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quarta-feira, 28 de julho de 2010

Deleuze e o Tarô







Retirei o excelente texto que se segue do Blog: Cosmos e Consciência.
Clique no link para acessar o texto completo, que possui uma interpretação delueziana para as cartas do tarô, aqui não reproduzida.



Deleuze e o Tarô

Rascunho rumo a um pensar em êxtase

Por: Nelson Job

Em magia, como em religião e em linguística,
são as idéias inconscientes que agem.

Marcel Mauss

A filosofia “deleuziana” se presta a quê? Se presta a pensar em limiar, a pensar com, sem amarras, sem limites, em ressonância. Deleuze dialogou com vários filósofos clássicos, com a física, a biologia, a antropologia, a literatura, o cinema, a pintura, a psicanálise, a química etc. Em um artigo anterior, “Ontologia Onírica”, nos dedicamos a evidenciar as ressonâncias entre a filosofia da diferença (tendo Deleuze como atrator), a física “pós-newtoniana”, o hermetismo e a literatura de ficção científica pré-cyberpunk. Tais relações permitem uma ressonância mais específica: a relação entre os principais conceitos de Deleuze (e da filosofia da diferença) com os arcanos maiores do tarô.

Sobre o tarô, pouco desenvolveremos. As imagens devem falar por si. Existem inúmeros livros sobre tarô, mas nenhum deles vai fornecer o mais relevante: a relação intensiva e intuitiva com as imagens.

Uma filosofia como a de Deleuze ser relacionada com um saber pagão como o hermetismo, e, por conseqüência, com o tarô, não nos surpreende. Deleuze, em seu texto “Nietzsche e São Paulo, D. H. Lawrence e João de Patmos” faz um belo elogio ao paganismo (simbólico), que possui conexões vivas, em detrimento do judaísmo e cristianismo (alegóricos) com seu amor abstrato (dar sem nada tomar) e o Apocalipse já industrial (que, com o seu “Juízo” - pré kantiano - Final, nos desconecta com o cosmos).

O paganismo é uma relação de êxtase com o cosmos, onde a vida é celebrada. Não nos surpreende que um antropólogo como Eduardo Viveiros de Castro, dado a reviravoltas deleuzianas, relacione o seu trabalho etnográfico (que envolve o xamanismo Yawalapíti e Araweté) com o filósofo neo-platônico Plotino, em seu texto “A Floresta de cristal”. Nele, é formulada uma operação que nos é cara: “Seria preciso apenas trocar a metafísica molar e solar do Um neo-platônico pela metafísica da multiplicidade lunar, estelar e molecular indígena”.

Plotino é o primeiro grande filósofo do êxtase (lembrando que "êxtase" significa literalmente "sair de si mesmo"). Francis Yates, em seu brilhante “Giordano Bruno e a Tradição Hermética”, o considera o verdadeiro iniciador histórico do hermetismo. Porfírio, seguidor de Plotino, nos diz que seu mestre sofreu quatro êxtases em que ele sofria tremores e tinha visões, donde os textos das “Enéadas” derivavam-se a partir de tais êxtases. Deleuze celebra o conceito de “contemplação” em Plotino, que já era uma relação onde sujeito e objeto se misturavam.

O autor que Deleuze considera o seu “plano de imanência”, Spinoza, também tinha várias influências místicas (a cabala judaica, por exemplo), como afirma Marilena Chauí em sua máquina do tempo “A Nervura do Real”. Vale lembrar que Bergson, outro grande atrator na obra de Deleuze, possui um livro chamado “A Energia Espiritual”, onde afirmava a telepatia e a vida após a morte. As questões de Deleuze seriam místicas, mas não com essa alcunha: mistura de sujeito e objeto, problematização da atomização do eu, conexão intensiva com a Natureza apenas para sair dela rumo ao inominável: o devir contra-natureza e a criação de Corpo sem Órgãos.

Uma relação do tarô com Deleuze já foi feita, sobretudo enfatizando o seu caráter semiótico, por Inna Semetsky. A nossa abordagem é diferente, relacionando conceitos filosóficos. François Jullien - esse um grande autor cujo conjunto de obra é um extensivo trabalho relacionando a filosofia do Ocidente e o pensamento chinês - em seu livro “Figuras da Imanência”, realizou um ótimo estudo relacionando o “I Ching”, antigo livro oracular chinês, com vários conceitos da filosofia da diferença.

O tarô, como quase tudo relacionado ao conhecimento antigo, tem um passado incerto. Costuma-se afirmar que tenha se originado no Antigo Egito, com o hermetismo. Os jogos de carta começaram a se popularizar na Europa no séc XIV e o tarô mais popular – com o qual lidaremos neste texto – conhecido com o Tarô de Marselha, surgiu no final do séc XV, constituído por 22 arcanos maiores, de sentido mais geral e por 56 arcanos menores.

Jogar tarô é mais e menos que realizar um “oráculo”. Mais do que “dizer o futuro”, o tarô realiza o princípio hermético de correspondência, a saber: tudo o que está em cima é como o que está embaixo. Desse princípio se desenvolve, por exemplo, a astrologia, que é um embrião da astronomia. O princípio hermético da correspondência é o mais profícuo (e popular, daí um texto apenas para ele: “Fractais quânticos monádicos”) de todos, pois possui ressonância com a teoria do caos (fractais), mecânica quântica (“colapso” de onda) e filosofia, já que o conceito leibniziano de mônada, se origina no hermetismo. Então, jogar tarô é ver o presente, grávido de passado e futuro



Fonte:
http://cosmoseconsciencia.blogspot.com/2010/02/deleuze-e-o-taro.html

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Implicações e superação da "tagarelice" contemporânea

Diante das incríveis e profundas transformações que estamos assistindo no mundo dito Ocidental (pós-política, pós-Capitalismo, pós-humano, pós-social, pós-pós-modernismo etc), vou pontuar algumas questões, pensando um pouco também nas discussões acerca da Antropologia Simétrica e do Perspectivismo. Estas duas correntes da Antropologia, parece-me, são tentativas de responder a esses desafios.

Em certa medida, poderia resumir meu argumento da seguinte forma:


"Em tempos de colonização do inconsciente, o xamanismo se apresenta não apenas como uma alternativa, mas talvez a única forma de conquistar a liberdade".


Um conceito preliminar


Vou tomar a liberdade de cunhar um conceito próprio - válido como ponto de partida do argumento para os fins desta exposição.

O ponto em questão diz respeito a tudo aquilo que nos condiciona e nos conforma a uma "visão de mundo" e nos fornece uma escala de valores.

Trata-se de um ponto de apoio que nos permita definir o que é desejável (ou não), o que é confortável (ou não), o que é o "bem" e o que é o "mal" e, sobretudo, o que é significativo ou não.

Há muitas variações para esse conceito geral, tanto na filosofia, como nas Ciências Sociais.

No caso, vou cunhar um conceito que chamarei "Tagarelice".

Definirei "Tagarelice" como a soma daquilo que usualmente chamamos:

["civilização"] + ["ideologia"] (mais fortemente no sentido dumontiano que marxista, mas incluindo este) + ["cultura"].

Para fins didáticos e provisoriamente, diria que "Tagarelice" nos fornece não apenas uma ferramenta cognitiva, mas também axiológica. Uma ontologia, uma escala de valores, uma noção de "eu". E, como espero ficar claro, também uma epistemologia.


A abrangência do conceito não é casual: confere a amplitude necessária para dar conta dos múltiplos, profundos e abrangentes fenômenos que se encontram por trás daquilo que Jameson chamou "colonização do inconsciente".

Preliminarmente, "Tagarelice" tem como peças fundamentais para operar - diria, está apoiada - em 3 noções básicas e intimamente relacionadas, entrelaçadas:

1) uma noção de tempo: uma determinada forma de vivenciarmos o tempo (tempo linear, cíclico, mítico etc);

2) uma noção de espaço : uma determinada forma de lermos e experienciarmos o espaço;

3) uma noção de corpo : uma determinada forma de lermos, sentirmos e vivenciarmos nosso corpo.

Essas 3 noções são uma só: uma dada conformidade de corpo-tempo-espaço para cada "Tagarelice".

Ou, melhor ainda, diria que "Tagarelice" não apenas se apóia nessas noções, como também forma e re-afirma as mesmas. É estruturante delas e é estruturada por elas.

Como diria Guy Debord: "O Espetáculo limita-se a enunciar a si próprio."

"Tagarelice" é, assim, a própria noção que temos de corpo-tempo-espaço. A partir delas - estou dizendo isso ainda num nível preliminar - erigimos nossa escala de valores, o que é "bom" e o que é "mal", o que é certo e o errado etc. E também nossa noção do que seja natureza e cultura, quando estas existirem.

Nossa "Tagarelice" Ocidental contemporânea tem como íntimas as noções de:

progresso,
tempo linear (passado-presente-futuro),
corpo fixo e objetivo,
materialismo,
individualidade,
separação de natureza-cultura,
sujeito/objeto,
consciente/inconsciente,
razão/loucura,
racional/irracional,
processo histórico,
linguagem

etc.

Sempre que nos depararmos com esse tipo de cisão, de dualidade e de separatividade, estaremos dentro da malha de condicionamentos dessa "Tagarelice" especifica, Ocidental (estou ciente de que estou generalizando).

Por exemplo: é próprio de nossa "Tagarelice" dizer que tudo está na linguagem, ou que tudo é histórico ou ainda a versões descartianas-kantianas. E também todas as variações materialistas. Tudo isso está na superfície de nossa "Tagarelice".

Para outras "Tagarelices" (dos índios, da Antiguidade, da Pré-História etc), outros problemas e outras cisões são construídas.


O condicionamento


A "Tagarelice" encontra seu apoio em nossa própria mente, que reproduz a cada instante essa configuração do que seja o nosso corpo, tempo e o espaço.

Ela depende de um modo específico de operarmos com nossa mente.

Ela nos convence de que somos de uma determinada maneira, que não podemos ser de outra maneira e que nossa mente está conformada a operar dessa forma.

A mente então - flexível e ávida por identificações - aceita esse argumento, esse enunciado e opera e se conforma desse modo, aceitando a si mesmo como seu próprio limite.


Descondicionamento íntimo



Em tempos de colonização do inconsciente (Jameson) resta-nos a rebeldia do xamanismo.




Para superar, atravessar e perpassar a "Tagarelice", há que se examinar detidamente, de uma forma não dualista e separada, as noções de corpo-tempo-espaço.

O que importa dizer aqui é: ao admitirmos isso, à simples admissão de possibilidade de que isso possa ser feito, já nos posicionamos parcialmente fora da "Tagarelice", posto que a forma não-dualista de exame significa a própria superação daquela dualidade "tagarelística".

Podemos dizer: para o exame pleno (vivencial + emocional + filosófico + racional + consciente + inconsciente + mental + corporal + subjetivo + objetivo), temos que nos apoiar e nos posicionar "fora" da "Tagarelice".

Ao proceder assim e avançar nesse "processo", o observador começa a duvidar e a relativizar suas próprias noções do que seja corpo-tempo-espaço: essa "dúvida" não é apenas racional-conceitual (pois então ainda estaria na "Tagarelice"), mas VIVIDA: ele começa a sentir seu corpo mais fluido e talvez não muito dotado de realidade "ontológica", começa a dissolver seu corpo e as dualidades mentais (Eu, EGO etc).

Poderá passar por algumas experiências bem estranhas...E considerar seriamente que se tornor um ser contra-cultural. Um sujeito que estivesse ferreamente posicionado dentro da "Tagarelice" poderia quase dizer que nosso observador está passando por um surto esquizofrênico.

Vejamos a seguinte passagem de Deleuze-Guattari em Mil Platôs (vol.3):



"Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso Corpo sem Órgão, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide.

(...)



O Corpo sem Órgão é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário: ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e perde o real no mais alto grau, porque perde o Corpo sem Órgão." (Mil Platôs, Vol. 3)



Importante aqui é que "Tagarelice" não é insuperável, monolítica, estável. Ao contrário, é dinâmica devido inclusive aos próprios resíduos por ela fabricados (Marx, Freud etc). Há sempre novos resíduos a serem incorporados e que também fornecem instabilidade e vitalidade à "Tagarelice".

"Tagarelice" é sempre dinâmica, por definição. Ela depende desse dinamismo.

O texto de Peter Gow toca um pouco nesse ponto: o tédio e a paralisia podem fornecer um ponto de apoio interessante, caso o observador-experimentador-de-si-próprio esteja disposto a não rompê-lo (isto é, não romper o tédio, encontrar-se a si próprio). A não dinâmica sugere a própria superação da "Tagarelice". O Budismo tem muito a dizer sobre isso.




Antropologia simétrica / Perspectivismo Amazônico



Voltando à questão Antropologia Simétrica-Perspectivismo: pôr em questão o que seja corpo-tempo-espaço implica não apenas um método, mas uma superação do que seja método; posicionamo-nos aqui além da separação forma / conteúdo.

De uma certa forma é como se o Antropólogo Simétrico-perspectivista fosse, ele próprio, uma espécie de psicanalista (ou esquizoanalista), operando aquela experiência xamanística descrita acima.

Ele problematiza as noções de corpo-tempo-espaço, valendo dizer, as noções e separações de "Eu"/"Outro" e "Natureza"/"Cultura". Ao fazer isso, não apenas está operando um "método", mas aqui está se posicionando além do método, está subvertendo o núcleo que dá origem àquilo que "Tagarelice" chama de "essência" e "aparência"; substância e forma.

Executa uma transmutação íntima e dissolve "Tagarelice" e seus enunciados mais substantivos (na verdade a própria noção de substância).

Daí porque não é possível distinguir, nesse caso, o que é objeto e método, pois essa separação, essas "ontologia" e "epistemologia", derivam daquilo que está sendo superado e dissolvido.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Lévi-Strauss nos 90: a antropologia de cabeça para baixo


(Entrevista de Claude Lévi-Strauss a Eduardo Viveiros de Castro)



Viveiros de Castro

Vejo que se trata aqui ["Voltas ao Passado"] de suas relações com Merleau-Ponty...

Lévi-Strauss

Os autores dizem que Merleau-Ponty deu as costas para mim. O que lhes atrapalhou enormemente, é claro, é que Merleau-Ponty havia publicado um texto muito caloroso a meu respeito. Então, eles dizem: "ele parece caloroso, mas isso é falso; na realidade, trata-se de um texto que é profundamente hostil a Lévi-Strauss, e que marca divergências fundamentais". O que os autores não sabiam é que o artigo de Merleau-Ponty é o memorial que ele leu perante a assembléia dos professores do Collège de France para a criação de minha cátedra.

Viveiros de Castro

Mas em "De Mauss a Claude Lévi-Strauss" não se acha nenhuma crítica.

Lévi-Strauss

Pois se era o memorial para a criação de minha cátedra ...

Viveiros de Castro

Nota-se hoje uma retomada do interesse por Merleau-Ponty entre os antropólogos.

Lévi-Strauss

Ele está efetivamente retornando, e isso me deixa muito contente.

Viveiros de Castro

A propósito - vejo que o tema figura em sua resposta -, por que pensa o senhor que sua distinção entre "história quente" e "história fria" deu lugar a tanta incompreensão, sobretudo nos países de língua inglesa?

Lévi-Strauss

Porque ninguém se deu ao trabalho de refletir. Havia uma velha distinção, povos com história e povos sem história, então eles dizem que minha distinção é idêntica a essa...

Viveiros de Castro

Tal mal-entendido não se deveria à assimilação de sua distinção a idéias de que a antropologia anglo-saxã queria se livrar: Malinowski, Radcliffe-Brown, a ênfase na sincronia etc.?

Lévi-Strauss

Mas foram eles que congelaram essas sociedades, não eu!

Viveiros de Castro

Agora essas sociedades "frias" parecem estar esquentando, não é mesmo?

Lévi-Strauss

Sim, é justamente o que digo em meu artigo: elas estão esquentando, ao passo que as nossas esfriam. Na França isso é muito claro: o interesse pelo patrimônio, os esforços para se reencontrarem as raízes...



Eduardo Viveiros de Castro




Viveiros de Castro

Diz-se com freqüência, nos Estados Unidos, que os cultural studies vão acabar com a antropologia, o que pensa o senhor?

Lévi-Strauss

Com efeito, falo justamente disso em minha resposta... O artigo dos Temps Modernes diz que a antropologia moderna é Rosaldo... E que agora é só isso que interessa...

Viveiros de Castro

E o que pensa o senhor disso?

Lévi-Strauss

Mas o que posso pensar disso?... (risos).

Viveiros de Castro

Com efeito, parece-me que há alguns conceitos-chave da antropologia que hoje estão a ponto de se tornar impronunciáveis: diferença, alteridade... Eles agora são politicamente suspeitos.

Lévi-Strauss

A antropologia virou de cabeça para baixo, sem dúvida. Seria preciso recolocá-la de pé. Mas isso não seria nem um pouco politicamente correto...

Viveiros de Castro

Como o senhor vê os resultados obtidos pelas novas tendências cognitivistas na antropologia? Elas estão cumprindo o programa que o senhor traçou, de reformular a antropologia como uma psicologia?

Lévi-Strauss

Sim, mas tratava-se de algo muito menos ambicioso, quando me exprimi assim... Penso que o que fazem os cognitivistas é muito interessante; houve progressos incontestáveis. O perigo, entretanto, é que eles estejam a criar uma nova escolástica, e que tudo isso se torne tão abstrato que... Não posso mais acompanhar o que vem sendo feito, e não pretendo fazer disso um argumento, mas, de modo geral, minha impressão é que o cognitivismo começa a perder o contato com a realidade.

Viveiros de Castro

O senhor não pensa então que os resultados sejam encorajadores? Na França, por exemplo, temos as pesquisas de Sperber...

Lévi-Strauss

Assim me parece, mas... Isso é provavelmente uma questão da idade que tenho e da época a que pertenço, mas o começo me parece ter sido muito mais interessante do que o que se faz hoje em dia. Quanto a Sperber, não compreendo nada do que ele escreve! Enfim, essa história de epidemiologia, isso me parece uma tal volta ao passado...

Viveiros de Castro

Em geral, o senhor crê que a etnologia faz uma grande volta ao passado?

Lévi-Strauss

Não, eu me dirigia aos Temps Modernes, em particular. Creio que há coisas que não ousamos mais dizer, e que é preciso dizer, ou em breve não se compreenderá mais coisa alguma. É preciso afinal dizer que a antropologia é uma disciplina que nasceu no século XIX; ela é a obra de uma civilização, a nossa, que possuía uma superioridade técnica esmagadora sobre todas as outras, e que, ciente de que ia dominá-las e transformá-las completamente, disse a si mesma: é urgente que se registre tudo que pode ser registrado, antes que isso aconteça. É isso a antropologia; ela não é outra coisa: ela é a obra de uma sociedade sobre outras sociedades. E quando nos dizem que essas sociedades não são diferentes da nossa, que elas têm a mesma história que a nossa etc., esta não é absolutamente a questão. O que pedíamos a essas sociedades que estudávamos é que elas não nos devessem nada: que elas representassem experiências humanas completamente independentes da nossa. À parte isso, elas podem ter todas as histórias que se queira, mas essa não é a questão. Devem-nos elas o que são, ou não? Se elas nos devem, elas nos interessam moderadamente; se elas não nos devem, elas nos interessam apaixonadamente.

Viveiros de Castro

Nesse caso, à medida que começam a nos dever muito, elas nos interessariam cada vez menos?

Lévi-Strauss

Elas se tornam objeto de outras pesquisas, de outras disciplinas. Se você me permite uma comparação musical, eu diria que a antropologia tal como a concebo, como a conheci, como nossos mestres a praticaram, era tonal, e agora ela se tornou serial. Isto quer dizer que as sociedades humanas não significam mais nada fora de suas relações recíprocas. Porque a nossa se enfraqueceu, porque ela mostrou seus vícios, porque as outras começaram a trilhar o mesmo caminho que a nossa - isso é como as notas em um sistema dodecafônico, elas não têm mais um fundamento absoluto, elas existem apenas umas em relação às outras. Enfim, é assim que as coisas são, teremos uma outra antropologia, como a música serial é uma outra música. Uma antropologia que será tão diferente da antropologia clássica como a música serial é diferente da música tonal.

Viveiros de Castro

Então o senhor não acredita no fim da antropologia, mas em uma mutação?

Lévi-Strauss

De fato, não acredito, e por vários motivos. O primeiro é que há ainda algumas possibilidades, como você mesmo demonstrou com os Araweté, Descola com os Jívaro... Nem tudo está acabado; vai acabar logo, mas enfim... não está completamente acabado. Em segundo lugar, há ainda, em toda parte, uma quantidade de coisas a rebuscar, coisas que foram, digamos assim, negligenciadas, e que se pode recolher, que é preciso recolher. O terceiro motivo, é que esses povos mesmos vão em breve dar origem a eruditos, a historiadores de suas próprias culturas, e assim aquilo que foi nossa antropologia vai ser apropriado por eles, e ela será algo interessante, e importante. Então, nem tudo está acabado; isto posto, a velha concepção de antropologia está morta.

Viveiros de Castro

Então, de um lado, há essas mudanças objetivas, essas sociedades que se aproximam da nossa; de outro, e no plano teórico, há outra espécie de abertura - penso ainda nos cognitivistas -, a promessa de que finalmente poderemos falar da Cultura como um objeto natural: as capacidades cognitivas da espécie etc.

Lévi-Strauss

Sem dúvida, mas sob a condição de que não se pretenda chegar a mais nada que a resultados de ordem formal. Os conteúdos, isso continua a ser história, a experiência dos homens no curso do tempo. Mas que todos tenhamos o mesmo cérebro, e que esse cérebro é fabricado do mesmo modo, sim, sim...

Viveiros de Castro

O que me inquieta, entretanto, é que, se o estruturalismo era uma tentativa de manter unidas a experiência histórica e a forma, o particular e o universal, o que vemos hoje é que esses dois lados estão cada vez mais separados, senão mesmo em guerra aberta...

Lévi-Strauss

Sim, isso é profundamente verdadeiro. O valor de Merleau-Ponty, justamente, é que ele sempre procurava manter o laço.


Merleau-Ponty



Viveiros de Castro

O senhor vê com simpatia os estudos recentes que focalizam os modos de comunicação: a distinção entre o oral e o escrito, as condições de memorização etc.?

Lévi-Strauss

Não tenho acompanhado muito de perto. A que você está referindo-se?

Viveiros de Castro

Aos trabalhos de Jack Goody, dentre outros; às pesquisas que procuram deduzir várias características das sociedades primitivas a partir das condições de transmissão do saber, e em particular das propriedades da comunicação exclusivamente oral.

Lévi-Strauss

Mas isso me parece um truísmo. Ou é um truísmo, ou é falso.

Viveiros de Castro

Com efeito, essas tendências me parecem marcadas por um grande formalismo, e pouco capazes de enxergar as enormes diferenças internas a categorias tão vastas e vagas como "sociedades de tradição oral".

Lévi-Strauss

Tudo isso é realmente absurdo. Assim também as comparações que se fazem atualmente... os seminários entre melanesianistas e amazonistas... Isso me parece muito frágil.

Viveiros de Castro

Por que o senhor pensa assim?

Lévi-Strauss

Os ameríndios são restos, são fragmentos de sociedades que viveram vários séculos de drama e destruição. Os melanésios, em contrapartida, são gente que estava absolutamente intacta no momento em que se os descobriu. O que se pode tirar dessas comparações? Fazem-se correlações... vi isso outro dia, já não me lembro onde, uma correlação entre o uso de bebidas alcoólicas e a densidade da população. Na América usavam-se substâncias intoxicantes porque a população era dispersa; na Melanésia elas não seriam necessárias porque a população era muito densa...

Viveiros de Castro

Qual a lógica dessa correlação?

Lévi-Strauss

Pois se os melanésios usavam cogumelos alucinógenos, ausentes entre os índios sul-americanos, e se no sudeste asiático, onde a população é densa, tomam-se bebidas alcoólicas a valer...

Claude Lévi-Strauss




Viveiros de Castro

Falando na Amazônia, como o senhor vê a paisagem do americanismo contemporâneo?

Lévi-Strauss

Mas o que está acontecendo no Brasil é formidável! É algo de praticamente inédito! Quando conheci o Brasil, o que era a etnologia? Eram velhos eruditos de gabinete que se debruçavam sobre a filologia tupi; era isso, e nada mais. E agora, vemos uma das escolas mais brilhantes da atualidade.

Viveiros de Castro

Foi em grande parte graças ao senhor que isso ocorreu.

Lévi-Strauss

Não, não, isso teria acontecido de qualquer maneira. Os meios de comunicação tiveram muito a ver com isso. Se os Estados Unidos estiveram à frente da antropologia durante um certo período, foi porque os índios estavam no mesmo país que os antropólogos, e era relativamente fácil ir até eles. O Brasil se achava, no período em que ali vivi, na véspera da Segunda Guerra, na mesma situação: os povos indígenas em seu território, podia-se ir até lá sem muita dificuldade.

Viveiros de Castro

Mas minha impressão é que o impulso da etnologia brasileira deu-se nos anos 60, justamente quando seus trabalhos sobre a mitologia ameríndia vieram a ser publicados.

Lévi-Strauss

Eu recuaria um pouco mais, mas se você pensa assim, tanto melhor...

Viveiros de Castro

Parece-me, de qualquer modo, que foi nos últimos trinta anos que se atingiu uma massa etnográfica crítica.

Lévi-Strauss

E foi sem dúvida a contribuição brasileira a principal responsável por isso. Avistei-me ontem com um colega de Santiago do Chile. Ele me dizia: não conseguimos formar etnólogos, os estudantes não querem ser etnólogos. Isso não lhes interessa mais. E contudo, me dizia ele, o que está acontecendo com os índios no Chile é enormemente interessante.

Viveiros de Castro

E o que pensa o senhor sobre as pesquisas recentes em arqueologia amazônica? Irão elas realmente modificar a imagem não só do passado, mas também do presente da Amazônia?

Lévi-Strauss

Tudo depende do que vai acontecer nos anos vindouros. Pode muito bem ser que se encontrou tudo que há a encontrar. Parece-me que as coisas começam a ir mais devagar, efetivamente. A menos que se façam novas e sensacionais descobertas.

Viveiros de Castro

O senhor, já em 1952, falava em culturas complexas na várzea amazônica.

Lévi-Strauss

Mas era algo puramente intuitivo, não tinha outro valor que o de um feeling....

Viveiros de Castro

E quanto aos problemas da data de chegada dos humanos nas Américas? Quão longe o senhor pensa que esta data será recuada?

Lévi-Strauss

Evidentemente, as descobertas de Monte Verde, no Chile, são extraordinariamente perturbadoras*. Seria absurdo fazer predições, entretanto.

Viveiros de Castro

Qual é seu feeling, de qualquer modo?

Lévi-Strauss

Ah, nesses assuntos há tal dose de wishful feeling... Mas 50 mil anos seria uma data razoável. Mesmo se supuséssemos que o Homo erectus tenha estado na América, o que foi sustentado por alguns, como Lumley, que uma vez fez uma nota a esse respeito para a Academia de Ciências.... De qualquer maneira, ele não seria de grande interesse para nós etnólogos, porque o Homo erectus não estava mais lá quando os ameríndios chegaram... Quanto ao povoamento ameríndio, algo como 50 mil anos parece razoável. Pierre Gourou, que era... digo era, mas ele não está morto, enfim, ele está tão idoso que não é mais possível se comunicar com ele - há uns dez anos, quando nos víamos muito, Gourou dizia que havia argumentos geográficos absolutos em favor de uma chegada anterior a 45 mil anos, devido a questões relacionadas à circulação das águas do Artico em direção ao Pacífico.

Viveiros de Castro

Em uma conhecida passagem de O Cru e o Cozido, o senhor diz que a América indígena foi "uma Idade Média que não teve sua Roma". Não se poderia dizer, entretanto, que ela teve sua Atenas - não no sentido geográfico, mas espiritual? Pois seu trabalho sobre a mitologia demonstra a existência de um sistema pan-americano de pensamento.

Lévi-Strauss

Há incontestavelmente um sistema de pensamento. O que coloca muitos problemas: isso supõe que esses povos todos circularam muito mais do que nós imaginamos, e em todos os sentidos.

Viveiros de Castro

Como o senhor vê o estado atual dos estudos sobre o parentesco? Estaríamos vivendo uma fase de recuo de interesse no tema?

Lévi-Strauss

Penso que sim; há coisas mais interessantes a fazer, agora...

Viveiros de Castro

Nos últimos anos, certas noções que desempenham um papel central em sua obra sobre o parentesco, como reciprocidade e troca, têm recebido muitas críticas.

Lévi-Strauss

Sim, sim, tenho assistido a isso um pouco de longe... Mas enfim, quando alguém como Godelier acredita ter feito uma grande descoberta quando diz que nem tudo se troca... Grande novidade... Mas é claro que nem tudo se troca - naturalmente! Sabíamos disso desde que Boas explicou que entre os povos da costa noroeste havia bens inalienáveis, além daqueles que se alienam...

Viveiros de Castro

Parece-me que alguns deslocamentos importantes se produziram nessa revisão crítica. Tomemos a noção de troca. Nas Estruturas Elementares ela designava uma instituição empírica, mas também e sobretudo um princípio. Minha impressão é que, agora, reduz-se a troca a uma instituição, que se pode encontrar ali ou acolá, mas que não é certamente um universal.

Lévi-Strauss

Você tem toda a razão. Creio que o que acontece nesse domínio, e em muitos outros, é que as pessoas não têm mais cultura, e que elas se acham na mesma situação intelectual de um século e meio atrás, mais ou menos.

Viveiros de Castro

O senhor permanece acreditando que a noção de troca que o senhor propôs nas Estruturas Elementares é adequada?

Lévi-Strauss

Sim, se lhe conferimos um sentido transcendental - ela é a condição que nos permite simplificar o problema, isso é tudo. Não me pergunto se em tal ou tal caso, neste ou naquele povo... enfim, quantas coisas se trocam ou não se trocam!

Viveiros de Castro

E sobre a célebre distinção entre natureza e cultura, ela também é bastante discutida.

Lévi-Strauss

Ainda não pude ler o livro organizado por Descola, que ele acaba justamente de me dar**. Mas penso que há vários mal-entendidos. Em primeiro lugar, ele [Descola] coloca o problema em termos exclusivamente sincrônicos. Em termos diacrônicos, todas as sociedades que conhecemos pensam que houve uma época em que os homens viviam no estado de natureza antes de alcançar o estado de sociedade. Quando lhe oponho este argumento, Descola me responde: mas nesse estado de natureza tudo - os animais e os homens - estava confundido. Sem dúvida, tudo estava confundido, mas, justamente, era necessário que os animais e os homens se separassem. Em segundo lugar, creio que, quando se diz que a distinção entre natureza e cultura é algo próprio do pensamento ocidental, há um equívoco: não é a distinção em si que é ocidental, mas uma certa atitude diante da natureza. Tal atitude, com efeito, não existe entre os povos estudados pelos etnólogos. Mas, do fato de esses povos sentirem a necessidade de descobrir uma espécie de arbitragem entre a natureza e a cultura, um meio de fazê-las coabitar de maneira satisfatória, não se deduz de modo algum que eles ignorem a oposição. Eles simplesmente a resolveram de uma forma diferente da escolhida pelo ocidente, o qual nega pura e simplesmente os dois termos. Os mitos indígenas procuram mostrar como a cultura se entende com a natureza.

Viveiros de Castro

Admitindo-se a presença de uma distinção entre natureza e cultura no pensamento indígena, ela de qualquer modo parece inverter nossa versão clássica da mesma distinção, e isso tanto do ponto de vista diacrônico como sincrônico. Assim, concebemos a cultura como se constituindo historicamente a partir da natureza, e a humanidade como emergindo de um fundo geral de animalidade...

Lévi-Strauss

Mas essa é uma visão científica, não uma visão bíblica...

Viveiros de Castro

Nos termos em que a formulei, ela me parece caracterizar antes o evolucionismo popular ocidental, que é da ordem do mito, que a teoria científica da evolução. E nesses termos, haveria um contraste com a mitologia ameríndia. Como o senhor mesmo observou em A Oleira Ciumenta, essa mitologia postula que a humanidade é o fundo comum dos seres, e que os animais atuais são humanos transformados. Nesse caso, não é a cultura que se separa da natureza, mas o contrário.

Lévi-Strauss

Sim, de modo geral concordo com isso. Penso apenas que seria preciso matizar um pouco sua formulação, porque ela não se encontra, nesses termos, em toda parte.


Eduardo Viveiros de Castro




Viveiros de Castro

E como o senhor formularia a diferença entre a concepção contemporânea de natureza - falo do mundo da física, da relatividade, da mecânica quântica etc. - e a concepção ameríndia?

Lévi-Strauss

A representação da física parece muito mais, no fundo, com o que no caso indígena chamaríamos uma sobrenatureza. Nós consideramos que o mundo da física é mais verdadeiro que o mundo da experiência, mas ao mesmo tempo admitimos que não compreendemos nada dele. Nosso mundo físico é nossa sobrenatureza.

Viveiros de Castro

O senhor se refere esporadicamente à noção de sobrenatureza em suas análises da mitologia ameríndia. Como ela se disporia em relação à distinção entre natureza e cultura?

Lévi-Strauss

Com efeito, isto é algo sobre o qual não refleti o suficiente. Reconheço que deveria tê-lo feito. Mas não tenho um pensamento claro sobre isso; não cheguei a aprofundar a questão.

Viveiros de Castro

De qual livro seu o senhor gosta mais?

Lévi-Strauss

Não tenho a menor idéia, meus livros já não me estão mais muito presentes à mente.

Viveiros de Castro

Mas o senhor não parece gostar demasiado das Estruturas Elementares, não é?

Lévi-Strauss

Quando reabro este livro, digo-me: aprendi a escrever melhor desde então... Mas ele tem, ainda assim, um frescor que perdi. É um livro cheio de defeitos - é uma obra de juventude, há uma quantidade de coisas inúteis dentro dele... e outras coisas que são provavelmente falsas...

Viveiros de Castro

Há alguma coisa que o senhor gostaria de ter feito, como pesquisa, e que não pôde realizar?

Lévi-Strauss

Sim, fora de minha disciplina; dentro dela, não.

Viveiros de Castro

Sobre o que o senhor está trabalhando no momento?

Lévi-Strauss

Sobre nada. Não trabalho - apenas me ocupo, por assim dizer. Sem planos, sem visar resultados, escrevo um artigo de vez em quando. Não tenho um programa, porque sei que se traçar um programa definido não poderei concluí-lo. Não tenho ilusões: estou bastante bem, e talvez ainda viva mais alguns anos; mas o pensamento, isso se deteriora. Não se pode pretender exigir-lhe o mesmo que outrora.

Viveiros de Castro

O pensamento se deteriora com a idade, é certo - mas na imensa maioria dos casos isso começa muito antes dos noventa anos... O senhor ainda viaja?

Lévi-Strauss

Não, não viajo mais. Não tenho mais sequer um passaporte válido. Deixei o meu vencer.


Notas


* Lévi-Strauss está-se referindo às pesquisas dirigidas por Tom Dillehay em Monte Verde, Chile, que estabeleceram uma data de ocupação humana em torno de 25.000 a.C.

** P. Descola e G. Pálsson (orgs.), Nature and Society: Anthropological Perspectives, London, Routledge, 1996.



© 2009 Mana


(Extraído do Blog Epifenomenologia)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Perspectivismo: para além do pós-modernismo


(Nota do Blog Epifenomenologia: O texto abaixo é uma tradução livre do artigo "Perspectivism: ‘Type’ or ‘bomb’?" de Bruno Latour, publicado na revista "At Anthropology Today" - vol. 25 nº2, abril 2009, disponível no site do autor. Trata-se de um comentário realizado a propósito do debate entre Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola ocorrido na Maison Suger, em Paris, no dia 30 de Janeiro de 2009.)


PERSPECTIVISMO: MODELO OU BOMBA? (*)


Bruno Latour


Paris, 30 de Janeiro


Quem disse que a vida intelectual de Paris estava morta? Quem disse que a antropologia não mais era vívida e atraente? Aqui estamos, numa fria manhã de Janeiro, em uma sala cheia de gente de diversas disciplinas e vários países, ávidos por ouvir um debate entre dois dos maiores e mais brilhantes antropólogos. O rumor circulou por salas de bate-papo e cafés: depois de anos aludindo aos seus desacordos, em particular ou por publicações, eles concordaram enfim em trazê-los a público. “Vai ser áspero”, me disseram; “vai ter sangue”. Na verdade, em vez da rinha esperada por alguns, a pequena sala na Rue Suger testemunhou uma disputatio(1), muito parecida com aquelas que devem ter tido lugar entre estudiosos fervorosos aqui, no coração do Quartier Latin, por mais de oito séculos.

Apesar de se conhecerem há 25 anos, os dois decidiram começar a sua disputatio lembrando à platéia do importante impacto do trabalho um do outro em suas próprias descobertas.

Philippe Descola primeiramente reconheceu o quanto ele aprendeu com Eduardo Viveiros de Castro quando estava tentando se extirpar do binarismo “natureza versus cultura” ao reinventar a então obsoleta noção de “animismo” para entender modos diferentes de relação entre humanos e não-humanos. Viveiros havia proposto o termo “perspectivismo” para um modo que não poderia ser mantido dentro das limitadas estrituras [narrow strictures] de natureza versus cultura, já que para os índios que ele estudava, a cultura humana é aquilo que vincula todos os seres - incluindo animais e plantas - ao passo que eles estão divididos por suas naturezas diferentes, ou seja, seus corpos (Viveiros 1992).

É por este motivo que, enquanto os teólogos em Valladolid debatiam acerca dos índios terem ou não uma alma, esses mesmos índios, do outro lado do Atlântico, testavam os conquistadores ao afogá-los para ver se apodreciam - uma bela maneira de ver se eles realmente tinham corpo; o fato de terem uma alma não estava em questão. Este famoso exemplo de antropologia simétrica levou Lévi-Strauss a notar, com uma certa ironia, que os espanhóis podiam ser bons em ciências sociais mas que os índios estavam conduzindo suas pesquisas de acordo com o protocolo das ciências naturais.


Descola

Os quatro modos de relação de Descola

Descola, então, explicou como a sua nova definição de animismo poderia ser utilizada para distinguir “naturalismo” - a visão geralmente tida como posição padrão adotada pelo pensamento Ocidental - de “animismo”. Enquanto os “naturalistas” traçam semelhanças entre entidades com base em aspectos físicos e os distinguem com base em características mentais ou espirituais, o “animismo” toma a posição oposta, sustentando que todas as entidades são semelhantes em termos de seus aspectos espirituais, mas se diferem radicalmente em virtude do tipo de corpo do qual são dotadas.

Este foi um avanço notável para Descola, já que significou que a divisão “natureza versus cultura” não mais constituía o background inevitável adotado pela profissão como um todo, mas apenas uma das maneiras que os “naturalistas” tinham de estabelecer as suas relações com outras entidades. A Natureza deixara de ser um meio [resource] para se tornar um problema [topic]. É desnecessário dizer que esta descoberta não estava perdida entre as nossas, no campo vizinho dos science studies, que estudávamos, histórica ou sociologicamente, como os “naturalistas” tratavam as suas relações com não-humanos.

Foi então possível para Descola, como ele explicou, adicionar a este par de conexões um outro par no qual as relações entre humanos e não-humanos eram ou semelhantes em ambos os lados (o que ele chamou “totemismo”) ou diferentes nos dois lados (um sistema por ele denominado "analogismo") . Ao invés de cobrir todo o globo com um único modo de relações entre humanos e não-humanos que então serviria como um background para detectar as variações “culturais” entre muitos povos, este próprio background virara objeto de investigação cuidadosa. Os povos não se diferem apenas em suas culturas mas também em suas naturezas, ou antes, na maneira pela qual elas constroem relações entre humanos e não-humanos. Descola foi capaz de alcançar o que nem os modernistas nem os pós-modernos conseguiram: um mundo livre da unificação espúria de um modo naturalista de pensar.

Apesar da universalidade imperialista dos “naturalistas” ter sido ultrapassada, uma nova universalidade ainda era possível, uma que permitisse que cuidadosas relações estruturais fossem estabelecidas entre as quatro maneiras de construir coletivos [building collectives]. O grande projeto de Descola era então reinventar uma nova forma de universalidade para a antropologia, mas desta vez uma “relativa”, ou melhor, uma universalidade “relativista”, que ele desenvolveu em seu livro Par delà nature et culture (2005). A seu ver, por mais profunda que fosse a investigação de Viveiros, ele focava apenas um dos contrastes locais que ele, Descola, tentara contrastar com numerosos outros procurando obter uma variedade maior.

Eduardo Viveiros de Castro


Dois perspectivismos no perspectivismo

Apesar de se serem amigos por um quarto de século, duas personalidade não poderiam ser mais distintas. Depois do tom aveludado da apresentação de Descola, Viveiros falou por incursões breves e aforísticas, lançando uma espécie de Blitzkrieg em todas as frentes a fim de demonstrar que também ele pretendia atingir uma nova forma de universalidade, só que uma muito mais radical. Perspectivismo, sob seu ponto de vista, não deveria ser considerado como uma simples categoria dentro da tipologia de Descola, mas antes como uma bomba com o potencial de explodir toda a filosofia implícita tão dominante na maior parte das interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais. Se há uma abordagem que é totalmente anti-perspectivista, é a noção mesma de um termo [type] dentro de uma categoria, uma idéia que só pode ocorrer àqueles a quem Viveiros chamou “antropólogos republicanos”.

Como Viveiros explicou, o perspectivismo virou algo como uma moda nos círculos amazônicos, mas esta moda oculta um conceito muito mais incômodo, que é o de “multinaturalismo”. Enquanto os pesquisadores, tanto das ciências duras quanto das ciências humanas, concordam igualmente com a noção de que há apenas uma natureza e muitas culturas, Viveiros quer levar o pensamento amazônico (que não é, ele sustenta, a “pensée sauvage” que Lévi-Strauss sugeriu, mas uma filosofia totalmente civilizada e altamente elaborada) a tentar ver como o mundo inteiro seria se todos os seus habitantes tivessem a mesma cultura e muitas naturezas diferentes. A última coisa que Viveiros pretende é que a luta ameríndia contra a filosofia ocidental se torne apenas mais uma bizarrice no vasto gabinete de curiosidades que ele acusa Descola de estar tentando construir. Descola, ele argumenta, é um “analogista” - isto é, alguém que é possuído pela cuidadosa e quase obsessiva acumulação e classificação de pequenas diferenças a fim de preservar um senso de ordem cósmica face à constante invasão de diferenças ameaçadoras.

Notem a ironia aqui - e a tensão e atenção na sala aumentaram neste momento: Viveiros não estava acusando Descola de estruturalista (uma crítica que foi frequentemente dirigida a seu maravilhoso livro), já que o estruturalismo, como Lévi-Strauss o concebe, é, ao contrário, “um existencialismo ameríndio”, ou antes “a transformação estrutural do pensamento ameríndio” - como se Lévi-Strauss fosse o guia, ou melhor, o xamã que permitiu ao perspectivismo indígena ser conduzido para dentro do pensamento Ocidental a fim de destruí-lo a partir de seu interior, numa espécie de canibalismo invertido. Lévi-Strauss, longe de ser o catalogador frio e racionalista de mitos distintos contrastados, aprendera a sonhar e divagar como os índios, exceto que ele sonhava e divagava por meio de fichamentos e parágrafos refinados. Mas o que Viveiros criticou foi que Descola arrisca tornar a transformação de um tipo de pensamento para outro “demasiadamente leve”, como se a bomba que ele, Viveiros, queria colocar na filosofia ocidental tivesse sido desarmada. Se nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia, toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências sociais, teria que ser descartada.

A essa crítica Descola respondeu que ele não estava interessado no pensamento Ocidental, mas no pensamento de outros; Viveiros replicou que o problema era a sua maneira de estar “interessado”.

Bruno Latour


Pensamento descolonizador

O que está claro é que este debate destrói a noção de natureza como um conceito universal que cobre todo o globo, por conta do qual os antropólogos têm o dever triste e limitado de adicionar o que quer que tenha restado de diversidade sob a noção velha e desgastada de “cultura”. Imaginem como os debates entre antropólogos “físicos” e “culturais” podem ficar quando a noção de multi-naturalismo for levada em consideração. Descola, não obstante, ocupa a primeira cadeira de “antropologia da natureza” no prestigioso Collège de France, e eu sempre me perguntei como os seus colegas das ciências naturais conseguem ensinar os seus próprios cursos ao lado daquilo que para eles deveria ser uma fonte de material radioativo. A preocupação de Viveiros de sua bomba ter sido desativada talvez esteja equivocada: um novo período de florescimento é aberto para a antropologia (ex-física e ex-cultural) agora que a natureza deixou de ser um meio para se tornar um problema muito contestado, no momento mesmo, por acaso, em que a crise ecológica - um assunto de grande preocupação política para Viveiros no Brasil - reabriu o debate que o “naturalismo” tentara prematuramente fechar.

Mas o que é ainda mais recompensador de ver numa disputatio como esta é o quanto nós progredimos com relação à categoria modernista e, depois, pós-moderna. Certamente, a busca por um mundo familiar é infinitamente mais complexa agora que tantos modos diferentes de habitar a terra ficaram livres para se implantar. Mas, por outro lado, a tarefa de compor um mundo que ainda não é familiar está claramente colocada para os antropólogos, uma tarefa que é tão grande, tão séria e tão recompensadora quanto qualquer outra coisa com a qual eles tiveram que lidar no passado. Viveiros apontou para isto em sua resposta para uma questão vinda da platéia, usando uma espécie de aforismo trotskista: “Antropologia é a teoria e prática de permanente descolonização.” Quando ele acrescentou que “a antropologia hoje está largamente descolonizada, mas a sua teoria ainda não é descolonizadora o suficiente”, alguns de nós na sala tiveram o sentimento de que, se este debate for indicativo de algo, nós podemos finalmente estar chegando lá.



* Traduzido por Larissa Barcellos


Notas:

1- Disputatio: tipo de disputa de idéias e argumentos ocorrida no período medieval entre dois professores com posições contrárias, que apresentavam suas idéias em pequenas proposições para serem publicadas e, depois, debatidas entre o público acadêmico. Em debates deste tipo, os alunos tinham como tarefa acompanhar e recolher todas as idéias em uma síntese. Para saber mais: http://isaiaslobao.blogspot.com/2008/11/disputatio-theologica.html (N.T.)


(Extraído do Blog Epifenomenologia)