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segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sob o poder de um novo deus


O mercado é o deus do mundo pós-moderno, diz o filósofo francês Dany-Robert Dufour. Não, ele não usa uma metáfora, mas faz uma afirmação literal. "É preciso não esquecer que o mercado não é uma invenção dos mercadores, mas de teólogos", afirma. "O que era justamente o caso de Adam Smith, como hoje se sabe."

A reportagem é de José Castello e publicada pelo jornal Valor, 14-08-2009.

O economista e filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) foi o primeiro a falar a respeito de uma "mão invisível" que levaria o mercador ou negociante a, mesmo sem decidir isso, "fazer o bem". Afirma Dufour: "A expressão que emprego - o divino mercado - não é uma metáfora, ela deve ser entendida literalmente: está postulado que existe uma religião natural". De acordo com ela, não é preciso ceder à santidade; basta deixar agir o interesse privado.

"O Divino Mercado" é justamente o título do mais recente livro de Dany Dufour (Companhia de Freud, tradução de Procópio Abreu). Nesse novo ensaio, Dufour, que é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris VIII e diretor de programa no Colégio Internacional de Filosofia, desenvolve algumas das teses já tratadas em "A Arte de Reduzir as Cabeças", estudo sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (Companhia de Freud, 2005, tradução de Sandra Regina Felgueiras). Como pano de fundo dos dois livros, os efeitos da grave crise econômica que sacode o planeta.

Por que um filósofo se interessa pelo estudo da sociedade ultraliberal contemporânea? O motivo é simples: no seu entender, o salto do liberalismo clássico para a sociedade ultraliberal produziu, além de mudanças radicais na realidade econômica e social, uma drástica alteração na noção de sujeito. Ela mudou os parâmetros a partir dos quais o sujeito se constitui.

"As mudanças na economia mercantil não são tão inócuas para a economia psíquica", diz Dufour. Mudou a economia, mudou o sujeito que nela se movimenta. O antigo sujeito que chegava aos consultórios de psicanálise era, em geral, um indivíduo "crítico e neurótico", isto é, guiado pelo desejo de compreender e pela retenção de suas pulsões. Problemas que levava para seu analista.

Afirma Dufour: "O novo sujeito que hoje se apresenta é acrítico e pós-neurótico". Compreender não lhe interessa mais, é algo que, antes disso, o entedia. O mercado promete atender a cada um de seus apetites - logo, em vez de reter as pulsões, ele as "resolve" com o vício, o mais frequente deles por drogas. Esse novo sujeito, acrescenta Dufour, "é levado a adotar condutas perversas (instrumentação do outro em função de seus gozos e interesses pessoais)". E, consequência final, "se ele não consegue fazer isso, ele se deprime, o que acontece frequentemente".

Drogas, perversão, depressão - marcas de um novo sujeito, figura típica de um mundo onde os padrões de regulação social se enfraqueceram ou desapareceram. Cenário despedaçado, nos sugere Dufour, que levou à grave crise financeira de hoje. O novo sujeito, além de tudo, habita um presente contínuo e imóvel. Argumenta Dufour que a nova religião do mercado "deixa um vazio quanto ao velho tormento humano da origem e do fim".

Na nova vida ultrapragmática de hoje - extremo paradoxo - há um aumento da necessidade de transcendência. Essa necessidade, alerta o filósofo, "pode permanecer dentro dos limites do razoável, mas pode ir até os delírios fundamentalistas". Não é por acaso, portanto, que o fundamentalismo de vários matizes se espalha pelo planeta; sua disseminação é o avesso de um vazio que a nova realidade do mercado acentua. É o vazio criado pelo deus mercado que exacerba a onda fundamentalista. Ela não passa de sua contrapartida. Assim como a ascensão dos dogmas é o avesso do desprestígio do pensamento crítico.

Acredita Dufour que muitos dos mais graves problemas contemporâneos estão associados a esse novo deus. Por exemplo, os escândalos de corrupção que ocupam, cada vez com mais frequência, as manchetes dos jornais. Afirma ainda que a corrupção - ao contrário do que em geral acreditamos - não pode mais ser vista na perspectiva da psicologia individual, como um desvio de conduta ou uma expressão da maldade. A corrupção, ele diz, é hoje um problema que está muito além do caráter e da moral.

"Como querer que um sistema que tem como fundamento o princípio do egoísmo não suscite inúmeras formas de corrupção?", Dufour pergunta. Para ele, a atual crise financeira fez "desabar um mito mantido cuidadosamente pela narrativa ultraliberal: aquele que afirma ser preciso distinguir os negócios saudáveis dos negócios suspeitos".

É evidente: não que todo mercado seja sujo e todo negócio, digno de desconfiança. "Nenhuma pessoa séria pode ser contra o mercado em geral", o filósofo argumenta. "Pela simples razão de que o mercado é como o pulmão: é por onde as pessoas respiram." Recorda Dufour, a propósito, a beleza de dois tradicionais mercados que visitou recentemente: o de Tepoztlán, no México, e o da Medina de Fez, no Marrocos. "Por que eles são tão bonitos? Simplesmente porque neles a economia está inserida no social." Em todos os tempos, acrescenta, o mercado soube integrar o princípio altruísta que dá à cultura o seu lugar.

Ao contrário, o que caracteriza o mercado da era ultraliberal é a destruição das culturas. "Ele é, abertamente, a promoção da anomia [a ausência de leis], a suspensão das interdições e de tudo o que possa interpô-las ao ímpeto dos apetites." Para Dufour, essas mudanças não só produzem um novo sujeito, obsessivo, perverso e deprimido, mas põem profundamente em questão a própria civilização.
Diz ainda Dany Dufour que, no mundo ultraliberal de hoje, "a distinção entre dois mundos, um perverso e outro moral, não somente não se sustenta como se trata de um puro trompe-l'oeil, ilusório e mentiroso". Não se trata de um problema de caráter ou da maldade deste ou daquele agente econômico em particular. Não é um problema pessoal, mas um problema estrutural.

Pensando novamente na crise econômica de agora, lembra Dufour que em 2000, nos Estados Unidos, eram lavados, a cada dia, cerca de US$ 1 milhão "provenientes de máfias diversas". Número que representava entre dois terços e a metade dos investimentos estrangeiros diretos. "O produto criminal bruto, no ano 2000, ultrapassava em muito 1 bilhão de dólares anuais, ou seja, 20% do comércio mundial." Para agravar a situação, a atividade econômica oficial pôs-se a fornecer, ela também, uma massa de capitais suspeitos.

Comenta Dufour: "Esses capitais corrompidos provêm de uma série de atividades bastante difundidas em grandes empresas, tal como demonstraram vários escândalos recentes". E enumera exemplos: cartéis, dumping, vendas forçadas, especulação, absorção e desmonte de concorrentes, balancetes falsos, manipulação de contabilidade, fraudes e evasão fiscal, desvios de créditos públicos, etc.

Lembra ele ainda - e a crise atual aí está como prova - que "o último estágio da dominação do capital financeiro sobre o capital industrial consistiu em diversas montagens de operações financeiras ultra-arriscadas, como o empréstimo em grande escala de dinheiro inexistente a pessoas que não tinham como pagar suas dividas". A desordem se instalou, a anomia tomou conta do mercado, e a crise que hoje enfrentamos se tornou inevitável.

Analisa: "Trata-se de um momento de regressão sem precedentes". Constatação que não o impede, porém, de conservar algum otimismo. Diz Dufour que aos indivíduos resta, em vez de consumir obsessivamente os objetos manufaturados que lhe prometem a felicidade, "trabalhar para desenvolver o objeto singular que só ele pode produzir". O investimento no singular se torna fundamental para a sobrevivência do indivíduo e para o desenvolvimento de uma comunicação viva com os outros homens.
A produção desses objetos singulares, seja na literatura, na música, na psicanálise, etc. -, "ainda são remédios, ou antídotos, à produção de indivíduos estandardizados", sugere. Ajuda a compreender que temos apenas uma vida e que, melhor do que permitir que ela seja manipulada, é "dar a essa única manhã de primavera, como dizia o filósofo, um sentido ou um sabor que só você pode dar".

Ministrando conferências pelo mundo, como a que pronunciou no dia 8 a convite do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Dany Dufour tem ouvido, muitas vezes, que suas ideias colocam em palavras claras o que as pessoas hoje sentem de modo confuso. "Essa consciência de uma ameaça planando sobre nós existe. As pessoas esperam novas maneiras de reagir, distantes dos esquemas do passado, como 'a grande noite', 'a revolução' ou o que seja mais."

Em resumo: a expansão do divino mercado exige a produção de novas posições críticas e de novas estratégias que abandonem os velhos modelos de contestação e tenham a coragem de encarar o presente.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O direito ao gozo e a violência




Entrevista especial com Mario Fleig

A pós-modernidade vive uma crise de legitimidade da autoridade, e o lema da Revolução Francesa pode nos dar pistas para compreender a “crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei no chefe, no pai”, frisa o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele acentua que tal crise de legitimidade da autoridade “tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite”. Segundo ele, “o que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares”. O gozo sem limites como fonte de autoridade para um sujeito se expressa na “adição aos objetos”, e o que passa a “valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor”.

Mario Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que medida o desejo e a felicidade como imperativos fundamentam a violência na pós-modernidade?

Mario Fleig
- A felicidade sempre foi e continua sendo a aspiração que determina a existência do homem ocidental, e talvez de qualquer ser humano, independente de sua cultura. Contudo, o ideal de felicidade se formula de maneiras muitos diversas, e isso depende de cada cultura e seu sistema de crenças e representações. Temos indicações de que a modernidade, e sua radicalização no que se passou a denominar de pós-modernidade, se caracteriza pela implementação de mudanças radicais nos ordenadores sociais precedentes que definiam o que se denomina de modo genérico de modelo tradicional. Ora, sabemos que os ideais que predominam em uma cultura determinam os valores prevalentes, tendo efeitos na organização da cultura e na estruturação das subjetividades. Assim, podemos supor que a modernidade e a pós-modernidade se caracterizam por mudanças radicais nos ideais partilhados, que por sua vez têm efeitos sociais e subjetivos marcantes.

Ora, o projeto de fazer uma sociedade orientada pela razão é o que caracteriza a modernidade. A razão se coloca em exercício essencialmente pelo caminho da crítica, de modo que os três grandes princípios ordenadores das sociedades não-modernas - hierarquia, tradição e holismo - foram postos abaixo. A difusão dos ideais da modernidade, firmando-se progressivamente pela crítica aos segmentos da sociedade tradicional, somando-se aos avanços das ciências modernas e os inventos tecnológicos decorrentes, faz com que aumentem as fileiras de adeptos, cujo entusiasmo pelos novos ideais conflui na irrupção das diversas revoluções sociais que se dão até nossos dias, somadas às incessantes revoluções científicas e tecnológicas. Dentro da diversidade que caracteriza cada uma das revoluções sociais, poderíamos considerar que o lema central da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, indica a crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei, no chefe, no pai. Assim, na pós-modernidade podemos ver os limites extremos da crise legitimidade de qualquer instância que queira fazer o exercício de autoridade. A crise de legitimidade da autoridade tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite. Ser educado e subjetivado evitando qualquer interdição tende a produzir sujeitos incapazes de dialetizar o ódio que a introdução da cria humana na linguagem produz. Ao ser introduzido na fala, o sujeito é confrontado com a falta que a interação com o outro lhe apresenta, resultando no surgimento do ódio contra aquele que lhe impõe a falta e o limite. Falta que se apresenta na alteridade do semelhante e falta estruturalmente presente na própria linguagem. Ser introduzido no campo da linguagem e na função fala produz no cerne do faltante uma ferida incurável. Esta ferida é denominada por Freud de desejo.



Freud



Desejo e interdição imposta pela Lei

Ora, podemos atribuir a Freud a introdução na linguagem corrente de diversos termos, como recalque, desejo, complexo etc., que tendem então a perder sua conotação psicanalítica específica. O desejo, para Freud, diz respeito ao que está interditado e por isso mesmo tende a ser recalcado e perdura no sujeito de modo inconsciente. Assim, o desejo se estrutura a partir da interdição imposta pela Lei, ou seja, a interdição indica para o sujeito que algo lhe falta e ao qual não poderá ter acesso. Deste modo, o desejo radical é sempre em vão e contudo não deixa de pulsar no sujeito, ou seja, o desejo inconsciente é indestrutível. O que se passa com o desejo na nova economia psíquica próprio do neo-sujeito? Podemos observar uma tendência em se produzir uma equiparação entre a vontade de tudo gozar e o que passa então a ser denominado de desejo, de modo que o desejo como relativo ao impossível que se apresentaria como interditado se transmuta em desejo do que não pode ser negado. Esta equiparação se soma à equivalência que a economia de consumo induz ao consumidor entre o objeto de consumo e o suposto objeto de desejo. Deste modo, o neo-sujeito não suporta desejar em vão, mas tem uma vontade de vontade de tudo querer gozar, sem que nenhuma impossibilidade se interponha, de modo incessante e imediato.

Direito ao gozo

Assim, atribuímos aos novos imperativos que caracterizam a nova economia psíquica traços que especificam a violência em nossos dias. Encontramos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, nos ideais da revolução, introduzidos na figura do direito do cidadão, uma nova posição a respeito do usufruto dos direitos, isto é, há um deslocamento na posição do sujeito quanto ao gozo em relação à sociedade anterior, ao antigo regime. Segundo esta Declaração, as únicas causas das desgraças do mundo são o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem. Com isto fica demarcado que a pretensão da declaração dos direitos do homem e do cidadão tem como finalidade pôr fim à infelicidade humana. O primeiro passo de tal empreendimento é, segundo o “Art. 1o. - A meta da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”. Esta garantia fundamental para a consecução do gozo dos direitos de cada um é complementada no “Art. 23 - A garantia social consiste na ação de todos para assegurar a cada um o gozo e a conservação de seus direitos: esta garantia repousa sobre a soberania nacional”.

Podemos ler os ideais revolucionários da consecução da “felicidade comum” através do acesso ao “gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”, garantidos pelo governo na perspectiva de que aqui se encontra implicitamente a afirmação irrestrita do direito ao gozo que diz respeito a cada um. É esta suposição que passa a reordenar os ideais da cultura moderna e pós-moderna que situa o sujeito na posição de reivindicante: cada um de nós, tomado na suposição de um direito ao gozo prometido pelo gozo do direito passa a exigir-se e exigir do social o gozo que cabe a cada um na vida, e ainda por acréscimo, um gozo suposto e almejado sem falhas. É o ideal máximo de nossa cultura: realizar neste mundo aquilo que era anteriormente apenas uma promessa para a outra vida.

A afirmação generalizada do direito ao gozo, na forma como é veiculada em nossa cultura, determina consequências subjetivas e culturais de amplo alcance. Podemos ver estas consequências no modo como alguém responde às perguntas referenciais da vida, relativas ao que seja a honra e a dignidade, ou seja, o que seja uma vida realizada. Em outras palavras, a supressão da distância entre o gozo e o desejo pela progressiva supressão de qualquer forma de proibição, somada à destituição da legitimidade das instâncias de poder, se coadunam com um deslocamento radical da autoridade, ou seja, dos ideais. Se o ideal de gozar aqui e agora, a qualquer preço e sem limite se torna a fonte de autoridade para um sujeito, vemos que se opera uma substituição da autoridade tradicional (o pai, o rei, Deus, a Lei) pela autoridade anônima alocada no objeto que faz gozar. Dentro desta lógica, podemos compreender por que a adição aos objetos que produzem gozo tende a se generalizar e dominar o mercado de consumo.

Violência estrutural

Neste contexto, podemos supor que as novas formas de violências específicas da pós-modernidade seriam um efeito tardio e inesperado da Modernidade, visto que impediria que a violência estrutural, o ódio própria da condição humana, pudesse ser dialetizada, levando os sujeitos e os grupos a abandonarem o campo da fala e da linguagem, em troca da imersão no imediato e no instantâneo. A sustentação de tal hipótese implica: afirmar a tese da existência de uma violência estrutural da condição humana, que se apresenta nos sujeitos e nos grupos por meio da diferença simbólica entre gerações e lugares ocupados, sendo a autoridade simbólica o reconhecimento desta diferença. A subversão e deslegitimação do lugar simbólico da autoridade, decorrente da confusão entre o ideal democrático e o que se pode denominar de democratismo, impede, por não ter mais a quem endereçar a violência, o conflito que permitiria a dialetização da violência estrutural (equivalente à pulsão de morte freudiana), destinando a geração jovem a abandonar o exercício do aprendizado do limite. Em lugar do embate com a geração precedente, engendra-se uma violência suplementar, que especifica aquela que encontramos hoje.




IHU On-Line - Por que a promessa de felicidade da pós-modernidade coincide com o desaparecimento do lei, daquilo que fundamenta o limite?

Mario Fleig -
A promessa de felicidade da pós-modernidade acena com o gozo imediato e sem falhas, seguindo os ditames da lógica infernal imposta pelo imperativo de gozar a qualquer preço e sem limite. Este imperativo, ordenador de uma nova economia psíquica em consonância com a lógica da economia neoliberal, se coaduna com a grande confusão entre a crítica moderna ao modelo patriarcal e a destruição do lugar de autoridade. Em outras palavras, a crítica e destruição do modelo que legitimava a autoridade patriarcal, que se impunha de modo vertical, e sua substituição pelo modelo horizontal, avesso a qualquer dessimetria de lugares e poderes, resultou em uma confusão entre a autoridade patriarcal, ancorada na equiparação entre o lugar de autoridade e seu ocupante, e a autoridade resultante do próprio exercício da fala e da linguagem. Ou seja, a confusão entre a transcendência patriarcal e a transcendência que se impõe a partir das leis da linguagem se configura em uma confusão entre democratismo e democracia. A crítica ao modelo patriarcal, benefício maior do modelo crítico introduzido pela Modernidade, não pode coincidir com a destruição do lugar de autoridade.

Crise da lei simbólica

Aqui poderíamos multiplicar os exemplos de valores até há pouco unanimemente reconhecidos e agora profundamente subvertidos em consequência do abandono da referência transcendente. O que não está mais à disposição é uma legitimidade que reconheceria a prevalência de tal ou tal ponto de vista. Isso indica que, além da crise ou da ausência de referências, é a legitimidade da própria referência que se tornou inacessível. Esta crise de legitimidade do lugar de autoridade e de poder leva a uma crise da lei simbólica, que se ancorava no efetivo exercício da fala e da linguagem. O que pode autorizar alguém, uma fala que tenha função de estabelecer uma proibição? Já não sabemos, e até uma nova lei, sancionada em todas as instâncias reconhecidas, precisa aguardar o consentimento daqueles que a ela estão submetidos, para então sabermos se ela terá legitimidade, ou não.

O que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares. Ou seja, uma figura indicava o lugar de exceção, constituindo-se o fundamento de legitimidade das instâncias que estabeleciam o limite, que assim sempre se impunha de modo heterônomo. Ora, o desaparecimento do lugar de exterioridade legitimado pela transcendência – como ele o era no que se chama sociedade religiosa – leva a espontaneamente acreditar que é possível nos desembaraçar de qualquer diferença de lugares e então recusar qualquer prevalência que não seja aquela que se mantém por minha única e exclusiva decisão.

Ora, pelo fato do estabelecimento de uma norma necessária para qualquer vida social, um lugar diferente se reorganiza imediatamente. Lugar diferente imanente, sem dúvida, mas ainda assim lugar diferente. Mas, na falta desse discernimento, nessa passagem de uma transcendência a uma imanência, é a legitimidade de ocupar um lugar qualquer diferente que está invalidada, isso acarretando na geração seguinte a erosão do processo pelo qual se transmite o consentimento à existência da diferença de lugares. E, se tal é o caso, compreende-se que isso torna tanto mais difícil o alcance de uma norma comum imanente, visto que essa última, não podendo se apoiar na legitimidade de uma autoridade transcendente, tem necessidade de um reconhecimento unânime para poder funcionar. Isso não pode então ter outro efeito que um embalo no qual a legitimidade em ocupar um lugar diferente – de fato, a autoridade – é cada vez mais colocada em situação difícil.

Poder do objeto como nova forma de autoridade

Ora, a erosão da legitimidade do lugar do pai, lugar terceiro e exógeno à relação imediata entre a criança e sua mãe, corroborada pelo funcionamento do discurso da ciência que se legitima na pura racionalidade do encadeamento de enunciados sem sujeito, tem como efeito social e subjetivo a instauração de outra forma de autoridade, alocada então no poder do objeto. O que então passa a valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor. Sabemos que o objeto específico da Modernidade é aquele resultante da unificação do campo dos entes, cujo resultado é o objeto passível de medição e acúmulo. Este novo objeto tem como propriedade maior seu caráter de infinitização, ou seja, ele é destituído de limite. Assim, o que passa a comandar a todos nós, sujeitos pós-modernos, é a aspiração ao usufruto do neo-objeto. Ele nos comanda a aspirar ao gozo sem limite e a qualquer preço. Contudo, em algum lugar encontraremos o limite, nem que seja o choque que se produz no encontro com o outro. Atualmente este choque faz com que se ouça um som parecido com “crack”. O efeito em geral é rapidamente visível: o consumidor não mais consegue deixar de obedecer ao comando da nova autoridade, impessoal, muda e repetitiva, na busca de manter um gozo ininterrupto. A entrada no contínuo deste gozo se chama morte, efeito maior da violência específica da nova felicidade. A única lei que impera é a afirmação de que não há Lei.

IHU On-Line - Por que a concepção de gozar sem limite se transforma em violência?

Mario Fleig -
Atualmente se multiplicam os relatos de usuários de crack que começam a fumar uma pedra atrás da outra e quando o estoque se esgota vão em busca de mais, passando por cima de qualquer obstáculo que se interponha à retomada do estado de euforia almejado. É certo que a remoção dos obstáculos não se fará sem uma violência desmedida e insana. Não há mais medida que possa conter a busca do paraíso alucinado. O bem ou o belo são completamente incapazes de constituir alguma barreira ao desvario em que se precipita o sujeito. Caso ele não seja contido física ou quimicamente, derradeira barreira será o gozo perpétuo que a morte lhe concederá. Assim, a violência, que atinge de modo brutal os objetos e os semelhantes, revelará seu alvo principal: violência contra si mesmo.

Em decorrência das consequências devastadoras do gozo sem limite torna-se relevante a investigação dos modos de produção de limite para um grupo humano e para um sujeito. Lacan reconheceu a tese freudiana do declínio da função paterna em nossa cultura como correlativa ao surgimento do mal-estar na civilização. Quando a referência à instância terceira (representada pelo Pai e seus correlatos) deixa de ter prevalência, surgem as condições para o aparecimento, tanto da desagregação do tecido social, quanto da desestrutura psíquica. Em seu lugar, podemos ver o surgimento de uma nova economia psíquica, na qual ocorre um deslocamento do lugar da autoridade. Se antes ela estava localizada nos representantes do pai, agora cada vez mais quem passa a comandar os sujeitos é o objeto a ser consumido.



Novas patologias

As novas patologias tomam diferentes direções, dentre as quais ressaltamos duas: a primeira diz respeito à facilitação para o surgimento de irrupções de paranóia social e individual, correlativas ao enfraquecimento dos operadores da função do terceiro. Dito de outro modo, presenciamos um incremento de relações duais, sem a intermediação do terceiro simbólico, ou seja, dispensando a mediação da lei. O efeito imediato da paranóia, tanto social quanto individual, é a instalação da relação “ou eu, ou ele”, ou seja, o conflito e jogo de forças feito diretamente com o semelhante, sem nenhuma possibilidade de haver o recurso a uma instância mediadora, enfim, sem nenhuma lei possível, a não ser a força na forma da violência. O sujeito se encontra à mercê do arbítrio da força do semelhante. A segunda aparece no incremento dos laços sociais organizados em torno da instrumentalização do outro, cujo modo mais flagrante na atualidade se constata na organização das trocas econômicas, regidas pela “lei de sempre levar vantagem”, deflagrador, provavelmente, da espiral da corrupção. Essa forma de patologia psíquica já havia sido descrita por Freud com a denominação de perversão.

IHU On-Line - A morte seria o único interposto nessa relação de desejo e violência? Por quê?

Mario Fleig -
A relação com o pai, sua função nomeante, é essencial, na perspectiva psicanalítica, para apreendermos que a fisiologia do desejo humano é feita de modo que uma renúncia ao gozo imediato e absoluto é necessária para poder desejar. O sujeito deve consentir em perder o gozo do objeto inteiramente satisfatório, metaforizado pela mãe. É em função da proibição do incesto que se organiza o que Lacan denomina o caráter fundamentalmente decepcionante da ordem simbólica. Deste modo, o pai se apresenta como aquele que ordenará essa renúncia ao gozo desmedido e absoluto, na medida em que ele está em jogo apenas como representante da Lei da linguagem. É a linguagem e suas leis que tornam o incesto impossível. Para habitar o mundo mediatizado pelas palavras, o sujeito teve de consentir em perder o gozo imediato das coisas. Paradoxalmente, a natureza do homem é, então, ter perdido o natural. O uso da linguagem indica a necessária passagem pela alteridade para constituir a subjetividade, o que implica a diferença e disparidade entre os sexos. Não há um sexo sem o outro, e consentir com a impossibilidade de haver apenas um sexo ou haver paridade absoluta com o outro constitui o suporte do estabelecimento do limite, ou seja, que se constitua borda em torno da falta estruturante do desejo. Em outras palavras, a identidade humana é inteiramente construída na alteridade.

Subjetividades inacabadas

Ora, quando o bom funcionamento da linguagem falha, e o consentimento em se submeter à perda que falar implica é recusado, temos o aparecimento de subjetividades inacabadas, que não puderam se confrontar com o limite que a consistência da alteridade impõe. Estes sujeitos ou neo-sujeitos tenderão a buscar o limite em um sistema aberto, ou seja, sem o auxílio da alteridade que venha sinalizar o ponto do limite. Além disso, tomados na aspiração de gozar sem limite, encontrarão o limite demarcado pelo impossível radical: a morte. Antes disso, encontramos os equivalentes da morte em formas de se bater, bater no outro, bater nos objetos, descontrole corporal etc. Estas formas vão desde a hiperatividade infantil (que pode ser uma forma de depressão infantil), denominada de Transtorno de Déficit de Atenção (TDA), até o descontrole adolescente que se evidencia em forma de bater e se bater. Acresce-se a isso a potencialização desta vontade sem limite pelos meios tecnológicos que torna a aspiração à morte ainda mais violenta. Todos sabemos o que pode acontecer se um sujeito que se bate e bate nos outros e nos objetos tiver à sua disposição substâncias que o turbinam e uma arma de repetição.

IHU On-Line - Em que medida a crise de legitimidade apontada por Arendt e Habermas explica a irrupção da violência em nossa época?

Mario Fleig -
A crise de legitimidade apresenta, por exemplo, efeitos deletérios no cotidiano da vida coletiva quando o funcionamento não se ancora no estabelecimento da diferença dos lugares e não mais implica no reconhecimento espontâneo, por todos, da prevalência de um desses lugares sobre os outros. A diluição da legitimidade de um lugar diferente dos outros, que garanta a legitimidade e a autoridade de quem o ocupe tem como resultado a paralisia do projeto coletivo ou o retorno à lei do mais forte.
Hannah Arendt caracterizou a crise de legitimidade como sendo a condição de vida em um domínio político sem a autoridade nem o saber concomitante de que a fonte da autoridade transcende o poder e aqueles que estão no poder se encontram novamente confrontado, sem a confiança religiosa em uma origem sagrada, nem a proteção de normas de conduta tradicionais, com os problemas elementares do convívio dos homens.

Frente ao dilema gerado pela crise de legitimidade, alguns almejam o retorno à autoridade de ontem, e até mesmo preconizam o estabelecimento de uma autoridade forte, o passo será tanto mais rapidamente transposto que aquele que sofre da falta de reconhecimento compartilha espontaneamente a ideologia ambiente da exigência de paridade democrática e, não vê, por conseguinte, nenhuma correlação entre a diluição da autoridade e o mal-estar de que é o objeto.

Arendt examina a questão no caso exemplar do sistema totalitário, como foi o sistema nazista, no qual o sujeito se encontra em dificuldade pelo fato do desaparecimento do que funda a legitimidade, ou seja, a terceiridade. Para ela, o regime totalitário explodiu a própria alternativa sobre a qual repousava todas as definições da essência dos regimes na filosofia política: a alternativa entre regimes sem leis e regimes submetidos a leis, entre poder legítimo e poder arbitrário. Com o regime totalitário, estamos em presença de um gênero de regime totalmente diferente, pois ele desafia todas as leis positivas, visto que jamais opera sem ter a lei por guia e também não é arbitrário, pois pretende obedecer rigorosamente e sem equívoco a essas leis da Natureza e da História das quais todas as leis positivas sempre supostamente se originaram. Não podemos aqui discutir o alcance da proposta de Arendt, que nos indica que o sistema totalitário como aquele que teria substituído a evaporação da autoridade, ou seja, o desaparecimento da legitimidade do terceiro. A produção característica do sistema nazista foi o campo de concentração, imposição de uma ordem de ferro, que não deve ser considerada uma anomalia do passado, mas antes como a matriz do espaço político no qual ainda vivemos.

IHU On-Line - As figuras de autoridade foram destruídas na pós-modernidade, mas o lugar por elas ocupado continua a existir. Como é possível operar esses lugares?

Mario Fleig -
Somos tomados em uma confusão entre a crítica radical ao autoritarismo e ao modelo patriarcal e a suposição de que teria havido a destruição do lugar de exceção que legitima o exercício da autoridade e do poder, ou seja, a suposição de que estaríamos liberados da referência paterna. Ligado a isso, também ocorre uma recusa de que estejamos submetidos à linguagem e ao fato que o objeto capaz de causar o nosso desejo e satisfazê-lo seja um objeto radicalmente perdido. Ora, a disparidade de lugares se impõe pelas leis da própria linguagem. Quando alguém toma a palavra e a sustenta, produz-se uma disparidade entre aquele que fala e aquele que ouve. Contudo, o lugar prevalente não está colado ao falante, visto que no momento seguinte ele pode ceder este lugar para outro e vice-versa. O que sabemos é que o não reconhecimento do lugar de exceção e a autoridade de quem o ocupa tende a gerar uma grande confusão no convívio humano, que não pode ser bem resolvido pelo consenso ou pelo contrato. O problema que enfrentamos hoje na vida com os outros é que solução encontrar que não seja o restabelecimento da autoridade de ontem, mas que, ao contrário, reconheça a diferença dos lugares e a prevalência do lugar de exceção, e não recuse o impossível a que este nos permite – mas, também, nos intima – a nos confrontar.


Lacan e Freud



Lacan, em sua interrogação sobre o que seria uma ética da psicanálise, afirmou em 1965, em seu seminário Os problemas cruciais para a psicanálise, que “ser psicanalista é uma posição responsável, a mais responsável de todas, pois que ele é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo.” Portanto, é para a responsabilidade de um novo convívio entre os homens que estamos sendo convocados.

IHU On-Line - Por que não há suficiente endereçamento do ódio que se produz ao terceiro? O que quer dizer quando afirma que esse ódio não é dialetizado?

Mario Fleig -
Freud postulou que o amor e o ódio são dois integrantes fundamentais da formação psíquica de cada sujeito, sendo que o segundo tende a não ser reconhecido ou até mesmo posto para baixo do tapete, além de ser mais primitivo do que o amor.

Jean-Pierre Lebrun, em O futuro do ódio (Porto Alegre: CMC, 2008), retoma a questão do ódio em razão da afirmação de Freud de que o ódio seria mais originário do que o amor. Lacan esclarece que o motivo fundamental dessa precedência deve-se ao fato que o ódio é sempre primeiramente o ódio contra o Simbólico, que se instaura com um furo na consistência narcísica, ou seja, ele se produz a partir da introdução da criança na fala e na linguagem. Assim, o ódio se endereça em primeiro lugar contra aquele que ocupa o lugar de terceiro, ou seja, o pai. Se hoje assistimos a evaporação da legitimidade do lugar de autoridade e igualmente de seu ocupante, o ódio tende a se tornar impessoal e sem endereçamento, o que impede que ele possa sofrer uma adequada elaboração e ser sublimado. Pelo contrário, ele tende a perdurar em estado bruto, irrompendo ao menor sinal de oposição ou limitação, na forma de desmedida violência.

IHU On-Line - Em que aspectos podemos dizer que o discurso da ciência é um dos fatores que sedimenta a impessoalização da fala e, por conseguinte, da desresponsabilização do sujeito?

Mario Fleig -
Quando consideramos os efeitos sociais e psíquicos da ciência moderna passamos do campo da epistemologia das ciências para o âmbito do laço social e da vida cotidiana, no que então denominamos, seguindo Saussure e Lacan, de discurso. Discurso, neste sentido específico, se refere àquilo que constitui laço com o outro, ou seja, o que permite estabelecer relação com o semelhante e permite inscrever subjetiva e socialmente as interdições e as impossibilidades. A linguagem da ciência é imprópria para tal função, visto que de saída, especialmente a linguagem da ciência moderna, requer a forclusão do sujeito da enunciação, buscando-se então o encadeamento de enunciados acéfalos e rigorosamente justificados. A ciência moderna, com base na invenção do genérico realizada por Sócrates, se ancora na redução da totalidade dos entes diversos ao objeto unificado como res extensa, que assim se torna apto para que seja feita a matematização da natureza. A mensuração do ente dispensa, de saída, o lugar e a função do sujeito implicado em cada enunciado.

Mas, então, como se poderia falar de “discurso da ciência”, visto que a linguagem científica não faz laço social? Parece contraditório, contudo a denominação “discurso da ciência” faz referência aos efeitos da linguagem científica na vida cotidiana. Podemos dizer que a linguagem objetiva da ciência moderna tende a invadir e colonizar o mundo vivido. O efeito mais surpreendente da entrada das linguagens formais na vida cotidiana é a expansão dos entendimentos da vida a partir de linguagem impessoais, ou seja, conjunto de enunciados sem sujeito e que dispensam a função nomeante do pai (a autoridade de quem ocupa um lugar de exceção), ao mesmo tempo em que promovem a anulação da responsabilização do sujeito que ali estaria implicado. A responsabilidade passa a ser do sistema, mas como este é acéfalo, não há mais ninguém a quem imputar a responsabilidade. Não temos mais chefes, mas apenas gestores.
Em contrapartida, temos que reconhecer que, nas práticas sociais vigentes na modernidade, sempre foram as grandes tradições religiosas que mantiveram o exercício da fala engajada, apostando no compromisso da palavra empenhada. E é precisamente desse elemento nada científico dessas tradições que Freud faz uso em sua descoberta. Por isso, podemos afirmar que Freud, como o reconhece Lacan, reintroduz no campo da ciência o sujeito da enunciação, que dali havia sido banido.

IHU On-Line - E por que os enunciados da ciência não produzem laço social?

Mario Fleig -
Como já adiantei acima, posso dizer em outras palavras que oferecer um presente para a pessoa amada, por exemplo, utilizando termos científicos resultará em uma impossibilidade de constituir um signo de amor. Se ofereço cravos vermelhos à minha amada e lhe digo para receber o vegetal de tal espécie certamente que causarei um espanto. Lacan introduz a distinção entre a função do pai como nomeante e o “nomear para”, salientando que o Nome-do-Pai está diretamente ligado ao amor, ao passos que o “nomear para” tem a função de estabelecer a ligação entre enunciados. O discurso da ciência encontra seu efeito maior naquilo que Lacan denomina de discurso do capitalismo, cujo operador maior é o dinheiro, o objeto mais unificado que conhecemos e que funcionam na mais completa forclusão do sujeito. O dinheiro circula de modo a apagar todos os vestígios do sujeito que ela pudesse estar. Acontece de às vezes recebermos notas de dinheiro com as marcas de usuários precedentes, mas que não fazem diferença alguma. Podemos evocar que Lacan afirma, em O saber do psicanalista, que “todo discurso que se aparenta com o capitalismo deixa de lado o que nós denominaremos simplesmente as coisas do amor”.

O neolibealismo, com seus corolários de globalização e de promessa de gozo sem limites e para todos, produz efeitos na própria economia e igualmente efeitos subjetivos importantes. Na realidade, se trata de mutações nas formas de trocas entre os seres humanos. Ora, desde sempre sabemos que aquilo que organiza o social, e dentro deste, os sujeitos, é o sistema de trocas, que nunca se restringe apenas às trocas de bens, ou seja, as trocas econômicas. Classicamente, como nos ensinaram os sociólogos e antropólogos, os povos se organizam em torno de três formas relacionadas de trocas: troca de bens (economia), trocas de mulheres (relações de parentesco) e troca de palavras (lei simbólica). Podemos supor que a primazia da troca de bens, desconectada das duas outras, produz efeitos desorganizadores dos discursos sociais, ou seja, provoca patologias no laço social, com efeitos psíquicos salientes. Em razão disso, podemos levantar a hipótese de que a condição pós-moderna tem uma nova economia psíquica correlata, que poderia ser caracterizada em uma frase: o imperativo de gozar a qualquer preço, não importa qual, mesmo que seja ao preço do outro.

Reintrodução do sujeito na ciência moderna

Freud contribui e acompanhou de perto o surgimento de quatro grandes inovações do final do século XIX: a descoberta do poder anestésico da cocaína, precursor dos psicofármacos; o nascimento da neurologia; o uso científico do poder da sugestão; e o tratamento psicanalítico. Ele abandonou a cocaína pelo amor (casou-se com Martha), deixando os méritos das descobertas subsequentes para seus colegas; tomou progressiva distância da neurologia (nunca quis retomar seu importante esboço escrito no final de 1895 – Projeto para uma psicologia científica); abandonou o uso da hipnose como técnica de tratamento psíquico (Freud teria feito fortuna se tivesse se dedicado a elaborar uma psicologia de auto-ajuda, visto que chegou decifrar a lógica da sugestão); em contrapartida, dedicou-se ao mais demorado e mais difícil: o tratamento pela fala do analisante. Esta escolha de Freud indica que nunca aceitou submeter-se às leis locais (esta seria a posição tomada pelo nazismo, que obedecia apenas às leis da raça pura, recusando qualquer princípio do direito situado acima de cada povo), o que seria cair em uma posição antropocêntrica (entendida aqui pelo princípio de que o homem seria a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são, como enunciou Protágoras) . Pelo contrário, requerer a mediação da fala na relação com o semelhante é contar com a operação da lei organizada a circulação e a troca. Assim poderíamos interpretar a postulação de Freud de que todos os problemas dos seres humanos têm uma relação com o pai. Isso não impedia Freud de ser uma crítica contundente das religiões.
Talvez Lacan tenha nos ajudado a esclarecer esta questão, lembrando que a crítica freudiana se endereça à religião, não tendo efetivamente se ocupado da teologia. Uma das formulações originais de Lacan é a categoria do Outro, que designa um lugar vazio, mas também potencialmente todo elemento da linguagem que possa se inserir na enunciação e dar a ouvir o que diz respeito a uma outra coisa, ao inconsciente. Ora, isso é uma leitura da estrutura formal da mais genuína teologia trinitária de Santo Agostinho. A psicanálise freudiana, calcada na ciência moderna, promove a crítica desta, na medida que ela opera a exclusão do sujeito da enunciação de seu campo (a subjetividade perturba o bom funcionamento da ciência). Por mais estranho que pareça, a psicanálise é uma ciência moderna que propõe a reintrodução do sujeito da enunciação no cerne de seu procedimento.


quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O espelho quebrado


O MOMENTO DA PSICANÁLISE

Por: Fábio Herrmann

Os seres humanos são pessoas muito estranhas e até absurdas. Se você já o percebeu, acho que andou a terça parte do caminho para se tornar psicanalista. O segundo terço do caminho consiste em aprender algumas coisas: o método, a teoria e a técnica psicanalíticos, de que lhe vou falar um pouco neste livrinho. Quanto à última e mais difícil etapa, que é a de você mesmo descobrir que é também uma pessoa estranha e absurda, isto é, que é um ser humano, lamento não poder ajudá-lo a percorrer, pelo menos escrevendo: talvez fosse preciso fazer análise.


Todavia, como estava dizendo, os homens são pessoas estranhas e absurdas. Enquanto outros bichos têm relativamente pouco trabalho em construir sua residência, porque parecem satisfeitos com o mundo que encontram — o que os cientistas chamam "sistemas ecológicos" —, os homens têm passado seu tempo tentando construir uma casa para si, gastando nisso um trabalho insano, sem nunca ficarem contentes com o resultado. Construíram instrumentos de osso e de eletrici­dade; domesticaram as plantas, os primos animais e até seu próprio pensamento selvagem; edificaram cidades, sistemas filosóficos, ciência e tecnologia. Tudo fizeram para ter um mundo sob medida, quer dizer, um mundo na medida humana.

Mas não desprezemos os homens por causa disso. Coitados, eles talvez não tivessem outro jeito de sobreviver! Em primeiro lugar, quando os bebês humanos nascem e por longo tempo depois são muito indefesos e incapazes para a vida: não conseguem comida sozinhos, não sabem defender-se do frio, queimam-se com a própria urina etc. Logo, era mesmo necessário viver em grupo, construir abrigos e um sistema social. Por outro lado, os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer de comer e o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso — coisa a que os psicanalistas chamam "satisfação aluci­natória do desejo". Alguns talvez até morram de fome, sonhando, sonhando. Por fim, enquanto os animais ferozes quase nunca matam os de sua espécie — "inibição da agressividade intra-espeçífica—, é como os estudiosos do comportamento animal (ou etólogos) chamam a essa prova elementar de sensatez —, os homens chegam a gostar de fazê-lo. Para sobreviver, então, ou pelo menos para se poderem dominar e matar civilizadamente, foi preciso que os homens domesticassem a natureza.

Por que, entretanto, esse trabalho não tem fim e nem é considerado satisfatório? Bem, se você pertence a uma família mais ou menos rica, prova­velmente já mudou de casa algumas vezes. De cada vez, a casa era perfeita, não é verdade? — construída sob medida para o desejo de sua família, com tantos quartos, garagens e televisões quantos bastassem para fazê-los felizes —, porém, quando lá moravam, descobriam que ainda não estavam satisfeitos nem felizes. Aí mudavam, reformavam a casa ou compravam um videocassete; e, insatis­feitos ainda, tornam a mudar ou instalam uma mesa completa de som. Se esta é sua história habitacional, não se culpe, nem a seu pai: culpe a casa; e estará bem integrado com o resto da humanidade.




É que a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos,não sabemos bem o que desejamos.

Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que "somos dese­jados" desta, ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e, dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito freqüentes. Ora, se o tempo e o espaço são infinitos demais, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?

Numa palavra, ao domesticar o mundo, os homens irritam-se ao ver que construíram uma casa que os retrata maravilhosamente bem, que exprime seu desejo, tanto naquilo que gostam, como naquilo, que odeiam — a esta última parte de seu desejo chamam desumana, dizem que não ,é deles, que é um resto que deve ainda ser dominado.

Talvez por esta última razão, a construção do mundo humano se tenha ultrapassado. Você já viu alguém fazer uma lição com má vontade, pensando que quer realmente fazê-la bem. Aparecem erros a cada linha, manchas de tinta, lapsos de português, e o estudante começa a escrever adoidado, obsessivamente, errando e copiando errado. Assim, a espécie humana adquiriu uma estranha obsessão de domesticar, familiarizar, educar. Se seus pais o educaram assim, você provavelmente será exatamente como eles o desejaram; e, no entanto, tanto eles como você mesmo terão a impressão de que tudo saiu às avessas, pela simples razão que ambos ignoram boa parte do modelo que foi impresso e não o reconhecem depois de pronto. Domesticar significa adaptar às normas da casa (que em latim se diz domus); familiarizar significa tornar algo familiar, como que "da família". Mas, como os homens negam-se a admitir grande parte de seu desejo, quanto mais doméstico e familiar vai ficando o mundo, mais estranho e desumano lhes parece. Desumano, que calúnia!

Sucedeu então que este grande projeto de construir um mundo à medida humana, que é o de todas as culturas, acelerou-se subitamente e estreitou-se. Uma das maneiras de realizá-lo parece dominar todas as outras; e, não tendo contra quem competir, pôs-se a tentar ser mais veloz que a própria sombra. Nem é preciso dizer que a maneira dominante é a civilização tecnológica, a qual se vale de uma racionalidade exacerbada, de cálculo, medida das Ciências Naturais, tendo a Física por modelo. Quanto à sombra, é o que veremos mais adiante.

Por enquanto, basta observar que o mundo onde vivemos, sobretudo nas grandes cidades, tornou-se tão construído, tão fabricado, que uma crise muito curiosa se desencadeou. As pessoas come­çaram aos poucos
a duvidar de que o lugar onde vivem seja mesmo real. Antes, quando o contato com a natureza era mais estreito, nos tempos em que qualquer criança podia ver, digamos, ordenhar uma vaca, a sensação de realidade vinha diretamente desse tipo de experiência: podia-se dizer real como uma pedra ou como uma árvore. De repente, contudo, os fatos começam a vir pelos jornais, depois pela televisão, e você tem de se perguntar, a cada momento, se o que ouve e vê é assim mesmo, se é uma interpretação ou se é uma tentativa de enganá-lo. Quer dizer, a realidade começou a perder confiabilidade.

As máquinas funcionam hoje quase como gente, as pessoas quase como máquinas. A cada ação que você pretende executar, fica sempre a dúvida se não está servindo a um propósito que ignora e que talvez ache abominável. Se você quer ser original, se quer recusar tudo o que está por aí, acabará provavelmente descobrindo que faz parte duma indústria da originalidade, usando um uniforme de original.

Pois bem, a ruptura com a natureza e a fabri­cação excessiva da nossa vida cotidiana constituem exatamente o êxito completo da construção da casa dos homens. Mas o homem mesmo não se sente à vontade na casa que criou. Esse retrato que vê no seu mundo parece-lhe absurdo. Ele se pergunta: "Sou assim?". E responde: "Claro que não; é que falta dominar, organizar e calcular uma última coisa, a mente humana".





Veja que estranho. A loucura do nosso mundo é simplesmente o resultado da maneira pela qual o construímos. Porém, preferimos dizer que essa espécie de sombra, a irracionalidade das relações entre os homens e a irrealidade do mundo cotidiano, é produto de outra coisa, não da razão, mas da falta de razão, da loucura. Assim, lá pelos fins do século passado, fez-se um grande esforço para compreender a loucura, para medi-la, para dividi-la em tipos e explicá-la cientificamente.

No começo isso não deu muito resultado. É verdade que surgiu uma classificação das doenças mentais que até hoje é bastante útil. Mas, em matéria de cura, pouco avanço houve. Principal­mente, a loucura do dia-a-dia permanecia inexpli­cável e intratável.

E foi assim que nasceu a Psicanálise. As Ciências Exatas tiveram de pedir ajuda -a uma espécie de primo pobre: a interpretação. Só a interpretação era capaz de abarcar os sonhos, as emoções, a loucura etc. Até aí, tudo bem. Entretanto, ao procurar elucidar a loucura — domínio que se lhe havia concedido —, o método interpretativo acabou tendo de ir mais longe, por descobrir que aquilo que não parecia ser loucura, a vida comum, não era também muito diferente. Posta em movi­mento, a interpretação não se soube deter, nem é bom que se detenha, como veremos no próximo capítulo, que trata do método interpretativo da Psicanálise.

Tudo se passa como numa história de fadas, quando depois de chegar ao limite da pobreza a princesa recebe o príncipe e o reino — ou quando depois de gozar da maior felicidade ao abusar um pouquinho mais da sorte, um homem se desgraça. Vamos chamar a isto "princípio do absurdo": quando algo chega ao limite e ultra­passa-o, transforma-se em seu contrário. Em nosso caso, o projeto de tornar bem racionais todas as coisas, quando pretendeu dominar uma fran­jinha que faltava, a loucura, criou um instrumento capaz de entender e curar a loucura, é certo, mas que, junto com ela, entende e mostra irraciona­lidade e loucura onde não se suspeitava que houvesse. A história das idéias é assim: irônica e vezes, vingativa. Vingança foi fazer ver ao homem que, no desconhecimento de seu próprio desejo, criava o que queria e o que não queria, sendo portanto absurdo para si , mesmo. E isto quando ele pretendia erradicar os restinhos de absurdo e loucura de seu mundo.

Aliás; a atmosfera de conto de fada não pára aí. Só nas histórias infantis é que uma pessoa isolada inventa algo que modifica o mundo, e o faz quase sozinho. Nossa ciência, infelizmente, sugere que o impossível aconteceu. Com efeito, Freud, prati­camente só, inventou um método para interpretar o lado irracional, ou melhor, o lado da mente que obedece a regras duma racionalidade diferente daquela da consciência. Digo infelizmente, porque isso aumenta muito a dificuldade que temos os psicanalistas, de continuar e, eventualmente, vir a superar sua obra. Penso que os grandes psicana­listas estão, quase sempre, começando de novo.

É claro que Freud não estava interessado, origi­nalmente, em denunciar toda a loucura da crise do real de que há pouco eu falava. Como um médico honesto, ele queria curar doenças. Foi assim que se dedicou a tratar doentes histéricos — pessoas que sofriam de ataques de angústia, de paralisias ou dores sem causa orgânica (física) e outros sintomas parecidos. Pode-se dizer que, ao tentar fazê-lo, foi como se puxasse o gatilho do "princípio do absurdo", pois dos sintomas histéricos teve de passar aos sonhos, dos sonhos aos atos falhos — por exemplo, esses escorregões de linguagem, tão inoportunos, que nos fazem dizer a verdade quando não queremos — e daí à vida mental como um todo. Isso, porém veremos ao longo de nosso livrinho.





No momento, apenas desejo que você guarde a idéia central. O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso e o homem a ver-se, malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo. Ora, se a Psica­nálise foi inventada por uma pessoa chamada Freud, no fim do século, em Viena, a idéia psicanalítica — isto é, o método interpretativo —não foi inventado ninguém. Ela era a resposta certa para o problema da loucura de nosso tempo. Por assim dizer, quando o momento estava maduro, saiu do lugar onde esta guardada, no grande depósito das idéias dominantes numa dada época, para vir a habitar a ciência que Freud fundou. Sua missão, portanto, é apresentar ao homem o absurdo que o constitui e, se possível, ajudá-lo a reconciliar-se com ele, com o absurdo, e consigo mesmo.




Fonte: "O QUE É PSICANÁLISE", Fábio Herrmann, Abril Cultural / Brasiliense, 1984


(Extraído do Blog Holosgaia)

domingo, 18 de maio de 2008

A sociedade do narcisismo e da melancolia



De que maneira a sociedade contemporânea, marcada pela contínua desvalorização do passado e pela promoção crescente do narcisismo, está condenada à melancolia?

Por Luciana Chauí Berlinck

A melancolia (palavra que em meados do século 19 começa a ser substituída pelo termo depressão) é considerada a doença mental contemporânea, e cabe indagar como nossa sociedade facilita o surgimento dessa patologia. Não faremos distinção entre melancolia e depressão. Para muitos, a depressão é uma patologia orgânica, que transparece psicologicamente como tristeza profunda ou melancolia. Ou seja, esta é um sintoma daquela. Em contrapartida, para Freud, não há diferença entre uma e outra. Ambas exprimem o mesmo fenômeno, embora possamos considerar a depressão um sintoma da melancolia, uma vez que a palavra "depressão" significa rebaixamento, ou seja, uma diminuição das atividades, que pode ser tanto orgânica quanto psíquica.

Em "Luto e melancolia", Freud apresenta uma analogia entre melancolia e luto. A diferença entre ambos decorre da ausência de disposição patológica no luto e da presença dela na melancolia. Psicanaliticamente, uma "disposição patológica" é uma série de condições da vivência pessoal que faz alguém reagir sempre de uma certa maneira aos acontecimentos. Ao contrário da melancolia, no luto não há disposição patológica porque, embora leve a um afastamento das atitudes normais para com a vida, não é duradouro, não define um modo constante de viver e se espera que a anormalidade seja passageira, não necessitando de tratamento médico. No caso da melancolia, a predisposição patológica é dada pelo narcisismo: como este foi vivenciado e porque o indivíduo ficou fixado nele. Freud enumera os traços distintivos da melancolia, os mesmos encontrados no luto, com uma única exceção: a perturbação da auto-estima não é encontrada neste último. Os demais traços comuns a ambos são: desânimo profundo e penoso, perda de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, afastamento de toda e qualquer atividade. Reação à perda de alguém que se ama, no luto a falta de interesse pelo mundo externo se dá porque este não traz de volta o objeto perdido; a falta de capacidade para amar outros ou outras coisas ocorre por não se ter a capacidade de substituir o objeto perdido por um novo objeto, fazendo com que a única atividade possível seja "realizada com a memória do ser querido".

Freud fala no "trabalho do luto", cujo objetivo é desinvestir o objeto perdido, renunciar a ele, levando a libido (a energia psíquica) de volta ao eu para que este possa desejar um outro objeto. De fato, ao sentir a falta do objeto, o sujeito enlutado descobre que era precisamente esse objeto desejado que, perdido, não pode ser substituído por outro, e a libido se volta para o objeto ausente por meio de lembranças e expectativas que o sujeito se recusa a abandonar. O trabalho do luto consiste em evocar as lembranças e investi-las fortemente uma a uma, de maneira a que, paulatinamente, a energia psíquica se desligue delas. O luto revela um traço constitutivo da humanidade do homem, isto é, a maneira de experimentar a ausência.

Perda e luto
Como o luto, a melancolia é também reação à ausência, à perda de um objeto amado. Nela, porém, a perda é de natureza mais ideal e inconsciente: "O melancólico não sabe o que perdeu", escreve Freud. A melancolia é, pois, a reação inconsciente a uma perda, seja ela real ou imaginária, seja conhecendo-se ou não o objeto perdido, seja conhecendo-se o objeto sem que se saiba o que se perdeu com ele. Nos dois casos há um empobrecimento e um vazio; contudo, no luto, isso ocorre em relação ao mundo, enquanto que, na melancolia, em relação ao eu. Enquanto o trabalho do luto tem como objetivo liberar o eu para que possa "viver" outra vez, na melancolia o sujeito experimenta desprezo por si mesmo, não busca a vida nem preza o instinto de viver. O que chama a atenção de Freud, de um ponto de vista psicológico, é a diminuição da pulsão de vida, e quando o melancólico busca a morte, compreende-se seu caráter patológico. Freud, ao introduzir a noção de inconsciente, introduziu também a exigência de que o médico ouvisse e levasse a sério o discurso de seus pacientes, signos visíveis de acesso ao invisível, entendido como o sentido. A revolução psicanalítica consiste em ouvir o paciente, não para desmenti-lo, e sim para compreender o sentido da imagem que tem de si mesmo. O melancólico tem satisfação ao comunicar seus defeitos, julgando com isso apresentar-se tal como é. As auto-acusações do paciente, explica Freud, não são totalmente desprovidas de razão, ainda que não haja correspondência entre o grau de autodegradação e sua justificativa real.

É exatamente isto que permite diferenciar a melancolia do luto: a fala e o comportamento do melancólico levam a uma conclusão surpreendente, pois o objeto amado perdido é o próprio eu. O outro (perdido) é o eu. Admitir que o paciente está descrevendo o que realmente se passa nele significa admitir que a perda se refere à auto-estima e que, portanto, o eu está perdido para si mesmo.

Freud descreve a melancolia como um fenômeno psíquico de caráter representacional, ou como uma "neurose de defesa". Em termos freudianos, a defesa nada mais é do que um mecanismo pelo qual o eu procura proteger-se das excitações ligadas a representações que lhe são incompatíveis (incompatíveis porque lhe causam dor ou sofrimento). A melancolia é um tipo peculiar de defesa, que Freud designa como "neurose narcísica", na qual a capacidade do sujeito de estabelecer vínculos libidinais (ou de energia psíquica) com os objetos está prejudicada ou mesmo perdida.

O outro é o eu
Todos nós partimos de uma "escolha objetal", isto é, da ligação da energia psíquica a determinada pessoa; pode ocorrer, a seguir, que a escolha seja abalada por um acontecimento real ou não, algo concreto, ou um sentimento, ou uma fantasia. Este leva à perda do objeto, ou seja, leva a libido a desligar-se dele. Se a energia psíquica tomar um caminho normal, liga-se a outro objeto. Ora, na melancolia, a energia psíquica livre se recolhe no eu e estabelece uma identificação entre este e o objeto perdido. Com essa identificação, entramos no núcleo da melancolia, qual seja, a perda do objeto passa a ser perda do próprio eu e o conflito que existia entre o eu e a pessoa amada passa a ser o conflito entre a crítica do eu e o eu. O "outro" é o outro e simultaneamente o próprio eu, que mimetizou esse outro, identificando-se com ele e o perdendo, donde a neurose ser narcísica.

A melancolia nos ensina muito sobre todos os humanos. De fato, no ponto de partida do desenvolvimento de nossa vida psíquica, há um momento claramente narcisista, pois, como explica Freud, definido como a condição em que o sujeito toma a si mesmo como objeto de amor, o narcisismo implica superestima, uma vez que no narcisismo infantil destaca-se a vivência prazerosa da criança de sentir-se especial, perfeita, de que são superestimadas sua beleza, sua inteligência e todas as suas qualidades, enquanto seus defeitos são negados ou esquecidos. Dessa forma, o amor do narcisismo se caracteriza pela idealização de si - um eu ideal. A libido descrita como narcisismo reivindica um lugar no curso regular do desenvolvimento sexual humano. A melancolia é a fixação no estágio infantil do narcisismo, quando a energia psíquica livre retorna ao eu e, por ter havido uma identificação narcisista com o objeto, é ao narcisismo que a libido retorna. A identificação narcisista com o objeto vem substituir a relação com o objeto, resolvendo assim o conflito entre o sujeito e a pessoa amada.

Caso o indivíduo no início da vida sofra sucessivos desapontamentos amorosos, o narcisismo infantil fica gravemente ferido e ele sente-se totalmente abandonado; isso gera as primeiras crises de depressão. A impossibilidade de referir-se a um passado de lembranças amoráveis define a situação da gênese psicológica da melancolia.

Se concordarmos com Freud em considerar a melancolia uma neurose narcísica, vale a pena observarmos as características da nossa sociedade, levantando a hipótese de que esta incentiva o surgimento de patologias narcísicas, entre as quais a melancolia. Idéia reforçada se, com Christopher Lasch ( A cultura do narcisismo), considerarmos não apenas que a cultura ocidental contemporânea estimula o narcisismo, mas também que a própria cultura é narcisista. Se uma cultura narcisista propicia o aparecimento da melancolia, podemos compreender porque a incidência de melancólicos (ou depressivos) é hoje tão grande.

Alguns traços permitem pensar a sociedade contemporânea como narcisista e promotora de narcisismo: o gosto pelo efêmero e a perda de referência temporal ao passado e ao futuro; a rápida obsolescência das qualificações para o trabalho, dos valores e das normas de vida e o prestígio do paradigma da moda; a competição como forma de constituição da identidade pessoal; o medo, gerado pela insegurança e pela competição; a perda da autonomia individual sob o poderio do "discurso competente" (a fala dos especialistas); a incapacidade para simbolização e o conseqüente fascínio pelas imagens e pela nova forma da propaganda e da publicidade, que não operam referidas às próprias coisas e sim às suas imagens (juventude, beleza, sucesso, poder) com as quais o consumidor deve identificar-se. Desses traços, a relação com o tempo, e a impossibilidade de simbolização sob o prestígio das imagens são importantes para a determinação da melancolia.

Sociedade narcisista
Nossa sociedade alimenta o gosto pelo efêmero; passado e futuro não são referências psicológicas e sociais predominantes, mas sim o presente como instante fugaz. Porém, a ordem humana surge exatamente como capacidade para simbolizar, isto é, para lidar com o ausente, e a primeira relação com a ausência é dada pela relação com o outro sob a forma do tempo, seja como relação com o morto - relação com o que se tornou ausente - seja como relação com a natureza por meio do trabalho, que torna presente o que estava ausente. A temporalidade, relação com a ausência, é, assim, decisiva para a realização do trabalho do luto, e a impossibilidade dessa relação temporal é o que opera na melancolia e dificulta (quando não impede) o trabalho de sua superação. Ora, a sociedade do efêmero, do tempo reduzido ao instante presente fugaz abandonou a densidade e profundidade do tempo, desencadeando a impossibilidade de simbolizar a ausência e, portanto, gerando depressão, isto é, a melancolia.

A sociedade narcisista desvaloriza culturalmente o passado, não sendo surpreendente que este apareça sob a forma da "nostalgia", como se o passado fosse o mesmo que velhos estilos e velhas modas sempre repostos pelo mercado como um bem de consumo volátil. De fato, sem interesse pelo passado, o narcisista também não se interessa pelo futuro, achando difícil a interiorização de associações e de lembranças felizes com as quais poderia enfrentar a velhice que, no seu entender, sempre traz tristeza e dor. A incapacidade para atar os laços do passado e do futuro coloca a sociedade e os indivíduos na mesma condição de Narciso, incapaz de amadurecer. Também a ameaça de catástrofes (de guerras de extermínio geral, desastres ecológicos irreversíveis, surgimento de novos vírus etc.) tornou-se uma preocupação cotidiana. E, assim, justifica-se viver o momento, o viver para si, e não para as gerações futuras. Perdeu-se o sentido de continuidade histórica, na qual as gerações se sucediam do passado para o futuro. A sociedade sem futuro se dispõe a um narcisismo coletivo.

Se a grande questão do melancólico é não conseguir lidar com uma perda, a perda inconsciente de si mesmo, da auto-estima, e sendo a sociedade atual marcada pelo descartável, ou seja, por perdas, o sentimento de ruína do indivíduo é explicado pela sua impossibilidade de sentir-se valorizado, de sentir-se capaz de corresponder a seu eu ideal, uma vez que ele próprio é descartável nesta sociedade. Se tudo é descartável e efêmero, tudo se torna imediatamente ruína e a própria sociedade, imersa em ruínas, é melancólica.

Nessa cultura do individualismo competitivo, o indivíduo é levado pelo desejo desenfreado da felicidade, identificada ao sucesso, sendo este identificado à supremacia pela eliminação do outro (eliminação que, se não é física, é moral e profissional). O propósito do indivíduo, porém, não é castigar o outro com suas próprias incertezas, e sim encontrar um sentido para a vida; por isso ele é perseguido pela ansiedade, desconfiando da competição por tê-la inconscientemente associado a uma enorme necessidade de destruição. Dessa forma, o narcisista ferozmente competitivo em busca de sucesso, portanto, de reconhecimento e aprovação, paradoxalmente só pode intensificar o isolamento do eu.

O núcleo da sociedade narcisista é a necessidade do espelho, isto é, das imagens. O indivíduo da cultura do narcisismo é aquele que depende do espelho dos outros para validar sua precária ou inexistente auto-estima, traço que, como vimos, marca indelevelmente o melancólico. Ficando a sós consigo mesmo, cresce sua insegurança, pois ele precisa de platéia e admiração.

Se tomarmos a relação dos indivíduos com as imagens produzidas pelos instrumentos produtores de realidade virtual e pelos outros meios de comunicação de massa, veremos repetir-se exatamente o que se passa no mito de Narciso. A imagem midiática, espelho que reflete uma imagem que deve ser desejada ou desejável, é, por sua irrealidade, inteiramente inalcançável. Há um abismo entre o dever-ser da imagem e o ser do indivíduo que, identificando-se com a imagem, sente-se distante de si e experimenta uma perda contínua.

Isso é tanto mais relevante para compreendermos a extensão assumida pela melancolia (com o nome de depressão), quanto mais levarmos em conta que as mensagens midiáticas, visando à sedução, operam com simulacros, imagens do real intensificado, dotado de uma aparência mais real do que o próprio real, para torná-lo absolutamente desejável. Isso significa que a identificação por meio do espelho ou da imagem inalcançável e absoluta impossibilita uma identidade pessoal positiva ou afirmativa e instaura uma identidade negativa ou por falta. Eis a razão por que um dos traços mais marcantes da experiência contemporânea é o auto-exame corporal e psíquico incessante com a finalidade de detectar imperfeições, incorreções e faltas por comparação com a imagem hiper-real ou virtual. Não poderia ser mais óbvia a conseqüência: tem um nome preciso uma experiência contínua de falta e perda, de desconhecimento de si por identificação negativa com um outro que é o próprio eu. Chama-se melancolia.

Luciana Chauí Berlinck é psicanalista, autora do livro Melancolia: Rastros de dor e perda (no prelo).

Fonte: Revista Cult
(http://revistacult.uol.com.br/website/news.asp?edtCode=20E706E2-C7EC-40FD-A886-92E8D595EDB7&nwsCode=29EFC61B-9111-440E-9EA9-0CF38AB9BB10)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Maneiras de ser, maneiras de sentir do indivíduo hipermoderno






Por: Claudine Haroche


Diretora de Pesquisas do CNRS; Membro do Cetsah (Centro de Estudos Interdisciplinares: Sociologia, Antropologia e História), na École d'Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. 85 rue d'Assas, Paris 75006. clharoche@aol.com




Fonte: (Ágora (Rio J.) vol.7 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2004)


RESUMO


A fluidez das sociedades contemporâneas, intrinsecamente destituídas de limites, provoca modificações das estruturas, suscetíveis de colocar em causa a possibilidade mesma de estruturação, até mesmo da existência do eu. Indaga-se, aqui, se as maneiras – mais fundamentalmente a capacidade de sentir –, declinaram "em se sentir", separadas doravante do fato de experimentar sentimentos, não seriam agora sinônimo de sensação.
Palavras-chave: Indivíduo, sentido, sentimento.


ABSTRACT


The fluidity of the contemporary society, intrinsically destituted by limitations, induces structural modifications, susceptible of putting in grounds the same possibility of structuralization, even so at the existence of the I. It is questioned here if the reasons – most fundamentally the capacity of feeling – declined to "feeling", separated from the experimentation of feeling, wouldn't them be, now, synonym of sensation.
Keywords: Individual, sense, feeling.


"Quando nos preocupamos, como eu há meio século, com o problema da relação entre indivíduo e sociedade, revela-se de forma evidente que esta relação não é fixa." (N. ELIAS, La société des individus )





Em 1938, Mauss publica "Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de 'eu'", texto fundador, que foi lido, comentado e criticado e fomentou numerosos outros escritos.1


Marcel Mauss



Interessado na história social da "noção de pessoa e da noção de eu", Mauss formulou o problema em toda sua extensão, mas de forma muitas vezes imprecisa, intuitiva – será criticado por isso –, e profundamente estimulante.


Escreve:


"Desculpem-me se, resumindo certo número de pesquisas pessoais e inúmeras opiniões de que podemos traçar a história, adianto mais idéias do que provas [...]. É evidente, sobretudo para nós, que jamais existiu um ser humano que não tenha tido o sentido não apenas do seu corpo, mas também de sua individualidade ao mesmo tempo espiritual e corporal." (MAUSS, 1950/1983, p.359)2


Mauss afirma que "a noção de pessoa, longe de ser uma idéia primordial, inata e claramente inscrita [...] no mais profundo de nosso ser, [...] é ainda hoje imprecisa, necessitando de maior elaboração, [que] ela se constrói lentamente, se clarificando, se especificando, se identificando com o conhecimento de si, com a consciência psicológica [...]" E prossegue, formulando um questionamento extremamente contemporâneo: "Quem sabe se esta 'categoria' que todos acreditamos fundada será sempre reconhecida como tal?" (1950, p.359/362).


Uma observação preliminar: neste texto não distinguiremos o eu das noções de pessoa, personalidade, caráter, indivíduo, individualidade. Todos estes termos referem-se a um mesmo campo paradigmático, relativamente impreciso e movediço, conforme encontramos em vários autores, por exemplo (para citar apenas alguns) em Mauss (1950/1983), Durkheim (1894/1988), Simmel (1908/1999) ou Elias (1987/1991).3


O que interessa aqui é a existência de um desengajamento, fato sublinhado de forma reiterada em relação às sociedades contemporâneas: levanto a hipótese de que este desengajamento – este descompromisso resultante das sensações contínuas exercidas sobre o eu – influencia profundamente e de maneira insidiosa as relações entre sensação, percepção, consciência, reflexão e sentimentos, levando ao esmaecimento das fronteiras entre objetos materiais reais e imagens virtuais. Desengajamento este que toca os limites do eu,4 com efeitos sobre as maneiras de sentir e sobretudo sobre a capacidade mesma de sentir.5


As sociedades contemporâneas, sob o impacto da globalização, tendem a se tornar sociedades que se transformam de maneira contínua, sociedades flexíveis, sem fronteiras e sem limites, sociedades fluidas, sociedades líquidas. Essas condições têm conseqüências sobre os traços de personalidade que estimulam, desde os mais contingentes e superficiais aos mais profundos, os tipos de personalidade que permitem sejam desenvolvidos, e mesmo encorajados, e finalmente sobre a natureza das relações entre os indivíduos.6



A fluidez intrinsecamente destituída de limites acarreta modificações nas estruturas, sendo suscetível de colocar em questão a possibilidade de estruturação e mesmo de existência do eu.7



Pode-se pensar imerso na fluidez, sob a pressão permanente e ininterrupta do fluxo? O indivíduo hipermoderno pode, privado de tempo, da duração exigida pelos sentimentos, experimentar outra coisa além de sensações?


Pretendo aqui discutir certos traços de personalidade do indivíduo contemporâneo – ligados e mesmo atribuídos à flexibilidade e à fluidez – através das maneiras de ser, de se comportar e, também, ainda que esta seja uma questão problemática, das maneiras de sentir, de exprimir e da capacidade mesma de vivenciar sentimentos.8


Retomo, nessa perspectiva, uma hipótese conjetural difícil de discutir, aquela que Lasch (1979/2000), entre outros, que fala do declínio dos sentimentos, de uma dificuldade e, mesmo, de uma relativa incapacidade de experimentar sentimentos nas formas extremas de individualismo, nas sociedades narcisistas.



Christopher Lasch


É oportuno, portanto, que nos detenhamos tanto nos escritos de Durkheim como nos de Simmel para recolocar questões que dizem respeito às categorias, às classificações, às próprias condições de observação nas sociedades contemporâneas: essas sociedades conhecem uma sobreposição de referências, uma tendência à confusão, ao esmaecimento das fronteiras do íntimo, do privado e do público e, de maneira geral, uma psicologização das relações (HAROCHE, 2001).


Durkheim, ao estabelecer que "a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de referência, constante e idêntico, ao qual a representação pode ser reportada e que permite eliminar tudo o que ela tem de variável, partindo do subjetivo" (1894/1988, p.137), nos deixa apreender a extraordinária dificuldade das condições de observação das sociedades contemporâneas: o variável, que era para Durkheim próprio da subjetividade, tornou-se uma dimensão específica das sociedades contemporâneas em seu conjunto. A variabilidade confunde-se, hoje, com a flexibilidade, levando pouco a pouco à fluidez.


Mas, quando Durkheim enuncia as condições liminares, indispensáveis à observação, nos possibilita compreender que, face à aceleração e fluidez dos mecanismos nas sociedades contemporâneas, a possibilidade mesma de observação é colocada em causa: "se os únicos pontos de referência dados são eles mesmos variáveis – escreve –, se são continuamente diversos em relação a si mesmos, toda medida comum está ausente e não temos nenhum meio de distinguir em nossas impressões o que depende do exterior e o que vem de nós" (1894/1988, p.137).


Preocupado com o equilíbrio nós-eu, com a interação e com o sentimento 'do eu' que aí se exprime, Simmel (1908/1999) coloca, ao descrever os processos presentes na modernidade, um conjunto de questões desenvolvidas igualmente por Elias e Fromm. Percebendo na fluidez um estado estrutural fundamental, mas algo limitado, um estado comensurável, Simmel nos permite entender alguns dos elementos essenciais dos processos em ação na fluidez ulterior das sociedades contemporâneas. Reconhece a existência de uma imprecisão das interações devido ao seu caráter intrinsecamente instável. Coloca que as interações oscilam entre a continuidade e a descontinuidade, a certeza e a incerteza e, através do conceito de interação, questiona a suposta nitidez presente na fronteira entre indivíduo e sociedade. Simmel (1908/1999) releva o movimento incessante, a mobilidade permanente, restritos à esfera do indivíduo, anunciando assim as questões mais atuais das sociedades contemporâneas: as que se referem aos limites, às fronteiras, às capacidades e atributos, aos traços característicos do indivíduo.



George Simmel

Valendo-se da noção de interação, Simmel (1908/1999) enfatiza algo de essencial no que se refere ao vínculo social, sua permanência ou declínio, e também quanto os modelos de comportamento, a forma como se estruturam e influenciam os sentimentos. Sublinha aquilo com que os sociólogos pouco se preocuparam: a natureza, a fraqueza ou intensidade dos vínculos, a qualidade das interações, apontando que ela é função da duração: é a duração que permite medir sua qualidade.9


Simmel (1998) toma o exemplo da fidelidade, vendo-a mais como um efeito dos modos de vida, das maneiras de ser do que como a conseqüência de elementos originais e indizíveis: assim nos leva a concluir que são os comportamentos que, por seu turno, provocam os sentimentos.10
Necessário se faz, portanto, pensar o que acontece com a qualidade das interações quando a flexibilidade e a fluidez dos sistemas econômicos contemporâneos impõem o imediatismo, o instantâneo nas relações, deixando de lado a eventualidade a até a capacidade de engajamento e de inscrição no tempo.11


No final dos anos 1980, Elias resume e formula com concisão extrema todo um conjunto de itens antes abordado por Mauss e por Simmel e que permanece problemático: a questão do equilíbrio nós-eu, da pertença, dos vínculos entre comunidade e sociedade, da alternância entre os processos de integração e de desintegração, a questão da instabilidade. Sintetiza os questionamentos atuais sobre a gênese e a definição problemática de indivíduo, percebendo alguns dos problemas maiores da contemporaneidade. Reiteradamente insiste na necessidade de se superar a idéia de uma oposição entre "indivíduo" e "sociedade".


Norbert Elias

Escreve: "Neste século XX, tudo leva a pensar que não se trata de um problema pontual e individual, mas [...] de um traço fundamental da estrutura da personalidade social dos indivíduos da época mais recente." Acrescentando: "...a tônica do vínculo modificou-se de forma decisiva com a modificação estrutural mais profunda da relação do indivíduo com todas as formas de grupo sociais" (ELIAS, 1987/1991, p.208, 261, 262, 263),

Elias retraça e explica a gênese, as origens de uma insegurança psíquica profunda, seus efeitos sobre as estruturas da personalidade social dos indivíduos. Insiste sobre a auto-reflexividade contínua, que nasce das relações não permanentes, "a grande variabilidade das relações entre os indivíduos", o que "os força constantemente [...] a um exame de suas relações que é ao mesmo tempo um exame de si mesmo" (ELIAS, 1987/1991, p.264). Traz à tona os processos, as estruturas, mas também os efeitos psicológicos que provocam.


Em Fear of freedom (O medo à liberdade), Fromm (1972) se debruça precisamente sobre estes efeitos psicológicos, elaborando reflexões que permanecem decisivas sobre os traços de personalidade, de caráter, os modelos de comportamento encorajados por um tipo específico de sociedade. (FROMM, 1994).12





Erich Fromm


Enquanto Elias (1987/1991) preocupa-se essencialmente com o domínio e controle dos afetos, Fromm, ao focar os processos subjacentes na emergência do indivíduo, situa-se de certa forma como pioneiro: sua atenção se volta para a gênese desses afetos – a dúvida, o medo, a ansiedade e o declínio concomitante da espontaneidade dos vínculos.

Posto que a personalidade autoritária é fortemente integrada, são os processos presentes nas estruturas da personalidade autoritária – mais do que os traços de personalidade respectivos – que podem contribuir para a compreensão do indivíduo contemporâneo. A personalidade autoritária, assim como a personalidade contemporânea, ameaça a idéia de individualidade, a autonomia, a singularidade, o não-conformismo e mesmo a própria idéia de personalidade.


Lembrando que a estrutura da sociedade e da personalidade modifica-se profundamente no final da Idade Média, Fromm enfatiza que o indivíduo se libertou dos vínculos pessoais tradicionais de indivíduo a indivíduo: esta emancipação afetará de modo radical a estrutura do caráter.


Fromm (1941/1994) traz assim à tona os processos que levam ao isolamento e à impotência do indivíduo, a falta de proteção das condições novas que provoca efeitos psicológicos maiores: a liberdade do indivíduo faz nascer a dúvida, a incerteza, um sentimento de impotência e de insegurança; esta autonomia acompanha a emergência de um sentimento problemático, complexo e que é fonte de angústia, o sentimento do eu, o medo de perder o eu.13


Fromm insiste, então, sobre a importância decisiva de se compreender a questão da dúvida, da incerteza, e também os tipos de respostas que lhe foram dadas. O autoritarismo constitui um dos dois mecanismos psíquicos através do qual o homem procura escapar do isolamento e do sentimento de impotência, de confusão engendrados pelo mundo moderno. O outro modo de reação constitui o que Fromm chama de "conformismo compulsivo", que evita o autoritarismo. Ele observa que é o "conformista" e não o autoritário quem tem condições de responder às necessidades das sociedades industriais avançadas (FROMM, 1941/1994).


Este conformismo, em nosso ponto de vista, ainda que interiorizando o autoritarismo sob formas particularmente insidiosas, pode muito bem integrar o movimento e a atividade incessante e compulsiva, encarnando-se nos tipos de personalidade contemporâneos.


Alguns trabalhos recentes – consagrados sobretudo à família, às telas, à Internet, ao trabalho, à psicologia contemporânea e, de maneira mais geral, aos efeitos do mercado e da globalização sobre o indivíduo – centraram-se na questão do eu, do indivíduo, da personalidade, do caráter contemporâneo: Lasch (1979/2000 e 1984), Turckle (1995), assim como Castel (2001), Haroche (2003), Enriquez (1991, 2002), Sennet (1998, 2000), Bauman (1999, 2001), Gauchet (1998) e Kauffman (2001, 2002, 2003) interessaram-se pela personalidade contemporânea, pela maneira de ser um indivíduo nas formas extremas do individualismo contemporâneo. Atentos a diferentes dimensões, eles se detiveram sobre os traços de comportamento e de caráter específicos, tais como a indiferença, o desinteresse, o desengajamento, a falta de elã, a ausência de espontaneidade, o cálculo permanente, a instrumentalização de si e do outro, os comportamentos fugidios, o desvencilhar-se.


Lasch (1979/2000) atribui as modificações conhecidas pelo indivíduo contemporâneo à evolução da família. A família burguesa, observa, citando Horkheimer (1972), "tinha como função fabricar um certo tipo de personalidade, um tipo de caráter autoritário" (LASCH, 1979/2000, p.91), mas hoje a família educa, constrói um tipo de personalidade radicalmente diferente, um tipo de personalidade descomprometida, adaptada à flexibilidade, sem engajamento com a duração. Lasch sublinha que os pais se abstêm hoje em dia de inculcar em seus filhos preceitos e normas inúteis em um mundo em constante transformação; a família, portanto, forma o indivíduo para vínculos que não engajem: "a flexibilidade na educação tornou-se uma necessidade absoluta" (1979/2000, p.134-141).


Sherry Turckle (1995), em trabalhos que incidem sobre os efeitos produzidos na identidade pela presença contínua das telas, interessou-se pela flexibilidade e a fragmentação do eu. Chama a atenção para a profunda evolução ocorrida entre o período em que falávamos de "forjar a personalidade", considerada como um todo, e o presente, quando não cessamos de construir e reconstruir identidades múltiplas, o que leva a um tipo de personalidade flexível. Corroborando, de certa maneira, o que dizia Lasch, Turckle enfatiza aquilo sobre o qual insistirá também Sennet: "a estabilidade era outrora social e culturalmente valorizada (...). O que é agora decisivo é a flexibilidade, a capacidade de adaptação e de mudança", privilegiadas em detrimento da estabilidade, considerada como rígida (TURCKLE, 1995, p.255).


Estudando a questão do trabalho, Sennet percebe uma "erosão do caráter" que leva à flexibilidade do sistema. Vê na idéia de "carreira", atualmente abandonada em proveito do job, a encarnação desta flexibilidade. Sennet lembra, então, que no inglês do século XIV "um job era um fragmento ou um pedaço de qualquer coisa", o que é traduzido no presente pelo caráter descontínuo, a atividade fragmentada e fracionada – psiquicamente fragmentária – do trabalho" (SENNET, 1998).14


Sennet se questiona sobre como "preservar aquilo que tem um valor durável em uma sociedade [...] que se interessa apenas pelo imediato?" (1998, p.11). Interroga-se, também, quanto a "como cultivar engajamentos a longo termo no seio de instituições que são constantemente deslocadas ou perpetuamente reelaboradas?" (1998, p.11). O fluxo contínuo, provocando efeitos de alienação profunda e destruição do eu, leva Sennet a insistir sobre a necessidade de se "salvar o sentimento de si do fluxo sensorial" (1998, p.61).15


Gauchet (1992), desenvolvendo trabalhos próximos aos de Lasch e Sennet e vendo no "desengajamento da pessoa" um fenômeno inédito, esboçou um quadro de conjunto da psicologia contemporânea, no qual observa o desaparecimento da distância na relação com o outro e na relação consigo mesmo, uma "aderência a si", que se transforma em traço característico da personalidade contemporânea. Desenha, então, um modelo de personalidade paradoxalmente irrefletida e imersa na auto-reflexividade permanente, na qual "ser eu mesmo" não significa mais "saber o que leva a agir com vontade e liberdade interior", não é estar paralisado mas poder movimentar-se, deslocar-se constantemente (GAUCHET, 1992, p.177).


O movimento contínuo entrava a possibilidade de reflexão, a eventualidade de uma hesitação, a possibilidade de distanciamento, os processos de elaboração das percepções a partir das sensações. A personalidade hipermoderna aparece como sendo sem engajamentos – o indivíduo está "ligado, mas distante". Experimenta "a necessidade da presença dos outros, mas afastado desses outros" (GAUCHET, 1992, p.179), abstratos, inconsistentes, permutáveis, inexistentes. Sem continuidade, sem aspirações afirmadas na duração, desengajado, o indivíduo hipermoderno, "na aderência a si" e no deslocamento incessante, consegue ser ele mesmo apenas "na medida que pode se desprender de todo modelo ou adesão qualquer que seja" (p.179). Ele se comunica ou se vincula apenas sob o modo da prudência, do controle de si, da dominação: "ele se afirma não ao se comprometer", observa ainda, "mas ao se destacar" (GAUCHET, 1992, p.172).16


Bauman (2001) vai enfatizar, em termos similares, um desengajamento análogo nos comportamentos, vendo na mobilidade, no deslocamento incessante, a quintessência do poder nas sociedades contemporâneas.


Z. Baumann

Descrevendo a atmosfera do funcionário e seu modo de vida, o trabalho, a cidade, Bauman percebe que "nada permanece parecido, imutável, durante muito tempo, nada dura o suficiente para se tornar familiar, acolhedor e tranqüilo" (BAUMAN, 2001, p.46), nada responde às aspirações de vínculo e à necessidade de pertencimento. As lojas desaparecem, os rostos atrás dos balcões não cessam de mudar. Em resumo, observa Bauman, esmaece, desaparece "tudo o que é contínuo, estável e sólido [...] o que sugeria a existência de um quadro social durável, seguro, pacífico e pacificador. Esmaece, ainda, a certeza de poder se rever regularmente, com freqüência e durante muito tempo" (BAUMAN, 2001, p.47).


Todas essas observações constituem, pode-se dizer, "os fundamentos epistemológicos da experiência da comunidade. Ficamos tentados a dizer de uma comunidade estreitamente unida" (BAUMAN, 2001, p.47). É tal experiência que agora faz falta, é sua ausência que explica o declínio da comunidade: a falta de expectativas, de elãs; os vínculos da comunidade tornaram-se pouco a pouco consumíveis, "perecíveis" (2001, p.48).



Dick Pountain e David Robins pensam que o descomprometimento, o desengajamento, o frio, definem no presente o espírito do tempo. "Cool significa a capacidade de fugir, de escapar dos sentimentos, de viver em um mundo fácil, que questiona e recusa os vínculos possessivos" (BAUMAN, 2001, p.51-52).17

Os engajamentos duráveis, que constroem vínculos, em que a individualidade é valorizada pela exigência, foram substituídos por encontros breves, banais e intercambiáveis, encontros em que as relações começam tão rápido quanto terminam.


Os vínculos são mais frágeis e efêmeros. Hoje, o estar junto tende a ser breve, de curta duração e desprovido de projetos: o desengajamento aparece assim como um novo modo de poder e dominação. O comportamento das elites aparece imediata e fundamentalmente como "a capacidade de escapar da comunidade" (BAUMAN, 2001, p.57).


Em artigo recente, Dany Robert Dufour (2003) chama a atenção para a existência de uma estupefação profunda e mesmo de um niilismo, explicados pela aceleração da difusão do modelo de mercado. Ao descrever os processos presentes no niilismo contemporâneo que respondem a imperativos econômicos funcionais, Dufour esclarece as razões da fluidez fundamental das sociedades de mercado contemporâneas, quando se necessita de "tudo menos do que se possa entravar a circulação das mercadorias" (2003, 168), assim como seus efeitos psicológicos sobre o indivíduo, "efeitos desestruturantes que provocam uma profunda redefinição da forma moderna do sujeito" (2003, p.163).


Dufour afirma que o mercado esforça-se em suprimir as resistências do sujeito, as hesitações, as indecisões, as reflexões: "o mercado acomoda-se mal com um traço específico da forma sujeito", observa, "o livre-arbítrio crítico que leva, com efeito, a discutir tudo, a constantemente retardar a decisão de compra". O mercado procura "suprimir os vínculos, os elos, os sentimentos que não podem ser convertidos em valores mercantis": o mercado procura, assim, estimular continuamente as sensações para desenvolver o consumo e dispor, como diz Dufour, "de indivíduos definidos por nada além do que a necessidade de consumo sempre ampliada" (2003, p.170).18


Lasch falou do "porto" que significa a família para os indivíduos isolados em um mundo indiferente, sem coração, um mundo duro e frio. Elias, de forma mais genérica, discutiu a "necessidade elementar de calor direto e de espontaneidade que todo indivíduo experimenta e suas relações com os outros".19



Ora, a fluidez isola, entrava e evita os vínculos, os elos e os elãs: tende a produzir vínculos formais e superficiais, um falso vínculo e, até mesmo, a ausência de vínculo; ela se acompanha do medo do vínculo, dos outros.20


Penso ser relevante, então, que nos interroguemos sobre a imbricação, o papel respectivo das sensações e dos sentimentos no indivíduo contemporâneo; é importante que retomemos os questionamentos gerais presentes em trabalhos seminais, tanto em filosofia política e sociologia quanto em psicologia social: obras que questionaram a maneira como exprimimos os sentimentos, os momentos, a qualidade e a natureza daquilo que exprimimos e, também, daquilo que – deliberada ou involuntariamente – não exprimimos, aquilo que calamos ou recalcamos de maneira permanente e, além disso, obras que pensaram sobre a ausência e mesmo a incapacidade de vivenciar sentimentos espontâneos.21



Mauss, em texto de 1921 dedicado à "expressão obrigatória dos sentimentos", esboçou questões que se colocam hoje com insistência. Urge que o retomemos, pois sua leitura permite repensar a questão da pessoa e as maneiras de ser e de sentir do indivíduo contemporâneo (1950/1983).22



Observava então Mauss:



"Toda espécie de expressão oral dos sentimentos [...] é em essência não um fenômeno exclusivamente psicológico, ou fisiológico, mas fenômenos sociais, marcados eminentemente pelo signo da não espontaneidade e da mais perfeita obrigação" (1950/1983, p.269). Se Mauss admitia que os ritos mais simples que estudara "não têm um caráter completamente público e social", notava, no entanto, que "lhes falta em alto grau todo caráter de expressão individual do sentimento experimentado de forma puramente individual" (1950/1983, p.272).



Afastando a questão da espontaneidade individual, Mauss abordou os sentimentos através de modelos, de rituais, da ritualização dos sentimentos, sublinhando que "é preciso que eles sejam ditos, mas se é preciso dizê-los é porque todo o grupo os compreende" (1950/1983, p.277). Insistiu, assim, que "fazemos, portanto, mais do que manifestar nossos sentimentos, nós os manifestamos aos outros, pois é preciso manifestá-los. Manifestamos a nós mesmos exprimindo-os aos outros e em virtude dos outros" (1950/1983, p.278). Este é o sentido que apreendeu das convenções e regularidades que despertavam sua atenção.


Faz-se necessário agora abordar o estudo dos sentimentos pelo viés da relação ao tempo e buscar pensar as duas dimensões presentes na ritualização dos sentimentos: a ausência de duração e a ausência de sentido. A falta de tempo precede atualmente a expressão dos sentimentos? Fato desconcertante para nossa maneira de conceber os sentimentos como pertencendo à esfera do irracional e mesmo do indizível: a inteligibilidade, a perda do sentido na relação consigo e com o outro revela um entrave, um declínio e mesmo uma incapacidade não tanto de exprimir sentimentos, mas de experimentá-los, de senti-los?


Pode-se conceber e imaginar uma sociedade sem afetos, sem sentimentos; não se pode concebê-la sem rituais discerníveis, inteligíveis, reconhecidos.


A capacidade de sentir estaria declinando nas formas extremas de individualismo? A ininteligibilidade provocada pelas sensações contínuas teria ao mesmo tempo afastado a expressão dos sentimentos em relação aos outros e a si mesmo, a capacidade de vivenciar sentimentos? O sentir tenderia hoje a se atrelar e a se confundir com a sensação, o fluxo? Sentir pode ainda ser considerado como sendo da ordem do sentido e do sentimento inscrito na duração? São questões que, de meu ponto de vista, se situam no cerne da problemática do indivíduo hipermoderno.

REFERÊNCIAS



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Tradução da autora

Notas



1 Dentre os textos que lhe foram dedicados, destacamos: Carrithers, Collins e Lukes (org.) (1985), sobretudo os artigos de Louis Dumont, "A modified view of our origins: the Christian beginnings of modern individualism", p.93-123, e de Charles Taylor, "The person", p.257-282.

2 Estas questões são retomadas, desenvolvidas e comentadas em Collins e Lukes (1985). Lukes sublinha que é preciso talvez reconhecer aí uma "estrutura de sentimento", uma "atitude geral" ou, ainda, um tipo de crença "que perdura em diferentes formas culturais" (p.285). Carrithers, frisando que Mauss "deixa de lado tudo o que está ligado ao eu, à personalidade consciente enquanto tal", observa que no texto de Mauss "apenas o legal, o social ou ainda o político importa, pouco contam o psíquico ou o filosófico". E acrescenta: "o eu é colocado em aposição à pessoa [...] como se para as sociedades ocidentais modernas fossem a mesma coisa". Na verdade, observa, Mauss coloca que "pessoa = eu, e que o eu equivale à consciência" e que o fato de a "pessoa ter uma história social e legal não tem nada de surpreendente: a história social e legal é precisamente o que permite a especificidade da pessoa" (p.234-236).

3 A respeito do eu, do sentimento de si, ver Freud (1921/1981, 1923/1981) e Janet (1889/1989). Observa-se que, em Mauss (1950/1983), palavras referentes à pessoa aparecem vinculadas à família, enquanto que Elias (1987/1991) privilegiará o indivíduo.

4. Sobre as relações entre sensação, percepção e idéias, ver Locke (1690/2001). A obra trata de questões ligadas àquelas que Durkheim abordará mais tarde: a necessidade de que a ciência "afastando as noções comuns e as palavras que as exprimem, retorne à sensação, matéria-prima e necessária de todos os conceitos. É da sensação que provém todas as idéias gerais, verdadeiras ou falsas, científicas ou gerais" (DURKHEIM, 1894/1988, p.136). Sobre as relações entre reflexão e reflexo, ver Gauchet (1992), que cita e comenta uma passagem de Valéry sobre o ato reflexo: "a divisão e a distribuição dos atos-acontecimentos que estão em jogo na transformação [dos] atos reflexos ou automáticos em atos refletidos", acrescentando que o "ato reflexo é indivisível - e realizado exteriormente antes que se possa pará-lo. [...] O ato refletido [...] é um reflexo retardado - presumido - que uma sensibilidade especial - que tem ou não o tempo de intervir - reprime, equilibra ou sustenta". Gauchet retém a conclusão de Valéry: "o estado nascente do refletido é reflexo" (GAUCHET, 1992, p.162-163).

5 Tomo emprestado de Durkheim a expressão "maneiras de ser e de sentir": "as maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de existirem fora das consciências individuais" (1894/1988, p.96).

6 A propósito da análise das sociedades contemporâneas, ver os trabalhos de Balandier, sobretudo Le dedale (1994). Sobre a questão do desengajamento nas sociedades contemporâneas, ver Bauman (1998, 1999).

7 A propósito da formação e mecanismos do eu, ver Anzieu (1985), Anzieu et al. (1993), Bauman (2000).

8 O caráter extremamente complexo da questão refere-se ao fato de podermos experimentar sentimentos e exprimi-los, podermos nada exprimir e nada vivenciar, podermos ainda vivenciar sentimentos sem exprimi-los, podermos também exprimir sentimentos sem vivenciá-los. Durkheim observou que "nem Locke, nem Condillac consideraram os fenômenos psíquicos objetivamente. [...] Eis a razão por que, ainda que em certos aspectos tenham preparado o advento da psicologia científica, ela nasceu apenas muito mais tarde, quando enfim se chegou à concepção de que os estados de consciência podem e devem ser considerados do exterior e não do ponto de vista da consciência que os experimenta" (1894/1988, p.123). Para uma primeira aproximação do estudo dos sentimentos, ver o conjunto das contribuições de Le ressentiment, organizado por Ansart (2002), particularmente Haroche em "Eléments d'une anthropologie politique du ressentiment. Genèse des sentiments dans les processus de frustration et de refoulement". Ver, também, "Reflexões sobre a personalidade democrática", in Duarte, Lopreato e Magalhães (orgs.) (2004).

9 Ver, também, "La fidélité. Essai de socio-psychologie" (SIMMEL, 1998).

10 Cf. Simmel (1998) e Haroche (2001).

11 Ver, sobre esta questão, Bauman (1995).

12 Ver também Reich (1933); Adorno e Horkheimer (1944); Polanyi (1944/1983). Mais recentemente, Castoriadis (1990, 1996, 1997).

13 Precisando os efeitos da emancipação evocados por Fromm, Elias (1987/1991) vai enfatizar que o indivíduo era ou devia ser autônomo. "O termo 'indivíduo' tem hoje essencialmente por função exprimir que toda pessoa humana, em todas as partes do mundo, é ou deve ser um ser autônomo que comanda sua própria vida e, ao mesmo tempo, que toda pessoa humana é em certos aspectos diferente de todas as outras, ou, talvez, deveria sê-lo. Realidade fatual e postulado confundem-se com facilidaade quando empregamos esta palavra" (p.208).

14 De acordo com Sennet (1998): "Em suas origens inglesas, a palavra 'carrière' designava uma estrada para os carros (carriages); aplicada finalmente ao trabalho, designava a via pela qual se seguia a vida em seus propósitos econômicos" (p.9).

15 O eu estaria conhecendo no presente um momento inédito de alienação. Conforme Marx (1844/1996, 1859/1985).

16 Gauchet (2003) enfatizou recentemente que "nos encontramos face a indivíduos que querem [...] existir por si mesmos, mas não pertencer" (p.334).

17 D. Pountain, D. Robins to cool to care, citado por Bauman (2001, p.51-52).

18 O que se traduz nas observações de Kauffman (2001), que percebe uma mutação antropológica profunda que concerne ao eu, a busca permanente de visibilidade de si, a produção mesma do eu na visibilidade e quantidade: "a identidade, outrora outorgada pelo lugar social, deve agora ser produzida em uma quantidade tão grande quanto possível, ampliada em seu ser pelas imagens e outros traços de si" (p.123).

19 Existem limites à variação para que a pessoa permaneça a pessoa? São necessários limites - leis, regras, normas - para que as pessoas sejam protegidas e, mais do que isso, para que possam existir. Cf. Edelman (1999).

20 Cf. Haroche (2001).

21 Sobre a importância da espontaneidade, ver Stuart Mill (1859/1999); Arendt (1951/1972). Sobre o recalque, ver Ansart (2002); Godelier (1996/2003).

22 Cf. "L'expression obligatoire des sentiments (rituels oraux funéraires australiens)", de 1921.