sexta-feira, 20 de março de 2009

Mil anos de paixões secretas


A relação prazer-pecado na Idade Média.


Eva é o demônio. Está na origem dos males do mundo, porque é tentadora, instigadora do pecado e culpado pela expulsão da humanidade do Paraíso. Com ela, na Idade Média, a mulher se torna a ícone do vício. "No entanto, não se pode dizer que a sociedade da época tenha sido feminista", explica o historiador francês Jacques Le Goff. "Também porque as relações entre os sexos tinham um caráter ambíguo: o homem medieval era muitas vezes uma criatura andrógina".

Aos 85 anos, Le Goff é um dos mais ilustres herdeiros da École des Annales. A sua última obra é quase um "instant book": está escrevendo um livro sobre o dinheiro na Idade Média, "para demonstrar que os bancos sempre faliram".

A reportagem é de Pietro Del Re, publicada no jornal La Repubblica, 15-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Professor, o que sabemos sobre o comportamento sexual daqueles séculos obscuros?

Quase nada, porque, salvo as expressões literárias ou artísticas, temos poucos documentos que nos permitam compreender o que realmente ocorreu no segredo da alcova.

Depois do casamento medieval, junto ao homem e à mulher no leito nupcial estava também Deus. O coito conjugal era legítimo ou era apenas uma concessão à procriação?

O casamento se torna sacramento só depois do quarto Concílio Lateranense, em 1215. Até então, não havia conseguido se distinguir daquilo que era a antiguidade romana: um contrato. Porém, mesmo se se casava fora da Igreja, para ser válido também aos olhos do clero e, portanto, aos olhos de Deus, o casamento deveria ser consumado.

Mas gozar é sempre pecado?

Geralmente sim. No século XII, justamente quando a Igreja inventa o Purgatório, para arrancar o homem da tradicional oposição Inferno-Paraíso, São Tomás de Aquino nega que possa haver uma parte legítima de prazer na realização do ato sexual, mesmo que no âmbito do matrimônio.

Nessa época, o pecado original era assimilado como carnal, e a imagem do inferno era muitas vezes representada como o sexo feminino. Pode-se dizer que, na Idade Média, o mal era uma mulher?

Sim, mas até certo ponto. Contrariamente ao que ocorria em Bizâncio, até o século XI o culto da Virgem Maria não era celebrado pela Igreja. A partir desse momento, se desenvolveu, pelo contrário, com força extraordinária. É também graças ao culto mariano que a mulher foi reavaliada nas sociedades medievais.

Contra a infâmia da luxúria e do adultério, estavam previstas punições corporais duríssimas. Estas tornavam o homem medieval mais "puro" do que o homem moderno?

O castigo, sem dúvida, contribuiu para manter a luxúria escondida, mesmo que os teólogos e os pregadores dissessem que Deus via tudo, inclusive o que se fazia na sombra. Porém, na margem dos manuscritos da época, frequentemente são representadas cenas de luxúria, que não hesitaria em definir como pornográficas: um bispo sodomita, uma mulher que colhe falos de uma árvores ou cenas de sexo entre homens e animais. A Idade Média admitia o mal, desde que se manifestasse à margem da sociedade, distante do seu centro sacro. Antes de querer erradicá-lo totalmente, o cristianismo sempre buscou limitar o mal por meio da confissão e do arrependimento.

As prostitutas eram toleradas pela Igreja?

Sim, a prostituição era permitida. Quanto o rei moralista Luís IX, dito São Luís, quer vetá-la, o bispo de Paris lhe disse que era "um mal necessário".

O amor cortês que sublima a mulher é sempre um amor platônico?

Sobre esse problema, os medievalistas se dividem. Eu acredito que o amor cortês é puramente imaginário. Existem apenas na literatura. O que não significa que o amor real sempre esteja em estado brutal, que sempre haja uma violenta dominação do homem sobre a mulher. Mas o amor em que a mulher se torna o senhor, e o cavalheiro, o seu servo, nunca existiu. Nem mesmo nas classes superiores da sociedade. Dito isso, a Idade Média durou do século V ao século XV, e, em mil anos, muitas coisas mudaram. A mudança essencial se produziu no século XII, quando os valores do céu descem sobre a Terra. Desde aquele momento, a felicidade não está reservada só para o lado de lá. Há o início de uma possível satisfação do prazer também para nós, mortais. Aparecem, por exemplo, os primeiro tratados de gastronomia. O trabalho, que era considerado uma punição do pecado original, se torna, pelo contrário, um valor. De resto, é nessa época que se começa a dizer que o home foi criado à imagem de Deus.

O que muda com o Renascimento?

Há a exaltação da beleza e, em particular, da nudez. A Igreja medieval rejeitava a nudez e, com ela, a maior parte da arte antiga, que, sobretudo na escultura, representava corpos nus. Com o Renascimento na Europa, sobretudo no século XV, ocorre a redescoberta dos nus. Os mesmos que antes eram representados nos afrescos das basílicas, apenas nas cenas da ressurreição dos corpos.



Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=20661

Físico francês vence Prêmio Templeton por defender a importância da dimensão espiritual da vida




O físico e filósofo francês Bernard d'Espagnat venceu o Prêmio Templeton 2009, considerado o maior prêmio do mundo concedido a uma única pessoa, pelo seu trabalho ao afirmar a dimensão espiritual da vida.

A Fundação Templeton anunciou o prêmio de US$ 1,42 milhões na sede da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em Paris, no dia 16.

A reportagem é de Tom Heneghan, publicado pela agência Reuters, 16-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Os organizadores do prêmio disseram que trabalho de d'Espagnat, 87 anos, com física quântica revelou uma realidade além da ciência que a espiritualidade e a arte podem ajudar a compreender.

John Templeton Jr., presidente da Fundação criada por seu pai, falecido no ano passado, disse, durante a cerimônia, que d'Espagnat "explorou o ilimitado, as aberturas que as novas descobertas científicas oferecem de puro conhecimento e de questões que chegam ao verdadeiro coração da nossa existência e da nossa humanidade".

Entre os vencedores anteriores, estão o escritor russo Alexander Solzhenitsyn, o evangelista norte-americano Billy Graham e a irmã albanesa Madre Teresa.

D'Espagnat, um ex-físico sênior do laboratório de partículas físicas do Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), em Genebra, e professor em universidades francesas e norte-americanas, afirma em seu livro que a física quântica moderna mostra que as realidades últimas não podem ser descritas.

A física clássica desenvolvida por Isaac Newton acredita que pode descrever o mundo por meio de leis da natureza que ela conhece ou irá descobrir. Mas a física quântica mostra que as minúsculas partículas contestam essa lógica e podem agir de formas indeterminadas.

D'Espagnat afirma isso com relação a uma realidade além do alcance da ciência empírica. As intuições humanas na arte, na música e na espiritualidade podem nos levar mais perto dessa realidade última, mas ela é tão misteriosa que não podemos concebê-la ou mesmo imaginá-la.

"O mistério não é algo negativo que deva ser eliminado", disse. "Pelo contrário, é um dos elementos constitutivos do ser".

Sobre física e filosofia

Em uma entrevista, d'Espagnat afirmou à Reuters que cresceu como católico, mas não praticou nenhuma religião e se considera um espiritualista.

Algumas descobertas desconcertantes da física quântica o levaram a acreditar que toda a criação tem uma totalidade e uma inter-relação que muitos cientistas deixam de lado ao tentar dividir os problemas em suas partes componentes em vez de entendê-los em contextos mais amplos.

Um deles é o entrelaçamento, a forma em que duas partículas subatômicas permanecem unidas mesmo que se afastem para muito longe uma da outra, de forma que os experimentos com uma irão automaticamente afetar a outra, sem qualquer comunicação aparente entre elas.

Essa visão colide com o ponto de vista materialista largamente difundido entre os cientistas.

"Os materialistas consideram que somos explicados inteiramente pela combinação de pequenas coisas pouco interessantes como os átomos e os quarks", disse d'Espagnat, cujo último livro em inglês – "On Physics and Philosophy" – foi publicado em 2006 [Em português, seu único livro publicado é "Olhares sobre a matéria" (Editora Instituto Piaget, 1994)].

"Eu acredito que nós, enfim, viemos de uma entidade superior à qual devemos reverência e respeito e à qual não deveríamos tentar nos aproximar tentando conceitualizá-la muito", disse. "É mais uma questão de sentimento".

Mesmo que não possam ser testadas, as intuições que as pessoas têm quando são movidas pela grande arte ou por crenças espirituais ajudam-nas a compreender um pouco mais das realidades últimas, disse d'Espagnat.

"Quando ouvem uma boa música, as pessoas que gostam de música clássica têm a impressão de que chegam a alguma realidade dessa forma. Por que não?", questionou.


quarta-feira, 18 de março de 2009

Entrevista de Claude Lévi-Strauss


Claude Lévi-Strauss, em foto de Éric Brochu,
quando concedeu a entrevista


Entrevista: Claude Lévi-Strauss, aos 90

Beatriz Perrone Moisés
Professora do Departamento de Antropologia - USP




Esta entrevista foi realizada a 10 de novembro de 1998. A rapidez e a gentileza com que Lévi-Strauss respondeu à consulta feita pelo Departamento de Antropologia quanto à possibilidade de realizá-la, confirmaram informações de várias pessoas que já o conheciam pessoalmente: de fato, é muito disposto e receptivo. Recebeu-me em seu escritório no Laboratório de Antropologia Social, onde continua indo, religiosamente, duas vezes por semana.

Também vários entrevistadores haviam mencionado a extrema cortesia de seus gestos e palavras, e o bom humor, que às vezes irrompe, inesperado, no riso discreto (como quando eu lhe disse que tínhamos a honra de considerá-lo como um "herói civilizador"...). Também já tinha sido comentada a precisão das palavras, as respostas exatas, claras, bem construídas. No mês em que completaria 90 anos, Claude Lévi-Strauss mantinha intacta a limpidez do raciocínio, sendo inclusive capaz de retomar frases no mesmo ponto em que as deixara, depois de inserir comentários, observações ou precisões. Fala com carinho da juventude, anima-se com a lembrança das expedições, mas reluta em falar do presente. As palavras em itálico, em suas respostas, são as que ele disse em português.

* * *

Beatriz: No início do "Prólogo" a Saudades do Brasil o senhor se refere a uma memória olfativa das expedições pelo interior. De que outros odores o senhor se lembra?

Lévi-Strauss:
"Como se sabe, na época em que fui para o Brasil [1935], viajávamos de navio, não havia aviões, e os navios eram também cargueiros, e faziam muitas escalas [o navio em que veio Lévi-Strauss partiu de Marselha e fez escala em Barcelona, Cádiz, Argel, Casablanca e Dakar antes de aportar em Santos]. Nunca me esquecerei que, ao chegar — estávamos em alto mar havia dezenove dias, acho — e a primeira percepção que tivemos do Novo Mundo — ainda não se podia ver a costa — foi um cheiro. Um cheiro difícil de descrever, porque as associações são fáceis demais: cheiro de tabaco, cheiro de pimenta... enfim, tudo isso está ligado ao Novo Mundo, não sei se é exatamente isso. Mas é sem dúvida uma das dimensões da natureza brasileira, que não é apenas visual, ou tátil, é também olfativa".

Beatriz: E quais seriam esses "odores do Brasil"?

Lévis-Strauss:
"Há muitos outros odores, que emergem ao acaso. Lembro-me, por exemplo, que depois dos Nambikwara, estávamos indo na direção do Madeira, e ainda não era a floresta amazônica, era mais o campo, uma espécie de floresta seca, e de repente, montado no cavalo, vi no solo um campo de abacaxis selvagens. Bastava inclinar-se bem baixo, sem desmontar, para arrancar os frutos e comê-los. É uma das sensações gustativas e olfativas que ficaram porque não era como o abacaxi que conhecemos, era um abacaxi com um cheiro de framboesa absolutamente extraordinário. Há muitos e muitos outros cheiros, mencionei esse apenas como um exemplo... há ainda o cheiro do fumo, cheiro de fumo de rolo em toda parte. Aliás, era o que eu fumava, em folhas de milho, que davam ao tabaco um sabor e um cheiro muito muito particulares, que também ficou. Há também a pinga..."

Beatriz: O senhor gostava de pinga?

Lévi-Strauss:
"Ah, sim, gostava muito! E me lembro também, da fabricação, uma vez por semana, da rapadura, nas fazendas do interior, para o consumo dos peões, de seus filhos e de suas famílias, isso também tinha um cheiro e um gosto muito especiais".

Beatriz: Durante as expedições, o senhor comia como os brasileiros, como a população regional?

Lévi-Strauss:
"Na verdade, não havia população regional... enfim, havia, durante algum tempo, e depois, mais ninguém. Tínhamos feito grandes provisões: arroz e feijão, claro, e algo que chamavam de bolachas, que também constituem uma lembrança bem clara... ficavam duras como pedra… E também caçávamos..."

Beatriz: O senhor era bom caçador?

Lévi-Strauss:
"Tenho vergonha de dizer, porque atualmente sou um opositor radical da caça, mas não era um mau caçador... e, o que é ainda mais lamentável, eu gostava disso".

Beatriz: No ano anterior a essas expedições, o senhor deu aulas na então recém-criada Universidade de São Paulo, integrando a segunda leva de professores estrangeiros. O que significam hoje para o senhor os laços com a Universidade de São Paulo?

Lévi-Strauss:
"Sabe, é difícil dizer, porque sentimentos de tipos diferentes se mesclam. Era o tempo de minha juventude e, naturalmente, as pessoas são muito apegadas a seus anos de juventude. Para mim, o Brasil, São Paulo são completamente indissociáveis de meus anos de juventude, e eu já não saberia separar as coisas.Mas, enfim, eu diria que para jovens professores, que eram praticamente iniciantes na carreira universitária, era antes de mais nada uma oportunidade extraordinária e uma experiência única, porque além de sermos novos na carreira, tínhamos viajado pouquíssimo, por causa dos exames, concursos e coisas desse tipo. De modo que, através de São Paulo, através do Brasil, era um pouco o mundo inteiro que se revelava, ou pelo menos uma face diferente do mundo. Assim, tudo isso representa um conjunto tão rico, tão farto, que eu não saberia o que destacar..."

Beatriz: A idéia de viajar para tão longe era, em si, atraente?

Lévi-Strauss:
"Eu tinha vontade de ver o mundo, de ir para bem longe. Já na infância e na adolescência, eu montava várias pequenas expedições no campo francês... eu queria aventura, onde quer que a encontrasse... naturalmente, quanto mais longe eu fosse, melhor..."

Beatriz: Apesar da famosa declaração de Tristes trópicos ["Odeio as viagens e os exploradores."], o senhor gostava, então, de viajar?

Lévi-Strauss:
"Ah, sim! Naquela época eu gostava de viajar. É preciso lembrar que Tristes trópicos foi escrito quinze anos depois de minha volta do Brasil, e eu não pensava nas viagens daquela época, mas nas viagens que poderia fazer no momento em que escrevia".

Beatriz: O fato de o Brasil ser, desde o século XVI, uma destinação, digamos, privilegiada pelos franceses, fazia alguma diferença?

Lévi-Strauss:
"De certo modo, senti uma espécie de sensação de segurança, sabendo... É claro que eu não sabia de nada disso muito antes de ir para o Brasil, aprendi tudo isso nos meses que precederam minha partida, já que os nomes de Thevet, Léry, evidentemente, não constavam do programa de licenciatura em Filosofia. Assim, foi depois... Mas, eu dizia, uma sensação de segurança, por saber que meus passos seguiam os passos de grandes ancestrais. E a sensação é duradoura, porque há uns trinta anos, minha mulher e eu compramos uma casa no campo e depois de a comprarmos, descobrimos que se encontra a uns poucos quilômetros da casa onde nasceu Jean de Léry."

Beatriz: Thevet e Léry, o senhor dizia, não constavam do programa. Mas Montaigne sim…

Lévi-Strauss:
"Ah, sim! Mas não precisava estar no programa para ser lido [risos]. Ainda hoje é assim… continua no programa."

Beatriz: O Brasil era, então, de certo modo, mais próximo do que outras regiões…
Lévi-Strauss:
"Sim, muito mais, certamente… além do mais, com a quantidade de palavras de origem tupi que passaram para o francês…"

Beatriz: Os Tupi, justamente, forneceram à Europa os elementos básicos para a construção do Selvagem. Bom ou mau, é o ameríndio que, desde então, figura como o selvagem: o que explicaria o fato de serem os ameríndios os Outros por excelência do pensamento europeu?

Lévi-Strauss:
"Há uma resposta simples, simplista, até, afinal, eles ocupavam metade do mundo, e não algumas ilhotas dispersas. Uma presença maciça. E, além disso, os primeiros autores, não apenas franceses, como os mencionados, mas também ingleses, alemães e outros, que se interessaram pelo exotismo, começaram pela América, porque era a América que acabava de ser descoberta, no final do século XV, e que dominaria todo o pensamento do Renascimento. Trata-se de uma série de acasos objetivos, que fizeram com que os ameríndios fossem, para o Ocidente, o Outro por excelência".

Beatriz: Nenhuma outra razão explicaria sua permanência nesse papel, até hoje?

Lévi-Strauss:
"Parece-me que há dois casos no mundo, no século XX, em que modos de vida tradicionais se mantiveram por mais tempo: a América do Sul e Nova Guiné, as montanhas da Nova Guiné, que foram descobertas em 1930-35, ao passo que o contato com a América se manteve constante desde o século XVI. O contato com os ameríndios nunca foi interrompido, de modo que é natural que ocupem, no pensamento do Ocidente, um lugar privilegiado."

Beatriz: Razões históricas, portanto, ou "acasos objetivos", como o senhor disse há pouco… os americanistas não teriam contribuído para a permanência dessa imagem, no modo como apresentam as culturas ameríndias?

Lévi-Strauss:
"Bem, em parte, sim, mas apenas se generalizarmos… de fato, não se pode dizer o mesmo dos oceanistas ou dos especialistas em Nova Guiné, portanto, há aí algo de específico…"




Beatriz: O senhor já disse, em várias entrevistas, que optou pela etnologia como reação contra a escola sociológica francesa, contra Durkheim, especificamente. Gostaria de pedir-lhe que falasse, mais uma vez, dessa relação…

Lévi-Strauss:
"Quando eu era estudante, no início de minha carreira, insurgi-me contra a escola... enfim, contra Durkheim, porque na mesma época descobria a etnologia anglo-americana e, é claro, eu era especialmente sensível à diferença entre o teórico e pessoas que falavam de coisas que tinham ido ver em campo. Como eu mesmo tinha um grande gosto pela aventura, sentia-me mais próximo deles. Mas creio que, posteriormente, compreendi bem melhor e retornei, em grande parte, à tradição durkheimiana. Eu nunca fui aluno de Mauss, já que nunca tinha feito etnologia antes de partir para o Brasil, mas de qualquer modo, antes de partir, fui ver Mauss e também fui ver Lévy-Bruhl. Eles me deram conselhos, quando eu retornava à França, ia vê-los. Não houve, portanto, uma ruptura... Foi mais, digamos, uma passagem inconstante e, posteriormente, um retorno muito profundo ao pensamento durkheimiano e ao de Mauss".

Beatriz: Mauss teve uma influência especial?

Lévi-Strauss:
"Pessoalmente, conheci pouco Mauss. Devo lhe ter feito umas... três visitas, e não foram longas. Foi muito antes, pela obra, que eu fui cativado. Porque no pensamento de Durkheim havia algo de fulgurante, era uma bela construção, monumental... Mauss… era uma noite toda atravessada por clarões... E houve um outro que também me influenciou muito, mais tarde: [Marcel] Granet, que considero como da mesma grandeza que Mauss e Durkheim ou talvez até, em certos aspectos, ainda maior".

Beatriz: Os autores anglo-americanos que o senhor mencionou há pouco….

Lévi-Strauss:
"Foram Lowie e Firth. O primeiro livro de teoria etnológica que li foi Primitive Society, de Lowie. A primeira monografia foi We, the Tikopia. Por acaso".

Beatriz: E tudo isso o levou à etnologia…

Lévi-Strauss:
"Acho que já contei isso algumas vezes. Eu era professor de Filosofia num liceu do interior, e não podia conceber passar a vida toda dando um curso de Filosofia, talvez aperfeiçoado ano após ano, mas que de qualquer modo seria sempre o mesmo. Naquela época, a Etnologia estava se constituindo como disciplina na França — o Instituto de Etnologia foi fundado em 1925, creio, e o Museu do Homem, para a Exposição Universal de... 1937, acho — e o recrutamento era feito em grande parte entre os jovens filósofos. O exemplo mais notável foi o de [Jacques] Soustelle, que era mais novo do que eu e que, desde muito jovem, tinha certeza absoluta de que se tornaria mexicanista e que, logo depois de concluída a licenciatura, voltou-se para o Museu do Homem e para a Etnologia. De modo que era uma via de saída... escolhi-a por isso. E também porque tinha vontade de ver o mundo".

Beatriz: Ver de perto, para ver de longe…O olhar distanciado que, segundo o senhor, caracteriza o antropólogo, é algo que se aprende, que se constrói? É vocação ou treinamento?

Lévi-Strauss:
"A expressão é de Hami, que era um grande autor dramático japonês. Ele dizia que, para ser um bom ator, era preciso olhar para si mesmo, o tempo todo, com os olhos afastados do espectador. Acho que o olhar distanciado pode ser aprendido, mas acho também que é algo que se pode possuir desde o nascimento, uma espécie de característica da personalidade de cada um. No meu caso, creio que se trata da segunda hipótese".

Beatriz: Se esse olhar é indispensável para fazer antropologia, é melhor que seja uma vocação?

Lévi-Strauss:
"Acho que há muitos modos de ser antropólogo, e de tornar-se antropólogo... e há muitas moradas na casa do Senhor... A vocação é um dos modos, há provavelmente outros".

Beatriz: Falemos então sobre os seus modos de fazer antropologia ou, mais precisamente, análises de mitos. O senhor mencionou algumas vezes que trabalhava com fichas e, ao longo da elaboração das Mitológicas, as espalhava às vezes sobre a mesa, onde elas de certo modo assumiam configurações que lhe revelavam relações. Como são essas "fichas de mitos"? Posso ver algumas?

Lévi-Strauss:
"Eu não trabalhava exatamente com fichas de mitos, esse é meu modo de trabalhar em geral. Faço muitas fichas. Meus ficheiros estão em casa, não tenho nenhuma ficha aqui… Mas não há nada de especial em minhas fichas. Algumas contêm referências, outras uma ou várias frases que li num livro e que chamaram minha atenção, ou uma idéia que tive e transcrevi numa ficha. Podem ser acerca de mitos, ou de livros, podem ser acerca de um objeto que vi, ou de uma idéia que me ocorreu. Em relação aos mitos, podem conter versões completas, às vezes há páginas dobradas no formato de uma ficha, colocadas nos ficheiros, às vezes são resumos... Nada de organizado.
Quando me falta inspiração, quando estou sem idéias, pego um monte de fichas — eu deveria colocar isso no imperfeito, porque se refere ao tempo em que eu trabalhava — e, só de espalhá-las, misturá-las, agrupá-las ao acaso, às vezes me vem uma idéia".

Beatriz: Não se pode então falar num método de fazer fichas, ou de utilizá-las…

Lévi-Strauss:
"Não, nenhum. Ao contrário, eu diria que as fichas, para mim, são exatamente o oposto de um método, são o meio de ter idéias imprevistas".

Beatriz: Mas a redação das Mitológicas terá exigido muita disciplina, sem dúvida.

Lévi-Strauss:
"Durante uns dez anos, não pensei noutra coisa, das seis da manhã às seis da tarde... Sempre tive em mente o exemplo de Saussure, que dedicou parte de sua vida a mitos, os Nibelungen, e que nunca os publicou, nunca conseguiu pô-los em ordem, e dizia a mim mesmo que, se continuasse assim, repetiria essa desventura, e precisava decidir que teria um fim. Na verdade, o quarto volume, O homem nu, contém a matéria de três livros... Mas eu me proibi de escrevê-los. Disse a mim mesmo: é esse, e será o último. Finalmente, não foi o último, já que depois vieram A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince... Mas, de qualquer modo, eu queria fazer algo que formasse um todo".

Beatriz: História de Lince, o último, pode ser considerado como uma espécie de balanço de todo o trajeto das Mitológicas?

Lévi-Strauss:
"Para mim, pessoalmente, há o que eu chamo de ‘grandes mitológicas’, os quatro volumes, e os três outros, que constituem as ‘pequenas mitológicas’... estas não são, de modo algum, um balanço em relação às outras. São simplesmente questões que me pareceram interessantes e que não tinham lugar... eu tinha feito alusão a elas diversas vezes... mas elas não se encaixavam exatamente no desenrolar da argumentação. Assim, eu dizia a mim mesmo: um dia, talvez, eu retome tudo isso."

Beatriz: Qual é seu ritmo de trabalho, atualmente?

Lévi-Strauss:
"Já não trabalho muito... não haverá mais nenhum livro".

Beatriz: Pena!

Lévi-Strauss:
"Não, não é nenhuma pena, porque eles já não seriam bons... supondo que algum dia o tenham sido… Não…escrevo coisas pequenas, artigos, prefácios..."

Beatriz: Então o senhor continua escrevendo...

Lévi-Strauss:
"Sim, escrevo e leio… muito menos…"


Lévi-Strauss, que completará 101 anos em 2009,

em foto de 2005



Beatriz: O que o senhor lê?

Lévi-Strauss:
"Ah, leio coisas variadas, aquilo que me mandam, principalmente, os livros para os quais devo escrever um prefácio. A Academia Francesa dá prêmios, é preciso ler os livros... de modo que é em parte, digamos, literatura, e em parte profissional".

Beatriz: O senhor contou, certa vez, que lia regularmente revistas científicas, acompanhando o que se faz nas ciências exatas e biológicas — que, aliás, forneceram imagens muito poderosas à sua obra. O senhor continua lendo essas revistas?

Lévi-Strauss:
"Bem, nunca li tanto assim… sempre me inteirei dessas questões através de revistas de vulgarização científica, para grande público… Enfim, continuo lendo regularmente a Scientific American, a Recherche... tento ter uma idéia muito vaga e muito ingênua do que está acontecendo".

Beatriz: As pesquisas arqueológicas e paleontológicas têm mostrado uma história do continente americano cada vez mais complexa. Certa vez, comparando seu trabalho ao de Dumézil, o senhor disse que, de certo modo ao contrário dele, que tratava de demonstrar uma história comum que não era dada, o senhor partia de uma unidade da América que lhe era dada pela história…

Lévi-Strauss:
"Sabemos que houve várias levas de povoamento na América. A história americana é provavelmente muito mais antiga do que se dizia até recentemente — mais antiga, em todo caso, do que se afirma ainda nos Estados Unidos —, e não se deve imaginar várias levas de povoamento com gente que chegou, instalou-se e permaneceu no mesmo lugar. Creio que as várias levas de povoamento são o início de uma história extremamente complicada, e que ficaríamos totalmente incapacitados de compreender as culturas americanas se não supuséssemos que, durante milênios, as pessoas circularam, deslocaram-se dentro do continente, e lançaram a base de ... bem, uma unidade, seria exagero... enfim, de uma homogeneidade relativa de todas as culturas ameríndias. É claro que elas diferiram e divergiram enormemente, mas todas elas têm algo em comum. E o fato de terem algo em comum seria totalmente incompreensível se não supuséssemos que os povos circularam, não apenas do norte para o sul, mas também do sul para o norte, que houve uma grande quantidade de deslocamentos. Enfim, temos tendência a achatar a história americana, e a não conceber que durante um milênio, para falar de apenas um milênio, houve uma enormidade de acontecimentos dos quais não temos a menor idéia, infelizmente..."

Beatriz: Em seu discurso de recepção à Academia Francesa, em 1974, o senhor declarou que a cultura francesa estava abalada, talvez até condenada. O senhor diria o mesmo hoje?

Lévi-Strauss:
"Sim, creio que a cultura francesa está muito ameaçada... continua muito ameaçada…"

Beatriz: A ponto de correr o risco de desaparecer?

Lévi-Strauss:
"As culturas não desaparecem nunca, elas se misturam com outras, e dão origem a uma outra cultura. Mas... bem... aquela que me formou e que me foi ensinada, na escola e em casa, é uma cultura à qual sou muito apegado, e não posso deixar de me entristecer ao vê-la se perder e se transformar em outra coisa... o que certamente acontecerá... mas digo a mim mesmo que, felizmente, não estarei mais aqui..."

Beatriz: Seria possível definir os princípios dessa cultura francesa?

Lévi-Strauss:
"Não, não creio que se possa aplicar a análise estrutural nessa escala. Há variáveis demais. Por isso pessoas como Foucault nunca foram estruturalistas... eles mesmos o disseram, não é portanto nenhuma crítica..."

Beatriz: E as culturas ameríndias, estão condenadas?

Lévi-Strauss:
"Hesito muito em formular uma opinião, porque, afinal, faz... sessenta anos (é isso?) que vi os ameríndios pela última vez. Quando se é etnólogo, é preciso se abster de fazer afirmações acerca de sociedades que não se viu viver, que não se observou... É evidente que elas estão ameaçadas, que se transformam... mas até que ponto conseguirão salvar algo de original e fazer com que isso se torne um elemento importante daquilo que será sua cultura no futuro... para ter uma opinião quanto a isso seria preciso ir a campo. Eduardo Viveiros de Castro, Manuela Carneiro da Cunha …, vocês, podem falar disso".

Beatriz: Já em Raça e História (1961) o senhor alertava para a necessidade de preservar a diversidade das culturas humanas e para a importância do intercâmbio cultural. Posteriormente, demonstrou diversas vezes o temor de que um "excesso de comunicação" pudesse levar a uma homogeneização paralisante. Apesar de tudo, não lhe parece que as culturas humanas têm demonstrado uma grande vitalidade no sentido de criar diferenças?

Lévi-Strauss:
"Eu diria que é a única esperança que nos resta, a de que elas saibam refazer diferenças, o que permitirá aos antropólogos existir. Creio que isso acontecerá ou, pelo menos, espero que sim. Este é um período crítico e, sinceramente, espero que não dure. Fissuras haverão de ser reproduzidas... naturalmente não onde estavam antes, e certamente não onde poderíamos supor que surgissem. De qualquer modo, creio que a humanidade permanecerá diversa, essa é sua única chance".

Beatriz: Que mensagem o senhor enviaria aos antropólogos brasileiros?

Lévi-Strauss:
"Sei que já não falo com aqueles que foram meus alunos, porque eles também estão aposentados [risos], é com os que foram alunos de meus alunos e, talvez, até alunos dos alunos de meus alunos... são várias gerações, e sinto-me algo como um trisavô... Mas gostaria de dizer que após meus primeiros contatos com jovens que tinham um amor ao saber e um desejo de conhecimento totalmente extraordinários, e que tinham praticamente a mesma idade que meus colegas e eu, não foi apenas uma relação entre professor e alunos, mas quase uma relação de camaradagem. E como eles evidentemente sabiam muito mais acerca do Brasil do que eu, foi também uma espécie de troca. Eles nos ensinavam o Brasil e nós procurávamos ensinar-lhes o que podíamos, mas eu jamais poderia supor, na época, o que aconteceria realmente no Brasil na minha área, isto é, que rapidamente nasceria uma antropologia brasileira. Não digo que não existisse uma antropologia brasileira, mas era muito antiquada, tradicional, ainda muito marcada pelo espírito do século XIX, ao passo que a que estava para nascer mostrou muito rapidamente que estava na ponta da pesquisa antropológica, e situou-se imediatamente no nível dos países que se tornaram famosos nessa área — a Inglaterra, os Estados Unidos, .. .a França. Assim, sinto que tive participação num tipo de evento que certamente não tem termo de comparação — ou poucos — na história universitária mundial.
Aos jovens antropólogos brasileiros, eu diria — mas não preciso dizer-lhes isso, seu exemplo o demonstra — que não esqueçam a etnologia tal como é praticada desde o seu nascimento. Numa época em que, seja na Inglaterra, nos Estados Unidos ou na França, se percebe um certo desânimo entre os jovens, que precisam encontrar novos objetos — ou sujeitos, se preferirem falar nesses termos — porque aqueles que estudavam tradicionalmente não existem mais, ou se transformam rápido demais, felizmente, no Brasil, a grande etnologia ainda existe... e desejo que continue existindo por muito tempo".

* * *

Depois de encerrada a entrevista, notei ao meu lado algo que me parecia uma árvore em miniatura, cujas folhas eram pedacinhos de papel com anotações, colados em "galhos" revirados e perfeitamente simétricos.




Olhei mais de perto, e percebi que o objeto, protegido por uma redoma de vidro (foto) é a estrutura, em três dimensões, de um grupo de mitos, cuja representação gráfica se encontra à página 81 de L’origine des manières de table (Mitológicas III). A própria página, unida à página 80 do livro, constitui um "fundo" para a "árvore" de mitos, dentro da redoma (reproduzidas a seguir a partir da 1ª edição, de L'origine des manières de table, Paris, Plon, 1968).






Evidentemente fascinada pelo objeto, perguntei a Lévi-Strauss se costumava construir assim estruturas míticas. Respondeu-me que sim, que as construia conforme as percebia nos mitos, com os pedaços de papel, barbante, tesoura e cola que sempre tinha à mão. Alguns desses objetos, continuou, "eram como móbiles à la Calder", e ficavam pendurados pelo laboratório de antropologia. Mas eram muito frágeis, e logo se destruíram. Finalmente, tinha sobrado apenas aquela. "Mas então o senhor é um bricoleur também no sentido primeiro do termo [que remete, como se sabe, a trabalhos manuais]?" Sorrindo, respondeu-me que sim, gostava de usar as mãos para construir coisas desde a infância…

© 2009 Revista de Antropologia
Departamento de Antropologia FFLCH/USP


Extraído do Blog Epifenomenologia

terça-feira, 17 de março de 2009

Mergulhe no tédio


Lidar com o tédio

(Chogyam Trungpa)

A primeira característica de uma pessoa dármica, ou um praticante, é a impassibilidade, que é um tema interessante para ocidentais. Vocês tem todo tipo de possibilidades para organizar e criar ocupações: desde goma de mascar até viagens às Bahamas. Vocês estão sempre procurando maneiras de solucionar seu tédio, seu problema de tédio.

Em contraste a isso, impassibilidade significa vivenciar o tédio de maneira apropriada e completa. Você não preenche imediatamente o vazio com todo tipo de coisas. [...] Na sociedade ocidental, quando surge qualquer pequena irritação, sempre há algo para curá-la. Eles até vendem pequenas almofadinhas para grudar nos óculos e evitar que escorreguem, assim permanecendo melhor no nariz.

Desde pequenas coisas como almofadinhas para óculos até as gigantescas, podendo-se pagar, a abordagem ocidental é curar qualquer tipo de tédio, realmente qualquer tipo de irritação.

Então, a passibilidade está relacionada com ser incapaz de lidar com o tédio, com a necessidade de alguma força amparadora. Já um praticante é alguém que pode se manter por si mesmo, que consegue lidar com o tédio.


Chogyam Trungpa (Tibete, 1939 - Canadá, 1987)
“Sete características de uma pessoa dármica"
em "The Collected Works of Chogyam Trungpa - Volume Two"
Ocean of Dharma Quotes of the Week

sexta-feira, 13 de março de 2009

A mente em meditação



O que, então, devemos “fazer” com a mente em meditação? Absolutamente nada. Deixá-la como está. Um mestre descreveu a meditação como “a mente suspensa no espaço, em lugar nenhum”.

O ditado é famoso: “Se a mente não é fabricada, aparece espontaneamente imbuída de uma felicidade sublime, assim como a água que se mostra naturalmente transparente e límpida quando não é agitada”. Com freqüência comparo a mente em meditação com um jarro de água barrenta: quanto menos interferência ou agitação tiver, mais as partículas de terra se depositam no fundo, permitindo que a claridade natural da água transpareça. A própria natureza da mente é tal que, se você a deixa em seu estado inalterado e natural, ela encontrará sua verdadeira natureza, que é bem-aventurança e claridade.

Tome cuidado, portanto, para não impor nem cobrar nada à mente. Ao meditar, não deve haver qualquer esforço na direção do controle, nem empenho em ser pacífico. Não seja solene demais nem se sinta como se estivesse tomando parte num ritual especial; deixe de lado até a idéia de que está meditando. Seu corpo e a sua respiração devem ser entregues a si mesmos.

(Sogyal Rinpoche em seu luminar "O Livro Tibetano do Viver e do Morrer" - Editora Palas Athena, São Paulo, 1999)

segunda-feira, 9 de março de 2009

A filosofia precisa ouvir o pensamento não-europeu

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1991.


Leia na íntegra a entrevista realizada por Flávio de Almeida com Eduardo Viveiros de Castro, publicada no Boletim Informativo da UFMG (Nº 1483 - Ano 31 - 12.5.2005):




Convidado para ocupar a cátedra de Humanidades do IEAT, o professor Eduardo Viveiros de Castro diz, nesta entrevista ao BOLETIM, que a Antropologia é uma atividade essencialmente transdisciplinar, porque trabalha com "sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber".

Viveiros discute a distinção entre o pensamento científico, associado à sociedade ocidental, e o selvagem, relacionado aos povos indígenas. "O pensamento ocidental é apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares".

O senhor foi convidado a estrear uma cátedra na UFMG destinada aos estudos transdisciplinares. Como a questão da transdisciplinaridade está presente em suas pesquisas?

A Antropologia é uma prática essencialmente transdisciplinar, pois seu objeto típico é aquilo que Marcel Mauss chamava de "fatos sociais totais", complexos multidimensionais de ações, crenças e instituições que são, ao mesmo tempo, econômicos, psicológicos, políticos, sociais, estéticos, tecnológicos e assim por diante. Os antropólogos, sobretudo os que fazem pesquisas de campo de longa duração em sociedades pequenas, como as atuais sociedades indígenas no Brasil, são "obrigados", por assim dizer, a levar em conta todas as dimensões da vida humana nestas sociedades: da ecologia à cosmologia, das técnicas de caça à arte verbal, da biologia humana à teoria política. O antropólogo não deixa de ser um especialista em generalidades, na medida em que sua especialidade, por excelência, são sociedades generalizadas, onde a prática social e cognitiva não se compartimentaliza em domínios de autoridade, atividade ou saber.



Sempre houve uma oposição entre o "pensamento indígena" ou "selvagem" e a chamada sociedade civilizada. Como o senhor trabalha essa oposição? Essas duas instâncias do saber são assim tão antagônicas ou é possível, em algum momento, convergi-las?

Em primeiro lugar, o "pensamento (em estado) selvagem", nos termos em que a expressão foi cunhada e usada por Lévi-Strauss, está presente exatamente do mesmo modo nas sociedades indígenas e nas sociedades ditas civilizadas. É uma dimensão de todo pensamento humano, apenas distintamente "administrado", digamos assim, em diferentes regimes sociopolíticos. No caso do ocidente moderno, por exemplo, Lévi-Strauss argumenta que o pensamento selvagem "oficial" está principalmente confinado ao domínio da arte. Ao contrário, nos mundos indígenas americanos, como em tantos outros mundos humanos do planeta, esse estilo cognitivo e conceitual subjaz a todas _ ou a quase todas _ dimensões da prática humana.

Em segundo lugar, é preciso levar em conta que, em certo sentido, só há pensamento selvagem: o pensamento técnico-científico é uma transformação ou diferenciação específica do pensamento humano genérico, que é sempre "selvagem". Não pode haver antagonismo entre espécie e gênero. Em terceiro lugar, todo pensamento humano culturalmente encarnado, na medida em que se apresenta como fruto de uma história, é resultado de tecnologias cognitivas e outras de "domesticação". O pensamento tecno-científico ocidental é, no meu entender, apenas uma entre outras técnicas de domesticação do pensamento selvagem, ainda que seja a mais poderosa e de efeitos empíricos mais espetaculares.

Existem na sociedade moderna espaços para a expressão e/ou tradução do pensamento indígena?

Existem. Mas primeiro é preciso que os brasileiros não-índios comecem a reconhecer integralmente a existência dos índios. Este é um país indígena, com centenas de línguas nativas faladas em seu território, com uma porção enorme de sua população com raízes étnico-culturais diretamente indígenas. A impressão que tenho é que as pessoas sabem muito mais os nomes dos atores de Hollywood, ou das bandas de rock, que das mais de 200 sociedades indígenas que compartilham o território conosco.

Nada contra as bandas de rock. Mas é preciso que a cultura brasileira assuma, em todas as suas conseqüências, que as culturas indígenas são das partes mais ricas e originais de qualquer herança cultural que o Brasil pode legar ao patrimônio da humanidade. A arte e a filosofia praticadas no país ainda precisam saber ouvir e falar com esse pensamento não-europeu que nos envolve no Brasil.

Há no Brasil _ ainda que de forma precária _ um processo de incorporação dos povos indígenas à sociedade moderna. Como essa incorporação pode se concretizar em termos não-predatórios e de respeito às particularidades da cultura indígena?

A difusão do conhecimento disponível sobre os povos indígenas é a primeira e mais urgente medida. Não se respeita o que não se conhece: ou se o teme, ou se o despreza. Respeito é outra coisa.

Algumas universidades brasileiras _ incluindo a UFMG _ estudam a implantação de licenciaturas e cursos voltados para os povos indígenas? Como o senhor vê essa tendência? Este seria um caminho para a inclusão do índio e para o resgate e preservação de sua cultura?

Vejo esse movimento com simpatia, como vejo com simpatia todas as tentativas de ação afirmativa que procuram reparar ou compensar, na medida do possível, injustiças e iniqüidades históricas. Mas é preciso cuidar para que a articulação entre a universidade e os índios não seja usada para incluir os índios e excluir suas culturas.


Extraído de: Blog Epifenomenologia