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quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O medo como fonte da razão




O MEDO COMO ORIGEM DA RAZÃO EM ADORNO E HORKHEIMER: o papel de Nietzsche na Dialética do Esclarecimento

Por: Márcio Benchimol Barros
(Professor de Filosofia da Unesp de Araraquara)


Assim como Habermas em O Discurso Filosófico da Modernidade, também Albrecht Wellmer em seu artigo Adorno, Advogado do não-Idêntico [1] interpreta a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer como um empreendimento filosófico ao mesmo tempo corajoso e arriscado no qual de pontos-de-vista anti-iluministas de determinados pensadores seriam utilizados criticamente no sentido de uma radicalização do esclarecimento, agora voltado sobre si mesmo. Asim, filosofias que a tradição marxista costumava considerar como exemplos do conservadorismo e decadência burgueses são integradas em uma continuação do próprio impulso da crítica ideológica de inspiração marxista. Em especial, ambos procuram demonstrar a influência de Nietzsche na elaboração da obra.

Habermas e Wellmer também estão de acordo quanto ao que constitui o essencial desta influência: a tese do entrosamento profundo entre razão e dominação, pensado não como meramente exterior ou contingente, mas como constitutivo da razão. Habermas, no texto citado, aponta Nietzsche como o precursor desta tese, a qual conduziria à destruição de todas as possibilidades de distinção entre pretensões de validade e pretensões de poder. Por seu turno, Wellmer considera a identificação entre razão e dominação na Dialética do Esclarecimento como resultado de uma leitura de Marx por Adorno e Horkheimer através da ótica de uma crítica do conhecimento,...com os olhos de Nietzsche e Kant.., bem como de uma leitura materialista de Kant [2]. Wellmer chama a atenção para a origem nietzscheana da …tese central de Adorno e Horkheimer, a tese da unidade da racionalidades formal e instrumental no pensamento conceitual… [3], a qual permitiria a referida leitura de Marx.

Tendo em vista a utilização que faremos, no decorrer do texto, das noções de racionalidade formal e racionalidade instrumental, tais como são conceituadas por Wellmer, reproduzimos abaixo as descrições de ambas presentes em Adorno, Advogado do não-Idêntico:

A racionalidade formal se exterioriza como impulso à constituição de contextos de saberes, explicações e atividades sistematicamente unificados e isentos de contradição. [4]

Já a racionalidade instrumental é descrita no seguinte período:

A tese propriamente forte de Adorno e Horkheimer, porém, é a de que a racionalidade formal é, em última análise, equivalente (gleichbedeutend) à racionalidade instrumental, ou seja, equivalente a uma racionalidade “coisificante” ("verdinglichende"), cuja meta é o controle de processos naturais e sociais. [5]

A atenção e profundidade com que Habermas e Wellmer tratam a tese de Adorno e Horkheimer a respeito do que constitui a essência do esclarecimento – a saber, a dominação – tem entretanto como contrapartida o fato de que ambos deixem intacta a tese apresentada pelos autores acerca da origem do esclarecimento.

Essa origem, como também da própria razão, é indicada claramente já na frase inicial do texto O Conceito de Esclarecimento:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-lo na posição de senhores [6].

O esclarecimento tem origem no sentimento do medo, e como reação a este sentimento. Seu objetivo primordial é antes de tudo livrar os homens do medo. É, de fato, apenas como meio que a dominação também aparece nesta sentença de abertura, da qual o seguinte trecho pode ser lido como uma confirmação e um desenvolvimento:

Do medo o homem presume estar livre quando não há mais nada de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a radicalização da angústia mítica. A pura imanência do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais é que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idéia do "fora" é a verdadeira fonte da angústia... [7]

Aqui, não somente a eliminação do medo aparece como determinante de toda a trajetória do esclarecimento, mas o esclarecimento, é, ele mesmo, identificado ao medo [8] . O sentido desta última formulação, mais forte que as anteriores, é o de que o esclarecimento, mesmo em sua forma mais acabada, continua sendo resultado e expressão do medo, sendo exatamente este o motivo pelo qual ele jamais chega a atingir seu objetivo.

Ora, a tese que faz do medo a origem do pensar racional nos parece revelar um outro aspecto da influência nitzscheana na Dialética do Esclarecimento, o qual não foi desenvolvido por Habermas e Wellmer. No que se segue, procuraremos explicitar os motivos pelos quais nos acreditamos autorizados a levantar tal hipótese.

Comecemos pois por perguntar qual o sentido do conceito de medo tal como ele aparece em Dialética do Esclarecimento. Um sentido certamente presente neste conceito é o do medo ante a todos aqueles processos e forças naturais – seja antropomorfizados pelo animismo, seja apreendidos pelo pensamento científico esclarecido – que permanecem ainda não dominados, incontroláveis e imprevisíveis. O medo diante de tudo o que ainda não se curvou ao domínio técnico do homem e que o faz, por isso mesmo, sentir-se indefeso, pois se apresenta como ameaça à conservação da vida humana em geral. É como reação a este sentimento que Adorno e Horkheimer procuram estabelecer a gênese e a necessidade de uma racionalidade instrumental voltada para a dominação da natureza.

Quanto ao problema da gênese do aspecto formal da razão no pensamento de Adorno e Horkheimer, vimos que Wellmer procura compreender o impulso à construção de sistemas unitários e internamente consistentes como decorrente do caráter instrumental da racionalidade. A tese que lhe permite estabelecer tal dependência é aquela na qual a Dialética do Esclarecimento atribui já ao próprio conceito uma natureza instrumental, tese essa na qual Wellmer identifica uma origem nitzscheana [9].

Assim, unindo a argumentação de Wellmer à tese do medo como origem da razão, chagaríamos à seguinte explicação para o surgimento da racionalidade formal: O medo às forças hostis da natureza torna necessária a dominação; esta necessidade, por seu turno, gera o conceito como instrumento de dominação; e o princípio da não contradição, contido na essência do pensar conceitual, engendra o impulso à lógica e à sistematização.

Embora não haja como discutir a pertinência da análise de Wellmer a este respeito, acreditamos poder encontrar na Dialética do Esclarecimento uma segunda componente do conceito de medo a partir da qual é possível pensar de uma maneira alternativa, na referida obra, a gênese da racionalidade formal. Esta segunda via não está, como se verá, em contradição com aquela exposta acima, mas possui para nós o interesse especial de pôr em relevo aquele aspecto da influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento que estamos procurando indicar.

A componente do conceito de medo à qual nos referimos se encontra apresentada no seguinte trecho:

...Concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do próprio nome. Para a civilização, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto. Um após o outro, os comportamentos mimético, mítico e metafísico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a idéia de recair neles era associada ao pavor de que o eu revertesse à mera natureza, da qual se havia alienado com esforço indizível e que por isso mesmo infundia nele indizível terror [10].

Trata-se aqui não mais do medo do indivíduo ante ao que ameaça a sua sobrevivência, mas do medo da dissolução dos limites da individualidade, da identificação imediata com a natureza e da regressão a estágios mais primitivos, o qual é exponenciado pela poderosa sedução que esta mesma identificação com a natureza representa para o indivíduo:

O esforço para manter a coesão do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentação de perdê-lo jamais deixou de acompanhar a determinação cega de conservá-lo… O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida … está irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaçava a cada instante a civilização [11].

Este mesmo medo está presente em muitas das interpretações dadas pela Dialética do Esclarecimento paras as aventuras de Ulisses. A sedução das sereias, dizem os autores, é a de se deixar perder no que passou [12], e quem prova da comida dos lotófagos, sucumbe como os que escutam as sereias ou como os que foram tocados pela varinha de Circe...A única ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade [13]. Depois de ter logrado Polifemo, Ulisses precisa declarar seu nome e sua origem ao ciclope, pois teme que, por ter-se declarado ninguém, volte a ser ninguém caso não restaure sua identidade [14]. A magia de Circe …desintegra o eu que volta a cair em seu poder e assim se vê rebaixado a uma espécie biológica mais antiga [15].

Neste ponto, a linha de nossa argumentação impõe-nos uma dupla tarefa: é preciso, por um lado, explicitar que relação pode haver entre o medo da dissolução da individualidade e o surgimento de uma racionalidade formal; e, por outro, indicar de que maneira tal relação pode ser índice de influência nietzscheana na Dialética do Esclarecimento.

Ora, não vemos melhor caminho para o cumprimento destes objetivos do que recordarmos as teses de O Nascimento da Tragédia, nas quais a tendência lógica e sistemática se encontra paradigmaticamente relacionada ao medo da supressão da distância entre indivíduo e natureza.

Nietzsche, por Munch



Em sua primeira obra, com efeito, Nietzsche faz o êxtase dionisíaco consistir na anulação dos limites da individualidade e na identificação imediata com a natureza. O supremo prazer provocado por esta identificação e a irresistível sedução que ela por isso mesmo exerce constituem temível ameaça ao princípio de individuação (principium individuationis), entendido – em uma variação da reinterpretação schopenhaueriana deste terminus escolástico – como o impulso fundamental pelo qual a vida tende a abandonar sua unidade primordial para fixar-se em unidades viventes mais ou menos estáveis e permanentes, ou seja, em indivíduos. O pavor experimentado pelo indivíduo ante a eminência da dissolução dos limites que o separam da natureza e a revelação extática da unidade profunda de todos os viventes não é senão a expressão da profunda contradição existente entre a tendência dionisíaca e aquele princípio vital essencial.

É esta contradição o que termina por gerar aquela poderosa força cultural que conhecemos como espírito apolíneo, o qual, como expressão do principio de individuação na cultura, destina-se a conter o avanço da tendência dionisíaca. Em O Nascimento da Tragédia podemos acompanhar como o impulso apolíneo helênico, a fim de alcançar este objetivo, cria a mitologia grega, com todo o seu panteão de divindades olímpicas, e a arte escultórica clássica, na qual estas divindades são representadas; vemos ainda como faz vir à luz o esplendor da arquitetura dórica e finalmente o drama clássico, que, irmanado à música dionisíaca, instaura finalmente na Tragédia ática um equilíbrio de forças entre Apolo e Dionísio.

Mas este equilíbrio acaba por revelar-se precário e momentâneo, pois ainda quando a Tragédia vivia seu auge, o princípio de individuação – abandonando o âmbito apolíneo, no interior do qual se movera até então – obtém, por meio da filosofia socrático-platônica, a vitória final sobre a tendência dionisíaca. É esta filosofia que entroniza pela primeira vez o conceito, a lógica e o impulso à construção de sistemas, inaugurando assim o espírito científico, nova força cultural que haveria de dominar os rumos da civilização ocidental. A partir de então a sobriedade da razão e a exigência de absoluta coerência interna, clareza e transparência de um pensar que busca constantemente a mais perfeita auto-consciência são os elementos que banirão definitivamente as tendências extáticas e orgiásticas do horizonte grego, velando assim pela estrita observância dos limites entre indivíduo e natureza.

Ora, se nos dispomos a traçar uma analogia entre a descrição nietzscheana da atuação do princípio de individuação na cultura – através do espírito apolíneo e da tendência socrática-científica – e a imagem da evolução do esclarecimento traçada por Adorno e Horkheimer certamente teremos ocasião de perceber alguns claros pontos de contato. Pois o processo pelo qual o indivíduo se emancipou da natureza, e com isso forjou para si uma identidade rígida e unitária é elemento essencial na descrição da trajetória do esclarecimento realizada pelos autores frankfurtianos.

De fato, se o conteúdo essencial da mimesis é a identificação com a natureza, o processo pelo qual ela é substituída pela ratio, que é o seu outro, pode ser descrito como o processo de distanciamento do sujeito em relação à natureza. A noção de distanciamento e interposição está implícita na própria noção de instrumento, e portanto, do conceito enquanto instrumento:

É verdade que a representação é só um instrumento. Pensando, os homens distanciam-se da natureza a fim de torná-la presente de modo a ser dominada…Pois o pensamento se torna ilusório sempre que tenta renegar sua função separadora, de distanciamento e objetivação [16].

Este distanciamento é descrito por Adorno e Horkheimer como o processo no qual simultâneamente a natureza é liberada de toda antropomorfização mítica e o sujeito de tudo o que ele tem de natureza. O esclarecimento, ao mesmo tempo em que elimina a identificação mítica do inanimado ao animado, identifica o animado ao inanimado, de onde resulta a atrofia tanto do sujeito quanto da natureza:

É à identidade do espírito e a seu correlato, à unidade da natureza, que sucumbem as múltiplas qualidades. A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para uma simples classificação, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstrata [17].

Como o eu idêntico só se constitui por oposição à natureza da qual ele se distancia, os conceitos de eu e de natureza determinam-se e limitam-se reciprocamente. As exigências de unidade e identidade do sujeito pressupõem que o objeto se submeta também à unidade e à identidade. Ao eu penso transcendental corresponde como seu correlato necessário uma realidade que, segundo a expressão de Wellmer, compõe-se … de fenômenos interligados causalmente segundo leis, e isto quer dizer: uma realidade como objeto de um conhecimento possível das ciências naturais. [18]. Trata-se de uma realidade na qual tudo é a priori passível de ser subsumido pelas categorias fixas do entendimento. Todo ente é exemplar de uma espécie e todo evento é um caso especial e repetição de uma lei eterna.

A conseqüência imediata deste conceito de natureza é o ideal do sistema que procura abranger num todo coerente a extensão inteira da realidade, afirmando ao mesmo tempo a lógica formal como esquema da calculabilidade do mundo:

De antemão o esclarecimento só reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode deduzir toda e qualquer coisa [19].

Poderíamos então concluir que é a preocupação com preservação da unidade e da identidade do sujeito o que torna indispensável o projeto iluminista do enquadramento de todo o real pelo pensar lógico e sistemático; e é para atingir este objetivo que o esclarecimento instaura um tribunal permanente contra tudo aquilo que parece oferecer resistência a um tal enquadramento. O que não se deixa enquadrar pelo sistema e deduzir pela lógica é aquilo que ainda não caiu sob o poder do pensamento conceitual, e, por isso mesmo, é algo que ainda não se submeteu às condições únicas pelas quais pode haver a separação entre sujeito e objeto. Precisamente isto, o incomensurável, ou, como dirá Adorno posteriormente, o não-idêntico, é o que não pode ser tolerado pelo esclarecimento, pois ele vê aí uma sobrevivência do tempo em que o eu não havia se emancipado da natureza e um sinal de que a emancipação ainda não se completou de todo. Aí o esclarecimento reconhece uma região do espírito esclarecido na qual ainda pode subsistir o medo mais antigo, do qual ele sempre quis livrar os homens, o da confusão entre os limites do individuo e da natureza. O esclarecimento só pode estar seguro de ter vencido definitivamente o medo quando o esquema da deductibilidade universal tiver compreendido sem resto todo o real, e sua grande astúcia é declarar este projeto como já realizado de antemão, pelo menos em potência. Este é o sentido, de acordo com nossa interpretação, das expressões de Adorno e Horkheimer segundo as quais o homem presume estar livre do medo quando não há mais nada de desconhecido, e nada mais pode ficar fora, uma vez que a própria idéia do fora é a verdadeira fonte da angústia. Neste sentido, expressão fora significaria aqui aquela região exterior ao círculo delimitado pelo saber científico esclarecido, a qual o esclarecimento declara nula a priori. E é justamente por ser estabelecida a priori que a pura imanência do positivismo – ou seja, a identificação da realidade com aquilo que pode ser apreendido pela matemática e a eliminação de toda a transcendência – assume o caráter de tabu assinalado por Adorno e Horkheimer.

Se são aceitas as linhas gerais da aproximação por nós intentada entre a Dialética do Esclarecimento e O Nascimento da Tragédia, seria possível estendê-la ainda de modo a estabelecer uma relação entre a tese nietzscheana que faz a criação da mitologia e da religião consistir em uma reação ao perigo representado à civilização pela tendência dionisíaca e a tese frankfurtiana que afirma terem os deuses como nome as vozes petrificadas do medo [20], e, portanto, que aquilo com o que o esclarecimento historicamente se bate já é esclarecimento. Da mesma forma, poder-se-ia ver uma influência nietzscheana na tese segundo a qual o produto derradeiro do esclarecimento, a mimese ao inanimado, é exatamente o oposto do seu objetivo original, ou seja, a preservação da vida. Pois em Nietzsche, de fato, o impulso à lógica e ao conceito, assim como o impulso apolíneo, tem como finalidade tornar possível a vida, na medida em que esta pressupõe a constituição de uma subjetividade idêntica e estável. No entanto, a hipostasiação inexorável deste impulso resulta na atrofia da vida através da anulação paulatina do elemento instintivo dionisíaco, que é o substrato vital dos sujeitos cujas vidas deviam ser preservadas.

Mas faremos mais justiça ao pensamento frankfurtiano se concluirmos estas linhas com a ressalva de que embora seja possível encontrar muitos pontos de contato entre a Dialética do Esclarecimento e a filosofia nietzscheana, não se pode pretender ver na obra de Adorno e Horkheimer uma simples adesão àquela filosofia. A Dialética do Esclarecimento sabe se preservar da sedução nietzscheana e utiliza conscientemente Nietzsche em um esforço de continuação da melhor tradição do materialismo histórico, e na perspectiva do desmascaramento da falsidade contida nas formas de pensamento engendradas pela prática social.

Se muito se pode dizer a respeito da influência de Nietzsche na referida obra, outro tanto se pode afirmar sobre a influência do pensamento marxista, e muito de sua importância se deve à própria originalidade dos autores. E um dos traços mais marcantes desta originalidade é certamente a combinação inusitada e, para muitos improvável, conseguida por eles entre duas das filosofias que mais definiram os caminhos do pensamento no nosso século.

BIBLIOGRAFIA:

Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, J. Zahar Editor, 1985

Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung. Gesammelte Schriften, Bd.3, Frankfurt, Suhrkamp,1984.

Wellmer, Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen, in: Zur Dialektik von Modernen und Post-Modernen, Vernunftkritik nach Adorno, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1885

Nietzsche, Die Geburt der Tragödie, Berlin- New York, W. de Gruyter, 1972

Habermas, The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge, Polity Press, 1992

Gagnebin, Jeanne Marie, Do Conceito de Razão em Adorno.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

LOUCURA E DESRAZÃO



(Fragmento da obra: DA CLAUSURA DO FORA AO FORA DA CLAUSURA, de PETER PÁL PELBART)



A relação entre delírio e sabedoria pode surpreender. Entretanto, alguns autores, como Giorgio Colli, por exemplo, a levaram tão a sério que chegaram a situar no delírio a origem da própria filosofia. Tomo a liberdade para abrir um longo parêntese e expor essa curiosa genealogia, que só aparentemente nos afastará do nosso tema. Ela nos servirá para pensar a dimensão de verdade e saber embutidas na loucura grega desse primeiro tipo exposto por Platão e, por extensão, na loucura dionisíaca da qual trataremos mais adiante.

A argumentação de Colli, que seguirei de perto, será desenvolvida em três tempos: a) génese da sabedoria na Antiguidade grega; b) refutação (discutível, como veremos) da antinomia nietzscheana de Apolo e Dionísio; e c) ilustração mitológica da origem comum entre sabedoria e delírio. A hipótese de Colli não será tomada ao nível da demonstração histórica, e não terá aqui o valor de prova. Como qualquer ficção teórica, servirá, no máximo, para colocar em xeque uma insistente evidência contemporânea. Trata-se, no caso, da natureza da relação entre razão e desrazão na Grécia antiga.

No princípio, diz Giorgio Colli (13), era o sábio; depois veio o filósofo. O que é um sábio? Aquele que tem a sabedoria. O que é um filósofo? O amigo da sabedoria. O filósofo é um amigo da sabedoria pertencente ao sábio, seu predecessor. A filosofia fundada por Sócrates, enquanto amor à sabedoria — entenda-se: amor à sabedoria que o precedeu —, seria um declínio em relação a esta. A filosofia não inventa um saber, não visa um conhecimento não-advindo, não tem os olhos no futuro. Ela é retorno ao passado, veneração a uma sabedoria já existente, à sabedoria dos sábios. O esplendor da sabedoria viva dos sábios da Grécia arcaica se degrada, a partir de Sócrates, no amor dos filósofos à extinta sabedoria dos sábios. A aurora da filosofia tem as cores de um crepúsculo.

Quem é então esse sábio da Grécia arcaica? Não é aquele que é rico em experiência, em habilidades, em capacidades técnicas ou expedientes — como Ulisses, por exemplo. Sábio é aquele que traz uma luz na escuridão, que desfaz os nós, que revela o desconhecido e dissipa as dúvidas. Sabedoria implica, portanto, conhecimento acerca do futuro do mundo e dos homens.

Ora, na civilização arcaica é o oráculo quem enuncia esse futuro, e é o deus Apolo quem inspira seu discurso. A palavra do oráculo, que diz o destino, é sabedoria e conhecimento. Sabedoria acessível ao homem através da crueldade divina,, que consiste em comunicá-la de modo obtuso e enigmático. Mas como pode Apolo, deus da clareza e harmonia, inspirar a crueldade e a confusão da palavra mântica?
Apolo, diz Colli, não seria apenas esse deus solar, luminoso e artístico, que Nietzsche nos legou. A própria etimologia sugere um sentido mais feroz: "aquele que destrói inteiramente". Seus epítetos citados por Homero não deixam dúvidas: "aquele que atinge à distância" ou "aquele que age à distância". O arco, símbolo de Apolo, representa o raio e o esplendor da vida, mas também a morte indireta, diferida e diagonal, tal como a palavra do oráculo ao atingir os homens. Simetria essencial entre flecha e discurso apolíneos.

Contra a representação harmoniosa e equilibrada de Apolo depõe o próprio caráter do ritual mântico inspirado nele. A palavra oracular não se enuncia na serenidade reverente, mas na exaltação mística, no transe extático próprio aos xamãs das planícies do Norte e da Ásia Central. O ritual apolíneo tinha claramente
o caráter de possessão.

Então por que o Apolo nietzscheano contraria tão frontalmente essas características "dionisíacas" (no sentido que Nietzsche deu a esse termo) do deus de Delfos? Segundo Colli, a resposta estaria no esforço do filósofo alemão em construir uma metafísica estética com os ingredientes schopenhauerianos. Foi preciso ignorar a faceta violenta de Apolo, restringi-lo a seu aspecto de luminosidade harmoniosa e reservar a Dionísio as qualidades antitéticas. O dionisíaco daí resultante poderia equivaler ao conhecimento tal como Nietzsche leitor de Schopenhauer o entendia: saber sobre a essência sofredora e dilacerada do mundo.

Nietzsche, por Munch


Simplificadamente, isso permitiu a Nietzsche fazer corresponder o par Dionísio-Apolo à oposição schopenhaueriana Vontade-Representação.

Ora, objeta Colli, essa dimensão obscura, terrível e desregrada do mundo, que Nietzsche atribui a Dionísio, não é monopólio exclusivo do deus silvestre. A prova é que ela está presente na palavra e no culto apolíneos. O profetismo mântico inspirado no deus Apolo, além de ser um delírio, é também um saber, saber do mundo, para não dizer origem do saber.

Colli tenta mostrar que a oposição nietzscheana entre o dionisíaco e o apolíneo (que, para demonstrar sua tese, ele esquematiza e exagera, a ponto de deformá-la, em franca contradição com certos textos de Nietzsche que adiantam ideias similares às suas (14)) não procede. Entre Dionísio e Apolo não há conflito, mas origem comum, que pode ser resumida numa única palavra: mania. A partir do delírio e da loucura como horizonte comum, teria se destacado algo como a sabedoria, que mais tarde daria origem à filosofia. Retenhamos por ora a conclusão maior de Colli, a sabedoria nasceu do delírio, antes de entrarmos na ilustração mitológica dessa hipótese espantosa.

O Labirinto, como se sabe, é a obra genial de Dédalo, encomendada por Minos, rei de Creta, para encerrar o Minotauro, monstruoso filho de Pasifaé (esposa de Minos) com um touro enviado por Poseidon, deus do mar. Colli sustenta que por trás da figura do Minotauro estaria a de Dionísio, que em certas regiões da Grécia era representada com corpo de homem e máscara de animal, por vezes um touro. Com isso, obteríamos a seguinte versão do mito: a mulher-deusa Ariane, pertencente ao deusanimal Dionísio, ama o mortal Teseu e tenta salvá-lo das garras do Minotauro-Dionísio.

Pois bem, e para que serve o Labirinto? Obra da inteligência, do engenho e da arte, o Labirinto foi construído pelo escultor apolíneo Dédalo com o claro objetivo de confundir todos aqueles que, uma vez dentro dele, ousassem escapar. Os homens que ali entrassem erravam aflitos e se perdiam para sempre, até serem devorados pelo monstro.

O Labirinto era o símbolo do logos em seu deslize para o semainein, isto é, da palavra que afirma para aquela outra palavra, ambígua, polivalente, tortuosa e imbricada, que seduz e desnorteia aqueles que nela se embrenham, entregando-os à desrazão da qual o Minotauro é o símbolo maior. No interior da palavra labiríntica os homens sempre acabam nas mãos do monstro insensato. O monumento do logos, obra-prima apolínea, não serve a Apolo, mas a Dionísio. Paradoxalmente, a arte, o engenho, a inteligência e a razão estão a serviço do selvagem, do monstruoso e do irracional. A palavra, que deveria salvar o homem da selvageria, o sacrifica ao deus silvestre.

Não é suficiente dizer que a palavra labiríntica revela enfim seu núcleo verdadeiro — o mortífero excesso. Não basta dizer que Apolo está a serviço da crueldade de Dionísio. É preciso concluir, diz Colli, que o próprio Apolo é cruel — o que o oráculo, através de seu discurso sinuoso, atesta, ao responder à esperança dos homens com a revelação de 'hecatombes.

Pode-se objetar que, no mito, Teseu mata o Minotauro e escapa do Labirinto com a ajuda do fio lançado por Ariane. O herói mortal teria dado cabo do selvagem e do irracional (o Minotauro), e teria sido salvo do emaranhado das palavras (o Labirinto).

Na confusão da linguagem labiríntica, de sua desordem e da ameaça do monstro da desrazão, um único fio, o fio condutor do pensamento (Ariane), restabelece a linearidade e continuidade de um percurso, salvando o homem da loucura e da morte. Mas essa vitória de Teseu conduzido pelo fio do pensamento é efémera: insaciável, conta o mito, ele abandona Ariane e se perde no excesso de seu destino amoroso. A sequência é conhecida: Ariane é punida por Artêmis, transformada em deusa e restituída a Dionísio, de quem será a eterna e jovem esposa.

Interpretemos esse desfecho à luz do que precede: o fio de Ariane a leva de volta, finalmente, a Dionísio. O fio do pensamento, através do emaranhado labiríntico das palavras, o conduz de volta à desrazão. Tudo se passa como se o Labirinto só tivesse sido construído para desembocar nessa celebração do desarrazoado. Voltemos agora à profecia mântica. Ela é, como o Labirinto, uma crueldade apolínea a serviço de Dionísio. Sua decodificação ritual exige sempre um fio de Ariane — o fio do pensamento. Entretanto, por mais coerente que seja a interpretação humana e pensante, ela jamais garante a salvação, já que o sentido da profecia pode ser justamente o anúncio de uma catástrofe. Em outras palavras: o desarrazoado marca tanto a linguagem profética quanto o que ela anuncia — a violência do destino. O mortal, ao decifrar o enigma, pensa estar a salvo do insensato, mas não faz mais do que, com isso, cair nas mãos de um destino que não raro é a própria insensatez. De modo que a decifração do delírio mântico não salva o grego da loucura; ao invés disso, precipita-o nela, num movimento que vai da loucura da linguagem à loucura da vida. Para usar ainda a "oposição" nietzscheana, diríamos: num movimento que vai da loucura apolínea à loucura dionisíaca. Como diria Dionísio a Ariane no ditirambo de Nietzsche (no fundo, ninguém melhor do que ele sintetizou essa ideia que Colli lhe contrapõe): eu sou o Labirinto.

A conclusão se impõe por si: não há contradição entre Labirinto e Minotauro, Apolo e Dionísio, palavra e desrazão, pensamento e excesso, sabedoria e delírio, logos e mania. O que não significa que entre eles haja, ao revés, simples identidade, ou mesmo continuidade.


Notas


13. Giorgio Colli, Naissance de Ia Philosophie, Ed. de L'Aire, 1981 (O Nascimento da Filosofia, trad. Federico Carotti, Campinas, Ed. da Unicamp, 1988).

14. Friedrich Nietzsche, La Naissance de Ia tragédie, Gallimard, 1949, cap. 2, 10; Ecce Homo l e Essai d'autocritique V (no mesmo volume, respectivamente pp. 186-7 e 174-5). (O Nascimento da Tragédia, São Paulo, Moraes, 1984 e Ecce Homo, trad. Paulo César Souza, São Paulo, Max Limonad, 1985.)




quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Friedrich Nietzsche

Nietzsche em 1882



Vida e Obra

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira.



Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com a família para Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas tias e da avó. Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequeno pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos.



Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pforta, onde haviam estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores, Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em estudos bíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo (525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigações originais sobre Diógenes Laércio (séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafísico que atribui à música.

Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um acidente em exercício de montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve início sua amizade com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima, filha de Liszt (1811-1886).

Richard Wagner



Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama musical, principalmente com Tristão e Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar d "refúgio e consolação". Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada Ariane".


Cosima Liszt



Em cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me ali como em minha própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia grega, esboçando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.



O Filósofo e o Músico



Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o exército como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença parece ter sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o filósofo durante toda a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.

Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470 ou 469 a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação da "embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência "decadente" de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares entre si, foram separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para ele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e de sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos gregos. Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega já tinha perdido sua "bela imediatez", e tornou-se necessário que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a fim de dominar os instintos contraditórios.

Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o "pensador privado" e o "professor público". Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde: dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua carreira universitária por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de Wagner. Mas o "entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo sucesso o irritaram.

Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua voz agora era tão imperceptível que os ouvintes deixaram de freqüentar seus cursos, outrora tão brilhantes. Em 1879, pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade que o ligavam a Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua noção de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; isso lhe parecia necessário para destruir os obstáculos da moral e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquece sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valores não são mais do que algo "humano, demasiado humano".

Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer. Nessa época Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência, isto é, da fraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada de caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda expressão religiosa de decadência".


Solidão, Agonia e Morte


Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois apareceu Aurora, com a qual se empenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, nem respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A Gaia Ciência, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche contra Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade de Potência só apareceram depois de sua morte.

Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a tese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé.


Lou Andreas Salomé



Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde na Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, acabaram por se afastar definitivamente.





Lou-Salomé, Paul Ree e Niezsche



Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de Rapallo. Em Rapallo, Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, "foi durante o inverno e no meio desse desconforto que nasceu o meu nobre Zaratustra".



No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da mãe e da irmã.


Nietzsche e sua irmã, Elizabeth



Apesar da companhia dos familiares, sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito contrariado, pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o anti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.


Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a Suíça, onde recebeu a visita do barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o acompanhasse a Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzsche não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o amargurou profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quarta parte de Assim falou Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a quem enviá-la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim falou Zaratustra e escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista Européia de Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu: "Sois o primeiro que me trata dessa maneira".


Nietzsche no manicomio de Jena


Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900.


Nietzsche em seus últimos anos


O Dionisíaco e o Socrático



Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe como conseqüência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.



Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, impondo-lhes limites, condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda a tradição da época da tragédia.



Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula que, segundo Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é virtuoso". Esse bem ideal concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção, criou-se, segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche. Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem. Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".



Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendo as idéias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação.



O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha



A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das idéias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.



Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lágrimas, em oposição ao mundo da felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à luz das idéias do outro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o provisório, o inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma vulgarização da metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a forma acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram a ficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo que é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade de aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".



Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo: "munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A imagem da tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele concebido como um método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria de permanecer mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra "bom". Em latim, bonus significa também o "guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo. Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia constituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas etapas são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o ideal ascético (momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de potência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando o negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência deixa de querer significar "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos que negam a vida, eu negam a "afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o Bem e a Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os signos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a "profundidade da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que desça até os bas-fonds da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do arauto de um apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida esta expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem. Assim, o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa de um jogo de superfície.



A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as próprias palavras não passam de interpretações, antes mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são "interpretações essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma interpretação. O trabalho do etimologista, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretado, na medida em que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive, dançar, criar". Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.



Os Limites do Humano: O Além-do-Homem



Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno, mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".



Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates, mas o Crucificado. Em outros termos, a verdadeira oposição é a que contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o empreendimento de vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do múltiplo, mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa concepção, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo o novo homem que se situa além do próprio homem.



Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se se interpreta vontade de potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de potência, diz Nietzsche, significa "criar", "dar" e "avaliar".



Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e do mal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e cristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, constituem valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dos valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subsiste nela apenas como agressividade própria à afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, o profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau, fazendo dela uma ação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.



Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe parecem "imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos". Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como soldados".



Uma Filosofia Confiscada



Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e no seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se passou a ver no autor de Assim Falou Zaratustra um percursor do nazismo. A principal responsável por essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e rascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-prussiana (1870-1871).



Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas seu ardor patriótico logo se dissolveu, pois, para ele, a vitória da Alemanha sobre a França teria como conseqüência "um poder altamente perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a expansão de um Estado como indício de verdadeira grandeza.



Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida para enfrentar o nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a cultura européia. Por outro lado, quando confiou ao "louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo pelos alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabem obedecer pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido, Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de "obediência e longas pernas". E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo do autor de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".



Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche, é necessário, portanto, purificá-lo de todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do Estado", afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um Estado que pensa em si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese é reforçada: "estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado, Nietzsche não aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção; essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem "terrível", sendo criação da violência e da conquista e, como conseqüência, seus alicerces encontram-se na máxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência".



O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto, tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer nascer o além-do-homem.



Assim Falou Zaratustra



Em Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?", "Por que sou tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficial entendimento de seu pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do próprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e vice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície. Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico.



A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um saber fatal e "demasiado certo". A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade de potência, a sensualidade e o livre florescimento do eu são considerados "manifestações diabólicas". Mas, para Nietzsche, aniquilar as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a loucura que torna mais plano o caminho para as idéias novas, rompendo os costumes e as superstições veneradas e constituindo uma verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria, alguma coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia". Em suma, aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se deve compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o momento em que a "doença" saiu de sua obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura deveria cumprir a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença... Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade".


quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Das três transformações



F. Nietzsche

“Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas.

Há o quer que seja pesado? — pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis — pergunta o espírito sólido — a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha forca se recreie?

Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer? Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sensatez?

Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela celebra a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?

Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e padecer fome na alma por causa da verdade?

Ou será estar enfermo e despedir a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos?

Ou será submerjirmo-nos em água suja quando é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?

O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.

No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor?

“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”.

O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”

Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim:

“Em mim brilha o valor de todas as coisas”.

“Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.

Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não bastará a besta de carga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão.

Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e coisa própria de um animal rapace.

Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito.

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?

A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.

Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.

Assim falava Zaratustra. E nesse tempo residia na cidade que se chama “Vaca Malhada”.