segunda-feira, 31 de março de 2008

Tibete é estratégico para a China




O forte crescimento econômico do Tibete na última década - média de 12% ao ano - beneficiou principalmente os chineses da etnia han e marginalizou os tibetanos. Isso, aliado à forte repressão política, foi a origem dos protestos dos dias 14 e 15 de março em Lhasa, na opinião de Andrew Martin Fischer, da London School of Economics. Segundo ele, a estratégia de Pequim para a região é de assimilação - os tibetanos são forçados a se “achinesar” se quiserem se integrar ao sistema econômico.


O Tibete é estratégico para Pequim por abrigar o platô Qinghai-Tibete, uma fonte crucial de abastecimento para o país - cujas outras reservas são escassas e mal distribuídas. Além disso, o território abriga o maior depósito de cobre da China e também é rico em minas de ferro, chumbo, zinco e cádmio - necessários para alimentar o voraz crescimento econômico da indústria chinesa.

A reportagem e a entrevista é de Cláudia Trevisan e pubicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 31-03-2008.

Eis a entrevista.

Qual é o problema da estratégia chinesa no Tibete?

É uma região ocupada, essencialmente por chineses han e o Partido Comunista. A Região Autônoma do Tibete é governada a partir de uma mentalidade de segurança pública. É uma região estratégica, as decisões são tomadas em Pequim e a questão militar é muito importante. No fim dos anos 80, houve grandes manifestações, que foram reprimidas. Desde então, o governo segue a estratégia de impulsionar o rápido crescimento econômico e, ao mesmo tempo, impor uma política autoritária de forte controle da população.

A China usa o crescimento para tentar legitimar sua presença no Tibete, dizendo que a vida dos tibetanos agora é melhor do que antes.

O Tibete teve um crescimento econômico espetacular e superior à média da China nos últimos dez anos. Mas isso foi produzido basicamente por subsídios concedidos por Pequim e canalizados por meio de empresas chinesas ou do próprio governo, o que cria uma situação muito desigual e polarizada. Os que têm fluência em chinês, relações com chineses, com corporações chinesas ou fortes conexões políticas e econômicas na China se dão muito bem. Mas a maioria dos tibetanos não tem nada disso. Só 15% têm educação formal secundária e só esses podem ter algum grau de fluência em chinês. Mesmo os tibetanos mais educados têm dificuldade em competir com os migrantes chineses, porque estes tendem a ter um grau de educação superior ao dos mais educados tibetanos. É uma situação muito desigual, e as desigualdades são muito determinadas pela questão étnica.

As manifestações recentes refletem essa polarização?

Sim. Os protestos ocorreram principalmente em áreas urbanas, e provavelmente representam o descontentamento da população excluída do rápido crescimento. Quanto mais as áreas urbanas crescem, mais migrantes são atraídos. O problema é que os tibetanos têm um enorme atraso educacional em relação ao resto da China, porque a infra-estrutura educacional é muito pior. Mas mesmo que o governo promova a educação, a estratégia é de assimilação, de colocar cada vez mais a língua chinesa no sistema educacional, com o argumento de que, se os tibetanos forem competir com os migrantes, têm de aprender chinês. A educação tibetana vem sendo enfraquecida, o que tem um impacto cultural e provoca a sensação de que a única maneira de sobreviver nesse sistema é ser assimilado e perder sua cultura.

O que exatamente é essa estratégia de assimilação?

É reduzir gradualmente a educação média tibetana e introduzir cada vez mais a chinesa, minando as maneiras pelas quais a educação tibetana poderia se desenvolver. Mesmo se você decidir estudar tibetano muito bem, não conseguirá um emprego público, porque os concursos para os cargos são feitos em chinês. Se quiser competir nesse sistema, o melhor é ir para uma escola chinesa. Há uma enorme força nesse sistema para as pessoas se tornarem han, o que provoca frustração. Se você é um funcionário público em um local onde a maioria da população é tibetana e nem mesmo fala chinês, seria lógico que um dos requisitos para ocupar o cargo deveria ser falar tibetano. Mas isso não ocorre. Em 2006, houve uma manifestação de universitários em Lhasa, porque o governo ofereceu cem empregos públicos e apenas dois tibetanos foram selecionados, já que os chineses se saem bem melhor em exames feitos em chinês. Isso em um contexto em que 90% da população é tibetana. Os que saem das universidades têm dificuldade em competir no mercado. O governo não dá nenhuma proteção aos trabalhadores locais. Eles têm essa mentalidade de livre mercado, pela qual os tibetanos têm de competir com os migrantes, ainda que em condições bastante desiguais, o que cria uma situação muito discriminatória em todas as indústrias. As pessoas que estão no poder agora são muito mais linha-dura e querem assimilação em larga escala. Querem que os tibetanos sejam cada vez mais como os chineses. Ao mesmo tempo, estão adotando políticas repressivas muito fortes. Desde 1996, implantaram a educação patriótica nos mosteiros, que força os monges a denunciar o dalai-lama e também a receber educação política.

O que pode acontecer?

Pode ficar pior. A maneira como o governo está reagindo ao que ocorreu é quase como tentar transformar um fracasso em uma oportunidade, para desacreditar reivindicações de mais autonomia e promover políticas mais repressivas. É possível que o governo use o que ocorreu em uma política de relações públicas. No Ocidente, ninguém vai acreditar no governo, mas eu não creio que eles estejam falando com o Ocidente. O governo está falando com seus próprios membros. O Partido Comunista não é um organismo uniforme e é integrado por várias facções. Há uma facção mais linha-dura que deseja assimilar o Tibete e outra que é mais tolerante. O que estão fazendo é usar esses eventos para tentar desacreditar a outra facção e reforçar suas políticas. Não creio que o Tibete se torne independente porque os chineses jamais aceitarão isso. O que nós podemos esperar é que a facção linha-dura seja desacreditada e haja um movimento na direção de políticas preferenciais em relação aos tibetanos. Isso é o que podemos realisticamente esperar.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O Prajnaparamita (2)




S.S. o Dalai Lama



Quando o Buddha diz Tadyatha Gate Gate Paragate Parasamgate Bodhi Svaha ("avance, avance, avance além, avance diretamente além, tenha como objetivo a iluminação"), ele indica para quem está treinando para avançar pelos cinco caminhos:

Gate: o caminho da acumulação;
Gate: o caminho da preparação;
Paragate: o caminho da visão;
Parasamgate: o caminho da meditação;
Bodhi: o caminho do não-mais aprender.
Vamos identificar a natureza do avanço espiritual sobre os cinco caminhos.

1. O caminho da acumulação
Qual é o caminho inicial, o caminho da acumulação? É aquele período em que você pratica principalmente a motivação direcionada para os outros e assim acumula grande quantidade de méritos. Também, ainda que você pratique uma união da motivação e da sabedoria, sua compreensão da vacuidade não atingiu o nível de apoio mútuo da meditação estabilizadora e da meditação analítica, chamado de "o estado surgido da meditação". Nesse caminho, você obtém uma poderosa meditação concentrada e trabalha neste estado compreendendo a vacuidade.

2. O caminho da preparação
No ponto em que você atinge um estado de sabedoria advindo da meditação que compreende a vacuidade, você passa para o caminho da preparação. Ao ficar mais e mais familiar com este estado, junto com o cultivo da motivação compassiva, você aos poucos percebe a aparência da vacuidade mais claramente sobre os quatro níveis do caminho da preparação (calor, apogeu, paciência e qualidades mundanas elevadas).

3. O caminho da visão
Finalmente, a vacuidade é compreendida diretamente, sem nem mesmo a contaminação mais sutil da aparência dualística, que desapareceu. Este é o começo do caminho da visão — o caminho da compreensão inicial direta da verdade em relação à natureza profunda dos fenômenos. Neste ponto no Mahayana, começam os dez níveis do bodhisattva (chamados de estágios porque neles são geradas as qualidades espirituais especiais). Durante o caminho da visão e o caminho da meditação, dois tipos de obstruções — adquiridas intelectualmente ou inatas — são respectivamente superadas.

Obstruções intelectualmente adquiridas
Os estados mentais intelectualmente adquiridos vêm da incorporação de falsos sistemas. Por exemplo, há seguidores de algumas escolas buddhistas que acreditam que os fenômenos existam convencionalmente por suas próprias características, baseadas no "raciocínio" não fundamentado de que, se os fenômenos não fossem estabelecidos desta maneira, eles não poderiam funcionar. Esse tipo de concepção errônea, poluída por um sistema inválido de princípios, é chamado artificial ou intelectualmente adquirido. Mesmo se você não tiver adquirido nova predisposição pelo pensamento conceitual errôneo nesta vida, todas as pessoas têm em sue continuum mental predisposições estabelecias em vidas passadas.

Obstruções inatas
Por contraste, os estados mentais inatos e errôneos existem em todos os seres sencientes — dos insetos ao homem — desde um tempo sem início e operam por sua própria maneira sem depender de falsas escrituras ou falsos raciocínios.

4. O caminho da meditação
As obstruções intelectualmente adquiridas ou artificiais são removidas pelo caminho da visão, enquanto as obstruções inatas são mais difíceis de se sobrepor (porque você tem sido condicionado a esses estados errôneos desde o tempo sem início). Elas devem ser removidas pela meditação contínua sobre o significado da vacuidade. Como essas meditações precisam ser efetuadas por um longo período de tempo, esta fase do caminho é chamada de o caminho da meditação. Assim, você meditou anteriormente sobre a vacuidade, mas o caminho da meditação refere-se a um caminho de familiarização estendida.

Nesse nível, você passa através dos nove estágios remanescentes de um bodhisattva. Dos dez, os primeiros sete são chamados de impuros, os últimos três de puros. Isso porque nos primeiros sete você ainda está em processo de remoção das obstruções aflitivas e assim eles ainda não estão purificados. Pela primeira parte do oitavo suporte, você remove as emoções aflitivas. A força do oitava, nono e décimo estágios o capacita a sobrepor as obstruções à onisciência.

5. O caminho do não-mais aprender

Agora, pelo uso da meditação concentrada como um diamante, obtida ao final dos dez estágios do bodhisattva — o auge de ainda ter obstruções a serem superadas —, você pode eliminar efetivamente os obstáculos sutis à onisciência. No próximo momento, sua mente transforma-se em uma consciência onisciente e ao mesmo tempo a natureza profunda da mente transforma-se no corpo natural de um buddha. Este é quinto e último caminho, o caminho do não-mais-aprender. De um vento, ou energia, muito sutil — que é uma entidade com esta mente —, várias formas físicas puras e impuras surgem espontaneamente para ajudar os seres sencientes. Elas são chamadas de corpos da forma de um buddha. Este é o estado de buddha, um estado de ser a fonte a de ajuda e alegria para todos os seres sencientes.

(Adaptado de Sua Santidade o Dalai Lama, Como praticar: O caminho para uma vida repleta de sentido.
Organizado por Jeffrey Hopkins, traduzido por Eduardo Refkalefsky. Rio de Janeiro: Rocco: 2003. Pág. 208-212).





quinta-feira, 27 de março de 2008

O Prajnaparamita





I - "SUTRA DO CORAÇÃO"


HOMENAGEM À SAGRADA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA!

Assim eu ouvi, uma vez em que o Abençoado permanecia em Rajagrirra, no Monte do Pico dos Abutres, junto com um grande grupo da Sangha de monges e uma grande Assembléia da Sangha de Bodhissátvas. Foi quando o Abençoado entrou no Samadhi que expressa o Dharma chamado "Iluminação Profunda" e enquanto isso o Nobre Avalokitésvara, o Mahasátva Bodissátva, ao praticar o Prajnaparamita Profundo viu desta maneira: viu que os cinco skandas eram vazios por natureza. Então pelo poder do Buddha o Venerável Shariputra perguntou o Nobre Avalokitésvara, o Mahasátva Bodhissátva:




"Como deve praticar um filho ou filha de família nobre que queira treinar o Prajnaparamita Profundo?"





Indagado desta maneira, o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátva, respondeu ao Venerável Shariputra:




"Ó Shariputra, um filho ou filha de família nobre que queira treinar o Prajnaparamita Profundo deve ver desta maneira: Forma é vazio, vazio também é forma. O vazio não é outra coisa senão forma, a forma não é outra coisa senão vazio. Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazio. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas. Não existe dhatu do olho, nem dhato da mente, não existe dhatu de dharmas, nem dhatu da consciência da mente. Não existe ignorância nem fim da ignorância, assim como não existe nem velhice nem morte, nem fim da velhice e da morte. Não existe sofrimento, nem origem do sofrimento, nem cessação do sofrimento, não existe caminho, nem sabedoria, nem apego, nem desapego. Por isso, Shariputra, já que os Bodhissátvas a nada se apegam, vêem de acordo com o Prajnaparamitra. Como não há nenhum obscurecimento da mente, não existe medo. Eles transcendem à falsidade e atingem o Nirvana completo. Todos os Buddhas das três eras praticando o Prajnaparamitra despertam plenamente para a Iluminação insuperável, verdadeira e completa. Por isso o grande mantra do Prajnaparamita, o mantra do grande insight, o mantra insuperável, o mantra inigualável, o mantra que acalma todo sofrimento deve ser conhecido como verdadeiro e sem nenhuma ilusão. O mantra do Prajnaparamita é dito desta maneira:

OM GÁTE GÁTE PARAGÁTE PARASANGÁTE BODHI SOHA!

"É assim, ó Shariputra, que o Mahassátva Bodhissátva deve praticar o Prajna Paramitra profundo".




Então o Abençoado saiu daquele Samadhi e elogiou o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátva, dizendo:




"Muito bem, muito bem, ó filho de nobre família. Assim é, ó filho de nobre família, assim é. Deve-se praticar o Prajnaparamitra Profundo exatamente como disse, e todos os Tatágatas se rejubilarão".





Depois que o Abençoado proferiu, o Venerável Shariputra, o Nobre Avalokitésvara, o Mahassátva Bodhissátua, e toda aquela assembléia, junto com o inteiro universo com seus deuses, seres humanos, assuras e gandharvas regozijaram-se e louvaram todos as palavras do Abençoado.

PELA VERDADE DA EXISTÊNDIA DAS TRÊS JÓIAS POSSAM TODOS OS OBSTÁCULOS E ADVERSIDADES SEREM SUPERADOS! QUE DEIXEM DE EXISTIR!(bate-se palma)


QUE SEJAM PACIFICADOS!(bate-se palma)


QUE SEJAM COMPLETAMENTE PACIFICADOS!(bate-se palma)


QUE AS HOSTES DOS OITENTA MIL OBSTÁCULOS SEJAM PACIFICADOS! QUE ESTEJAMOS TODOS AFASTADOS DAS CONDIÇÕES DESFAVORÁVEIS AO DHARMA E QUE POSSAMOS NOS APROXIMAR DE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE CONDUZAM VERDADEIRAMENTE AO DHARMA! QUE TUDO SEJA AUSPICIOSO, QUE TODOS NÓS SEJAMOS FELIZES, QUE PAIRE AQUI O BEM-ESTAR AGORA!






II - Prajnaparamita, a Perfeição da Sabedoria






[Segundo o buddhismo Mahayana,] o Prajnaparamita foi ensinado pela primeira vez pelo Buddha no Pico dos Abutres, próximo a Rajgir, no curso do que veio a ser conhecido como o Segundo Giro da Roda do Dharma. Após dar os ensinamentos relacionados ao sofrimento, às suas causas, à cessação e ao caminho da liberação, o Buddha ensinou o significado último do Dharma, a vacuidade de existência inerente de todos os fenômenos. Este ensinamento encontra sua expressão mais concisa no famoso Sutra do Coração.
Este sutra toma a forma de um diálogo entre Avalokiteshvara e Shariputra aos pés do Buddha. Avalokiteshvara aplica o raciocínio da negação para mostrar a verdade absoluta a Shariputra. A forma deste raciocínio apresenta certas características análogas à tradição escolástica da teologia negativa do cristianismo oriental. É por definição impossível expressar o inefável, o que está além da expressão, e o mesmo é verdadeiro para a verdade absoluta, que está além das palavras e dos conceitos. O máximo que se pode expressar é o que ela não é, pela exclusão: "Assim, Shariputra, na vacuidade não há forma, nem sensação, [...] nem sofrimento, [...] nem cessação [do sofrimento], [...] nem atingimento nem não-atingimento."
O termo vacuidade não carrega aqui qualquer conotação de vazio ou nada absolutos. Deve ser entendido como o estado da mente naturalmente aberto e sereno. Assim, afirmar a vacuidade dos fenômenos não significa, de qualquer modo, que eles não existem da mesma forma não existe o chifre de uma lebre ou flores no céu. Ao invés disso, a vacuidade refere-se ao insight de que, no nível absoluto, tanto os fenômenos internos — as sensações, as percepções e o "eu" — quanto os externos — todas as aparências do mundo fenomênico — não têm existência real, apesar de eles aparecerem em diferentes formas. O Sutra do Coração sumaria isto da seguinte maneira: "A forma é a vacuidade, a vacuidade é a forma, a vacuidade não é outra senão a forma, a forma não é outra senão a vacuidade."
"A forma é a vacuidade" é o insight (sânsc. prajna) que desafia o materialismo e a concepção realista do universo ao estabelecer que os fenômenos — desde a menor partícula até a onisciência dos buddhas — definitivamente não possuem qualquer existência por si próprios. "A vacuidade é a forma" é a afirmação da verdade relativa e a rejeição das concepções niilistas. A vacuidade manifesta-se como forma em todas as coisas, tanto materiais quanto imaginárias, e não pode ser encontrada fora destes fenômenos. Deste modo, os bodhisattvas não podem cortar-se do mundo nem encontrar deleite individual na vacuidade, mas eles devem fazer uso dos meios hábeis (sânsc. upaya), tais como a bondade amorosa e a compaixão, a fim de realizar a verdade absoluta. Com esta meta, eles devem desenvolver as qualidades da generosidade, disciplina, paciência, perseverança e meditação, as cinco perfeições relativas que são os meios para realizar a sexta perfeição, a sabedoria ou insight (sânsc.prajna). "A vacuidade não é outra senão a forma, a forma não é outra senão a vacuidade" expressa a inter-relação destas seis perfeições, como é impossível separar a vacuidade das aparências, a união necessária da verdade relativa e da verdade absoluta aos princípios de exclusão e de contradição mútua. A vacuidade não nega ou refuta a forma, e do mesmo modo a forma não nega ou refuta a vacuidade.
A fim de ilustrar a vacuidade da existência inerente dos fenômenos, os comentadores muitas vezes usam o exemplo do sonho. De fato, as imagens do sonho são vazias de qualquer realidade material por si próprias, já que elas não são compostas por átomos ou partículas. Do mesmo modo, nem o sentido da visão ou a consciência visual, que estão na base da visão destas imagens, têm qualquer existência real. O fogo que se percebe em um sonho não existe realmente; ele simplesmente aparece como o jogo da mente e, nunca tendo existido, também não podem perecer. Por isso, o nível de existência das imagens do sonho nada mais é que uma convenção, um termo aplicado para definir a experiência mental. Não se pode afirmar que os sonhos não existem, pois na consciência do sonhador eles produzem emoções, sofrimento ou alegria, lágrimas ou riso. Nem se pode afirmar que eles realmente existem, pois eles são vazios de qualquer realidade intrínseca por si mesmos, fora da consciência que os criou no primeiro lugar. Do mesmo modo, de acordo com o Mahayana, os fenômenos parecem existir, mas na realidade a sua essência é a vacuidade. Eles são como uma miragem ou uma ilusão criada por um mágico.
A escola de pensamento que articula esta visão é chamada Caminho do Meio (sânsc. Madhyamaka) porque estabelece que os fenômenos não são nem existentes ("a forma é a vacuidade"), nem não-existentes ("a vacuidade é a forma"), nem qualquer outra combinação destes dois extremos. Ela portanto situa-se no meio, entre os pontos de vista eternalista e niilista, insistindo sobre a impossibilidade de separar as duas verdades (relativa e absoluta), de separar samsara e nirvana. Portanto, a natureza de todos os fenômenos não pode ser reduzida a conceitos, por mais profundos que sejam. Está além de toda conceitualização. Esta doutrina Madhyamaka foi sistematizada por Nagarjuna (século II) em seu Tratado Fundamental sobre o Caminho do Meio chamado "Sabedoria", mais tarde comentado por Chandrakirti (século VI) em seu Entrando no Caminho do Meio — Um Comentário ao "Tratado Fundamental sobre o Caminho do Meio".





(Edou, Jérôme. Machig Labdrön and the Foundations of Chöd.Ithaca: Snow Lion, 1996. Pág. 25-27.)



III- DIÁLOGO DE SUA SANTIDADE O DALAI LAMA

com Jean-Claude Carrière.


Jean-Claude Carriere






Publicado no: Mandarim, 1996."A força do budismo" S. Paulo



As escrituras fundamentais de Mahayana constituem uma centena de volumes. Uma parte dessas Escrituras leva o nome de Prajnaparamita. A prajna é essa qualidade que temos dentro de nós, geralmente adormecida, mas que podemos despertar. Essa palavra é geralmente traduzida por 'sabedoria', o que parece incorreto. Trata-se, antes, de uma predisposição à sabedoria e ao despertar, que podemos pôr em prática ou deixar adormecida. A Prajnaparamita é a consumação da prajna, a chegada ao fim do caminho. Uma frase, atribuída ao próprio Buda e chamada de 'a grande libertação, o mantra sem igual', diz o seguinte: "A forma é só vazio, o vazio é só forma Ou então, segundo outras traduções: "Onde há forma, há vazio e onde há vazio há forma".

Pergunto a meu anfitrião [O DALAI LAMA]: - Posso esperar, um dia, compreender esse mantra?


Primeiro, ele ri abertamente. Depois reconhece que o vazio, sunyata, dentre as quatro noções budistas fundamentais (sendo as outras três a impermanência, a ausência de ego e o sofrimento), é com certeza a mais misteriosa, a mais difícil de ser percebida. O que é então esse imenso edifício de experiência do pensamento que na verdade só se abriria sobre uma ausência de substância? Quais seriam os fundamentos desse edifício e do espírito que o construiu? Se o vazio é a única realidade que não é ilusória e se esquiva da rede de Maya, quem estendeu essa rede? Pode-se viver na vertigem? Imaginar um sonho sem sonhador?


O Dalai-Lama responde-me primeiro que o vazio é uma noção científica:


-Você mesmo o disse. Somos vazios, a matéria de que somos compostos é, por assim dizer, vazia. -É verdade, o núcleo de cada átomo, se é que se pode ainda falar de dimensão nessa escala, é ínfimo em relação ao próprio átomo. Um grão de arroz, já o dissemos, sobre o domo da basílica de São Pedro. A mesma coisa para o universo. Se toda matéria nuclear dos bilhões e bilhões de galáxias se dispersassem na extensão do universo, a densidade dessa matéria seria reduzida a quase nada. Algumas partículas por metro cúbico. Imperceptível.


-Você percebe bem as coisas.


-E suponho que a concepção budista do vazio não tivesse para Nagarjuna um ponto de partida científico?


-E por que não? Existem vários caminhos que levam ao conhecimento. E algumas vezes eles se encontram.


-Pode-se falar do vazio sem falar no vazio?


-Penso que sim. Primeiro é preciso especificar que a palavra 'vazio' não quer dizer 'nada'. Alguns comentaristas acusaram sem motivo o budismo de 'niilismo'. O mundo, do qual fazemos parte, não é um ser em si nem um conjunto de seres. Ele é uma fluidez. Uma corrente de estados. Isso não significa que ele não seja nada.


-Dizer 'eu não sou" não significa 'eu sou nada'. -De forma alguma. E isso pode ser explicado dessa forma: tudo depende de tudo. Nada existe em separado. Penso, aliás, que nesse ponto a ciência contemporânea anda no mesmo caminho que nós. Acredito, também, que sim. Ela põe ênfase mais freqüentemente nas relações entre os fenômenos do que nos próprios fenômenos. Dizemos o seguinte: por causa de todas as influências que elas recebem, as coisas aparecem, existem e desaparecem. Incessantemente. Em um fluxo contínuo. Mas elas nunca existem por si mesmas. Esta mão, por exemplo... Ele abre sua mão, a palma para cima, e a coloca sob meus olhos. Ela dá impressão de solidez, de coerência. Ela oferece aos olhos uma forma precisa. Ela tem toda a aparência de uma entidade.

Ele toca agora as diferentes partes de sua mão, a palma, depois os dedos, depois as falanges. Mas se eu me perguntar seriamente, se eu me pergunto: no fundo, o que é minha mão? É esse dedo? É essa parte do dedo? Não, eu só posso responder: meu dedo é meu dedo, ele não é minha mão. Mas, por sua vez, será ele um conjunto de falanges? Não, já que eu posso decompô-lo em falanges e apenas estudar, olhar, nomear cada uma de suas falanges. Aliás, por que parar nas falanges? Evidente! Posso descer cada vez mais profundamente no interior dessa matéria que aí está sem nunca encontrar minha mão realmente. Entretanto, você usa sua mão.

Ela existe para isso. E me satisfaz muito bem. A essa combinação de diversos elementos (em que cada um se decompõe e todos se juntam) chamamos 'uma mão'. É muito simples. Assim a designamos por um trabalho familiar ao espírito. É o que chamamos de realidade relativa.


- Que depende de outros elementos que não ela mesma.


- Exatamente. Pois nada existe sem uma causa. A natureza profunda desta mão é pertencer a toda uma rede de influências, das quais nenhuma é durável.


- Por isso essa mão deixará um dia de ser sua mão.


- Ela o terá sido apenas por um momento muito breve, se comparada à idade do mundo. Um momento fugidio, quase imperceptível. Estamos todos persuadidos de vivermos independentemente uns dos outros, desta mão ou desta folha de papel terem uma existência separada.


- Nosso espírito tem necessidade de separar e de nomear. Ele não consegue se contentar com uma visão complexa e confusa do mundo.


- Visão esta que se deve entretanto admitir e tentar atingir. Sem isso, estamos escolhendo permanecer na ilusão. Se cada ser vivo, se cada objeto gozasse de uma existência independente, nenhum outro fator poderia influenciá-lo. As relações de que você fala não existiriam. Ora, vemos que essas influências, essas relações são múltiplas e incessantes.


- É essa ausência de existência independente, então, que o senhor chama de 'vazio'? - Precisamente. A forma é portanto vazia, isto é, não-separada, não-independente. Essa forma depende de outros múltiplos fatores. Ela é a realidade relativa.


- E por que o vazio é forma? - Porque toda forma se desenvolve nesse vazio, nessa ausência de existência independente. O vazio só existe para conduzir a forma. Não pode ser diferente. O vazio sem a forma não tem sentido. Assim a folha de papel era vazio. Vazio, isto é, cheia. Cheia de todo o cosmo.


Na tradição tântrica do Vajrayana, do 'Veículo de Diamante', vê-se até desaparecer a distinção entre realidade absoluta e realidade relativa, entre o 'não-nascido' e o 'nascido' ou, se preferirmos, a essência e a existência. A verdade definitiva e intransponível pode nos ser dada no mundo dos sentidos pela técnica chamada de 'visão pura'. Ela aproxima o tathata, a evidência. Os fenômenos deixam de aparecer como fenômenos, na verdade o problema da ignorância e da distinção não mais se coloca, tudo nos é dado por essa percepção superior, não há nada para se buscar além disso. A unidade se impõe. Ela é brilhante. Nada separa então o vazio e a luz. Chegamos - e isso é quase inevitável - a essa noção delicada de 'virtualidade', que desde uma dezena de anos se introduz e até mesmo se instala pouco a pouco na expressão científica, ao mesmo tempo em que invade as novas fábricas de imagens. Recusando-se a admitir a criação do mundo a partir de nada, ex nihilo, pois nesse caso o físico não teria estritamente nada a dizer diante da ausência de matéria, certos cientistas contemporâneos dentre os mais hábeis, como Michel Cassé, falam de uma "coragem diante do zero"(1) e simplesmente recusam o nada. Eles distinguem claramente o vazio metafísico, ou nada, pura concepção do espírito, do vazio quântico que eles vêem povoado por uma infinidade de virtualidades. Esse vazio não é um nada. Ele supõe a existência de um campo, mas esse campo nos foge à compreensão, ele não é detectável.


Podemos ver seus efeitos, pois ele liga entre si as partículas reais, e ele nos parece até agitado, mas não podemos observá-lo. É por isso que o chamamos de vazio, quando na verdade ele é pleno. Pleno de virtualidades da matéria. Para alcançar a existência aparente, as conjunções de partículas virtuais aguardam apenas uma energização e o próprio fato de observá-las pode ter um papel determinante. Estamos aqui muito perto da ausência de dualidade - entre o observador e o observado -, tantas vezes repetida na história do hinduísmo e do budismo. "Para sempre inseparável da coisa que se vê está a coisa que é vista", dizia assim, no século XVI, Kun Khyèn Péma Karpo. Michel Cassé, astrofísico, chega até a dizer que "o conhecimento do estado de vazio tornou-se uma condição necessária para a edificação de um modelo coerente de natureza". Ele vê esse vazio como uma coisa plena e com um destino" e o coloca "no cume cósmico e lógico do discurso sobre as origens". Ele até escreve, perto do final de seu livro: "Estar no vazio e estar em casa Nenhum professor budista encontraria alguma observação a respeito. No momento, são bastante raros os físicos que se aventuram nesse campo. A maioria deles prefere se ater à matéria tal qual ela nos é apresentada. E essa matéria parece manter aos olhos deles seu sentido tradicional: algo de sólido, que pesa, em suma, algo pleno. O Big-Bang lhes parece o limite estrito para além do qual nada pode ser dito, nem pensado, nem imaginado. É verdade que é difícil considerar a matéria como vazio, como se tivesse aos poucos, depois de séculos de observação, praticamente se desmaterializado. É aqui, talvez, que a maleabilidade do budismo pode nos ajudar a aceitar o que nós mesmos descobrimos, e que as palavras comuns nos impedem de dizer. Entretanto, o Dalai-Lama me faz observar: - Quando designamos as coisas, podemos dizer que elas dependem de nosso espírito. Assim, tanto o Big-Bang como a matéria talvez dependam de nosso espírito. E até mesmo de uma necessidade de nosso espírito. Assim, portanto, ele faz parte da realidade relativa. Hoje o chamamos Big-Bang. Amanhã lhe daremos sem dúvida outro nome. Não nos deixemos aprisionar por conceitos formulados por palavras. Ambos são efêmeros. Aceitemos o vazio com um sorriso e, já que tudo depende de nosso espírito, confiemos em nosso espírito. Ele me lembra que essa confiança, evidentemente, não deve ser cega. O budismo dispõe a esse respeito de um imenso arsenal de precauções para defender o espírito contra o espírito e para conduzi-lo a seu próprio cume. A caminhada suprema leva ao desaparecimento desse espírito, dos demônios, do próprio Buda. O vazio é o grande objetivo. Quando a última verdade foi alcançada, Milarepa cantou:

Não há meditador,
Não há objeto a ser meditado,
Não há sinais de realização,
Não há etapas nem caminho a percorrer,
Não há sabedoria última,
Não há corpo de Buda.

Também o nirvana não existe. Tudo isso são apenas palavras, modos de dizer. É inútil pretender começar por esse desaparecimento idealisticamente desejado, esse acesso à plenitude do vazio. Primeiro, o proclamaríamos, ele só nos levaria ao desencorajamento solitário, fruto do niilismo, ou à violência desordenada do egoísmo: já que nada existe, já que eu não sou controlado por nenhuma autoridade superior, por que não me abandonar a meus instintos mais monopolizadores?

De uma coisa não se pode duvidar, diz o Dalai-Lama para terminar: temos todos dentro de nós mesmos uma qualidade que apenas pede para ser revelada. Ela se chama prajna. Podemos tudo negar, salvo essa possibilidade que temos de sermos melhores.

- Reflitamos simplesmente sobre isso.
Ele toma minhas mãos e as segura demoradamente entre as suas.
Ele me olha sorrindo.
Como toda conversa, esta nos conduz ao silêncio.

Publicado no: Mandarim, 1996."A força do budismo" S. Paulo









terça-feira, 25 de março de 2008

Atisha


Atisha foi um grande erudito e mestre de meditação indiano, abade do monastério budista Vikramashila na época em que o budismo mahayana florescia na Índia. Quando foi para o Tibet, ajudou a restabelecer o budismo no país.
O mestre viveu entre 982 e 1054, sua linhagem ficou conhecida Kadampa. Lâmpada sobre o caminho para alcançar a iluminação está entre os seus maiores ensinamentos e foi incluido no livro Iluminando o Caminho do Dalai Lama. De suas inúmeras pérolas reproduzo o famoso diálogo que teve com um de seus mais importantes discípulos, Dromtönpa.

Dromtönpa: Qual é o ensinamento absoluto?

Atisha: De todos os ensinamentos, o absoluto é a vacuidade, da qual a compaixão é a própria essência. É como um remédio muito poderoso, uma panacéia que pode curar cada doença do mundo. E assim como esse poderoso remédio, a realização da verdade da vacuidade — a natureza da realidade — é o remédio para todas as diferentes emoções negativas.

Dromtönpa: Então por que tantas pessoas que afirmam ter realizado a vacuidade não têm menos apego e ódio?

Atisha: Porque a realização delas está apenas nas palavras. Se elas realmente tivessem entendido o verdadeiro significado da vacuidade, os seus pensamentos, palavras a ações seriam tão suaves quanto caminhar sobre um pano de algodão ou como a sopa de tsampa com manteiga. O mestre Aryadeva disse que até mesmo querer saber se todas as coisas são vazias por natureza ou não faria o samsara cair em pedaços. A verdadeira realização da vacuidade, portanto, é a panacéia última que inclui todos os elementos do caminho.

Dromtönpa: Como cada elemento do caminho pode estar incluído dentro da realização da vacuidade?

Atisha:
Todos os elementos do caminho estão contidos nas seis perfeições transcendentes. Agora, se você verdadeiramente realizar a vacuidade, você se tornará livre do apego. Se você não sentir desejo ou apego por qualquer coisa de dentro ou de fora, você sempre terá a generosidade transcendente. Estando livre do desejo e do apego, você nunca será maculado pelas ações negativas e sempre terá a disciplina transcendente. Sem quaisquer conceitos de "eu" e "meu, você não terá raiva, então sempre terá a paciência transcendente. Com sua mente verdadeiramente feliz pela realização da vacuidade, você sempre terá a diligência transcendente. Sendo livre da distração, que vem do apego às coisas como sendo sólidas, você sempre terá a concentração transcendente. Com você não conceitualiza qualquer coisa em termos de sujeito, objeto e ação, você sempre terá a sabedoria transcendente.

Dromtönpa: Aqueles que realizam a verdade tornam-se buddhas simplesmente através da visão da vacuidade e da meditação?

Atisha:
De tudo que percebemos como formas e sons, nada há que não surja da mente. Realizar que a mente é a consciência indivisível da vacuidade é a visão. Manter esta realização na mente em todos os momentos e nunca se distrair dela é a meditação. Praticar as duas acumulações como sendo uma ilusão mágica dentro deste estado é a ação. Se você fizer uma experiência viva desta prática, ela continuará em seus sonhos. Se ela vier no estado dos sonhos, ela virá no momento da morte. E se ela vier no momento da morte, ela virá no estado intermediário entre a morte e o renascimento. Se ela estiver presente no estado intermediário, você pode estar certo de que atingirá a realização suprema.


por Patrul Rinpoche em The words of my perfect teacher)



Você tem que encontrar o que você ama

Steve Jobs





Veja a íntegra do discurso de Steve Jobs, o criador da Apple, para os formandos de Stanford (2005) :




Estou honrado de estar aqui, na formatura de uma das melhores universidades do mundo. Eu nunca me formei na universidade. Que a verdade seja seja dita, isso é o mais perto que eu já cheguei de uma cerimônia de formatura. Hoje, eu gostaria de contar a vocês três histórias da minha vida. E é isso. Nada demais. Apenas três histórias.



A primeira história é sobre ligar os pontos


Eu abandonei o Reed College depois de seis meses, mas fiquei enrolando por mais dezoito meses antes de realmente abandonar a escola. E por que eu a abandonei? Tudo começou antes de eu nascer. Minha mãe biológica era uma jovem universitária solteira que decidiu me dar para a adoção. Ela queria muito que eu fosse adotado por pessoas com curso superior. Tudo estava armado para que eu fosse adotado no nascimento por um advogado e sua esposa. Mas, quando eu apareci, eles decidiram que queriam mesmo uma menina. Então meus pais, que estavam em uma lista de espera, receberam uma ligação no meio da noite com uma pergunta: 'Apareceu um garoto. Vocês o querem?' Eles disseram: 'É claro.' Minha mãe biológica descobriu mais tarde que a minha mãe nunca tinha se formado na faculdade e que o meu pai nunca tinha completado o ensino médio. Ela se recusou a assinar os papéis da adoção. Ela só aceitou meses mais tarde quando os meus pais prometeram que algum dia eu iria para a faculdade. E, 17 anos mais tarde, eu fui para a faculdade. Mas, inocentemente escolhi uma faculdade que era quase tão cara quanto Stanford. E todas as economias dos meus pais, que eram da classe trabalhadora, estavam sendo usados para pagar as mensalidades. Depois de 6 meses, eu não podia ver valor naquilo. Eu não tinha idéia do que queria fazer na minha vida e menos idéia ainda de como a universidade poderia me ajudar naquela escolha. E lá estava eu gastando todo o dinheiro que meus pais tinham juntado durante toda a vida. E então decidi largar e acreditar que tudo ficaria OK. Foi muito assustador naquela época, mas olhando para trás foi uma das melhores decisões que já fiz. No minuto em que larguei, eu pude parar de assistir às matérias obrigatórias que não me interessavam e comecei a frequentar aquelas que pareciam interessantes. Não foi tudo assim romântico. Eu não tinha um quarto no dormitório e por isso eu dormia no chão do quarto de amigos. Eu recolhia garrafas de Coca-Cola para ganhar 5 centavos, com os quais eu comprava comida. Eu andava 11 quilômetros pela cidade todo domingo à noite para ter uma boa refeição no templo hare-krishna. Eu amava aquilo. Muito do que descobri naquele época, guiado pela minha curiosidade e intuição, mostrou-se mais tarde ser de uma importância sem preço.Vou dar um exemplo: o Reed College oferecia naquela época a melhor formação de caligrafia do país. Em todo o campus, cada poster e cada etiqueta de gaveta eram escritas com uma bela letra de mão. Como eu tinha largado o curso e não precisava frequentar as aulas normais, decidi assistir as aulas de caligrafia. Aprendi sobre fontes com serifa e sem serifa, sobre variar a quantidade de espaço entre diferentes combinações de letras, sobre o que torna uma tipografia boa. Aquilo era bonito, histórico e artisticamente sutil de uma maneira que a ciência não pode entender. E eu achei aquilo tudo fascinante. Nada daquilo tinha qualquer aplicação prática para a minha vida. Mas 10 anos mais tarde, quando estávamos criando o primeiro computador Macintosh, tudo voltou. E nós colocamos tudo aquilo no Mac. Foi o primeiro computador com tipografia bonita. Se eu nunca tivesse deixado aquele curso na faculdade, o Mac nunca teria tido as fontes múltiplas ou proporcionalmente espaçadas. E considerando que o Windows simplesmente copiou o Mac, é bem provável que nenhum computador as tivesse. Se eu nunca tivesse largado o curso, nunca teria frequentado essas aulas de caligrafia e os computadores poderiam não ter a maravilhosa caligrafia que eles têm. É claro que era impossível conectar esses fatos olhando para a frente quando eu estava na faculdade. Mas aquilo ficou muito, muito claro olhando para trás 10 anos depois.
De novo, você não consegue conectar os fatos olhando para frente. Você só os conecta quando olha para trás. Então tem que acreditar que, de alguma forma, eles vão se conectar no futuro. Você tem que acreditar em alguma coisa - sua garra, destino, vida, karma ou o que quer que seja. Essa maneira de encarar a vida nunca me decepcionou e tem feito toda a diferença para mim.



Minha segunda história é sobre amor e perda.

Eu tive sorte porque descobri bem cedo o que queria fazer na minha vida. Woz e eu começamos a Apple na garagem dos meus pais quando eu tinha 20 anos. Trabalhamos duro e, em 10 anos, a Apple se transformou em uma empresa de 2 bilhões de dólares e mais de 4 mil empregados. Um ano antes, tínhamos acabado de lançar nossa maior criação - o Macintosh - e eu tinha 30 anos. E aí fui demitido. Como é possível ser demitido da empresa que você criou? Bem, quando a Apple cresceu, contratamos alguém para dirigir a companhia. No primeiro ano, tudo deu certo, mas com o tempo nossas visões de futuro começaram a divergir. Quando isso aconteceu, o conselho de diretores ficou do lado dele. O que tinha sido o foco de toda a minha vida adulta tinha ido embora e isso foi devastador. Fiquei sem saber o que fazer por alguns meses. Senti que tinha decepcionado a geração anterior de empreendedores. Que tinha deixado cair o bastão no momento em que ele estava sendo passado para mim. Eu encontrei David Peckard e Bob Noyce e tentei me desculpar por ter estragado tudo daquela maneira. Foi um fracasso público e eu até mesmo pensei em deixar o Vale [do Silício]. Mas, lentamente, eu comecei a me dar conta de que eu ainda amava o que fazia. Foi quando decidi começar de novo. Não enxerguei isso na época, mas ser demitido da Apple foi a melhor coisa que podia ter acontecido para mim. O peso de ser bem sucedido foi substituído pela leveza de ser de novo um iniciante, com menos certezas sobre tudo. Isso me deu liberdade para começar um dos períodos mais criativos da minha vida. Durante os cinco anos seguintes, criei uma companhia chamada NeXT, outra companhia chamada Pixar e me apaixonei por uma mulher maravilhosa que se tornou minha esposa. Pixar fez o primeiro filme animado por computador, Toy Story, e é o estúdio de animação mais bem sucedido do mundo. Em uma inacreditável guinada de eventos, a Apple comprou a NeXT, eu voltei para a empresa e a tecnologia que desenvolvemos nela está no coração do atual renascimento da Apple. E Lorene e eu temos uma família maravilhosa.
Tenho certeza de que nada disso teria acontecido se eu não tivesse sido demitido da Apple. Foi um remédio horrível, mas eu entendo que o paciente precisava. Às vezes, a vida bate com um tijolo na sua cabeça. Não perca a fé. Estou convencido de que a única coisa que me permitiu seguir adiante foi o meu amor pelo que fazia. Você tem que descobrir o que você ama. Isso é verdadeiro tanto para o seu trabalho quanto para com as pessoas que você ama. Seu trabalho vai preencher uma parte grande da sua vida, e a única maneira de ficar realmente satisfeito é fazer o que você acredita ser um ótimo trabalho. E a única maneira de fazer um excelente trabalho é amar o que você faz. Se você ainda não encontrou o que é, continue procurando. Não sossegue. Assim como todos os assuntos do coração, você saberá quando encontrar. E, como em qualquer grande relacionamento, só fica melhor e melhor à medida que os anos passam. Então continue procurando até você achar. Não sossegue.



Minha terceira história é sobre morte.


Quando eu tinha 17 anos, li uma frase que era algo assim: 'Se você viver cada dia como se fosse o último, um dia ele realmente será o último'. Aquilo me impressionou, e desde então, nos últimos 33 anos, eu olho para mim mesmo no espelho toda manhã e pergunto: 'Se hoje fosse o meu último dia, eu gostaria de fazer o que farei hoje?' E se a resposta é 'não' por muitos dias seguidos, sei que preciso mudar alguma coisa.
Lembrar que estarei morto em breve é a ferramenta mais importante que já encontrei para me ajudar a tomar grandes decisões. Porque quase tudo - expectativas externas, orgulho, medo de passar vergonha ou falhar - caem diante da morte, deixando apenas o que é apenas importante. Não há razão para não seguir o seu coração. Lembrar que você vai morrer é a melhor maneira que eu conheço para evitar a armadilha de pensar que você tem algo a perder. Você já está nu. Não há razão para não seguir seu coração.
Há um ano, eu fui diagnosticado com câncer. Era 7h30 da manhã e eu tinha uma imagem que mostrava claramente um tumor no pâncreas. Eu nem sabia o que era um pâncreas. Os médicos me disseram que aquilo era certamente um tipo de câncer incurável, e que eu não deveria esperar viver mais de 3 a 6 semanas. Meu médico me aconselhou a ir para casa e arrumar minhas coisas - que é o código dos médicos para 'preparar para morrer'. Significa tentar dizer às suas crianças em alguns meses tudo aquilo que você pensou ter os próximos 10 anos para dizer. Significa dizer seu adeus. Eu vivi com aquele diagnóstico o dia inteiro. Depois, à tarde, eu fiz uma biópsia, em que eles enfiaram um endoscópio pela minha garganta abaixo, através do meu estômago e pelos intestinos. Colocaram uma agulha no meu pâncreas e tiraram algumas células do tumor. Eu estava sedado, mas minha mulher, que estava lá, contou que quando os médicos viram as células em um microscópio, começaram a chorar. Era uma forma muito rara de câncer pancreático que podia ser curada com cirurgia. Eu operei e estou bem. Isso foi o mais perto que eu estive de encarar a morte e eu espero que seja o mais perto que vou ficar pelas próximas décadas. Tendo passado por isso, posso agora dizer a vocês, com um pouco mais de certeza do que quando a morte era um conceito apenas abstrato: ninguém quer morrer. Até mesmo as pessoas que querem ir para o céu não querem morrer para chegar lá. Ainda assim, a morte é o destino que todos nós compartilhamos. Ninguém nunca conseguiu escapar. E assim é como deve ser, porque a morte é muito provavelmente a principal invenção da vida. É o agente de mudança da vida. Ela limpa o velho para abrir caminho para o novo. Nesse momento, o novo é você. Mas algum dia, não muito distante, você gradualmente se tornará um velho e será varrido. Desculpa ser tão dramático, mas isso é a verdade.O seu tempo é limitado, então não o gaste vivendo a vida de um outro alguém. Não fique preso pelos dogmas, que é viver com os resultados da vida de outras pessoas. Não deixe que o barulho da opinião dos outros cale a sua própria voz interior. E o mais importante: tenha coragem de seguir o seu próprio coração e a sua intuição. Eles de alguma maneira já sabem o que você realmente quer se tornar. Todo o resto é secundário. Quando eu era pequeno, uma das bíblias da minha geração era o Whole Earth Catalog. Foi criado por um sujeito chamado Stewart Brand em Menlo Park, não muito longe daqui. Ele o trouxe à vida com seu toque poético. Isso foi no final dos anos 60, antes dos computadores e dos programas de paginação. Então tudo era feito com máquinas de escrever, tesouras e câmeras Polaroid. Era como o Google em forma de livro, 35 anos antes do Google aparecer. Era idealista e cheio de boas ferramentas e noções. Stewart e sua equipe publicaram várias edições de The Whole Earth Catalog e, quando ele já tinha cumprido sua missão, eles lançaram uma edição final. Isso foi em meados de 70 e eu tinha a idade de vocês. Na contracapa havia uma fotografia de uma estrada de interior ensolarada, daquele tipo onde você poderia se achar pedindo carona se fosse aventureiro. Abaixo, estavam as palavras: 'Continue com fome, continue tolo'. Foi a mensagem de despedida deles. Continue com fome. Continue tolo. E eu sempre desejei isso para mim mesmo. E agora, quando vocês se formam e começam de novo, eu desejo isso para vocês. Continuem com fome. Continuem tolos. Obrigado.


(Extraído de: http://blogdochorik.blogspot.com/)

segunda-feira, 24 de março de 2008

O Landré


Mosteiro Sakya




O QUE É O LANDRÉ


O Landré é o mais precioso e secreto ensinamento da tradição Sakya. Divide-se primeiramente em "Visão Tríplice" e "Tantra Tríplice" que é a parte secreta, relacionada com o Tantra de Sri Hevajra. O Landré é talvez um dos melhores resumos de todo o ensinamento budista. Costuma-se dizer que a pessoa só precisa fazer uma coisa na vida: um Landré e sua prática. O Landré culmina com as transmissões de Hevajra.



Diz o Lama Choedak que "a Iniciação na Mandala de Hevajra, Rei dos Tantras, durante muito tempo esteve associada à conversão do Imperador Mongol Kublai Khan ao Budismo e aos primeiros Governantes do Tibet até o presente 14° Dalai Lama.



Devemos o Landré ao trabalho do sábio tibetano Drogmi Lotsawa (993-1074), que o introduziu no Tibet. Os suficientemente afortunados para receber este magnífico ensinamento conhecerão extraordinária felicidade espiritual e material.



O Landré se inicia com os ensinamentos da Tríplice Visão, que compreende um resumo sistematizado da parte Theravada (os Sutras) e da parte Mahayana. Seguem-se os votos de bodissátua. Depois disso, há as Iniciações de Causa Hevajra e do Caminho Hevajra, e os Ensinamentos do Tríplice Tantra.



Devido à pureza desta linhagem, diz Lama Choedak, muitos proeminentes mestres de todas as linhagens, inclusive Marpá, Milarepa, Logchen Rabjampa e Thongkhapa foram praticantes deste Tantra.



No passado, monges das mais distantes partes do Tibet, Ladakh e Mustang tinham de viajar duante muitos meses a pé para Sákya, Ngor, Nalenda ou Yarlung Tashi Chor-de a fim de receber o Landré.



O Tantra de Hevajra foi recebido no 7° Século de nossa Era pelo grande iogue indiano Birwapa (ou Virupa), que fundou esta linhagem de ensinamentos que hoje constitue o Landré. Virupa proferiu as instruções conhecidas como Vajra Versos , que são codificadas e de difícil compreensão. A partir daí, a transmissão (ou seja o Tantra, pois tantra significa "transmissão") deste ensinamento passou a ser realizada oral e secretamente de mestre para discípulo escolhido ao longo dos Séculos até os nossos dias pela chamada escola Sakya. O principal detentor desta transmissão hoje é Sua Santidade Sakya Trizin.


SS. Sakya Trizen, SS. o Dalai Lama

e SS. o 17 Karmapa


O Landré é um compêndio de iluminação. Ele é dado num período de seis semanas (o Landré Lob Shé) ou 28 dias (o Sob Ché). Mas o Landré à vezes dura vários anos. O Landré Lob Shé é o Incomum. O Landré Sob Ché é o chamado comum. São ligeiramente diferentes. Algumas explicações são mais detalhadas no Lob Shé, e neste se espera que o discípulo consiga algumas realizações.



O LanDré é proferido de manhã várias vezes com explicações e repetido à tarde pelo filho de Sua Santidade e seu sucessor no trono de Sakya, Dhungsay Ratna Vajra Rinpoche. À noite há nova sessão com perguntas e respostas.



Desse modo, de 6 da manhã às 10 da noite todos os dias, o LanDré se constitue no mais intensivo curso de budismo para os três níveis: os iniciantes, os médios e os avançados discípulos. Todos três tipos colhem iguais benefícios e se preparam para a sua prática diária.




quarta-feira, 19 de março de 2008

Apresentando Richard Rorty...

Richard Rorty


A esperança está na imaginação do terceiro mundo
(R. Rorty)



«Rorty foi um crítico ferocíssimo das verdades absolutas e exteriores ao discurso, dedicou a vida a um desporto muito saudável: detonar toda e qualquer metafísica.»


Rorty é considerado um dos pensadores mais importantes da filosofia contemporânea. Nasceu em 1931 em Nova Iorque numa família com simpatias pelo trotskismo ( o pai era um militante trotskista) e faleceu aos 75 anos no passado dia 8 de Junho em Palo Alto, Califórnia. Era um filósofo irónico e provocador que investia contra as certezas e as verdades absolutas. Os seus livros «A filosofia e o espelho da natureza» (Philosophy and the Mirror of Nature” ) e «Contingência, Ironia e Solidariedade» são as suas obras mais marcantes e nelas são plasmadas as teses do neo-pragmatismo norte-americano, também designado por pós-empirista.




Muito criticado quer pela direita quer pela esquerda, quiseram-no fazer dele um teórico do liberalismo. Mas a verdade é que Rorty era um activista ferrenho contra os chefes, as oligarquias e as grandes empresas, e não escondia a sua simpatia pela esquerda libertária que enfrenta o poder estabelecido. Contra a velha esquerda e nova esquerda Rorty era igual a ele mesmo ao defender uma «Nova Velha Esquerda» . Nos últimos anos, o anti-filósofo surpreendeu os críticos quando começou a intervir cada vez mais em política. Assim, num ensaio de 1997 apelou às universidades para regressarem a uma política de esquerda e "que, no essencial, visava impedir que os ricos desvalorizem o resto da população."

As suas principais influências derivam, por um lado, da tradição pragmática norte-americana ( Dewey, mas também William James, Peirce ) , por outro lado , do pós-nietscheanismo de um Wittgenstein e Heidegger, e recebe ainda, finalmente, as influências dos filósofos que desenvolveram as críticas ao essencialismo e ao representacionalismo como são os casos de Quine, Sellars e Davidson.



Professor de Filosofía nla Universidade de Princeton até 1983 acabou por renunciar à sua cátedra ao escolher ser professor de Humanidades na Universidade de Virginia, opção essa a que não foi alheia o seu anti-essencialismo e antifundamentalismo , e por meio dos quais Rorty ataca a filosofia como busca privilegiada das cauas primeiras, preferindo antes relacioná-la com a poesia, a arte e a crítica literária, com isso pretendendo dizer que se deve abandonar toda a pretensão ao conhecimento do Ser, da Verdade ou do Absoluto. Na sequência desta linha ele desmonta os pressupostos e as bases do conhecimento enquanto representação. Considera por isso ilegítima a pretensão da filosofia em arrogar-se em tribunal da cultura e da ciência, pelo que o filósofo não se encontra num pedestal nem em qualquer posição privilegiada. O filósofo irónico prefere a literatura e a poesia mais do que a redoma em que querem encerrar a filosofia. E via nisso não só o resgate da filosofia como um importante reforço da democracia.



(“He rescued philosophy from its analytic constraints” and returned it “to core concerns of how we as a people, a country and humanity live in a political community.”)



Para ele a verdade nunca é exterior, separada das nossas crenças. Ela é imanente à pragmática de cada um, ou seja, na teoria epistemológica dele, o conhecimento advinha de uma prática social, isto é, de algo convencional, intrínseco ao discurso, acabando consequentemente por rejeitar o conceito de objetividade

O conceito de verdade como representação é então substituido pelo acordo não forçado dentro de uma dade comunidade endagante, algo que confere protagonismo ao ser humano face à tirania dos factos e que permite a revisão contínua da «verdade» - em nome da qual se construiram tantos crimes – e que permite comprender afinal em que medida os vários ramos do saber não pasma de construções sociais. No fundo, a verdade é aquilo que os membros das comunidades de indagação decidem que seja.

Rorty é visto como o inimigo número 1 daquele personagem que ostenta a “carteira profissional” do filósofo , o filósofo engravatado numa cátedra académico e guardião das filosofias tradicionais. Aos olhos desse tipo de filósofo, o projecto de Rorty é anti-filosófico, uma tentativa destruir a filosofia. Tal personagem, o filósofo profissional, sente-se ofendido, pois Rorty considera um desejo pueril de infância e juventude querer reunir verdade e justiça numa visão unitária, num essencialismo totalitário como pretendem as várias variantes do platonismo




Num texto autobiográfico «Trotsky and the Wild Orchids», ele escreve:
“At 12, I knew that the point of being human was to spend one’s life fighting social injustice,” ( aos 12 anos soube que o importante na vida humana era lutar contra a injustiça social)

Pode-se ler uma entrevista com Rorty intitulada Against Bosses, Against Oligarchies em: www.prickly-paradigm.com/paradigm3.pdf

segunda-feira, 17 de março de 2008

1968: O ano que mudou o mundo











Em 2008, completam-se 40 anos de um momento central do século XX. Paris, San Francisco, Praga, Vietnã. Muitas mechas pegaram fogo ao mesmo tempo e uma geração de jovens se rebelou contra o modelo de sociedade burguesa. Sua moral repressiva se combatia com a libertação sexual, o prazer imediato das drogas, o rock and roll. Aquela rapaziada, longe de se envergonhar de sua imaturidade, dela tirou proveito. Gritava-se “a imaginação ao poder”. Mas, que imaginação?, e que poder? Aliados da luta operária, os “sessentaeoitistas” pertenciam em sua maioria às classes acomodadas. Negaram o consumo e acabaram sendo seus máximos aliados. Promoveram a revolução social a partir do superindividualismo. As contradições do Maio de 68 são numerosas. Mas de cada uma delas saltou uma faísca. E, reunidas, formam uma luz que continua iluminando o mundo quarenta anos depois.

Segue a íntegra do artigo de Vicente Verdú publicado no El País, 06-03-2008.


A tradução é do Cepat.




“Desejar a realidade está bem, realizar os desejos está melhor”. A consigna não deixava lugar a dúvidas, posto que a revolução de 1968 deixava sentir de longe o cheiro das emanações que caracterizam a orgia. A mesma significação medular se encerrava no “ser realistas, pedir o impossível”, ou, o que é o mesmo, que todo o sonhado se cumprisse e que qualquer bem chegasse às mãos pelo simples direito de existir. Não podia, pois, considerar-se estranho que os detratores observaram o movimento como um ataque dos filhos mimados. E obscenos.

O humor dionisíaco do Maio de 68 se opunha à ordem sexual que reinava na sociedade burguesa, e isso constituiu o núcleo basal da revolta. Uma revolta gerada não por forças maçônicas nem porque tivesse aumentado o preço do trigo ao modo da revolução de 1789, mas pela potência do orgon.

Todas as críticas aos fogos de artifício político de 68 não levam em conta sua fogueira fundamental, acesa desde o sexo, e graças, decisivamente, ao movimento de libertação da mulher. Sem o concurso da libertação feminina não teria sido possível chegar a nada, mas com sua cumplicidade caíram os tapumes do tablado tradicional.

O capitalismo, entretanto, se manteve elegantemente em pé. Mais ainda: o odiado capitalismo trocou sua antiga pele por um cetim de iriadas cores, e com isso obteve capacidade para respirar melhor e desenvolver-se como uma verbena de consumo agregada à festa do orgasmo, do antiautoritarismo, da aventura e do amor à revolução.

Daniel Bell pressagiava em As contradições culturais do capitalismo o conflito que poderia se criar dentro do sistema quando a ética do trabalho, derivada do ascetismo protestante, fosse assaltada por um modo de vida baseado no gozo imediato e no prazer consumista. Mas o conflito nunca criou nenhuma paralisia, mas, pelo contrário, um efeito acelerador.

Assim, o livro mais citado e célebre de Bell foi se convertendo em sua obra mais acertada quando é lida, aproximadamente, no sentido inverso. Contradições no sistema, sim; mas, em vez de romper o mecanismo, como acreditavam Bell e os do 68, registrou-se um superacidente de cuja energia o capitalismo saiu tão rejuvenescido como por um esfoliante de Clarins.

A semente do diabo

De fato, os anos sessenta constituem a década crucial em que o conspícuo capitalismo de produção, obscuro, austero e repressor, começou a girar para o cromatismo musical do capitalismo de consumo. As forças econômicas nem sempre se mostram com toda clareza, mas terminam sendo as que explicam substancialmente o sucesso ou o fracasso das idéias, além de ser parte de sua produção.





O Maio de 68 significou, para os analistas sóciopolíticos, a cristalização conjunta do mal-estar operário, do mal-estar estudantil na universidade e da explosão do reino juvenil que estava cozinhando nos últimos vinte anos.

Em 1925, Ortega y Gasset repetia em A desumanização da arte [São Paulo: Cortez, 1999] sua constatação, então assombrosa, de que a rapaziada, em vez de se envergonhar da sua imaturidade e se esforçar para adotar feições de velho para ganhar reputação, começavam a se ufanar da sua aparência.

O que significava esta translação ao look? Tinha a ver com o fato de que o velho havia perdido liderança, e seus pontos de vista não o levavam, entre os transtornos tecnológicos, artísticos e sociais, a atinar em suas observações, foram referidas ao cinema, à arte abstrata ou à serificação industrial. Os jovens representavam, de um lado, a barbárie de sempre, mas, de outro, a opção acaso de ópticas mais conformes com a novidade.

O Maio de 68 foi, quarenta anos mais tarde, o êxito da coorte de jovens que cavalgou sobre a crista dos espasmos ideológicos, artísticos e econômicos, enquanto ganhava a relevância que seus pais dilapidaram com o fracasso humano das duas guerras mundiais.

O crescente valor da matéria jovem significou, em síntese, um giro na hierarquia do valor. E também, imediatamente, de todos os valores. O protótipo burguês baseava sua moral em três virtudes capitais: a economia, a utilidade e a finalidade. O Maio de 68 e seu máximo motor emocional refutavam cada um desses princípios. Diante da economia e da contenção sexual, propugnava o gasto orgasmático (a energia do orgon teorizada por Wilhem Reich); diante da renúncia, o prazer sem espera.

A revolução “agora!” foi o grito matriz que hoje se refere a qualquer coisa, do eletrodoméstico até a casa, da viagem ao snack que se desfruta incansavelmente.

A contenção de gastos se revelou então equivalente à repressão (a economia de sexo feminino até o casamento), e a utilidade ou a finalidade se manifestaram como a marca desencantada do projeto e da ação. O Maio de 68, encarnado na orgia, impelia na outra direção.

Diante da contenção repressiva, o gasto; contra a calculada utilidade, a imediatez, e diante da finalidade, a aventura. A reunião destes três elementos desenha o triângulo da cultura de consumo, mas então não se sabia nem se tomava, em nenhum sentido, o consumo como um bem.

A expressão “sociedade do consumo” apareceu pela primeira vez nos anos 20 nos Estados Unidos e se popularizou durante os anos 50 e 60. Maldizer agora a sociedade de consumo resulta ser tão pesado como rançoso, mas na época era uma maneira jovem e anticapitalista de ser. Para José Luis Aranguren (Cuadernos para el Diálogo), o consumismo era “um reducionismo economicista da vida”, e para Jean Baudrillard, “constituía um sistema que se encontrava em estado de destruir as bases do ser humano” (A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995). Esta era a doutrina central.

Efetivamente, se os protagonistas do 68 apelavam para a criatividade, o prazer, o poder da imaginação, para uma libertação generalizada, faziam também um chamamento para acabar com a sociedade de consumo, que veio a ser depois, paradoxalmente, o mais criativo que cabia imaginar e o mais afinado com seus desejos de pecados sem penitência.

O paradoxo, portanto, era este: os pressupostos da revolução de 68 procediam da sociedade de consumo que crescia sob seus pés, mas seus líderes repudiavam com veemência o consumismo, sendo eles, por excelência, grandes consumistas: do tempo, do sexo, dos direitos, dos meios de comunicação de massa.

Como um bordado

De fato, tanto o Maio de 68 como o sistema geral de consumo são inconcebíveis sem a gigantesca explosão dos meios de comunicação de massa. A comunicação de massas e o consumo de massas, a festa e o contágio de 68 foram se cruzando numa copulação reprodutora. Daí que a revolta fora, por um lado, muito ampla, à maneira de uma endemia, e do outro, muito efêmera. Nascida e desenvolvida como um sucesso sensacionalista num jornal amarelo, por vermelho que parecesse.

Os meios de comunicação difundiram a nova visão da sociedade, da universidade, da psiquiatria, da família, da escola, da relação intersexual, dos direitos da mulher, e recriaram, com seu exercício, a composição de uma nova estampa.

Quarenta anos depois não vale a pena qualificar de sucesso o fracasso daquela subversão porque, simplesmente, suas vindicações se inscreveram na alma social como um bordado do mesmo fio. E tão naturalmente como corresponderia a um ritmo que se encaixa, e faz parte interna da melodia que soou mundialmente depois. A melodia do novo capitalismo de consumo que não pára de aumentar seu volume e sua difusão, com ou sem MP3.

A música foi, além disso, fundamental, um meio de comunicação potente que continuou até se tornar o hino genérico da juventude na moda. A moda, a moda jovem e a moda sem adjetivação ingressaram, por sua vez, no sistema como uma faceta a mais do ritmo dominante.

Antes dos anos 60, a moda era algo quase exclusivo da mulher, mas depois foi se fazendo espetáculo total. O feminino, contudo, foi importantíssimo, permeando o juvenil e subversivo como um ar essencial dos novos tempos.




Sem a mulher, em suma, não teria sido factível a festa do 68, e graças ao seu vigoroso movimento de libertação se emanciparam dois ou três sexos ao mesmo tempo. O seu, que funcionava como grande polícia dos bons costumes, e o sexo masculino, que obteve a inesperada franquia para intercambiar seus desejos com os de seus casais.

Aquela renúncia de usar sutiã foi literalmente a perda do sutiã. Enquanto elas tiravam de cima de si esta sujeição, facilitavam a passagem para uma relação sem os dolorosos freios inerentes às assimetrias.




Não houve tempo para culminar a grande idéia sexualista, mas quem duvida que se consumaram muitos cortejos? Boa parte da guerra de gerações de então procedia não tanto do choque maoísta com os pais, mas da incompatibilidade entre seus ditames sobre o sexo e o casamento e a teorética do amor livre.

Muitas ou todas as comunas fracassaram, e praticamente qualquer tentativa de trios à maneira de Jules e Jim provocaram neuroses; mas tanto Truffaut como nós, seus contemporâneos, não desperdiçamos a oportunidade para ensaiar.

Daí aquele tão conhecido “a imaginação ao poder”. Que imaginação? Que poder? Todo aquele que procedia de inaugurar excitadamente uma realidade transgressora, sonhada e revolucionária. O LSD, a cocaína, o haxixe, a droga em geral aureolava na gozação, e se foi, de um lado, uma complacência no prazer individual, foi, de outro, um sinal de ouro para assinalar o novo momento do valor.

Com a droga se obtinha gozo imediato, sem demora. Assim como acontecia com as aquisições a prazos ou com as hipotecas depois. Primeiramente, se acedia o bem, e mais tarde chegavam os efeitos secundários. Completamente o oposto da equação das gerações precedentes ao Maio de 68, que primeiro colocavam a abnegação, a economia, a espera, e mais tarde optavam pela devida compensação.

A inversão deste enunciado canônico, projetado em quase todos os âmbitos da realidade, decidiu o rumo da cultura. O capitalismo se salvou por seu inquestionável poder, mas, indubitavelmente, porque transformou sua personalidade.

Os autores do Maio de 68 não podem se considerar os criadores exclusivos desta transformação, posto que procedia sobretudo da dialética produtiva, mas foram aqueles que a tornaram visível e até vistosa quando mal havia começado.

Foram os grandes promotores do consumo, negando, entretanto, o consumo. Grandes promotores da revolução social sendo superindividualitas. Formidáveis aliados dos protestos da classe baixa quando, em sua maioria, procediam da classe alta ou média alta.

As contradições do Maio de 68 são tantas que tornam ainda mais brilhante a sua memória. De cada contradição brota uma faísca, e da reunião de todas elas, uma luminária que, se fracassou em seus objetivos políticos explícitos, triunfou categoricamente no deslize de suas intuições e emoções substanciais. Grande sucesso da feminidade, sem dúvida.

Genocídio no Tibet


17/3/2008

‘É um genocídio cultural e eu sozinho não posso estancá-lo’, afirma o Dalai Lama


“O senhor pode estancar as revoltas’, perguntam os jornalistas ao Dalai Lama em Dharamsala, na Índia.

Sério, Dalai Lama responde:

“Eu não tenho este poder. Trata-se de um movimento popular e eu me considero um servo, um porta-voz do meu povo. Além disso, eu sou totalmente a favor dos princípios da democracia, da liberdade de expressão, de pensamento. Não posso pedir às pessoas para fazer ou não fazer isto ou aquilo. O que fizerem ou queiram fazer, não sou o seu controlador”. A reportagem é do jornal Repubblica, 18-03-2008.





Ele não espera pela outra pergunta. Quer fazer compreender que nem por isso concorda com as violências.

“Na realidade, creio que todos sabem qual é a minha posição. Todos sabem que o meu princípio é a completa não violência, porque a violência é quase um suicídio. Mas, admita ou não o governo chinês, há um problema. A nação tibetana, a sua antiga cultura morre. Todos o sabem”. “Então eu peço – retoma – por favor, investiguem sozinhos, se possível o faça uma instituição respeitada de nível internacional, indague sobre o que aconteceu, sobre a situação e qual é a causa. Todos querem saber: Quem criou estes problemas agora?”

E novamente repete:

“Intencionalmente ou não, assistimos a uma forma de genocídio cultural. É um tipo de discriminação: os tibetanos, na sua terra, muitas vezes são cidadãos de segunda classe. Recentemente as autoridades locais pioraram a sua atitude para com o budismo tibetano. É uma situação muito negativa. Há restrições e a assim chamada “reeducação política” nos mosteiros...”.




E continua:

“Entre os tibetanos que vêm até aqui é crescido o ressentimento, inclusive alguns tibetanos comunistas, que trabalham em diversos departamentos e escritórios chineses. Ainda que sejam ideologicamente comunistas, eles levam no coração a causa do seu povo. Segundo estas pessoas, mais de 95% da população é muito, muito ressentida. Esta é a principal razão dos protestos, que reúnem monges, monjas, estudantes, pessoas comuns”.

E denuncia:

“Pequim confia na sua força para simular a paz, mas é uma paz criada com o terror. Isso acontece há cinqüenta anos e agora há uma nova geração, e também com ela eles têm a mesma atitude. Certamente que eles podem controlar o povo, mas não a sua mente”.

Quanto aos jogos olímpicos, Dalai Lama afirma:

“É a comunidade internacional que tem a responsabilidade moral de recordar à China de ser uma bom país hospitaleiro. Já disse que a China tem o direito de fazer os jogos e que o povo chinês tem a necessidade de sentir-se orgulhoso por isso”.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Como funciona o suicídio quântico










por Joshua Clark - traduzido por HowStuffWorks Brasil

Fonte: http://ciencia.hsw.uol.com.br/quantum-suicidio.htm


Introdução


Um homem se senta em frente a uma arma, apontada para sua cabeça. Não é uma arma comum; ela está ligada a uma máquina que mede o giro de partículas quânticas. Cada vez que o gatilho é puxado, o giro da partícula quântica - ou quark - é medido. Dependendo da medida, a arma dispara ou não. Se a medida mostrar que a partícula quântica está girando no sentido horário, a arma dispara. Se o quark estiver girando no sentido anti-horário, a arma não dispara. O gatilho só faz um clique.







Nervoso, o homem respira fundo e puxa o gatilho. O gatilho só faz clique. Ele puxa o gatilho de novo. Clique. De novo: clique. O homem vai continuar puxando o gatilho de novo, de novo, com o mesmo resultado: a arma não vai disparar. Apesar de estar funcionando corretamente e carregada, não importa quantas vezes ele puxa o gatilho, a arma nunca vai disparar. Ele vai continuar o processo eternamente, tornando-se imortal(em inglês).
Volte no tempo até o início do experimento. O homem puxa o gatilho pela primeira vez, e a medida mostra que o quark está girando no sentido horário. A arma dispara. O homem morre.

Mas calma lá. O homem já puxou o gatilho a primeira vez - e infinitas vezes depois disso - e já sabemos que a arma não disparou. Como o homem pode estar morto? Ele não sabe disso, mas está vivo e morto. Cada vez que ele puxa o gatilho, o universo se divide em dois. E vai continuar a se dividir cada vez que o gatilho é puxado [fonte: Tegmark (em inglês)].

Este experimento mental é chamado de suicídio quântico. Foi introduzido pelo então teórico da Universidade de Princeton (em inglês) Max Tegmark em 1997 (atualmente professor do MIT). Experimento mental é um experimento que acontece só na mente. O nível quântico é o menor nível da matéria que já detectamos até hoje no universo. A matéria nesse nível é infinitesimal, e é praticamente impossível para os cientistas pesquisarem esta matéria na prática usando métodos tradicionais da pesquisa científica.


Ao invés de usar o método científico - investigar provas empíricas - para estudar o nível quântico, os físicos precisam usar experimentos mentais. Apesar de estes experimentos serem realizados somente de maneira hipotética, são baseados nos dados observados na física quântica.

O que a ciência tem observado do nível quântico levantou mais perguntas do que respondeu. O comportamento das partículas quânticas é errático, e nosso entendimento de probabilidade se torna questionável. Por exemplo, fótons (em inglês)- a menor medida da luz - têm mostrado que existem tanto no estado de partícula como de onda. E acredita-se que a direção das partículas não seja uma só, mas que elas viajem em ambas as direções ao mesmo tempo. Então quando observamos o mundo quântico, somos estranhos ao conhecimento que ele guarda. Como resultado, nossa compreensão do universo como o conhecemos é desafiada.

Isto levou algumas pessoas a acreditarem que a nossa compreensão de física quântica é tão básica quanto à dos antigos astrônomos (em inglês) egípcios que séculos atrás diziam que o Sol era um deus. Alguns cientistas acreditam que um aprofundamento da investigação dos sistemas quânticos vai revelar ordem e previsibilidade dentro do que hoje vemos como caos. Mas é possível que os sistemas quânticos não possam ser compreendidos dentro dos padrões tradicionais da ciência?

Neste artigo, veremos o que o suicídio quântico revela sobre o nosso universo, assim como outras teorias que o apóiam ou contradizem.

Mas primeiramente, por que um físico não consegue medir as partículas que ele esta tentando estudar? No próximo capítulo, falaremos sobre esta falha fundamental da observação quântica, explicada pelo Princípio da Incerteza de Heisenberg.

Princípio da Incerteza de Heisenberg

Um dos maiores problemas dos experimentos quânticos é a aparentemente inevitável tendência humana de influenciar o estado e a velocidade (em inglês) de pequenas partículas. Isto acontece até mesmo quando somente observamos as partículas, frustrando os físicos (em inglês) quânticos. Para combater isso, os físicos criaram máquinas enormes e complexas, como os aceleradores de partículas (em inglês), que removem qualquer influência humana do processo de acelerar a energia de movimento de uma partícula.
Ainda assim, os resultados variados que os físicos obtêm, quando examinam a mesma partícula, indicam que não conseguimos evitar afetar o comportamento dos quanta - ou partículas quânticas. Até mesmo a luz que os físicos utilizam para ver melhor os objetos que eles estão observando pode influenciar o comportamento dos quanta. Os Fótons (em inglês), por exemplo, mesmo sendo a menor medida da luz, que não tem massa nem carga elétrica, ainda conseguem fazer uma partícula se mexer, alterando sua velocidade e aceleração.




Heisenberg





Este é o chamado Princípio da Incerteza de Heisenberg. Werner Heisenberg, físico alemão (em inglês), descobriu que as nossas observações têm efeito sobre o comportamento dos quanta. O Princípio da Incerteza de Heisenberg parece difícil de entender - até mesmo o nome intimida. Mas na verdade é fácil de compreender, e quando você conseguir, vai entender o principal fundamento da mecânica quântica (em inglês).

Imagine que você é cego e com o tempo desenvolveu uma técnica para dizer a que distância um objeto está, jogando uma bolinha de borracha nele. Se você jogar a bolinha em uma banqueta próxima a você, a bola volta rápido, e você vai saber que está perto. Se você jogar a bola em alguma coisa do outro lado da rua, vai levar mais tempo para ela voltar, e você vai saber que o objeto está longe.

O problema é que quando você joga a bola - principalmente uma bolinha de borracha - em algum objeto, a bola vai jogar este objeto do outro lado da sala e pode até mesmo ter impulso para bater de volta. Você pode dizer onde o objeto estava, mas não onde está agora. Tem mais: você poderia calcular a velocidade do objeto depois que você o atingiu com a bola, mas você não tem idéia de qual era a sua velocidade antes de a bolinha bater.





Fabrice Coffrini/AFP/Getty Images
Mulher perto de um ímã solenóide supercondutor usado
para medir partículas quânticas




Este é o problema revelado pelo princípio da Incerteza de Heisenberg. Para saber a velocidade de um quark devemos medi-la, e para medi-la, somos forçados a afetá-la. A mesma coisa acontece para a observação da posição de um objeto. A incerteza sobre a posição e velocidade de um objeto torna difícil para o físico descobrir muito sobre ele.
É claro que os físicos não jogam bolinhas de borracha nos quanta para medi-los, mas mesmo a mais sutil interferência pode fazer com que estas partículas incrivelmente pequenas se comportem de maneira diferente.

É por isso que os físicos quânticos são forçados a criar experimentos mentais baseados nas observações dos experimentos reais conduzidos em nível quântico. Estes experimentos mentais são feitos para provar ou contestar interpretações - explicações para a teoria quântica.

Na próxima seção, falaremos do fundamento para o suicídio quântico - a interpretação dos "Muitos Mundos" da mecânica quântica.

A teoria dos Muitos Mundos


O experimento mental do suicídio quântico tenta provar aquilo que se tornou uma interpretação da física quântica cada vez mais aceita: a teoria dos Muitos Mundos. Esta teoria foi proposta pela primeira vez em 1957 por um aluno de doutorado da Universidade de Princeton (em inglês) chamado Hugh Everett III. A teoria foi menosprezada por décadas até que um outro aluno de Princeton, Max Tegman, criou o experimento do suicídio quântico, que apóia a interpretação [fonte: The Guardian (em inglês)].






Segundo a teoria dos Muitos Mundos, para cada possível resultado de uma ação, o mundo se divide em uma cópia de si mesmo. É um processo instantâneo que Everett chamou de "descoesão". Imagine um livro de aventura em que você escolhe a história, mas ao invés de escolher entre explorar uma caverna ou fugir com o tesouro, o universo se divide em dois para que cada ação aconteça.
Um aspecto vital da teoria dos Muitos Mundos é que quando o universo se divide, a pessoa não tem consciência de si mesmo na outra versão do universo. Isso significa que o garoto que fugiu com o tesouro e viveu feliz para sempre não faz a menor idéia de sua versão que entrou na caverna e agora enfrenta um grande perigo, e vice-versa.

É o mesmo caso do suicídio quântico. Quando o homem puxa o gatilho, há dois resultados possíveis: a arma dispara ou não. Neste caso, o homem vive ou morre. Cada vez que o gatilho é puxado, o universo se divide para acomodar cada resultado possível. Quando o homem morre, o universo não é mais capaz de se dividir baseado no ato de puxar o gatilho. O resultado possível para a morte é reduzido a um: a morte contínua. Mas com a vida, ainda sobraram duas chances: o homem continua vivo ou morre.

Mas quando o homem puxa o gatilho e o universo se divide em dois, a versão do homem que viveu não terá consciência de que na outra versão do universo dividido ele morreu. Ao invés disso, ele continuará vivo e terá outra chance de puxar o gatilho. E cada vez que ele puxar o gatilho, o universo vai se dividir novamente, com a versão do homem que vive permanecendo, e ele continua inconsciente de todas as suas mortes nos universos paralelos. Neste sentido, ele poderá existir indefinidamente. É a chamada imortalidade quântica.




Então por que todas as pessoas que alguma vez tentaram se matar não são imortais? O que é interessante na interpretação dos Muitos Mundos é que, segundo a teoria, em algum universo paralelo elas são. Não parece ser o nosso caso, porque a divisão do universo não depende da nossa própria vida ou morte. Somos observadores no caso do suicídio de outra pessoa, e como observadores estamos sujeitos à probabilidade. Quando a arma disparou no universo - ou versão - que habitamos, ficamos presos naquele resultado. Mesmo que peguemos a arma e continuemos a atirar no homem, o universo vai continuar em um único estado. Afinal, quando uma pessoa morre, o número de possíveis resultados de se atirar em um homem morto é reduzido a um.

Mas a teoria dos Muitos Mundos entra em contradição com outra teoria quântica, a interpretação de Copenhagen. Na próxima seção falaremos sobre essa teoria e veremos porque ela muda as regras do suicídio quântico.


A interpretação de Copenhagen


A teoria dos Muitos Mundos da mecânica quântica (em inglês) supõe que para cada resultado possível de qualquer ação, o universo se divide para acomodar cada um deles. Esta teoria tira o observador da equação. Não somos mais capazes de influenciar o resultado de um evento simplesmente por observá-lo, como afirma o Princípio da Incerteza de Heisenberg.








Mas a teoria dos Muitos Mundos vira de cabeça para baixo uma teoria muito aceita da mecânica quântica. E no imprevisível universo quântico, isso quer dizer muita coisa.
Por uma boa parte do último século, a explicação mais aceita para uma mesma partícula quântica se comportar de maneiras diferentes foi a interpretação de Copenhagen. Apesar de desafiar a interpretação dos Muitos Mundos, muitos físicos (em inglês)quânticos ainda acreditam que a interpretação de Copenhagen esteja correta. A interpretação de Copenhagen foi proposta pela primeira vez pelo físico Neils Bohr (em inglês), em 1920. Ela diz que uma partícula quântica não existe em um estado ou outro, mas em todos os seus possíveis estados de uma vez só. É somente quando observamos seu estado que a partícula quântica é forçada a escolher uma probabilidade, e este é o estado que observamos. Como ela pode ser forçada a se apresentar em um estado observável diferente cada vez, isto explica porque as partículas quânticas têm um comportamento errático.

Este estado de existir em todos os estados possíveis de uma vez é chamado de superposição coerente de um objeto. O total de estados possíveis em que um objeto pode existir - por exemplo, em forma de onda ou partícula para os fótons (em inglês) que se movimentam em duas direções ao mesmo tempo - forma a sua função onda. Quando observamos um objeto, a superposição cai e o objeto é forçado a assumir um dos estados da sua função onda.

A interpretação de Copenhagen da mecânica quântica foi teoricamente provada, pelo que se tornou um experimento mental famoso envolvendo um gato e uma caixa. É chamado de 'gato de Schrödinger', e foi apresentado pelo físico vienense Erwin Schrödinger (em inglês), em 1935.

Em seu experimento teórico, Schrödinger colocou seu gato em uma caixa, junto com um pouco de material radioativo e um contador Geiger (em inglês) - dispositivo para detectar radiação. O contador Geiger foi montado de maneira que quando percebesse o declínio do material radioativo, acionaria um martelo posicionado para quebrar um frasco contendo ácido cianídrico que, quando liberado, mataria o gato.

para eliminar qualquer incerteza sobre o destino do gato, o experimento deveria acontecer dentro de uma hora, tempo longo o suficiente para que o material radioativo pudesse diminuir um pouco, mas também curto para que também fosse possível que nada acontecesse.

No experimento de Schrödinger, o gato estava fechado dentro de uma caixa. Durante o período em que estivesse ali dentro, o gato passaria a existir em um estado desconhecido. Como não poderia ser observado, não seria possível dizer se estava vivo ou morto. Ao invés disso, existia no estado de vida e morte. É mais ou menos a resposta da física quântica para a velha pergunta zen: se uma árvore cair no meio da mata, e ninguém estiver perto para escutar, faz barulho?

Uma vez que a interpretação de Copenhagen diz que, quando observado, um objeto é forçado a assumir um estado ou outro, o experimento do suicídio quântico não funciona - de acordo com esta teoria. Como a direção do quark medido pelo gatilho pode ser observada, no final das contas o quark será forçado a assumir a direção do sentido horário que vai disparar a arma e matar o homem.

Mas isso tudo não é só uma bobagem? Estes experimentos mentais e interpretações quânticas nos ensinam alguma coisa de verdade? No próximo capítulo, falaremos sobre as possíveis implicações destas idéias.

As implicações da física quântica
Quando comparadas à ciência clássica e à física newtoniana, as teorias propostas para explicar a física quântica parecem insanas. O próprio Erwin Schrödinger (em inglês)disse que seu experimento do gato era "totalmente ridículo" [fonte: Goldstein, Sheldon (em inglês)]. Mas do que a ciência pôde observar, as leis que governam o mundo que vemos todos os dias não valem no nível quântico.



Conforme nossa compreensão da física quântica se aprofundar,
como ela mudará nossa percepção do mundo físico?




A física quântica é uma disciplina relativamente nova, datando de 1900 apenas. As teorias que foram propostas sobre o assunto, são só teorias. E para completar, há teorias conflitantes que dão explicações diferentes para os acontecimentos peculiares que acontecem no nível quântico. Qual delas a história mostrará ser a correta? Talvez a teoria que fique provada como a explicação verdadeira para a física quântica ainda não tenha sido descoberta. As pessoas que vão propor esta teoria podem nem ter nascido ainda. Mas segundo a lógica, que este campo do estudo estabeleceu, é possível que todas as teorias que explicam a física quântica sejam igualmente verdadeiras ao mesmo tempo - mesmo as que se contradizem?
A interpretação de Copenhagen para a física quântica de Neils Bohr (em inglês) talvez seja a teoria mais reconfortante já desenvolvida. Ao explicar que as partículas existem em todos os estados de uma vez - em superposição coerente - nossa compreensão do universo fica um pouco torta, mas ainda assim continua de certa forma compreensível. A teoria de Bohr também é consoladora porque torna a nós, humanos, a causa de um objeto assumir uma determinada forma. Apesar de os cientistas considerarem frustrante a habilidade de uma partícula de existir em mais de um estado, nossas observações afetam a partícula. Pelo menos ela não continua existindo em todos os estados enquanto olhamos para ela.

Muito menos consoladora é a interpretação dos Muitos Mundos de Everett. Esta teoria tira das nossas mãos qualquer poder sobre o universo quântico. Pelo contrário, somos meros passageiros das divisões que acontecem com cada resultado possível. Em essência, com a teoria dos Muitos Mundos, nossa idéia de causa e efeito cai por terra.

Isto torna a interpretação dos Muitos Mundos um tanto perturbadora. Se for verdade, então em algum universo paralelo ao que habitamos agora, Adolph Hitler foi bem-sucedido em sua campanha para conquistar o mundo. Mas seguindo o mesmo raciocínio, em outro universo os Estados Unidos não jogaram bombas atômicas em Hiroshima (em inglês) e Nagasaki (em inglês).

A teoria dos Muitos Mundos também certamente contradiz a idéia da navalha de Occam, que diz que a explicação mais simples é geralmente a correta. Ainda mais estranha é a implicação da teoria dos Muitos Mundos de que o tempo não existe em um movimento coerente, linear. Pelo contrário, ele se move em pulos e sobressaltos, existindo não como uma linha, mas como ramos. Estes ramos são tão numerosos quanto o número de conseqüências para todas as ações que já existiram.

É difícil não imaginar o que será a nossa compreensão do mundo quântico. O campo teórico já progrediu tremendamente desde seus primórdios mais de um século atrás. Apesar de ter sua própria interpretação do mundo quântico, Bohr pode ter aceito a teoria que Hugh Everett introduziu depois a respeito dos Muitos Mundos. Afinal, foi Bohr (em inglês) quem disse que "quem não ficar chocado com a teoria quântica não a compreendeu".


Fontes (em inglês)

"Hugh Everett III and the Many Worlds Theory." Everything Forever.

Brooks, Michael. "Enlightenment in the Barrel of a Gun." The Guardian. 15 de outubro de 1997.

Budnik, Paul. "Schrödinger's Cat." Mountain Math Software.

Higgo, James. "Does the 'many-worlds' interpretation of quantum mechanics imply immortality?" 10 de novembro de 1998.

Horgan, John. "Quantum Philosophy." Fortune City.

Price, Michael Clive. "The Everett FAQ." BLTC Research. Fevereiro de 1995.

Tegmark, Max. "The Interpretation of Quantum Mechanics: Many Worlds or Many Words?" Universidade de Princeton. 15 de setembro de 1997.

"Quantum Mechanics." Fusion Anomaly.

"Schrödinger's Cat for a 6th Grader." Mountain Math Software.

"The Many-World Interpretation of Quantum Mechanics." Station1.