humanos, nos tornamos parasitas sugadores de sangue do oceano, e quando matarmos nossos anfitriões, como certamente faremos, então morreremos também.

Por muito tempo, eu me perguntava por que eu me preocupava em falar sobre esses assuntos para uma sociedade que se recusa até mesmo a conhecer esta realidade e simplesmente rejeita qualquer conversa sobre exploração ao extremo. Durante décadas, tenho sofrido com apatia e ignorância.

Na semana passada, em Paris, na Conferência de Sustentabilidade, eu falei sobre tudo isso para uma sala cheia de jornalistas, e quando eu propus o encerramento de todas as atividades comerciais de pesca no Mediterrâneo, fiquei agradavelmente surpreso com o fato de nenhum jornalista discordar e sequer questionar uma proposta tão radical. Na verdade, meu anúncio foi saudado com aplausos.

O público está se tornando consciente da gravidade da situação ecológica, que ameaça a vida no mar. E isto é muito encorajador. Eu não posso pensar em algo mais importante do que a preservação da diversidade em nossos oceanos. Talvez possamos nos adaptar ao aquecimento global, e talvez podemos sobreviver a uma extinção maciça de espécies, mesmo em terra. Mas eu sei que se matarmos os oceanos vamos nos matar.A diversidade é a preservação da vida.

Temos de parar de comer os oceanos. Comer peixe é, para todos os efeitos, um crime ecológico. Não há sustentabilidade na pesca oceânica - não, nenhuma. Aquela pretensão de ser consumidores ecologicamente corretos é apenas uma fraude, uma tentativa de nos fazer sentir bem, enquanto continuamos a comer o mar.

Sei que muitos não vão gostar do que estou dizendo, mas eu nunca escrevi ou falei com a finalidade de ganhar algum concurso de popularidade. Meu objetivo é ser ecologicamente correto no meu pensamento, e de qualquer perspectiva que tenho visualizado. Isso eu vejo escrito na parede, em grandes letras em negrito, juntamente com as minhas observações do equilíbrio, e agora a diminuição da vida no mar, desde que eu era um rapaz sentado na Baía de Passamaquoddy até agora, tendo viajado por todos os oceanos do mundo tentando defender a vida no mar. Os sinais parecem ameaçadores e perigosos.

Alguns podem pensar que um apelo pela proibição da pesca comercial é radical. Eu vejo isso como uma política conservadora e essencial que devemos implementar para salvar os oceanos e a nós mesmos.

Estou preocupado com os pescadores e suas famílias? Eu simpatizo com sua situação, mas estou muito mais interessado na sobrevivência futura da humanidade e dos oceanos. Nós simplesmente precisamos pôr fim a uma indústria que literalmente está eliminando os sistemas de apoio à vida neste planeta. Isso exige sacrifícios, mas é preferível sacrificar um trabalho do que sacrificar o futuro de todos nós.

Temos que considerar as necessidades dos peixes, e é preciso dar-lhes espaço e tempo para se recuperarem do terrível abate a que temos infligido todas as espécies que vivem no mar.
Estou cansado de ouvir desculpas de pescadores dizendo que as focas e os golfinhos diminuíram os peixes. Eles querem nos fazer de bobos, e aceitar um bode expiatório não-científico nesse argumento. Os peixes sumiram porque eles, os pescadores, os mataram sem piedade.

Eles precisam de ser tratados como criminosos que estão destruindo os oceanos. A indústria da pesca precisa de ser encerrada antes que provoque uma extinção irreversível, e tambem a perda de diversidade em nossos oceanos.

Se um colapso ecológico ocorrer devido à remoção de uma espécie ou espécies estratégicas, nós não nos preocuparemos com empregos. Nós vamos nos preocupar que os nossos concidadãos irão nos caçar e nos comer. Se isso ocorrer, as palavras que Jesus Cristo uma vez disse a pescadores se tornarão terrivelmente verdade - eu vou te fazer tornar pescadores de homens (Marcos, 1-17).


(Fonte: Blog Holosgaia)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Espinosa (2)


(...)

"E quanto àqueles modos finitos - rochas e pedras e árvores, mesas e cadeiras, laudas e xícaras de café -, coisas que normalmente consideramos inanimadas ?

Espinosa diria que elas não são nem um pouco inanimadas, e que se eu as visse como Deus as vê, eu estaria tão ciente quanto ele de seus correlatos mentais, da mesma maneira como estou ciente da minha própria mente e suas idéias."

(Extraído do livro "Espinosa" - de Roger Scruton - pag.21.)

Perspectivismo: para além do pós-modernismo


(Nota do Blog Epifenomenologia: O texto abaixo é uma tradução livre do artigo "Perspectivism: ‘Type’ or ‘bomb’?" de Bruno Latour, publicado na revista "At Anthropology Today" - vol. 25 nº2, abril 2009, disponível no site do autor. Trata-se de um comentário realizado a propósito do debate entre Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola ocorrido na Maison Suger, em Paris, no dia 30 de Janeiro de 2009.)


PERSPECTIVISMO: MODELO OU BOMBA? (*)


Bruno Latour


Paris, 30 de Janeiro


Quem disse que a vida intelectual de Paris estava morta? Quem disse que a antropologia não mais era vívida e atraente? Aqui estamos, numa fria manhã de Janeiro, em uma sala cheia de gente de diversas disciplinas e vários países, ávidos por ouvir um debate entre dois dos maiores e mais brilhantes antropólogos. O rumor circulou por salas de bate-papo e cafés: depois de anos aludindo aos seus desacordos, em particular ou por publicações, eles concordaram enfim em trazê-los a público. “Vai ser áspero”, me disseram; “vai ter sangue”. Na verdade, em vez da rinha esperada por alguns, a pequena sala na Rue Suger testemunhou uma disputatio(1), muito parecida com aquelas que devem ter tido lugar entre estudiosos fervorosos aqui, no coração do Quartier Latin, por mais de oito séculos.

Apesar de se conhecerem há 25 anos, os dois decidiram começar a sua disputatio lembrando à platéia do importante impacto do trabalho um do outro em suas próprias descobertas.

Philippe Descola primeiramente reconheceu o quanto ele aprendeu com Eduardo Viveiros de Castro quando estava tentando se extirpar do binarismo “natureza versus cultura” ao reinventar a então obsoleta noção de “animismo” para entender modos diferentes de relação entre humanos e não-humanos. Viveiros havia proposto o termo “perspectivismo” para um modo que não poderia ser mantido dentro das limitadas estrituras [narrow strictures] de natureza versus cultura, já que para os índios que ele estudava, a cultura humana é aquilo que vincula todos os seres - incluindo animais e plantas - ao passo que eles estão divididos por suas naturezas diferentes, ou seja, seus corpos (Viveiros 1992).

É por este motivo que, enquanto os teólogos em Valladolid debatiam acerca dos índios terem ou não uma alma, esses mesmos índios, do outro lado do Atlântico, testavam os conquistadores ao afogá-los para ver se apodreciam - uma bela maneira de ver se eles realmente tinham corpo; o fato de terem uma alma não estava em questão. Este famoso exemplo de antropologia simétrica levou Lévi-Strauss a notar, com uma certa ironia, que os espanhóis podiam ser bons em ciências sociais mas que os índios estavam conduzindo suas pesquisas de acordo com o protocolo das ciências naturais.


Descola

Os quatro modos de relação de Descola

Descola, então, explicou como a sua nova definição de animismo poderia ser utilizada para distinguir “naturalismo” - a visão geralmente tida como posição padrão adotada pelo pensamento Ocidental - de “animismo”. Enquanto os “naturalistas” traçam semelhanças entre entidades com base em aspectos físicos e os distinguem com base em características mentais ou espirituais, o “animismo” toma a posição oposta, sustentando que todas as entidades são semelhantes em termos de seus aspectos espirituais, mas se diferem radicalmente em virtude do tipo de corpo do qual são dotadas.

Este foi um avanço notável para Descola, já que significou que a divisão “natureza versus cultura” não mais constituía o background inevitável adotado pela profissão como um todo, mas apenas uma das maneiras que os “naturalistas” tinham de estabelecer as suas relações com outras entidades. A Natureza deixara de ser um meio [resource] para se tornar um problema [topic]. É desnecessário dizer que esta descoberta não estava perdida entre as nossas, no campo vizinho dos science studies, que estudávamos, histórica ou sociologicamente, como os “naturalistas” tratavam as suas relações com não-humanos.

Foi então possível para Descola, como ele explicou, adicionar a este par de conexões um outro par no qual as relações entre humanos e não-humanos eram ou semelhantes em ambos os lados (o que ele chamou “totemismo”) ou diferentes nos dois lados (um sistema por ele denominado "analogismo") . Ao invés de cobrir todo o globo com um único modo de relações entre humanos e não-humanos que então serviria como um background para detectar as variações “culturais” entre muitos povos, este próprio background virara objeto de investigação cuidadosa. Os povos não se diferem apenas em suas culturas mas também em suas naturezas, ou antes, na maneira pela qual elas constroem relações entre humanos e não-humanos. Descola foi capaz de alcançar o que nem os modernistas nem os pós-modernos conseguiram: um mundo livre da unificação espúria de um modo naturalista de pensar.

Apesar da universalidade imperialista dos “naturalistas” ter sido ultrapassada, uma nova universalidade ainda era possível, uma que permitisse que cuidadosas relações estruturais fossem estabelecidas entre as quatro maneiras de construir coletivos [building collectives]. O grande projeto de Descola era então reinventar uma nova forma de universalidade para a antropologia, mas desta vez uma “relativa”, ou melhor, uma universalidade “relativista”, que ele desenvolveu em seu livro Par delà nature et culture (2005). A seu ver, por mais profunda que fosse a investigação de Viveiros, ele focava apenas um dos contrastes locais que ele, Descola, tentara contrastar com numerosos outros procurando obter uma variedade maior.

Eduardo Viveiros de Castro


Dois perspectivismos no perspectivismo

Apesar de se serem amigos por um quarto de século, duas personalidade não poderiam ser mais distintas. Depois do tom aveludado da apresentação de Descola, Viveiros falou por incursões breves e aforísticas, lançando uma espécie de Blitzkrieg em todas as frentes a fim de demonstrar que também ele pretendia atingir uma nova forma de universalidade, só que uma muito mais radical. Perspectivismo, sob seu ponto de vista, não deveria ser considerado como uma simples categoria dentro da tipologia de Descola, mas antes como uma bomba com o potencial de explodir toda a filosofia implícita tão dominante na maior parte das interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais. Se há uma abordagem que é totalmente anti-perspectivista, é a noção mesma de um termo [type] dentro de uma categoria, uma idéia que só pode ocorrer àqueles a quem Viveiros chamou “antropólogos republicanos”.

Como Viveiros explicou, o perspectivismo virou algo como uma moda nos círculos amazônicos, mas esta moda oculta um conceito muito mais incômodo, que é o de “multinaturalismo”. Enquanto os pesquisadores, tanto das ciências duras quanto das ciências humanas, concordam igualmente com a noção de que há apenas uma natureza e muitas culturas, Viveiros quer levar o pensamento amazônico (que não é, ele sustenta, a “pensée sauvage” que Lévi-Strauss sugeriu, mas uma filosofia totalmente civilizada e altamente elaborada) a tentar ver como o mundo inteiro seria se todos os seus habitantes tivessem a mesma cultura e muitas naturezas diferentes. A última coisa que Viveiros pretende é que a luta ameríndia contra a filosofia ocidental se torne apenas mais uma bizarrice no vasto gabinete de curiosidades que ele acusa Descola de estar tentando construir. Descola, ele argumenta, é um “analogista” - isto é, alguém que é possuído pela cuidadosa e quase obsessiva acumulação e classificação de pequenas diferenças a fim de preservar um senso de ordem cósmica face à constante invasão de diferenças ameaçadoras.

Notem a ironia aqui - e a tensão e atenção na sala aumentaram neste momento: Viveiros não estava acusando Descola de estruturalista (uma crítica que foi frequentemente dirigida a seu maravilhoso livro), já que o estruturalismo, como Lévi-Strauss o concebe, é, ao contrário, “um existencialismo ameríndio”, ou antes “a transformação estrutural do pensamento ameríndio” - como se Lévi-Strauss fosse o guia, ou melhor, o xamã que permitiu ao perspectivismo indígena ser conduzido para dentro do pensamento Ocidental a fim de destruí-lo a partir de seu interior, numa espécie de canibalismo invertido. Lévi-Strauss, longe de ser o catalogador frio e racionalista de mitos distintos contrastados, aprendera a sonhar e divagar como os índios, exceto que ele sonhava e divagava por meio de fichamentos e parágrafos refinados. Mas o que Viveiros criticou foi que Descola arrisca tornar a transformação de um tipo de pensamento para outro “demasiadamente leve”, como se a bomba que ele, Viveiros, queria colocar na filosofia ocidental tivesse sido desarmada. Se nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia, toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências sociais, teria que ser descartada.

A essa crítica Descola respondeu que ele não estava interessado no pensamento Ocidental, mas no pensamento de outros; Viveiros replicou que o problema era a sua maneira de estar “interessado”.

Bruno Latour


Pensamento descolonizador

O que está claro é que este debate destrói a noção de natureza como um conceito universal que cobre todo o globo, por conta do qual os antropólogos têm o dever triste e limitado de adicionar o que quer que tenha restado de diversidade sob a noção velha e desgastada de “cultura”. Imaginem como os debates entre antropólogos “físicos” e “culturais” podem ficar quando a noção de multi-naturalismo for levada em consideração. Descola, não obstante, ocupa a primeira cadeira de “antropologia da natureza” no prestigioso Collège de France, e eu sempre me perguntei como os seus colegas das ciências naturais conseguem ensinar os seus próprios cursos ao lado daquilo que para eles deveria ser uma fonte de material radioativo. A preocupação de Viveiros de sua bomba ter sido desativada talvez esteja equivocada: um novo período de florescimento é aberto para a antropologia (ex-física e ex-cultural) agora que a natureza deixou de ser um meio para se tornar um problema muito contestado, no momento mesmo, por acaso, em que a crise ecológica - um assunto de grande preocupação política para Viveiros no Brasil - reabriu o debate que o “naturalismo” tentara prematuramente fechar.

Mas o que é ainda mais recompensador de ver numa disputatio como esta é o quanto nós progredimos com relação à categoria modernista e, depois, pós-moderna. Certamente, a busca por um mundo familiar é infinitamente mais complexa agora que tantos modos diferentes de habitar a terra ficaram livres para se implantar. Mas, por outro lado, a tarefa de compor um mundo que ainda não é familiar está claramente colocada para os antropólogos, uma tarefa que é tão grande, tão séria e tão recompensadora quanto qualquer outra coisa com a qual eles tiveram que lidar no passado. Viveiros apontou para isto em sua resposta para uma questão vinda da platéia, usando uma espécie de aforismo trotskista: “Antropologia é a teoria e prática de permanente descolonização.” Quando ele acrescentou que “a antropologia hoje está largamente descolonizada, mas a sua teoria ainda não é descolonizadora o suficiente”, alguns de nós na sala tiveram o sentimento de que, se este debate for indicativo de algo, nós podemos finalmente estar chegando lá.



* Traduzido por Larissa Barcellos


Notas:

1- Disputatio: tipo de disputa de idéias e argumentos ocorrida no período medieval entre dois professores com posições contrárias, que apresentavam suas idéias em pequenas proposições para serem publicadas e, depois, debatidas entre o público acadêmico. Em debates deste tipo, os alunos tinham como tarefa acompanhar e recolher todas as idéias em uma síntese. Para saber mais: http://isaiaslobao.blogspot.com/2008/11/disputatio-theologica.html (N.T.)


(Extraído do Blog Epifenomenologia)

domingo, 17 de maio de 2009

Espinosa (1)


(...) a filosofia de Espinosa está mais perto da verdade que qualquer outra que tenha considerado as mesmas questões de difícil aprofundamento. São perguntas tão importantes para nós quanto o eram para Espinosa. A diferença é que nós raramente estamos conscientes delas. São elas:

- Por que as coisas existem ?
- Como se compoem o mundo ?
- O que somos nós no esquema das coisas ?
- Somos livres ?
- Como devemos viver ?

Nossa incapacidade atual para responder a essas perguntas explica nossa relutância em enfrentá-las, o que, por sua vez, explica nossa profunda desorientação. A chamada "condição pós-moderna" tão em voga é, na verdade, a condição das pessoas que se rendem às suas ansiedades fundamentais, achando mais fácil disfarçá-las. Elas não sabem mais por que e como ter esperança. Não há terapeuta melhor para essa condição que Espinosa, nem maior defensor da vida espiritual para aqueles que perderem o desejo de voltar a tê-la.
As cinco perguntas que listei são filosóficas: não podem ser respondidas pela observação e por experimentos, mas somente por meio do raciocínio.

(...)

Espinosa viveu num tempo em que a ciência moderna começava a emergir do cenário das especulações teológicas. Foi um pensador científico consumado, que antecipou muitos aspectos da moderna ciência e filosofia. Mas ele não admitiria uma cisão entre ciência e filosofia. Para ele, como para Descartes, a física tem por base a metafísica, e um cientista que ignora as questões fundamentais não sabe realmente o que está fazendo.

(Fonte: "Espinosa", de Roger Scruton - pags.7-9)

Lévi-Strauss pós-estruturalista

Claude Lévi-Strauss


(...)

Lévi-Strauss:

"O que eu propus ?
Propus que os direitos do homem não se baseassem mais, como foi feito após a Independência Americana e a Revolução Francesa, no caráter único e privilegiado de uma espécie viva, mas, ao contrário, que se visse nisso um caso particular de direitos reconhecidos a todas as espécies.
Seguindo essa direção, dizia, estaremos em condições de conseguir um consenso mais amplo de que uma concepção restrita dos direitos do homem, já que nos encontraríamos, no tempo, com a filosofia estóica; e no espaço, com as filosofias do Extremo-Oriente. Estaríamos, até, no mesmo nível de atitude prática que os povos chamados primitivos, que são objeto de estudo dos etnólogos, têm diante da natureza; algumas vezes sem teoria explícita, mas observando preceitos cujo efeito é o mesmo.

(...)



Lévi-Strauss:

Afastei-me da pintura de vanguarda por motivos diferentes: meu apego a uma arte insubstituível, uma das mais prodigiosas criadas pelo homem no curso de milênios, e que se prende a uma certa concepção do lugar do homem no universo. Como tantos outros problemas, os levantados pela arte não têm uma única dimensão.

Didier Eribon:

Voltamos a encontrar algo parecido com o que o senhor dizia a respeito dos direitos do homem. A pintura contemporânea é o ponto final de uma corrente que restringiu o homem a um téte-à-téte consigo mesmo.

Lévi-Strauss:


Sim, a idéia de que os homens conseguem extrair de si mesmos criações que valem tanto ou até mais do que as da natureza. Sérusier, um contemporâneo de Gauguin, já escrevia a Maurice Denis que, comparado ao que tinha na cabeça, a natureza parecia-lhe pequena e banal. Ora, a meu ver, o homem deve persuadir-se de que ocupa um lugar ínfimo na criação, que a riqueza desta ultrapassa-o, e que nenhuma de suas invenções estéticas rivalizará um dia com as que oferecem um mineral, um inseto ou uma flor. Um pássaro, um escaravelho, uma borboleta convidam à mesma contemplação que reservamos a Tintoretto ou a Rembrandt; mas nosso olhar perdeu seu frescor, não sabemos mais ver.


(Trechos extraídos do livro: De Perto e de Longe - Claude Lévi-Strauss e Didier Eribon, pags. 231, 246.)

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Morte, Renascimento e Meditação



Por: Ken Wilber

(Ken Wilber, fundador da "Psicologia Integral", escreveu mais de uma centena de artigos e é autor ou organizador de dez livros, que incluem The Atman Project e Up from Eden.)


Praticamente em todas as tradições religiosas místicas pelo mundo afora se acha presente algum tipo de doutrina de reencarnação. O próprio cristianismo a admitia até por volta do século IV d.C., quando por motivos em grande parte políticos, recaiu sobre ela o anátema. Não obstante, muitos místicos cristãos aceitam hoje essa idéia. Como salientou o teólogo cristão John Hick em sua importante obra Death and Eternal Life [Morte e Vida Eterna], todas as religiões do mundo, inclusive o próprio cristianismo, estão de acordo quanto à ocorrência de algum tipo de reencarnação.



Por certo, o fato de muitas pessoas acreditarem em alguma coisa não faz com que ela seja verdadeira. E é muito difícil sustentar a idéia da reencarnação fazendo apelo a "evidências" que assumem a forma de alegadas lembranças de uma vida passada, pois na maioria dos casos pode-se demonstrar que essas lembranças não passam de revivescências de traços de uma memória subconsciente oriundas desta vida.



No entanto, o problema não é tão sério quanto poderia a princípio parecer pois a doutrina da reencarnação, tal como é apresentada pelas grandes tradições místicas, é uma noção bastante específica: Ela não significa que a mente viaja ao longo de vidas sucessivas e que, por conseguinte, em condições especiais como, por exemplo, sob hipnose - a mente pode recordar todas as suas vidas passadas. Pelo contrário, é a alma, e não a mente, que transmigra. Portanto, o fato de não se poder provar a reencarnação fazendo-se apelo às lembranças de vidas passadas é exatamente o que se poderia esperar: lembranças específicas, idéias, conhecimentos, e assim por diante pertencem à mente e não transmigram. Tudo isto é deixado para trás, juntamente com o corpo, por ocasião da morte. Talvez algumas poucas lembranças específicas consigam se insinuar de vez em quando, como nos casos registrados pelo Professor Ian Stevenson e por outros, mas esses casos constituiriam antes a exceção que a regra. O que transmigra é a alma, e esta não é um conjunto de lembranças, de idéias ou de crenças.



Bem, de acordo com a maioria dos ramos da filosofia perene, a alma possui duas características básicas que a definem: primeira, ela é o repositório das "virtudes" do indivíduo (ou da falta das mesmas) - isto é. de seu carma, mesmo tempo bom e ruim; segunda, ela é a "força" da percepção de uma pessoas, ou a capacidade que o indivíduo possui de "testemunhar" o mundo dos fenômenos sem nenhum apego ou aversão. Esta segunda capacidade é também conhe cida como "sabedoria". A reunião de ambas - virtude e sabedoria - constitui a alma, que é a única coisa que transmigra. Desse modo, quando as afirmam que se "lembram" de uma vida passada - onde viveram, qual era seu meio de vida, e assim por diante - essas pessoas, de acordo com qualquer religião importante ou em qualquer ramo da filosofia perene, não estão se lembrando de nenhuma efetiva existência passada. Somente os budas (ou tulkus), segundo se afirma, podem se lembrar de vidas passadas - constituem eles a exceção à regra.


Ken Wilber


A Reencarnação como Hipótese Espiritual





Porém, se ostensivas lembranças de vidas passadas não constituem provas satisfatórias de reencarnação, que outro tipo de eviências poderia haver para sustentar essa doutrina? Seria preciso lembrar aqui que a filosofia perene, de um modo geral, permite três tipos principais e diferentes de conhecimento e sua verificação: o conhecimento sensorial ou empírico, o conhecimento mental ou lógico e o conhecimento espiritual ou contemplativo. A reencarnação não é uma hipótese sensorial nem mental; não pode ser explicada ou verificada por meio de dados sensoriais ou de dedução lógica. É uma hipótese espiritual que deve ser testada com os olhos da contemplação, e não com o olhos da carne ou com os da mente. Desse modo, embora não possamos encontrar nenhum tipo habitual de evidência capaz de nos convencer da reencarnação, quando praticamos a contemplação e adquirimos uma certa competência nessa tarefa, começamos a observar determinados fatos óbvios - por exemplo, que a postura testemunhante, a postura da alma, começa a compartilhar da eternidade, do infinito.



Há uma natureza atemporal com relação à alma que se toma perfeitamente óbvia e inconfundível: começa-se de fato a "sentir" a imortalidade da alma a intuir que, até certo ponto, ela está acima do tempo, acima da história, acima da vida e da morte. Dessa maneira, vamos gradualmente adquirindo a certeza de que a alma não morre com o corpo, ou com a mente, que a alma existia antes e continuará a existir. Mas esta certeza não tem nada a ver com lembranças específicas de vidas passadas. É, em vez disso, uma recordação daquele aspecto da alma que toca o espírito, e é, por conseguinte, radical e perfeitamente eterno. Na verdade, a partir desse ponto de vista, torna-se óbvio que, como expressou Shankara, o grande vidente vedanta: "único transmigrante é o Senhor", ou o próprio Espírito Absoluto. É, afinal, o próprio Buda-mente, o Único, que aparece sob todas essas formas, manifestando-se sob todas essas aparências, transmigrando como todas essas almas. Nos estágiós mais profundos da contemplação, torna-se bastante palpável essa experiência da eternidade e do espírito como imortal e indestrutível.



Não obstante. de acordo com os ensinamentos perenes, não é apenas o Absoluto que transmigra: a própria alma do inívíduo, quando não iluminada, também transmigra. Quando a alma desperta, ou se dissolve no espírito, ela não mais transmigra; ela está "libertada", ou compreende que, enquanto espírito, está reencamada em toda a parte, como todas as coisas. Mas se a alma não desperta para o espírito, se não é iluminada, ela reencarna, levando consigo o acúmulo de sua virtude e de sua sabedoria, em vez de recordações específicas de sua mente. E essa cadeia de renascimentos prossegue até que esses dois acúmulos - virtude e sabedoria - atinjam finalmente um ponto crítico, quando a alma se torna iluminada, ou se dissolve e se liberta no espírito, fazendo assim com que termine a transmigração individual.



Mesmo o budismo, que nega a existência absoluta da alma, reconhece que ela tem uma existência relativa, ou convencional, e que essa alma, relativa ou convencionalmente existente, transmigra. Quando o Absoluto, ou shunyata, é diretamente vivenciado, a transmigração relativa - e a alma separada - chega ao fim. Poder-se-ia pensar, entretanto, que um budista se oporia ao uso da palavra alma neste contexto, por se tratar de um termo que em geral tem uma conotação de algo indestrutível ou eterno - conotação que parece incompatível com a concepção budista de que a alma tem apenas uma existência relativa e temporária. No entanto, uma consideração mais atenta dos ensinamentos da filosofia perene, resolverá essa aparente contradição.



De acordo com a tradição perene, a alma é de fato indestrutível, mas quando ela descobre plenamente o espírito, seu próprio sentido de separatividade se dissolve ou é transcendido. A alma ainda permanece como individualidade, ou expressão da pessoa em particular, porém o seu ser ou centro desloca-se para o espírito, dissolvendo assim sua ilusão de separatividade. E esta doutrina concorda quase exatamente com os ensinamentos mais elevados do budismo a anuttaratantra ioga, ou "supremo ensinamento tântrico" - segundo o qual existe no centro mesmo do chakra do coração, em cada indivíduo, aquilo que é tecnicamente denominado "a gota indestrutível" (ou luminosidade). Como ensina o Vajrayana, é essa gota indestrutível que transmigra. E mais: ela é indestrutível; afirma-se que até mesmo os budas a possuem. A gota indestrutível é considerada a sede do próprio "vento" sutil (rLung) que sustenta a "própria mente sutil [ou causal], a mente da iluminação, ou essência espiritual do indivíduo. O budismo concorda, portanto, com a filosofia perene: a gota indestrutível é a alma, o continuum, tal como a defini.


Ken Wilber



Estágios do Processo do Morrer: Dissolução da Grande Cadeia do Ser

De um modo geral, os diversos ramos da filosofia perene estão de acordo quanto aos estágios do processo do morrer e às experiências que acompanham esses estágios: a morte é um processo no qual a Grande Cadeia do Ser se "dissolve", para o indivíduo, "de baixo para cima", por assim dizer. Isto é, por ocasião da morte o corpo se desfaz dentro da mente, depois a mente se desfaz dentro da alma, e então a alma se desfaz dentro do espírito, sendo cada uma dessas dissoluções caracterizada por um conjunto específico de acontecimentos. Por exemplo, a dissolução do corpo na mente corresponde ao processo efetivo da morte. A dissolução da mente na alma é vivenciada como uma revisão e um "julgamento" da própria vida. A dissolução da alma no espírito é uma libertação radical e uma transcendência. O processo é, então, por assim dizer, "revertido", e, com base nas tendências cármicas acumuladas pelo indivíduo, é gerada uma alma a partir do espírito, em seguida uma mente a partir da alma, e depois um corpo a partir da mente, quando então o indivíduo esquece todas as etapas anteriores e se encontra renascido num corpo físico. De acordo com os tibetanos, esse processo todo leva cerca de quarenta e nove dias.

A tradição tibetana contém a descrição mais rica e mais detalhada dos estágios da dissolução da Grande Cadeia durante o processo do morrer. Segundo os tibetanos, as experiências subjetivas que acompanham cada um dos oito estágios da dissolução são conhecidos tecnicamente como "miragem", "aparência de fumaça", "pirilampos", "lamparina", "aparência branca", "aumento do vermelho", "quase-realização do negro" e "clara luz". Para compreender esses termos, precisamos de uma versão um pouco mais detalhada e precisa da Grande Cadeia. Por isso, em vez de nossa versão simplificada de corpo, mente, alma e espírito, recorreremos a uma versão ligeiramente ampliada: matéria, sensação, percepção, impulso, psíquico, sutil, causal (ou não-manifesto) e espírito (ou supremo).

O primeiro estágio do processo do morrer ocorre quando o agregado de forma, ou matéria - o nível mais baixo da grande cadeia - se dissolve. São cinco os sinais externos desse estágio: o corpo perde seu vigor físico; a vista se torna embaçada e indistinta; sente-se o corpo pesado, como se estivesse "afundando"; a vida abandona os olhos; e a tez perde o seu brilho. O sinal interno que acompanha espontaneamente esses sinais externos, é uma "aparência de miragem", uma espécie de imagem tremeluzente e como que aquosa, semelhante às que aparecem no deserto num dia quente. Afirma-se que isto ocorre porque, tecnicamente, o "vento" (prana) do elemento "terra" dissolveu-se no "canal central" e, desse modo, o elemento "água" predomina - daí o aspecto aquoso ou semelhante a miragem.

A seguir, o segundo agregado, o da sensação, se dissolve. Há, novamente, cinco sinais externos: a pessoa deixa de experimentar sensações corpóreas, agradáveis ou desagradáveis; cessam as sensações mentais; secam os fluidos do corpo (por exemplo a língua fica muito seca); deixa-se de ouvir os sons exteriores; e cessam igualmente os sons interiores (por exemplo, zumbidos nos ouvidos). O sinal interno associado a essa segunda dissolução é uma "aparência de fumaça", semelhante a um nevoeiro. Tecnicamente, diz-se que isto ocorre porque o elemento "água", que provocara a aparência de miragem, está se dissolvendo no elemento "fogo" - daí o aspecto esfumaçado.

O terceiro estágio é a dissolução do terceiro nível ou agregado, o nível da percepção ou discernimento. Os cinco sinais externos: o indivíduo não reconhece nem distingue mais os objetos; já não pode reconhecer os amigos ou familiares; o corpo perde o calor (ele se torna frio); a respiração fica muito fraca e superficial; e o indivíduo não consegue mais perceber os odores. O sinal interior que acompanha espontaneamente esse estágio denomina-se "pirilampos", e é descrito como uma aparição semelhante a um enxame de pirilampos ou de fagulhas que se desprendem de uma fogueira. Tecnicamente, explica-se essa ocorrência atribuindo-se à dissolução do elemento "fogo", e à predominância, a partir daí, do elemento "vento".



O quarto estágio é a dissolução do quarto nível ou agregado, o do impulso (ou "disposições intencionais"). Eis os cinco sinais externos dessa dissolução: o indivíduo já não consegue se mover (pois não há mais impulsos); já não consegue lembrar-se de ações ou dos objetivos das memas; cessa toda a respiração; a língua fica espessa e azulada, e o indivíduo já não consegue falar com clareza; e já não sente o gosto ou paladar. O sinal interno desse estágio é uma "aparência de lamparina", descrita como semelhante a uma luz brilhante, clara e constante. (A essa altura, podemos começar a perceber semelhanças com a experiência de quase-morte, que discutirei adiante.)

Para compreender o quinto estágio, e os subseqüentes, do processo de dissolução, é necessário ter alguma noção de fisiologia tântrica. Segundo o Vajrayana, todos os estados mentais - grosseiro, sutil e muito sutil - são mantidos por "ventos", ou energias, ou forças vitais correspondentes (prana em sânscrito, rLung em tibetano). Quando esses ventos se dissolvem, também se dissolvem as mentes que a eles correspondem. O quinto estágio é o da dissolução do quinto nível ou agregado, o da cognição, ou a própria consciência. Todavia, como elucidam os ensinamentos do Vajrayana, há muitos níveis de consciência. Esses níveis se dividem nas chamadas mente grosseira, mente sutil e mente muito sutil, cada uma delas dissolvendo-se numa determinada ordem, produzindo experiências e sinais específicos. Assim, o quinto estágio é o da dissolução da mente grosseira, juntamente com o "vento" ou prana (força vital) que a sustenta. Deixa então de haver a conceitualização grosseira, a mente ordinária.

Durante esse quinto estágio, depois que morre o último vestígio da mente grosseira e que começa a emergir a mente sutil, experimenta-se um estado denominado "aparência branca". Afirma-se que se trata de uma luz branca, muito clara e brilhante, semelhante a uma clara noite de outono brilhantemente iluminada pela opaca luminosidade da Lua cheia. Para compreender a causa dessa aparência branca, temos de introduzir a noção tibetana de thig-le" que significa, aproximadamente, "gotas" ou "essência". Segundo o Vajrayana, há quatro gotas, ou essências, que são particularmente importantes. A primeira, a gota branca, está localizada na parte superior da cabeça; o indivíduo a recebe de seu pai e afirma-se que ela representa (ou que é, realmente) bodhicitta, ou a mente-iluminação. A segunda, a gota vermelha, o indivíduo a recebe de sua mãe; está localizada no centro umbilical. (Também se diz que a gota branca está associada ao sêmen e a gota vermelha ao sangue [menstrual], mas o importante é que ambas estão igualmente presentes nos homens e nas mulheres). A terceira, conhecida como "a gota que é indestrutível nesta vida", está localizada no próprio centro do chakra do coração. Essa gota é, por assim dizer, a essência da presente vida do indivíduo; é o seu "continuum", que armazena todas as impressões e conhecimentos de sua existência particular. E no interior dessa "gota indestrutível nesta vida" está a quarta gota, "a gota que é eternamente indestrutível ou para todo o sempre indestrutível". É esta a gota indestrutível que persistirá para sempre - isto é, que é indestrutível no decorrer da vida presente, indestrutível no decorrer da morte e do processo de morrer, indestrutível no decorrer do bardo, ou estado intermediário entre a morte e o renascimento, e indestrutível no decorrer do próprio renascimento. Essa gota persiste até mesmo no decorrer da iluminação e é, na verdade, o próprio vento sutil que serve de "montaria", ou de base, para o ser iluminado. Como foi mencionado antes, afirma-se que até mesmo os budas possuem essa gota eternamente indestrutível.

Desse modo, o que vimos até agora foi a dissolução de todos os ventos grosseiros e das mentes grosseiras a eles associadas. Emergiu, então, a primeira mente sutil- a da "aparência branca" - "cavalgando" o vento sutil, ou energia sutil, que a ela corresponde. Bem, afirma-se que a verdadeira causa dessa mente da aparência branca é a descida da gota branca, ou bodhicitta, do chakra coronário para o chakra do coração. Costuma-se dizer que a gota branca é retida no chakra coronário pela constrição de nós e ventos da ignorância e pelo apego e agarramento ao nível grosseiro. Porém, nesse estágio do processo do morrer, a mente grosseira dissolveu-se de modo que os nós ao redor do chakra coronário se afrouxam naturalmente e a gota branca desce até a gota indestrutível do chakra do coração. Quando a alcança, surge espontaneamente a mente da aparência branca.

Incidentalmente, se essas explicações tibetanas dos fenômenos em questão parecem um tanto artificiais, seria bom lembrar que há uma enorme quantidade de evidências contemplativas que dão apoio em favor da existência das diversas experiências que, segundo se diz, ocorrem durante o processo do morrer. As próprias experiências são reais e parecem em grande parte irrefutáveis, mas a avaliação tradicional que os tibetanos oferecem para explicar o que realmente as provoca deixa bastante espaço para discussões. (Voltarei em breve a este ponto.) Aqui, limito-me a descrever a pura e simples versão tibetana como ponto de partida.

Não obstante, não deveríamos nos esquecer de que, ao contrário de nossa própria cultura ocidental, culturas tradicionais como a tibetana convivem constantemente com a morte; as pessoas morrem em suas casas, rodeadas pela família e por amigos. Desse modo, os estágios reais do processo do morrer têm sido observados milhares, até mesmo milhões de vezes. E quando acrescentamos o fato suplementar de que os tibetanos possuem uma compreensão bastante sofisticada da dimensão espiritual e de seu desenvolvimento, o resultado é um acervo incrivelmente rico de conhecimento e de sabedoria a respeito do efetivo processo do morrer e da maneira como ele se relaciona com a dimensão espiritual, o desenvolvimento espiritual, o carma e o renascimento, e assim por diante. Para um investigador, seria evidentemente uma tolice rejeitar a massiva quantidade de dados acumulados por essa tradição.

Continuamos, porém, com os estágios do processo do morrer. No sexto estágio, dissolve-se a mente sutil juntamente com seu vento, e emerge uma mente ainda mais sutil, chamada de "aumento do vermelho", que é igualmente uma experiência de luz brilhante. Neste caso, porém, trata-se de uma experiência semelhante a um claro dia de outono banhado por uma brilhante luz solar. Tecnicamente falando, isto ocorre porque se dissolveram os ventos que sustentam a vida material, de modo que todos os nós e constrições ao redor do umbigo que aí estavam retendo o bodhicitta vermelho, ou gota vermelha, se soltam ou são afrouxados. Então, a gota vermelha sobe até a gota indestrutível, no coração. Quando a atinge, a mente do aumento do vermelho surge espontaneamente.

O sétimo estágio, segundo se afirma, é a dissolução da mente sutil do aumento do vermelho e a emergência de uma mente e de um vento ainda mais sutis, a que se dá o nome de "mente da quase-realização do negro". Nesse estado, cessa por completo a consciência, e dissolve-se toda a manifestação. Além disso, há uma cessação de todas as consciências e energias específicas que se desenvolveram nesta vida. Diz-se que é a experiência de uma noite completamente negra, sem estrelas, sem nenhuma luz. Denomina-se "quase-realização" pois está, por assim dizer, "aproximando-se" da realização final; está se aproximando da clara luz do vazio. Em outras palavras, pode-se imaginar que esse nível é o mais elevado do sutil ou o mais baixo do causal, ou que é a dimensão não-manifesta do proprio espírito. Tecnicamente falando, esse "negrume" ocorre porque a gota branca de cima e a gota vermelha de baixo cercam agora a gota indestrutível, eliminando assim toda a percepção.

No entanto, no estágio seguinte e final- o oitavo estágio - a gota branca continua a descer e a gota vermelha a subir, libertando ou abrindo assim a gota indestutível. Diz-se, então, que o resultado é um período de claridade extraordinária e de percepção brilhante, onde se vivencia a presença de um céu extremamente claro, brilhante e radioso, livre de quaisquer tipos de manchas, de nuvens e de obstruções. É essa a clara luz.

Agora, diz-se que a mente da clara luz não é uma mente sutil, mas uma mente muito sutil, que cavalga um vento, ou energia, correspondentemente muito sutil. Essa mente e essa energia muito sutis, ou "causais", são, na verdade, a mente e a energia da gota eternamente indestrutível. É esse o corpo causal, ou a suprema mente e energia espiritual, o Dharmakaya. Neste ponto, a gota eternamente indestrutível deixa cair a gota indestrutível da vida presente, cessa por completo a consciência e a alma, a gota eternamente indestrutível, inicia a experiência do bardo, ou os estados intermediários que levarão eventualmente ao renascimento. A gota branca continua a descer e surge como uma gota de sêmen no órgão sexual, e a gota vermelha continua a subir e surge como uma gota de sangue nas narinas. Finalmente, ocorre a morte, e o corpo pode ser descartado. Quem faz isso prematuramente torna-se carmicamente culpado de assassinato, pois o corpo ainda está vivo.

Estágios do Processo de Renascimento

O que vimos até agora foi a progressiva dissolução da Grande Cadeia, no caso de um indivíduo, começando embaixo e operando para cima. A matéria, ou forma, dissolveu-se no corpo (ou na sensação, e depois na percepção, e por fim, no impulso) e o corpo dissolveu-se na mente, na mente grosseira. Esta dissolveu-se em seguida na mente sutil ou nos domínios da alma, que por sua vez reverteu à essência causal ou espiritual. Neste ponto, o processo será invertido, dependendo inteiramente do carma da alma - do acúmulo de virtude e de sabedona que a alma leva consigo. Desse modo, a experiência do bardo se divide em três domínios, ou estágios básicos, os quais são simplesmente os domínios do espírito, em seguida da mente, e por fim do corpo e da matéria. De acordo com a sua virtude e com a sua sabedoria, a alma reconhecerá as dimensões superiores - e neste caso permanecerá nelas - ou então não as reconhecerá - na verdade, ela fugirá delas - e neste caso acabará "escorregando" pela Grande Cadela do Ser até ser forçada a adotar um corpo físico grosseiro e portanto, a renascer.

No momento da morte efetiva ou final - a que estivemos nos referindo como sendo oitavo estágio de todo o processo do morrer - a alma, ou gota eternamente indestrutível, penetra no chamado bardo chikhai, que nada mais é que o proprio espírito, o Dharmakaya. Como afirma o Livro Tibetano dos Mortos: "Nesse momento, o primeiro vislumbre do Bardo da Clara Luz da Realidade: que é a infalível Mente do Dharmakaya, é percebido por todos os seres sensíveis.

É neste ponto que a meditação e o trabalho espiritual tornam-se tão importantes. De acordo com o Livro Tibetano dos Mortos, a maioria das pessoas é incapaz de reconhecer esse estado pelo que ele realmente é. Em termos cristãos, essas pessoas não conhecem Deus, de modo que não sabem quando é Deus que olha para elas de frente. Na verdade, elas estão, a essa altura, unidas a Deus, estão inteira e totalmente numa situação de identidade suprema com a Divindade. Porém, a menos que reconheçam essa identidade, a menos que tenham sido contemplativamente treinadas para reconhecer esse estado de unidade divina, elas na verdade fugirão dele, levadas por seus desejos inferiores e por suas inclinações cármicas. Como diz W. Y. Evans-Wentz, o primeiro tradutor do Livro Tibetano dos Mortos: "Devido à não-familiaridade com esse estado, que é um estado extático de não-ego, um estado de consciência [causal], falta ao ser humano médio a capacIdade de funcionar nesse estado; as inclinações cármicas obscurecem a consciência-princípio com pensamentos de personalidade,.de ser individualizado, de dualismo, e, perdendo o equilíbrio, a consciêncla-princípio abandona a Clara Luz."

Desse modo, a alma se retrai afastando-se da Divindade do Darmakaya do causal. De fato, diz-se que a alma procura realmente escapar da realização da Divina Unidade e se "apaga", por assim dizer, até acordar no domínio inferior seguinte, denominado bardo chonyid, a dimensão sutil, o Sambhogakaya, a dimensão arquetípica. Essa experiência é caracterizada por visões psíquicas e sutis de todo tipo, visões de deuses e deusas, dakas e dakinis, todas acompanhadas de luzes deslumbrantes e quase dolorosamente brilhantes de iluminações e de cores. Porém, mais uma vez as pessoas, em sua maioria, não estão acostumadas com esse estado, e não têm nenhuma idéia do que seja a luz transcendental e a iluminação divina, de modo que elas fogem desses fenômenos e são atraídas pelas luzes mais fracas, ou impuras, que também aparecem.

Dessa maneira, a alma volta a se contrair interiormente, tenta afastar-se dessas visões divinas, se apaga de novo e acorda no chamado bardo sidpa, o domínio da reflexão grosseira. Aqui, a alma tem eventualmente uma visão de seus futuros pais copulando, e - no bom e velho estilo freudiano - se vai nascer como menino, sentirá desejo pela mãe e ódio pelo pai, e se vai nascer como menina, odiará a mãe e sentirá atração pelo pai. (Pelo que sei, é esta a primeira explicação pormenorizada do complexo de Édipo/Electra - cerca de mil anos antes de Freud, como o próprio Jung assinalou).

Nesse estágio, diz-se que a alma - por causa de seu ciúme e de sua inveja - "entra" em sua imaginação para separar o pai e a mãe, para se interpor entre eles; mas o resultado é, simplesmente, que ela de fato, se interpõe entre eles, na realidade - isto é, ela acaba renascendo como seu filho, ou sua filha. Ela agora sente desejo, aversão, apego, ódio, e tem um corpo grosseiro: em outras palavras, é um ser humano. Encontra-se no estágio mais baixo da Grande Cadela, e seu próprio crescimento e desenvolvimento será uma nova subida, passando mais uma vez pelos estágios que ela acaba de negar e dos quais fugiu; sua evoluçao é, por assim dizer, uma inversão da "queda". A altura até onde subirá de volta na Grande Cadeia do Ser determinará a maneira como ela consegue lidar com o processo do morrer e com os estados do bardo, quando chegar de novo a hora de abandonar o corpo físico.

Interpretação das Experiências Subjetivas de Morte e de Renascimento

As evidências contemplativas sugerem vigorosamente que os dados, as experiências reais que acompanham o processo do morrer - por exemplo, a "aparência branca", o "aumento do vermelho" a "quase-realização do negro", ou sejam quais forem os termos que queiramos usar - existem e são bastante reais. Encontram-se evidências suplementares de sua realidade no fato de que essas experiências possuem efetivas referências ontológicas nas dimensões superiores da Grande Cadeia do Ser. Por exemplo, as três experiências acima mencionadas referem-se, respectivamente, àquilo que chamei de estruturas (ou níveis de consciência) psíquicas, sutis e causais. Na verdade, referem-se com muita precisão a esses níveis, a despeito das várias e legítimas diferentes explicações que também lhes poderiam ser dadas. Desse modo, em minha opinião os níveis são reais, eles possuem status ontológlco real e definido, de maneira que as experiências desses níveis são, elas próprias, reais. Isto, porém, não significa que não podem ser bastante diferentes as experiências que cada indivíduo tem desses níveis.

Um budista, por exemplo, provavelmente perceberá a "aparência branca" como uma espécie de vazio ou shunyata, ao passo que um místico cristão poderá vê-la sob a forma de uma presença santa, possivelmente a do próprio Cristo, ou como um grande ser de luz. Mas é assim que tem de ser. Pois, até que a "gota indestrutível da vida presente" - as impressões e crenças acumuladas e que foram reunidas no decorrer da vida de um indivíduo - se dissolva efetivamente (naquele a que chamamos de sétimo estágio), ela irá colorir e moldar todas as experiências desse indivíduo. Um budista terá, por conseguinte, uma experiência budista, um cristão terá uma experiência cristã, um hindu terá uma experiência hindu e um ateu se sentirá provavelmente muito confuso. Seria tudo isso o que deveríamos esperar. É somente no oitavo estágio, na clara luz do vazio, ou da pura Divindade, que as interpretações pessoais e as crenças sutis de cada indivíduo são abandonadas, e que é proporcionada uma compreensão direta da própria realidade pura, como clara luz. Portanto, a explicação tibetana para os dados não é a única possível. É, não obstante, uma dentre várias e muito importantes, reflexões ou perspectivas sobre os processos do morrer, da morte e do renascimento, arraigados numa compreensão profunda da Grande Cadeia do Ser, tanto no sentido "ascendente" (meditação e morte), como no "descendente" (bardo e renascimento).

A Experiência de Quase-Morte e os Estágios do Processo do Morrer

O fenômeno mais comum nos relatos ocidentais sobre a experiência de quase morte (EQM) é a sensação de atravessar um túnel e de avistar então uma luz brilhante, ou de encontrar um grande ser de luz - um ser dotado de incrível sabedoria, inteligência e bem-aventurança. Pouco importa aqui o credo religioso de cada indivíduo em particular; os ateus têm esse tipo de experiência com a mesma freqüência dos verdadeiros crentes. Em si mesmo, esse fato tende a corroborar a idéia de que, durante o processo do morrer, a pessoa estabelece contato com algumas das dimensões mais sutis da existência.

Do ponto de vista do modelo tibetano que discutimos acima, a "luz" relatada nas EQMs, dependendo de sua intensidade ou de sua claridade, poderia ser o nível da lamparina, da aparência branca ou do aumento do vermelho. O importante é que, a essa altura do processo da morte, dissolveram-se a mente e o corpo grosseiros, ou os ventos e as energias grosseiros, e assim começam a emergir as dimensões mais sutis da mente e da energia, caracterizadas pela iluminação brilhante, pela clareza mental e pela sabedoria. Não é, pois, de causar surpresa o fato de que, independentemente de sua crença, as pessoas relatem universalmente, a essa altura, a experiência da luz. Muitos daqueles que descrevem suas EQMS acreditam que a luz que viram é espírito absoluto. No entanto, se o modelo tibetano estiver preciso, o que as pessoas vêem durante a EQM não é exatamente o nível mais elevado. Para além da aparência branca ou do aumento do vermelho, há a quase-realização do negro, depois a clara luz e depois os estados do bardo.

A experiência da luz do nível sutil é muito agradável - é, na verdade, um espantoso estado de beatitude. E o nível seguinte, o nível muito sutil, ou causal, o é ainda mais. De fato, as pessoas que tiveram EQMs relatam jamais terem experimentado maior sensação de paz, nem nada tão profundo e tão pleno de felicidade. Não nos devemos porém esquecer de que, até essa altura, tudo nessas experiências é moldado pela "gota indestrutível da vida presente": por conseguinte, como já observamos, os cristãos poderiam ver Cristo, os budistas ver Buda, e assim por diante. Tudo isto faz sentido, pois as experiências desses domínios são condicionadas pelas experiências de nossa vida presente.


Mas depois, no oitavo estágio, a "gota indestrutível da vida presente" é solta, juntamente com todas as lembranças e impressões pessoais, e com tudo o que é específico desta vida em particular, e a "gota eternamente indestrutível" sai do corpo e entra no estado bardo. Começa, portanto, a provação do bardo - um verdadeiro pesadelo, a menos que o indivíduo esteja muito familiarizado com esses estados graças à meditação.

Num certo sentido, a experiência do morrer e a EQM são, na verdade, muito divertidas: relata-se universalmente que, uma vez superado o pavor de morrer, o processo passa a ser pleno de felicidade, de paz e de eventos extraordinários. Tendo-se porém completado a "subida", começa a "descida", ou bardo - e aí é que entra a dificuldade. Porque, ao chegar neste ponto, todas as nossas inclinações cármicas, todos os nossos apegos, desejos e medos aparecem realmente bem diante de nossos olhos, por assim dizer, como num sonho, pois o bardo é uma dimensão puramente mental ou sutil, semelhante a um sonho, na qual tudo o que pensamos surge imediatamente como uma realidade.

Desse modo, não se ouve falar nesse "lado do declive" do processo da morte entre os que passaram por uma EQM. Eles experimentaram apenas os primeiros estágios do processo global. Seus testemunhos constituem, não obstante, uma poderosa evidência de que esse processo realmente ocorre. Tudo neles se ajusta com notável e inconfundível precisão. Além disso, não é possível explicar seu testemunho alegando que todos eles estudaram o budismo tibetano; na realidade, a maioria dessas pessoas jamais ouvira falar nele. Mas suas experiências são essencialmente semelhantes às dos tibetanos pois elas refletem a realidade universal e transcultural da Grande Cadeia do Ser. Parece agora que, simplesmente, não há outra maneira de interpretar os dados, de fato abundantes, que vêm se acumulando sobre esse assunto.



A Meditação como Treinamento para a Morte

Como é que a meditação se ajusta a tudo isto? Toda forma de meditação é, basicamente, uma maneira de transcender o ego, ou de morrer para o ego. Neste sentido, ela imita a morte - isto é, a morte do ego. Quando progride razoavelmente bem num sistema qualquer de meditação, o indivíduo pode atingir um ponto em que, tendo "testemunhado" de maneira tão exaustiva a mente e o corpo, ele realmente se ergue acima da mente e do corpo, isto é, os transcende; "morre", assim para eles, para o ego, e desperta como alma sutil, ou mesmo espírito. E isto é efetivamente vivenciado como uma morte. No zen, é chamado de Grande Morte. Pode ser uma experiência bastante fácil, uma transcendência relativamente tranqüila do dualismo sujeito-objeto, mas também pode ser aterrorizante por abranger vários tipos de morte. Porém, sutil ou dramaticamente, rápida ou lentamente, morre ou se dissolve o sentido de que se é um eu separado, e o indivíduo encontra uma identidade primaz e mais elevada no (e enquanto) espírito universal.

Mas a meditação também pode ser um treinamento para a morte verdadeira. De acordo com os ensinamentos zen, se morremos antes do morrer, então quando morrermos não morreremos. Alguns sistemas de meditação, particularmente o sikh (os santos Radhasoami) e o tântrico (hindu e budista) contêm meditações muito precisas que imitam ou induzem, com muita proximidade, os vários estágios do processo do morrer - inclusive a parada da respiração, o progressivo esfriamento do corpo, o retardamento e por vezes a parada do coração, e assim por diante. A morte física verdadeira não representa então uma surpresa, e pode-se desse modo utilizar com muito mais facilidade os estados intermediários de consciência que aparecem depois da morte - os bardos - para obter a compreensão iluminada. O objetivo dessas meditações é tornar o indivíduo capaz de reconhecer o espírito, de modo que quando o corpo, a mente e a alma se dissolverem durante o efetivo processo do morrer, ele poderá reconhecer o espírito, ou Dharmakaya, e permanecer como tal, em vez de fugir dele e terminar voltando ao samsara, à ilusão de uma alma separada da mente e do corpo; ou capaz de poder, caso escolha reentrar num corpo, fazê-lo deliberadamente - isto é, como um bodhisattva.

Essas meditações que imitam a morte não representam nenhum perigo real para a vida; o corpo não está realmente morrendo, nem passando concretamente pelos estágios da morte. Assemelha-se, em vez disso, a reter a própria respiração para ver como é: não se pára de respirar para sempre. Porém, alguns dos estados que podem ser induzidos por essas meditações são de fato poderosas imitações dos fatos reais. As batidas cardíacas, por exemplo, podem ser realmente sustadas durante um longo período, tal como a respiração. É desse modo que se pode dizer, por exemplo, que os "ventos" penetraram e estão permanecendo no canal central. A pessoa está "imitando" a morte mas, ao fazê-lo, ela realmente - embora de maneira temporária - dissolve os mesmos ventos que são dissolvidos na morte. Trata-se, portanto, de uma imitação muito concreta e real.

Qual é, exatamente, a relação entre os diversos ventos, ou energias, descritos nos Tantras, e a meditação? A idéia central de todo Tantra, seja ele hindu, budista, gnóstico ou sikh, é que cada estado mental, ou cada estado de consciência - em outras palavras, cada nível da Grande Cadeia do Ser - possui também uma energia específica que o sustenta, o prana, ou vento. (Já examinamos a versão tibetana dessa doutrina.) Desse modo, ao dissolver um vento específico, o indivíduo estará dissolvendo a mente que é por ele sustentada. Por conseguinte, quando consegue controlar esses ventos ou energias, o indivíduo transcende as mentes que os "cavalgam". É esta a noção geral de pranayama, ou controle da "respiração" ou do "vento". Mas também, visto que a mente cavalga o vento, onde quer que coloquemos a mente seus ventos tenderão a se reunir. Assim, por exemplo, se ao meditar a pessoa se concentra muito intensamente no chakra coronário, o vento, ou energia, tenderá a se reunir ali e, depois, a se dissolver ali.



Isto significa que a mente, em qualquer dos níveis, tem uma medida de controle sobre os ventos a ela associados. Por conseguinte, graças ao treinamento mental e à concentração, pode-se aprender a juntar ventos ou energias em determinados lugares, e depois dissolvê-los ali. E essa dissolução é exatamente o mesmo tipo de processo que ocorre na morte. Desse modo, a pessoa está realmente vivenciando, de maneira muito concreta, o que acontece quando todos os diversos ventos se dissolvem quando se morre - a começar pelos ventos grosseiros, continuando depois quando se dissolvem os ventos sutis, deixando o vento muito sutil ou causal, e a mente da clara luz que o cavalga. Ao induzir, por livre e espontânea vontade, essas experiências do processo do morrer, quando ocorrer a morte verdadeira a pessoa ficará sabendo exatamente o que a dissolução dos ventos irá produzir.

Este tipo de prática também proporciona à pessoa a capacidade de prolongar cada estado, particularmente os estados mais sutis, tais como o da aparência branca, o do aumento do vermelho, o da quase-realização do negro, e a clara luz, por já os ter mais ou menos dominado. Então, no momento final da morte verdadeira, no estágio que estivemos designando como o oitavo - ao penetrar no bardo chikhai, o Dharmakaya - o indivíduo poderá ali permanecer, se assim o desejar. Esse estado da clara luz é muito nítido, óbvio e fácil de ser reconhecido, por ter sido visto muitas vezes durante a meditação e na mente do guru; por conseguinte, o indivíduo abre caminho em direção a ele, ficando assim livre da necessidade de renascer. Ainda poderia, entretanto, optar por renascer num corpo físico a fim de ajudar outras pessoas a alcançar esse conhecimento e essa liberdade.

Uma técnica usual para reunir e dissolver ventos num determinado ponto do corpo consiste em concentrar-se na "gota vermelha", no centro umbilical (a fonte do chamado fogo tummo). A pessoa simplesmente se concentra nesse objeto - visualizado como uma flamejante gota vermelha, do tamanho de uma pequena ervilha - até conseguir se manter concentrada, sem desviar sua atenção, durante mais ou menos trinta ou quarenta minutos. Nessa situação, as energias do corpo estarão tão concentradas na área umbilical que a respiração se acalmará, tornando-se muito suave, quase imperceptível. Todos os ventos ou energias do corpo estarão sendo removidos de sua função ordinária e ali concentrados. De modo que essa dissolução dos ventos, ou sua remoção, assemelha-se muito ao que ocorre na morte verdadeira. Portanto, se continuar a se concentrar meditativamente, o indivíduo começará a vivenciar todos os sinais do processo do morrer, na ordem que lhes é própria, inclusive as aparências de miragem, de fumaça, de pirilampos e de lamparina.

Nessa situação, quando os ventos ou energias do corpo começam a se reunir e a se dissolver no coração, como acontece na morte verdadeira, a pessoa vivenciará os níveis da mente sutil, da mente da aparência branca, em seguida a do aumento do vermelho e depois a da quase-realização do negro. Depois, graças ao poder de sua própria meditação e de invocações espirituais, todos os ventos ou energias se dissolverão, finalmente, na gota indestrutível no coração, e a pessoa vivenciará a clara luz do vazio, a suprema dimensão, e realização, espiritual. Em suma, esse tipo de meditação constitui uma perfeita imitação do processo do morrer. Mais uma vez, a questão toda está no fato de que, ao se familiarizar com a clara luz, desenvolvendo a sabedoria e a virtude meditativas, então, ao se aproximar a morte real, a pessoa poderá permanecer em conformidade com a clara luz e, desse modo, reconhecer a libertação final.




(Texto extraído do livro "Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte" - Org. por: Gary Doore, PhD.)