terça-feira, 29 de setembro de 2009

Hinduísmo e a busca pelo moksa


Entrevista especial com Klaus Klostermaier


“A noção hindu de dharma é muito mais abrangente que o termo ocidental ‘religião’. Seu significado implica ‘modo de viver’ (...) e deve expressar a ordem natural das coisas”, esclarece Klaus Klostermaier, pesquisador de Hinduísmo e história indiana, à IHU On-Line, por e-mail. Na entrevista a seguir, ele explica que o hinduísmo é politeísta, mas os hindus são monoteístas. De acordo com o professor, as escrituras falam de 330 milhões de deuses, mas cada hindu escolhe seu próprio istadevata, ou seja, seu deus. “As principais religiões hindus como vaisnavismo, saivismo e saktismo adoram o mesmo deus sob diferentes nomes. Mas todos concordam em que somente existe um único principio último: o Criador Mantenedor e Destruidor do Universo”, enfatiza.

Os aproximadamente 900 milhões de hindus, menciona o pesquisador, mantêm diferentes atitudes em relação ao hinduísmo: “desde a identificação total até a rejeição completa”. Mas em comparação com a Europa Cristã, informa, “a Índia hindu continua sendo muito religiosa”.

Ao comentar o sentido de tradições antigas como o hinduísmo, que existe há mais de 6000 anos, e sua relevância no mundo pós-moderno, Klaus Klostermaier é enfático: “acredito que já estamos entrando num pós-pós-modernismo”. E explica: “Muitos estão buscando a religião da pessoa pensante, não crença cega ou devoção tradicional. Mestres espirituais de todas as origens encontram grandes audiências hoje em dia, quase que por toda a parte”.

Klaus Klostermaier é doutor em Filosofia pela Gregoriana de Roma e atualmente professor de Estudo das Religiões na University of Manitoba . Entre sua produção bibliográfica, destacamos Hinduism: A Beginner's Guide (2008); Hindu Writings: A Short Introduction to the Major Sources (2001); A Survey of Hinduism (3rd ed. 2007) e Hindu and Christian in Vridaban.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Quais aspectos históricos caracterizam o aparecimento do hinduísmo e sua permanência no Oriente ao longo dos séculos?

Klaus Klostermaier -
Hinduísmo é o nome de uma grande variedade de diferentes religiões que surgiram na Índia no decorrer de um tempo muito longo, possivelmente mais de 6000 anos. O elemento comum, teoricamente, é a aceitação do Veda como texto revelado. O termo “hinduísmo” como designação para religiões indianas foi uma invenção de estrangeiros. Os próprios hindus tinham chamado sua religião de vaidika dharma (dispensa [ou ministração] védica) ou sanatana dharma (dispensa eterna). A noção hindu de dharma é muito mais abrangente que o termo ocidental “religião”. Seu significado implica “modo de viver” e não depende de um fundador histórico, mas deve expressar a ordem natural das coisas. Vir Sarvarkar, nacionalista hindu do séc. XX, definiu a pessoa hindu como alguém cuja Terra Santa é a Índia. Os hindus consideram os rios, as montanhas e os mares da Índia como sagrados, e, por toda a Índia, há um grande número de cidades santas que são a meta de milhões de peregrinos. O estreito vínculo do hinduísmo com a geografia e natureza da Índia é uma das razões para sua resistência face aos numerosos desafios vindos de fora. O hinduísmo é parte integrante da história e cultura da Índia.

IHU On-Line — Os indianos continuam observando o sistema de castas? Como é a percepção dessa divisão social? Ela gerou grandes desigualdades entre os cidadãos?

Klaus Klostermaier -
Casta é um assunto muito complexo. Nas escrituras hindus, ela é descrita como uma divisão da humanidade, implantada bem no início do mundo, pelo Criador. Ao longo de toda a história conhecida da Índia, ela foi um fator importante: os brâmanes, a casta mais elevada, controlavam as escrituras e rituais religiosos, xátrias eram os governantes e comandantes militares, vaixás, os comerciantes e negociantes, e sudras, os trabalhadores. Havia grande número de "excluídos" ["outcastes", párias] e tecnicamente estavam fora da lei que regulava a sociedade de castas. A pessoa se tornava um pária ao violar regulamentos de casta, por exemplo, ao negligenciar rituais ou deixar de seguir as regras da própria casta. As quatro “castas” (varnas) mencionadas acima se dividiam em cerca de três mil jatis (linhagens de nas cença), que são de grande importância prática principalmente em conexão com o casamento. Na Índia de hoje, a divisão entre as castas não é tão evidente como costumava ser. Os brâmanes podem ser homens de negócio ou produtores rurais, e sudras podem ocupar posições elevadas no governo. Mas, socialmente, os jatis continuam muito importantes, principalmente no contexto do casamento. Isto vale também para cristãos indianos! Basta uma olhada nos anúncios matrimoniais nos jornais locais. A desigualdade baseada na casta veio à tona principalmente entre as pessoas pertencentes a uma casta e as sem casta. Os chamados Dalits (“gente oprimida”), que se organizaram politicamente faz pouco tempo, eram originalmente excluídos, e agora estão se revoltando contra uma sociedade dominada pela casta. A constituição indiana proibiu desqualificações baseadas no fato de a pessoa não ter casta, mas nã o aboliu as castas em si. Mahatma Gandhi lutou pelos direitos dos excluídos, mas insistiu em preservar a sociedade de castas. Ele ficou muito indignado com o Dr. Ambedkar (que era um excluído que veio a ser conhecido advogado), quando este, em protesto contra o sistema de castas hindu, se converteu para o budismo e levou junto consigo milhões de outros excluídos, que, atualmente, formam a comunidade neobudista na Índia.

IHU On-Line — Para os Cristãos, no ocidente, naturalmente, há um Deus. Enquanto isso, persiste, entre os indianos, a crença em diversos deuses. Como o senhor caracterizaria a espiritualidade e a divindade no hinduísmo?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo é politeísta, ao passo que os hindus são monoteístas. Enquanto as escrituras do hinduísmo falam de 330 milhões de deuses, cada hindu escolhe seu próprio istadevata, isto é, a forma na qual adoram a Deus. Todos os teólogos hindus insistem na unicidade de Deus. O termo deva, geralmente traduzido como “deus”, na verdade significa um tipo de poder maior. As principais religiões hindus como vaisnavismo, saivismo e saktismo adoram o mesmo deus sob diferentes nomes. Mas todos concordam em que somente existe um único principio último: o Criador Mantenedor e Destruidor do Universo. Como já dizia o Veda: “O principio supremo é um único, as pessoas o chamam por nomes diferentes”.

IHU On-Line — Quais as características do vaisnavismo, e por que é considerado o maior segmento do hinduísmo moderno?

Klaus Klostermaier –
Numericamente, o vaisnavismo é o maior segmento do hinduísmo. Cerca de 70% dos hindus são vaisnavas. O vaisnavismo em si é subdividido num grande número de sampradayas (tradições de culto). Sua característica é o culto de Vixnu como Criador, Preservador e Redentor. Algumas escrituras do vaisnavismo, como o Bhagavad Gita e o Bhagavata Purana, são amplamente aceitas por todos os hindus (e até mesmo não-hindus) como inspiradas (inspirational). Alguns dos lugares mais populares de romaria na Índia (Tirupati, Srirangam, Puri, Mathura-Vrindaban, Dwarka, Vixnu-Kanci e outros) são centros vaisnava visitados por milhões todos os anos.

IHU On-Line — Quais paralelos o senhor reconhece entre cristianismo e vaisnavismo?

Klaus Klostermaier -
Os paralelos são bem numerosos. Ambas são religiões da graça e ambas enfatizam o amor de Deus (bhakti) como objetivo supremo. Na Bengala Krishna, é chamado Kristo. Há imagens de Yasoda (mãe de criação de Krishna) e Krishna, as quais poderiam com facilidade ser consideradas imagens de Maria com o menino Jesus. Ambas as religiões enfatizam a vida de moralidade e são contra os extremos do ascetismo. Muitos santos vaisnava poderiam facilmente ser considerados santos cristãos, e vice e versa.

IHU On-Line — O que caracteriza as mitologias e filosofias de salvação nas tradições religiosas da Índia?

Klaus Klostermaier -
Este é um tópico vastíssimo que não pode ser respondido em um parágrafo. Escrevi todo um livro sobre Mitologias e Filosofias de Salvação nas Tradições Teístas da Índia (Wilfried Laurier Press, 1984), no qual tentei resumir a extensa literatura hindu sobre este tópico. Numa casca de noz: todas descrevem a condição humana natural como insatisfatória e carente de salvação. Elas também concordam em que Deus deseja o melhor para todas as pessoas e interfere de muitas maneiras em suas vidas com o objetivo de salvá-las. Elas também descrevem a condição última das pessoas libertas como sendo de extrema felicidade [bliss] na presença de Deus. Os sistemas filosóficos indianos esboçam modos de salvação e especificam os meios necessários para atingir moksa (libertação última).

IHU On-Line — A Ásia se caracteriza pela diversidade das religiões. Como o hinduísmo se relaciona com outras tradições religiosas orientais como, é claro, a chinesa?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo é tipicamente indiano e praticamente não há paralelos entre o hinduísmo, o taoísmo e o confucionismo. O budismo começou na Índia e se tornou uma das principais religiões da China, mas os elementos típicos do hinduísmo não foram transmitidos para a China. O hinduísmo foi “exportado” para a Indonésia e para a Indochina no início da Idade Média por meio de colonizadores e invasores que fundaram reinos nesses países. A maioria dos outrora famosos templos hindus nessas regiões, atualmente, está em ruínas, e o hinduísmo foi suplantado por outras religiões (budismo, islamismo).

IHU On-Line — Que influência exercem os deuses e a religião hindus na vida dos indianos? Como é que as suas crenças conformam a ética e os princípios indianos?

Klaus Klostermaier -
Entre os 900 milhões de hindus, pode-se encontrar as mais diferentes atitudes em relação ao hinduísmo: desde a identificação total até a rejeição completa. De um modo geral, grande percentual dos hindus observa práticas religiosas visitando templos, orando, prestando culto etc. Em muitos lares hindus, um cômodo (ou parte de um cômodo) fica reservado para a imagem de uma divindade, sendo a adoração diária diante da mesma muito comum ainda hoje. Em comparação com a Europa cristã, a Índia hindu continua sendo muito religiosa. Símbolos hindus podem ser encontrados por toda a parte, e milhões de hindus, em qualquer época do ano, estão peregrinando para alguma das numerosas cidades santas. Há milhões de sadhus hindus (“gente santa” que deixou suas famílias por razões religiosas) e, por toda a parte, gozam de grande respeito. Festas hindus são celebradas com grande participação popular, com a declamação e encenação de livros sagrados como o Ramayana são muito comuns. (Uma produção de TV sobre o Ramayana foi assistida por centenas de milhões na Índia, que consideraram o ato de assistir uma espécie de culto.) A ética hindu tradicional continua sendo a espinha dorsal da moralidade indiana. Grande número de pregadores hindus populares promove reuniões públicas onde explicam e inculcam a ética do Bhagavadgita.

IHU On-Line — Qual é a preocupação do hinduísmo em relação ao ser humano moderno? Neste sentido, que contribuições a religião pode oferecer neste momento de crise global (crise de valores, econômica, ambiental, ética)?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo contemporâneo cobre imenso espectro de atitudes para com a modernidade (ocidental). Há hindus extremamente conservadores bem como progressistas, e toda a escala entre um e outro. De um modo geral, os hindus se adaptaram de modo relativamente rápido à boa parte daquilo que é considerado “moderno”. Não é por acaso que hoje em dia os indianos lideram muitas áreas da tecnologia da informação. Alguns hindus tentam, de modo bastante explícito, aplicar os princípios do hinduísmo às práticas de negócio modernas. Também há numerosos ambientalistas e economistas hindus. De um modo geral, os indianos tentam resolver as diversas crises mencionadas, apelando para princípios indianos (hindus).

IHU On-Line — Para o teólogo alemão Hans Küng, existe um principio que pode ser encontrado em muitas tradições religiosas e éticas da humanidade: não faça aos outros o que você não quer que eles façam a você (ou, em termos positivos, faça aos outros o que você quer que lhe façam). O senhor também considera que este pode ser um princípio, uma norma incondicional entre as nações e as religiões?

Klaus Klostermaier -
A máxima mencionada, que é a “regra de ouro”, é menos um princípio religioso que uma expressão de sabedoria profana. Naturalmente, também pode ser encontrada no hinduísmo. Trata-se de um requisito mínimo para a paz social (e também para a paz internacional): sua violação seria tola e contraproducente.

IHU On-Line — O senhor concorda com a ideia de que estamos entrando numa sociedade pós-metafísica? Neste sentido, qual é o papel das religiões e especialmente do hinduísmo?

Klaus Klostermaier -
Você provavelmente está se referindo ao que se chama de “pós-modernismo”, que é uma mistura de cientificismo, freudismo e marxismo. Não o tenho em grande consideração e acredito que já estamos entrando num pós-pós-modernismo. Há muitos sinais de que está despertando novamente o pensamento metafísico entre os cientistas mais avançados, especialmente os físicos. Eu poderia citar com facilidade uma dúzia de livros recentes para embasar esta afirmação. A popularidade das numerosas facetas do hinduísmo no Ocidente, por exemplo, yoga, crença na transmigração etc. também é digna de nota. Muitos estão buscando a religião da pessoa pensante, não crença cega ou devoção tradicional. Mestres espirituais de todas as origens encontram grandes audiências hoje em dia, quase que por toda a parte. Observe, por exemplo, a popularidade do Dalai Lama. O pensamento metafísico indiano, por exemplo, Vedanta, tem grande potencial também para os dias de hoje.

IHU On-Line — O senhor gostaria de acrescentar alguma opinião sobre algo não perguntado?

Klaus Klostermaier -
Gostaria de acrescentar, a título de conclusão, um parágrafo do meu livro “Survey of Hinduism” [Visão Geral do Hinduísmo] (State University of New York Press, 2007, p. 454): “O hinduísmo, no passado e no presente, teve e tem suas deficiências. Ninguém pode ignorá-las. Mas ele sempre teve vitalidade e substância espiritual genuína o suficiente para compensá-las. Sua abertura para a realidade, seu caráter experimental e experiencial, suas intuições genuínas e seus sábios autênticos são uma garantia de que continuará crescendo e tendo relevância.”

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Krishnamurti: sobre o medo


“Existe o medo. O medo nunca é uma realidade: vem sempre antes ou depois do presente ativo. Quando há medo no presente ativo, será isso medo? Está ali e não há como fugir dele, não há como escapar. Ali, no momento presente, há a atenção total ao momento de perigo, físico ou psicológico. Quando há atenção total, não há medo. Mas o próprio fato da desatenção gera o medo; o medo surge quando há uma evitação do fato, uma fuga; então a fuga é, ela própria, o medo.”

"Porventura uma das causas do medo é a comparação? O comparar-se com outra pessoa? Obviamente sim. A pergunta, portanto, é: será você capaz de viver uma vida sem se comparar com ninguém? Compreende o que digo? Ao se comparar com alguém, seja em termos ideológicos, psicológicos ou mesmo físicos, há o anseio de tornar-se aquilo; e há o medo de não conseguir. é o desejo de preencher e você teme não ser capaz de preencher. Onde há comparação haverá o medo."

Krishnamurti


quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Zen e a Crise da Cultura Ocidental


“Temos que mudar para não perecer. É o momento de inspirar-nos em outras civilizações que ensaiaram um modo mais benevolente de habitar o planeta”, escreve Leonardo Boff, teólogo, em artigo que publicamos a seguir. Segundo Boff o uma dessas inspirações pode vir do zenbudismo que “destrona o ser humano de sua pretensa centralidade, especialmente do eu, cerne básico do individualismo ocidental”.

Eis o artigo.

Venho insistindo há tempos que por detrás da crise atual econômico-financeira vige uma crise de paradigma civilizatório. De qual civilização? Obviamente se trata da civilização ocidental que já a partir do século XVI foi mundializada pelo projeto de colonização dos novos mundos.

Este tipo de civilização se estrutura na vontade de poder-dominação do sujeito pessoal e coletivo sobre os outros, os povos e a natureza. Sua arma maior é uma forma de racionalidade, a instrumental-analítica, que compartimenta a realidade para melhor conhecê-la e assim mais facilmente submetê-la. Depois de quinhentos anos de exercício desta racionalidade, com os inegáveis benefícos trazidos e que encontrou na economia política capitalista sua realização mais cabal, estamos constatando o alto preço que nos cobrou: o aquecimento global induzido, em grande parte, pelo industrialismo ilimitado e a ameaça de uma catástrofe previsível ecológica e humanitária.

Estimo que todos os esforços que se fizerem dentro deste paradigma para melhorar a situação serão insuficientes. Serão sempre mais do mesmo. Temos que mudar para não perecer. É o momento de inspirar-nos em outras civilizações que ensaiaram um modo mais benevolente de habitar o planeta. O que foi bom ontem, pode valer ainda hoje.

Tomo como uma das referências possíveis o zenbudismo. Primerio, porque ele influenciou todo o Oriente. Nascido na India, passou à China e chegou ao Japão. Depois porque penetrou vastamente em estratos importantes do Ocidente e de todo o mundo. O Zen não é uma religião. É uma sabedoria, uma maneira de se relacionar com todas as coisas de tal forma que se busca sempre a justa medida, a superação dos dualismos e a sintonia com o Todo.

A primeira coisa que o zenbudismo faz, é destronar o ser humano de sua pretensa centralidade, especialmente do eu, cerne básico do individualismo ocidental. Ele nunca está separado da natureza, é parte do Todo. Em seguida, procura uma razão mais alta que está para além da razão convencional. Recusa-se a tratar a realidade com conceitos e fórmulas. Concentra-se com a maior atenção possível na experiência direta da realidade assim como a encontra.

“Que é o zen” perguntou um discípulo ao mestre. E este respondeu: “as coisas cotidianas; quando tem fome, coma, quando tem sono durma”. “Mas não fazem isso todos os seres humanos normais”?- atalhou o discípulo. “Sim”- respondeu o mestre - “os seres humanos normais quando comem pensam em outra coisa, quando dormem, não pregam o olho porque estão cheios de preocupações”.

Que significa esta resposta? Significa que devemos ser totalmente inteiros no ato de comer e totalmente entregues ao ato de dormir. Como já dizia a mística cristã Santa Tereza:”quando galinhas, galinhas, quando jejum, jejum”. Essa é a atitude zen. Ela começa por fazer com extrema atenção as coisas mais cotidianas, como respirar, andar e limpar um prato. Então não há mais dualidade: você é inteiro naquilo que faz. Por isso, obedece à lógica secreta da realidade sem a pretenção de interferir nela. Acolhê-la com o máximo de atenção nos torna integrados porque não nos distraimos com representações e palavras.

Essa atitude faltou ao Ocidente globalizado. Estamos sempre impondo nossa lógica à lógica das coisas. Queremos dominar. E chega um momento em que elas se rebelam, como estamos constatando atualmente. Se queremos que a natureza nos seja útil, então devemos obedecer a ela.

Não deixaremos de produzir e de fazer ciência, mas o faremos como a máxima consciência e em sintonia com o ritmo da natureza. Orientais, ocidentais, cristãos e budistas podem usar o zen da mesma forma que peixes grandes e pequenos podem morar no mesmo oceano. Eis uma outra forma de viver que pode enriquecer nossa cultura em crise.





As últimas palavras de Paul Feyerabend



Também comecei minha autobiografia, principalmente para lembrar meu período no exército alemão e como vivenciei o nacional socialismo. Esta, porém, demonstrou ser uma boa maneira de explicar como minhas "idéias" estavam entrelaçadas ao resto de minha vida.


Prometi para Grazia um livro sobre a "realidade", que está tomando forma muito lentamente e cujo título provisório é A conquista da abundância. O livro deverá mostrar como especialistas e pessoas comuns reduzem a abundância que os cerca o os confunde, e as conseqüências de suas ações.

Ele é principalmente um estudo do papel das abstrações, noções matemáticas e físicas especialmente, e da estabilidade e "objetividade" que parecem trazer consigo. Discute como emergem tais abstrações, como são apoiadas pelos modos comuns de falar e viver, e a mudança como resultado de argumentação e/ou pressão prática.

Procuro também enfatizar a ambigüidade essencial de todos os conceitos, imagens e noções que pressupõem mudança.

Sem ambigüidade não há mudança, nunca. A teoria quântica - como interpretada por Niels Bohr - é um perfeito exemplo disto.


"A conquista da abundância" deveria ser um livro simples, de leitura agradável e fácil compreensão. Entre meus motivos para escrever Contra o Método estava o de libertar as pessoas da tirania dos ofuscadores filosóficos e de conceitos abstratos como "verdade", "realidade" ou "objetividade", que estreitam a visão e as maneiras de ser das pessoas no mundo.

Ao formular o que eu acreditava ser minha própria postura e convicções, infelizmente acabei introduzindo conceitos igualmente rígidos, tais como "democracia", "tradição" ou "verdade relativa". Agora que estou consciente disto, me pergunto como pode ter acontecido.

O anseio de explicar as próprias idéias, não de modo simples, não numa história, mas por meio de uma "explicação sistemática" é de fato muito forte.

De que outra maneira poder-se-ia explicar que um destacado produtor teatral como Herbert Blau - um artista capaz de tornar claras para atores e audiências peças opacas - tenha escrito um tratado sobre teatro com afirmações incompreensíveis e desprovidas de sentido? Não se trata de uma dificuldade inerente ao assunto em questão. Platão, Aristóteles, Brecht e Dürrenmatt escreveram sobre teatro de modo agradável e compreensível. É o desejo de ser grande, profundo e filosófico.

Mas o que é mais importante? Ser compreendido pelo público em geral ou ser considerado um "pensador profundo"?.

Escrever de maneira simples, de modo que pessoas sem preparo específico possam entender não significa ser superficial.

Eu exorto todos os autores que querem se comunicar com as pessoas a manter distância da filosofia, ou ao menos que evitem ser intimidados e influenciados por ofuscadores como Derrida, lendo, ao invés disto, os ensaios populares de Schopenhauer ou Kant.



No final de 1993, o título deste capítulo assumiu um novo significado. Estou parcialmente paralisado, num hospital, com um tumor cerebral inoperável.


Eu não gostaria de morrer logo agora que finalmente consegui me "sistematizar" - também em minha vida privada.

Gostaria de ficar com Grazia e apoiá-la e fortalecê-la quando houver problemas. Depois de passar a vida lutando pela solidão, eu queria viver em família, contribuindo com a minha parte, esperando-a, por exemplo, com o jantar e algumas piadas prontas em sua volta do trabalho. Poderíamos mesmo tentar os métodos mais avançados para ter filhos; mas temos que esperar para ver como se desenvolve minha doença, e esta não é uma posição agradável de se estar, justamente agora que Grazia esperava tanto de uma nova vida que teríamos juntos.

Escrever colunas para uma revista pode mesmo ter melhorado meu estilo de escrita, e o livro que prometi a ela poderia vir a ser simpes e luminoso, mostrando como a razão e emoção podem coexistir em uma produção “acadêmica”.

Grazia está comigo no hospital, o que é uma grande alegria, e ela enche o quarto de luz. De certo modo, estou pronto para partir, malgrado todas as coisas que ainda gostaria de fazer; mas por outro lado, estou triste por ter de deixar este mundo esplêndido, e especialmente Grazia, a quem eu gostaria de acompanhar por mais alguns anos.

Estes devem ser os últimos dias. Nós os sorvemos um por um.

Minha última paralisia veio de algum sangramento dentro do cérebro. Eu queria que depois de minha partida ficassem algumas coisas minhas, não escritos, não declarações filosóficas finais, mas amor.

Espero que isto fique e não seja muito afetado pela maneira de minha partida final, que eu gostaria que fosse tranqüila, na forma de um coma, sem luta contra a morte e más lembranças deixadas atrás. O que quer que aconteça agora, nossa pequena família pode viver para sempre - Grazia, eu e nosso amor.

Isto é o que eu gostaria que acontecesse, a sobrevivência não intelectual, mas do amor.


***

Um par de semanas depois de Paul escrever estas palavras, o tumor comprometeu o centro de dor de seu cérebro e ele precisou de doses extremamente elevadas de morfina. Ele estava habituado a analgésicos, tendo sofrido dores lancinantes toda sua vida em conseqüência de seu ferimento de guerra (isto, bem como a prodigiosa quantidade e variedade de suas leituras são aspectos importantes da vida de Paul que ele mal menciona em sua autobiografia), mas os médicos ainda assim se surpreenderam que ele pudesse suportar tanto e por tantos dias. Era 11 de fevereiro de 1994 e Paul estava num tipo de coma induzido há mais de uma semana. O correio trouxe uma carta da editora italiana Laterza, dizendo que estavam entusiasmados com a autobiografia e dispostos a publicá-la em breve. Eu estava angustiada e exausta, mas fiquei feliz com as boas novas e contei-as a Paul com alegria em minha voz. Ele respirava lentamente e de certo modo tranqüilamente. Poucos segundos depois já não estava. Estávamos sozinhos, de mãos dadas, e era meio-dia.




(Paul Feyerabend, Matando o Tempo - Uma autobiografia - Ed Unesp)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Jung, Freud e a Parapsicologia




Jung e a Parapsicologia
Por Paulo Urban

Publicado na Revista Planeta nº 332 / maio 2000



"A relação médico-paciente, principalmente quando intervém uma transferência deste último ou uma identificação mais ou menos inconsciente entre médico e doente, pode conduzir ocasionalmente a fenômenos de natureza parapsicológica", afirmou o renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua autobiografia intitulada Memórias, Sonhos e Reflexões.

A vida de Jung, podemos constatar, esteve toda ela marcada por experiências pessoais a envolver fenômenos de clarividência, sonhos premonitórios e psicocinesia (ação do psiquismo sobre o meio e a matéria), que obrigatoriamente se constituem em peças fundamentais a servir na composição de toda sua psicologia. Jung considerava tão importante a parapsicologia como ciência emergente e revolucionária de seu tempo, capaz de investigar os inúmeros fenômenos que desafiavam (e ainda desafiam) a psicologia acadêmica, que chegou a propor o nome do norte-americano Dr. Joseph Banks Rhine para o Prêmio Nobel, visto que seus trabalhos experimentais desenvolvidos nos anos 50 no laboratório da Universidade de Duke, em Durham, na Carolina do Norte, E.U.A., provavam estar o ser humano dotado de capacidades "extra-sensoriais" que exigiam maior atenção da comunidade científica.

Jung cita, por exemplo, o caso de um paciente seu cuja depressão severa ele tratara. Havendo o rapaz se casado logo após o tratamento, Jung orientou sua esposa quanto às prováveis recidivas da doença, pedindo a ela que o avisasse prontamente caso observasse alguma piora no estado psíquico do marido. Mas, conforme nos relata o médico suíço, a tal mulher não o via com bons olhos, tomando-o mesmo por "uma pedra em seu sapato", talvez enciumada, explica Jung, pela influência que ela percebia existir por parte dele sobre seu esposo. Pois bem, precisamente dali a um ano, aquele casamento se transformara em carga insuportável sobre o rapaz, e sua mulher era fonte de constantes tensões. Deprimiu-se tanto o paciente que nem forças encontrava para deixar o leito, ao passo que a esposa, pouco se importando com o humor depressivo do marido, não se preocupou em avisar seu médico.

Por essa época Jung estava viajando, ministrando conferências em outras cidades. Ao regressar de um destes eventos ao seu hotel, por volta da meia-noite, embora se sentindo exausto, não conseguia pegar no sono. Só adormeceu às duas da madrugada para, sobressaltado, acordar dali a pouco, repentinamente. Havia tido a nítida impressão de que alguém entrara em seu quarto, e que a porta fora aberta precipitadamente. Acendeu a luz, mas nada percebeu. Imaginou que algum outro hóspede houvesse se enganado de porta e que, constatando o erro, dali tivesse saído rapidamente. Jung levantou-se, observou o corredor, mas nada havia além do silêncio. "Estranho, pensou, podia ter a certeza de alguém ter entrado em meu quarto". Procurando avivar suas lembranças, percebeu que acordara em verdade com nítida sensação de uma dor surda, assim ele a descreve, como se alguma coisa houvesse ricocheteado em sua testa para depois bater na parte posterior de seu crânio. Sem solução para o mistério, voltou à cama e adormeceu. No dia seguinte, para seu espanto, logo cedo recebeu um telegrama que lhe comunicava a morte daquele seu paciente deprimido: ele dera um tiro em sua própria cabeça. Soube mais tarde que a hora do suicídio conferia com a de seu estranho sonho, e que o projétil entrara pela fronte para alojar-se em região occipital.

Jung explica: "Tratava-se, neste caso, de um verdadeiro fenômeno de sincronicidade, tal qual se pode observar freqüentemente numa situação arquetípica - no caso, a morte. Dada a relatividade do tempo e do espaço no inconsciente, é possível que eu tenha percebido o que se passara, em realidade, num outro lugar. No caso em questão, meu inconsciente conhecia o estado de meu doente. Durante a noite inteira eu experimentara um nervosismo e uma inquietação espantosas, muito diferente de meu humor usual".

Mas esta não fora a primeira nem seria a última experiência parapsicológica a permear a sua vida. Desde criança, Jung, que nascera em Kesswil, interior da Suíça, ouvira contar casos de fantasmas e histórias extraordinárias, folclóricas da região campesina do Cantão. Em sua própria genealogia encontrava raízes fortes da crença nos espíritos. Seu avô materno, por exemplo, o pastor presbiteriano Samuel Preiswerk, que Jung não chegou a conhecer, era casado em segundas núpcias com Augusta Preiswerk e mantinha regularmente, para infelicidade desta, conversas com sua falecida esposa. Reservava em seu gabinete de trabalho um sofá onde diariamente, em hora sempre a mesma, recebia o espírito da finada Madalena, com quem dialogava secretamente. Outra de suas manias era a de pedir à sua filha Emilie, mãe de Jung, que se sentasse atrás dele enquanto escrevia sua gramática de hebraico ou seus sermões, isto porque agindo assim, segundo ele, os espíritos não o perturbariam pelas costas. A respeito de sua segunda esposa, avó de Jung, conta-se que aos dezoito anos caíra enferma gravemente, tendo contraído a escarlatina de seu irmão, e que permanecera em estado cataléptico por 36 horas. Já diante do caixão em que seria enterrada, sua mãe, não acreditando que Augusta Preiswerk estivesse morta, aplicou-lhe um ferro de passar roupas em brasa sobre a nuca, chamando-a assim de volta à vida. Apelidada de "Gustele", a avó de Jung era respeitada como clarividente dotada de estranhos poderes, capaz que era de profetizar em estado sonambúlico.

O próprio Jung recorda-se de suas primeiras experiências inquietantes quando contava apenas três anos de idade. Dormia por essa época no quarto de seu pai, já que o casal vivia em regime de separação de corpos. Todas as noites, percebia que a natureza de sua mãe se modificava, e ela se tornava, diz ele, temível e perigosa. Certa noite, pôde observar que do quarto dela saía uma figura luminosa, cuja cabeça se despregou do pescoço e planou no ar, como pequena lua. A amedrontadora visão repetiu-se por umas seis ou sete noites. Fértil imaginação de uma criança aflita pelo ambiente tenso de relacionamento conjugal de seus pais? Possivelmente sim, mas o fato é que tantas outras experiências inusitadamente fortes se seguiram em sua vida, que só restou mesmo a Jung procurar estudar esses fenômenos e interpretá-los à luz de sua revolucionária psicologia.

Sua dissertação de mestrado, importante que se diga, intitulava-se Sobre os Fenômenos Assim Chamados Ocultos. Foi apresentada em 1902, e analisava detalhadamente a suposta mediunidade da senhorita S.W. (pseudônimo de Helena Preiswerk, em verdade uma prima sua em primeiro grau) durante sessões espíritas, bastante em moda na virada para o século XX, realizadas no âmago de sua família e em presença de outros convidados. O estudo fora feito entre 1899 e 1900; a médium era pessoa introvertida, franzina, de natureza frágil e não muito inteligente; apresentara problemas de aprendizado na escola e contava quinze anos quando se iniciaram as sessões. Morreria mais tarde, aos 26 anos, de tuberculose e "infantilizada", assumindo comportamento de uma criança de pouco mais de 10 anos. Os fenômenos desenvolvidos por Helena iam desde automatismos, como a psicografia e a movimentação rápida de um copo sobre as chamadas "mesas giratórias", até estados de incorporação em semi-sonambulismo, incluindo mudanças grotescas da voz, da maneira de falar, e alterações surpreendentes do caráter. Também ocorriam as chamadas comunicações com os "desencarnados", mediante golpes que provinham das paredes e da própria mesa de trabalhos.

Jung, interessado na fenomenologia, passou a organizar sessões aos sábados em sua própria casa; decepcionou-se entretanto ao flagrar por diversas vezes sua prima fraudando os fenômenos. Acabou concluindo sua análise como um caso complexo de "dissociação histérica", facilitado e prestigiado pelo meio cultural-religioso em que ocorria. Seu trabalho, interessantíssimo, e escrito com agudo senso de investigação, compõe o 1o volume de suas Obras Completas, editado em português pela editora Vozes, sob o título Estudos Psiquiátricos.

Não apenas Helena, porém, chamaria a atenção de Jung para os eventos parapsicológicos; ele próprio vivenciou algumas situações que nos dão muito o que pensar.

Num curto espaço de exatas duas semanas do ano de 1898, durante as férias de verão da Faculdade de Medicina da Basiléia, dois curiosos acontecimentos no estilo Poltergeist vieram servir de alimento para suas indagações futuras. Estando a sós com sua mãe em sua casa, em Zurique, Jung estudava em seu escritório enquanto ela fazia tricô na sala contígua. De repente, o silêncio foi quebrado por forte estampido, semelhante a um tiro de revólver! Sobressaltados, ambos procuravam saber o que havia acontecido; olhavam às suas voltas quando deram com a mesa de madeira inteiriça da sala principal que havia se partido, rachando-se ao meio misteriosamente. Era nogueira sólida que secara há setenta anos e, segundo Jung, naquelas condições climáticas de umidade relativamente elevada tal rachadura nem poderia ter ocorrido.

Quatorze dias mais tarde, Jung viveria outro episódio de psicocinesia, tão estranho quanto o primeiro. Havendo entrado em sua casa por volta das dezoito horas, encontrara sua mãe e sua irmã, esta com 14 anos, extremamente agitadas e nervosas. Há uma hora haviam escutado outro barulho ensurdecedor, vindo da direção de um pesado móvel do século XIX, onde se dispunham os pratos e talheres. Numa de suas gavetas, onde se guardava a cesta de pão, além das migalhas, Jung encontrou a faca que há pouco fora usada no café da tarde com sua lâmina rompida em três pedaços. No dia seguinte, Jung levou o material quebrado a um dos melhores cuteleiros da cidade. Este lhe teria garantido, "É faca de boa qualidade, não há defeito no aço, quem a partiu deve tê-la forçado contra a fenda de uma gaveta ou martelado com ela sobre pedras. Alguém está querendo lhe pregar uma peça!". A faca, inexplicavelmente partida, foi cuidadosamente guardada por Jung durante toda a sua vida. Por que se estilhaçara? E como explicar a rachadura da mesa de nogueira maciça? "A hipótese do acaso para explicar o ocorrido, diz Jung, tinha a mesma probabilidade que a do Reno correr em direção a sua nascente". Ele já suspeitava por essa época que forças inconscientes consteladas, isto é, reunidas em potenciação, a ocorrer em momentos específicos de nossas vidas, em situações que Jung mais tarde batizaria como "arquetípicas", poderiam ter energia suficiente para desencadear fenômenos físicos perceptíveis à nossa volta, ainda que de forma repentina e quase nunca sob o controle de nossa vontade.

Digo quase nunca pois, ao que parece, Jung acabaria desencadeando mais ou menos conscientemente um dos mais curiosos fenômenos psicocinéticos de sua vida. Deu-se em presença daquele que para ele foi, desde quando se conheceram pessoalmente em 1906, em Viena, primeiramente um mestre, depois quase um pai, para mais tarde, em 1913, desentenderem-se e terem rompida a amizade. Estamos falando de Freud, o pai da Psicanálise, que quis ver em Jung um de seus melhores discípulos, nele projetando toda a esperança de fazê-lo herdeiro de seu saber psicanalítico. Mas a vontade do mestre não se concretizou. Tendo divergido de Freud, principalmente no tocante à questão da libido e quanto às bases de interpretação do material onírico, Jung acabou por estruturar seu próprio sistema de compreensão do psiquismo humano ao qual denominaria de "Psicologia Analítica". Além disso, pensava: "Retribui-se muito mal aos mestres se nos tornamos para sempre seus discípulos!"

Jung visitou Freud em 1909 justamente com o intuito de questioná-lo a respeito dos fenômenos "psi". Perguntando a Freud o que ele pensava acerca da precognição e da nova ciência, a parapsicologia, ouviu do mestre que não deveria estar se preocupando com tolices desse gênero. (*) E enquanto Freud discursava, Jung ia sofrendo uma estranha sensação; sentia seu diafragma como ferro ardente, parecia haver dentro dele energia capaz de abaular seu abdômen. Foi quando algumas pancadas misteriosas passaram a ser ouvidas pelo consultório, culminando num estalido forte como se a estante de Freud (curiosamente, símbolo de seu saber) fosse desabar sobre os dois. Jung gritou: "É o que eu chamo de fenômeno catalítico de exterioração!" Ao que Freud respondeu: "Ora, isto é puro disparate!". Jung, atestando sua razão, profetizou: "Pois estou tão certo do que falo que afirmo que igual fenômeno se reproduzirá neste exato instante!" E, pou!, outro estalido bem sonoro explodiu ali mesmo na estante. Freud olhou-o emudecido e horrorizado. Tinha acontecido!

Em carta datada de 16 de abril daquele ano, Freud diz a Jung, falando sobre o assunto, que poderia dar inúmeras "explicações naturais" para os "espíritos golpeantes". Não podemos deixar de observar que na fala do "mestre" estava a suposição de que no discurso dos que se interessavam por "tolices desse gênero" estivesse a crença de que seriam "espíritos sobrenaturais" os agentes causadores destes estampidos. Mas Freud estava bem distante das interpretações que Jung proporia para os fenômenos psi, para ele explicáveis de forma natural e sempre relacionados com nosso psiquismo mais profundo, individual ou coletivo, mas humano.

Poderíamos narrar muitos outros episódios parapsicológicos na vida de C. G. Jung, boa parte deles encontra-se descrita na citada autobiografia. Mas fugiríamos das dimensões deste texto, cuja pretensão é apenas a de revelar o quanto de mistério ainda existe em nosso mundo psicológico mais profundo, passível de interação não mecânica com o meio físico à nossa volta, psiquismo esse também capaz de transpor as barreiras impostas quer pelas malhas do tempo, quer pela rede do espaço.
No apêndice de sua obra póstuma, O Homem e seus Símbolos, traduzida pela editora Nova Fronteira, voltada ao público leigo, esboça-se uma relação entre a Psicologia Analítica e as descobertas relativísticas da física quântica. Jung julgava imprescindível uma complementaridade à sua psicologia para que a humanidade encontrasse modelos mais satisfatórios para a explicação dos fenômenos psi. Sonhava Jung que os físicos, a começar por seu analisando e amigo Wolfgang Pauli, um dia pudessem emprestar à sua obra um auxílio enorme, para que uma teoria interdisciplinar mais consistente se firmasse sobre novos e revolucionários paradigmas, transcendendo a maneira encontrada pela física clássica para explicar o universo e seus fenômenos. Mais uma vez o médico da Basiléia profetizara, pois é isto justamente o que vem ocorrendo no discurso científico contemporâneo.


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(*) Na verdade, dali a alguns anos Freud abriria publicamente sua mente, ainda que com reservas, para se inteirar dos eventos parapsicológicos, chegando a escrever interessantes e reveladores artigos sobre sua pia crença no fenômeno telepático. São os trabalhos "Psicanálise e telepatia"(1921), "Sonho e telepatia"(1922), "O significado oculto dos sonhos"(1925) e "Sonho e ocultismo"(1933), textos estes, lamentavelmente, pouco lidos pela maioria dos psicanalistas.



Paulo Urban é médico psiquiatra, psicoterapeuta do encantamento e acupunturista.

http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/jung.htm



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"Eu queria conhecer as opiniões de Freud acerca da preconigção e de parapsicologia em geral. Quando fui vê-lo em 1909, em Viena, perguntei-lhe o que pensava sobre isso. Fiel a seu preconceito ma­terialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos decorreram antes que Freud reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o ca­ráter de dado real dos fenômenos "ocultos".

"Enquanto Freud expunha seus argumentos eu tinha uma es­tranha sensação: meu diafragma parecia de ferro ardente, como se formasse uma abóbada ardente: Ao mesmo tempo um estalido res­soou na estante que estava a nosso lado, de tal forma que ambos nos assustamos. Pensamos que a estante ia desabar sobre nós. Foi exa­tamente essa a impressão que nos causou o estalido.

"Eu disse a Freud: "Eis o que se chama um fenômeno catalítico de exteriorização". "Ah, disse ele, isso é um puro disparate!"

"—De forma alguma, repliquei, o senhor se engana, professor. E para provar-lhe que tenho razão, afirmo previamente que o mesmo estalido se reproduzirá." E, de fato, apenas pronunciara estas pa­lavras, ouviu-se o mesmo ruído na estante.

"Ainda hoje ignoro de onde me veio esta certeza. Eu sabia, porém, perfeitamente, que o ruído se repetiria. Então, como resposta, Freud me olhou, horrorizado. Não sei o que pensou, nem o que viu. É certo, no entanto, que este acontecimento despertou sua desconfiança em relação a mim; tive o sentimento de que lhe fizera uma afronta. Nunca mais falamos sobre isso. '"



Extraído do livro “Memória, Sonhos e Reflexões”, de Carl Gustav Jung, Editora Nova Fronteira


Fonte: Blog HolosGaia