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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Jung, Freud e a Parapsicologia




Jung e a Parapsicologia
Por Paulo Urban

Publicado na Revista Planeta nº 332 / maio 2000



"A relação médico-paciente, principalmente quando intervém uma transferência deste último ou uma identificação mais ou menos inconsciente entre médico e doente, pode conduzir ocasionalmente a fenômenos de natureza parapsicológica", afirmou o renomado psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) em sua autobiografia intitulada Memórias, Sonhos e Reflexões.

A vida de Jung, podemos constatar, esteve toda ela marcada por experiências pessoais a envolver fenômenos de clarividência, sonhos premonitórios e psicocinesia (ação do psiquismo sobre o meio e a matéria), que obrigatoriamente se constituem em peças fundamentais a servir na composição de toda sua psicologia. Jung considerava tão importante a parapsicologia como ciência emergente e revolucionária de seu tempo, capaz de investigar os inúmeros fenômenos que desafiavam (e ainda desafiam) a psicologia acadêmica, que chegou a propor o nome do norte-americano Dr. Joseph Banks Rhine para o Prêmio Nobel, visto que seus trabalhos experimentais desenvolvidos nos anos 50 no laboratório da Universidade de Duke, em Durham, na Carolina do Norte, E.U.A., provavam estar o ser humano dotado de capacidades "extra-sensoriais" que exigiam maior atenção da comunidade científica.

Jung cita, por exemplo, o caso de um paciente seu cuja depressão severa ele tratara. Havendo o rapaz se casado logo após o tratamento, Jung orientou sua esposa quanto às prováveis recidivas da doença, pedindo a ela que o avisasse prontamente caso observasse alguma piora no estado psíquico do marido. Mas, conforme nos relata o médico suíço, a tal mulher não o via com bons olhos, tomando-o mesmo por "uma pedra em seu sapato", talvez enciumada, explica Jung, pela influência que ela percebia existir por parte dele sobre seu esposo. Pois bem, precisamente dali a um ano, aquele casamento se transformara em carga insuportável sobre o rapaz, e sua mulher era fonte de constantes tensões. Deprimiu-se tanto o paciente que nem forças encontrava para deixar o leito, ao passo que a esposa, pouco se importando com o humor depressivo do marido, não se preocupou em avisar seu médico.

Por essa época Jung estava viajando, ministrando conferências em outras cidades. Ao regressar de um destes eventos ao seu hotel, por volta da meia-noite, embora se sentindo exausto, não conseguia pegar no sono. Só adormeceu às duas da madrugada para, sobressaltado, acordar dali a pouco, repentinamente. Havia tido a nítida impressão de que alguém entrara em seu quarto, e que a porta fora aberta precipitadamente. Acendeu a luz, mas nada percebeu. Imaginou que algum outro hóspede houvesse se enganado de porta e que, constatando o erro, dali tivesse saído rapidamente. Jung levantou-se, observou o corredor, mas nada havia além do silêncio. "Estranho, pensou, podia ter a certeza de alguém ter entrado em meu quarto". Procurando avivar suas lembranças, percebeu que acordara em verdade com nítida sensação de uma dor surda, assim ele a descreve, como se alguma coisa houvesse ricocheteado em sua testa para depois bater na parte posterior de seu crânio. Sem solução para o mistério, voltou à cama e adormeceu. No dia seguinte, para seu espanto, logo cedo recebeu um telegrama que lhe comunicava a morte daquele seu paciente deprimido: ele dera um tiro em sua própria cabeça. Soube mais tarde que a hora do suicídio conferia com a de seu estranho sonho, e que o projétil entrara pela fronte para alojar-se em região occipital.

Jung explica: "Tratava-se, neste caso, de um verdadeiro fenômeno de sincronicidade, tal qual se pode observar freqüentemente numa situação arquetípica - no caso, a morte. Dada a relatividade do tempo e do espaço no inconsciente, é possível que eu tenha percebido o que se passara, em realidade, num outro lugar. No caso em questão, meu inconsciente conhecia o estado de meu doente. Durante a noite inteira eu experimentara um nervosismo e uma inquietação espantosas, muito diferente de meu humor usual".

Mas esta não fora a primeira nem seria a última experiência parapsicológica a permear a sua vida. Desde criança, Jung, que nascera em Kesswil, interior da Suíça, ouvira contar casos de fantasmas e histórias extraordinárias, folclóricas da região campesina do Cantão. Em sua própria genealogia encontrava raízes fortes da crença nos espíritos. Seu avô materno, por exemplo, o pastor presbiteriano Samuel Preiswerk, que Jung não chegou a conhecer, era casado em segundas núpcias com Augusta Preiswerk e mantinha regularmente, para infelicidade desta, conversas com sua falecida esposa. Reservava em seu gabinete de trabalho um sofá onde diariamente, em hora sempre a mesma, recebia o espírito da finada Madalena, com quem dialogava secretamente. Outra de suas manias era a de pedir à sua filha Emilie, mãe de Jung, que se sentasse atrás dele enquanto escrevia sua gramática de hebraico ou seus sermões, isto porque agindo assim, segundo ele, os espíritos não o perturbariam pelas costas. A respeito de sua segunda esposa, avó de Jung, conta-se que aos dezoito anos caíra enferma gravemente, tendo contraído a escarlatina de seu irmão, e que permanecera em estado cataléptico por 36 horas. Já diante do caixão em que seria enterrada, sua mãe, não acreditando que Augusta Preiswerk estivesse morta, aplicou-lhe um ferro de passar roupas em brasa sobre a nuca, chamando-a assim de volta à vida. Apelidada de "Gustele", a avó de Jung era respeitada como clarividente dotada de estranhos poderes, capaz que era de profetizar em estado sonambúlico.

O próprio Jung recorda-se de suas primeiras experiências inquietantes quando contava apenas três anos de idade. Dormia por essa época no quarto de seu pai, já que o casal vivia em regime de separação de corpos. Todas as noites, percebia que a natureza de sua mãe se modificava, e ela se tornava, diz ele, temível e perigosa. Certa noite, pôde observar que do quarto dela saía uma figura luminosa, cuja cabeça se despregou do pescoço e planou no ar, como pequena lua. A amedrontadora visão repetiu-se por umas seis ou sete noites. Fértil imaginação de uma criança aflita pelo ambiente tenso de relacionamento conjugal de seus pais? Possivelmente sim, mas o fato é que tantas outras experiências inusitadamente fortes se seguiram em sua vida, que só restou mesmo a Jung procurar estudar esses fenômenos e interpretá-los à luz de sua revolucionária psicologia.

Sua dissertação de mestrado, importante que se diga, intitulava-se Sobre os Fenômenos Assim Chamados Ocultos. Foi apresentada em 1902, e analisava detalhadamente a suposta mediunidade da senhorita S.W. (pseudônimo de Helena Preiswerk, em verdade uma prima sua em primeiro grau) durante sessões espíritas, bastante em moda na virada para o século XX, realizadas no âmago de sua família e em presença de outros convidados. O estudo fora feito entre 1899 e 1900; a médium era pessoa introvertida, franzina, de natureza frágil e não muito inteligente; apresentara problemas de aprendizado na escola e contava quinze anos quando se iniciaram as sessões. Morreria mais tarde, aos 26 anos, de tuberculose e "infantilizada", assumindo comportamento de uma criança de pouco mais de 10 anos. Os fenômenos desenvolvidos por Helena iam desde automatismos, como a psicografia e a movimentação rápida de um copo sobre as chamadas "mesas giratórias", até estados de incorporação em semi-sonambulismo, incluindo mudanças grotescas da voz, da maneira de falar, e alterações surpreendentes do caráter. Também ocorriam as chamadas comunicações com os "desencarnados", mediante golpes que provinham das paredes e da própria mesa de trabalhos.

Jung, interessado na fenomenologia, passou a organizar sessões aos sábados em sua própria casa; decepcionou-se entretanto ao flagrar por diversas vezes sua prima fraudando os fenômenos. Acabou concluindo sua análise como um caso complexo de "dissociação histérica", facilitado e prestigiado pelo meio cultural-religioso em que ocorria. Seu trabalho, interessantíssimo, e escrito com agudo senso de investigação, compõe o 1o volume de suas Obras Completas, editado em português pela editora Vozes, sob o título Estudos Psiquiátricos.

Não apenas Helena, porém, chamaria a atenção de Jung para os eventos parapsicológicos; ele próprio vivenciou algumas situações que nos dão muito o que pensar.

Num curto espaço de exatas duas semanas do ano de 1898, durante as férias de verão da Faculdade de Medicina da Basiléia, dois curiosos acontecimentos no estilo Poltergeist vieram servir de alimento para suas indagações futuras. Estando a sós com sua mãe em sua casa, em Zurique, Jung estudava em seu escritório enquanto ela fazia tricô na sala contígua. De repente, o silêncio foi quebrado por forte estampido, semelhante a um tiro de revólver! Sobressaltados, ambos procuravam saber o que havia acontecido; olhavam às suas voltas quando deram com a mesa de madeira inteiriça da sala principal que havia se partido, rachando-se ao meio misteriosamente. Era nogueira sólida que secara há setenta anos e, segundo Jung, naquelas condições climáticas de umidade relativamente elevada tal rachadura nem poderia ter ocorrido.

Quatorze dias mais tarde, Jung viveria outro episódio de psicocinesia, tão estranho quanto o primeiro. Havendo entrado em sua casa por volta das dezoito horas, encontrara sua mãe e sua irmã, esta com 14 anos, extremamente agitadas e nervosas. Há uma hora haviam escutado outro barulho ensurdecedor, vindo da direção de um pesado móvel do século XIX, onde se dispunham os pratos e talheres. Numa de suas gavetas, onde se guardava a cesta de pão, além das migalhas, Jung encontrou a faca que há pouco fora usada no café da tarde com sua lâmina rompida em três pedaços. No dia seguinte, Jung levou o material quebrado a um dos melhores cuteleiros da cidade. Este lhe teria garantido, "É faca de boa qualidade, não há defeito no aço, quem a partiu deve tê-la forçado contra a fenda de uma gaveta ou martelado com ela sobre pedras. Alguém está querendo lhe pregar uma peça!". A faca, inexplicavelmente partida, foi cuidadosamente guardada por Jung durante toda a sua vida. Por que se estilhaçara? E como explicar a rachadura da mesa de nogueira maciça? "A hipótese do acaso para explicar o ocorrido, diz Jung, tinha a mesma probabilidade que a do Reno correr em direção a sua nascente". Ele já suspeitava por essa época que forças inconscientes consteladas, isto é, reunidas em potenciação, a ocorrer em momentos específicos de nossas vidas, em situações que Jung mais tarde batizaria como "arquetípicas", poderiam ter energia suficiente para desencadear fenômenos físicos perceptíveis à nossa volta, ainda que de forma repentina e quase nunca sob o controle de nossa vontade.

Digo quase nunca pois, ao que parece, Jung acabaria desencadeando mais ou menos conscientemente um dos mais curiosos fenômenos psicocinéticos de sua vida. Deu-se em presença daquele que para ele foi, desde quando se conheceram pessoalmente em 1906, em Viena, primeiramente um mestre, depois quase um pai, para mais tarde, em 1913, desentenderem-se e terem rompida a amizade. Estamos falando de Freud, o pai da Psicanálise, que quis ver em Jung um de seus melhores discípulos, nele projetando toda a esperança de fazê-lo herdeiro de seu saber psicanalítico. Mas a vontade do mestre não se concretizou. Tendo divergido de Freud, principalmente no tocante à questão da libido e quanto às bases de interpretação do material onírico, Jung acabou por estruturar seu próprio sistema de compreensão do psiquismo humano ao qual denominaria de "Psicologia Analítica". Além disso, pensava: "Retribui-se muito mal aos mestres se nos tornamos para sempre seus discípulos!"

Jung visitou Freud em 1909 justamente com o intuito de questioná-lo a respeito dos fenômenos "psi". Perguntando a Freud o que ele pensava acerca da precognição e da nova ciência, a parapsicologia, ouviu do mestre que não deveria estar se preocupando com tolices desse gênero. (*) E enquanto Freud discursava, Jung ia sofrendo uma estranha sensação; sentia seu diafragma como ferro ardente, parecia haver dentro dele energia capaz de abaular seu abdômen. Foi quando algumas pancadas misteriosas passaram a ser ouvidas pelo consultório, culminando num estalido forte como se a estante de Freud (curiosamente, símbolo de seu saber) fosse desabar sobre os dois. Jung gritou: "É o que eu chamo de fenômeno catalítico de exterioração!" Ao que Freud respondeu: "Ora, isto é puro disparate!". Jung, atestando sua razão, profetizou: "Pois estou tão certo do que falo que afirmo que igual fenômeno se reproduzirá neste exato instante!" E, pou!, outro estalido bem sonoro explodiu ali mesmo na estante. Freud olhou-o emudecido e horrorizado. Tinha acontecido!

Em carta datada de 16 de abril daquele ano, Freud diz a Jung, falando sobre o assunto, que poderia dar inúmeras "explicações naturais" para os "espíritos golpeantes". Não podemos deixar de observar que na fala do "mestre" estava a suposição de que no discurso dos que se interessavam por "tolices desse gênero" estivesse a crença de que seriam "espíritos sobrenaturais" os agentes causadores destes estampidos. Mas Freud estava bem distante das interpretações que Jung proporia para os fenômenos psi, para ele explicáveis de forma natural e sempre relacionados com nosso psiquismo mais profundo, individual ou coletivo, mas humano.

Poderíamos narrar muitos outros episódios parapsicológicos na vida de C. G. Jung, boa parte deles encontra-se descrita na citada autobiografia. Mas fugiríamos das dimensões deste texto, cuja pretensão é apenas a de revelar o quanto de mistério ainda existe em nosso mundo psicológico mais profundo, passível de interação não mecânica com o meio físico à nossa volta, psiquismo esse também capaz de transpor as barreiras impostas quer pelas malhas do tempo, quer pela rede do espaço.
No apêndice de sua obra póstuma, O Homem e seus Símbolos, traduzida pela editora Nova Fronteira, voltada ao público leigo, esboça-se uma relação entre a Psicologia Analítica e as descobertas relativísticas da física quântica. Jung julgava imprescindível uma complementaridade à sua psicologia para que a humanidade encontrasse modelos mais satisfatórios para a explicação dos fenômenos psi. Sonhava Jung que os físicos, a começar por seu analisando e amigo Wolfgang Pauli, um dia pudessem emprestar à sua obra um auxílio enorme, para que uma teoria interdisciplinar mais consistente se firmasse sobre novos e revolucionários paradigmas, transcendendo a maneira encontrada pela física clássica para explicar o universo e seus fenômenos. Mais uma vez o médico da Basiléia profetizara, pois é isto justamente o que vem ocorrendo no discurso científico contemporâneo.


***

(*) Na verdade, dali a alguns anos Freud abriria publicamente sua mente, ainda que com reservas, para se inteirar dos eventos parapsicológicos, chegando a escrever interessantes e reveladores artigos sobre sua pia crença no fenômeno telepático. São os trabalhos "Psicanálise e telepatia"(1921), "Sonho e telepatia"(1922), "O significado oculto dos sonhos"(1925) e "Sonho e ocultismo"(1933), textos estes, lamentavelmente, pouco lidos pela maioria dos psicanalistas.



Paulo Urban é médico psiquiatra, psicoterapeuta do encantamento e acupunturista.

http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/jung.htm



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"Eu queria conhecer as opiniões de Freud acerca da preconigção e de parapsicologia em geral. Quando fui vê-lo em 1909, em Viena, perguntei-lhe o que pensava sobre isso. Fiel a seu preconceito ma­terialista, repeliu todo esse complexo de questões, considerando-as mera tolice. Ele apelava para um positivismo de tal modo artificial que precisei conter uma resposta cáustica. Alguns anos decorreram antes que Freud reconhecesse a seriedade da parapsicologia e o ca­ráter de dado real dos fenômenos "ocultos".

"Enquanto Freud expunha seus argumentos eu tinha uma es­tranha sensação: meu diafragma parecia de ferro ardente, como se formasse uma abóbada ardente: Ao mesmo tempo um estalido res­soou na estante que estava a nosso lado, de tal forma que ambos nos assustamos. Pensamos que a estante ia desabar sobre nós. Foi exa­tamente essa a impressão que nos causou o estalido.

"Eu disse a Freud: "Eis o que se chama um fenômeno catalítico de exteriorização". "Ah, disse ele, isso é um puro disparate!"

"—De forma alguma, repliquei, o senhor se engana, professor. E para provar-lhe que tenho razão, afirmo previamente que o mesmo estalido se reproduzirá." E, de fato, apenas pronunciara estas pa­lavras, ouviu-se o mesmo ruído na estante.

"Ainda hoje ignoro de onde me veio esta certeza. Eu sabia, porém, perfeitamente, que o ruído se repetiria. Então, como resposta, Freud me olhou, horrorizado. Não sei o que pensou, nem o que viu. É certo, no entanto, que este acontecimento despertou sua desconfiança em relação a mim; tive o sentimento de que lhe fizera uma afronta. Nunca mais falamos sobre isso. '"



Extraído do livro “Memória, Sonhos e Reflexões”, de Carl Gustav Jung, Editora Nova Fronteira


Fonte: Blog HolosGaia

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Transformações no mundo junguiano (e psicanalítico) ?


Transcrevo abaixo entrevista com Andrew Samuels , que traz interessantes informações sobre o estado atual do mundo junguiano e psicanalítico.

Não há dúvida que seu conteúdo traz uma prova de honestidade e coragem intelectuais, pois o entrevistado não se furta em desnudar suas angústias e dúvidas, colocando em questão inclusive a validade de conceitos fundamentais, quando, por exemplo, revela seu desconforto com a teoria dos arquétipos.

Esta é a tradução da entrevista concedida por Andrew Samuels a Claudette Kulkarni, uma das editoras do Round Table Review. A entrevista original pode ser encontrada no sítio C. G. Jung, Analytical Psychology and Culture. Sua tradução e publicação na RUBEDO foram expressamente autorizadas pelo entrevistado. Agradecemos a atenção e cordialidade de Andrew Samuels que, prontamente, atendeu nossa solicitação.




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Durante muitos anos, o renomado analista junguiano britânico, Andrew Samuels, tem sido um comentador perspicaz e, freqüentemente, provocativo sobre o presente e o futuro da psicologia junguiana. Também foi um dos primeiros colaboradores da Review e um dos que a apoiaram. Nessa entrevista com a co-editora da The Round Table Review, Claudette Kulkarni, ele expressa seu pensamento mais recente sobre esse "estranho mundo junguiano", no qual diz que "encontrou felicidade, amizade e aceitação" e que "irá defendê-lo até à morte".

Kulkarni: Gostem ou não, o termo "pós-junguiano" agora faz parte do vocabulário junguiano, mesmo parecendo não haver um consenso real sobre o que ele significa. Quando você o cunhou (1985), escreveu que pretendia "se referir tanto aos que estavam ligados a Jung, quanto aos distantes dele". Em seu artigo mais recente sobre este assunto (1998), você aprimora esta definição, acrescentando que esta "distância" de Jung deveria ser uma distância "crítica". Contudo, no mesmo artigo, você deixa a porta aberta para a idéia de que, talvez, "hoje em dia, todos são pós-junguianos". Era essa a sua intenção?

Samuels: Você está certa ao intuir que eu, realmente, acredite não ser possível, para os junguianos, serem qualquer coisa, exceto pós-junguianos. Se tomarmos seu próprio trabalho como exemplo, você quer fazer parte dessa idéia junguiana tradicional, mas também quer incluir o filósofo Gadamer e o pensamento atual na psicanálise quanto a questões referentes ao homossexualismo.

As inadequações de se basear uma disciplina profissional sobre um homem, significou que os junguianos começaram a se dividir em duas direções diametralmente opostas. De um lado, a impossibilidade de se fazer qualquer coisa nos próprios termos de Jung, levou a uma idealização de outras abordagens terapêuticas (relações objetais, etc.) e, especialmente, à psicanálise. Por outro lado, houve um retorno à letra dos escritos de Jung, com uma imitação servil ao que se imagina como sendo seu padrão de vida.

Chamo a primeira tendência de "fusão com a psicanálise" e a segunda de "fundamentalismo junguiano". Preocupo-me, igualmente, com ambos.

Kulkarni: Seu interesse por essas duas tendências parece emergir da preocupação com a própria sobrevivência da psicologia analítica. Isto é, se os pós-junguianos, realmente, quiserem prosperar, precisam tomar uma posição que inclua algumas críticas a Jung, sem abandonar suas raízes na obra do mesmo, deste modo, permitindo, em termos junguianos, a constelação da função transcendente, que poderia nos levar para "além" de Jung. Então, poderia falar mais sobre os perigos inerentes dessas duas tendências "opostas" e como elas devem inibir a sobrevivência dos pós-junguianos? E você teria uma visão de como uma psicologia pós-junguiana viável deveria parecer?

Samuels: O perigo principal da fusão com a psicanálise é o de que muitas características boas do trabalho clínico junguiano clássico serão perdidas, notavelmente a ênfase sobre a dimensão interpessoal da terapia, a compreensão não-literal dos símbolos da infância e o uso disciplinado da auto-revelação do analista. Além disso, por mais que pareça triste, se o objetivo oculto da fusão com a psicanálise é conseguir a aprovação do mundo psicanalítico, isto simplesmente não vai dar certo. Eles precisam muito de nós como uma distante tribo inimiga .

Estranhamente, tenho encontrado aceitação no mundo psicanalítico. Fui eleito um associado científico da Academia Americana de Psicanálise e convidado a editar um número especial da Psychoanalytic Review and Psychoanalytic Dialogues. Mas, também, tenho sido muito ativo em criticar a psicanálise. Por exemplo, tenho escrito sobre as atitudes reacionárias, sociais e políticas, contidas em grande parte da teoria das relações objetais. Também conduzi uma campanha na Grã-Bretanha para remover os obstáculos contra as lésbicas e os gays se tornarem candidatos psicanalíticos. Não seria por causa dessas posições e não a despeito delas, que os psicanalistas estejam interessados no que tenho a dizer?

O perigo principal do fundamentalismo, ao que me referi, é de que as pessoas irão se ferir por ele – candidatos potenciais, assim como os clientes. Como todo fundamentalismo, o junguiano é cruel, moralmente arrogante e surdo à razão.

Imagino que ninguém irá admitir ser membro de nenhuma dessas duas facções extremas, como as descrevi. Mas, tendo acabado de voltar de uma viagem a França, onde a comunidade junguiana aparenta saber muito bem o que estou apontando, sinto-me encorajado a continuar a pressionar por um maior debate sobre essas questões.

Espero estar claro que ainda continuo conservando um ponto de vista pluralístico, em relação ao nosso campo. Mas, nem aqueles que se fundem com a psicanálise, nem os fundamentalistas, convencem-me de estarem preparados para serem tolerantes com outras pessoas, com outras maneiras de fazer coisas.

Kulkarni: É, certamente, intrigante a forma pela qual você tem sido aceito entre os psicanalistas, apesar de (ou, como você diz, talvez por causa de) suas críticas à psicanálise. Minha opinião é que você não tem sido facilmente aceito entre os junguianos. Isto é, enquanto a maior parte dos junguianos, independentemente às suas convicções, saúdam Jung e os Pós-Junguianos como um texto definitivo que demarca a escola junguiana de teoria e prática, muitos junguianos contemporâneos parecem relutantes em aceitar as profundas críticas ao pensamento junguiano contidas neles e em seus escritos posteriores (incluindo suas recentes advertências sobre o perigo da fusão com a psicanálise ou do retorno ao fundamentalismo). Como você se sente e o que pensa sobre isso?

Samuels: Acho que meu problema é que fiz tantas críticas que, talvez, as pessoas me experimentem com uma pontada de dor. Tant pis, como diriam nossos amigos franceses. Vou listar os principais problemas que tentei explorar:

(1) Sinto-me desconfortável com a teoria dos arquétipos, tanto em seu aspecto de imagens universais, quanto em seu aspecto de estruturas subjacentes separadas das manifestações. Não tenho certeza de que, mesmo como um modelo teórico, a abordagem estrutural funcione nos dias de hoje. Para mim, uma abordagem dos arquétipos baseada nos afetos funciona melhor. Estava lendo, outro dia, um pouco mais sobre como as pessoas, em todas as culturas, podem reconhecer os afetos básicos. O que isto quer dizer é que, tudo o que é arquetípico, encontra-se em você ou em mim, como pessoas num mundo vivido e não em partes deste mundo, tais como imagem, ou tema, ou padrão, ou uma fase de desenvolvimento. O arquetípico é redefinido como a capacidade para experimentar afetos de uma espécie muito poderosa e profunda.

(2) As teorias de Jung sobre o gênero não sofrem tanto de generalizações desatualizadas e culturais, quanto de uma associação ao binominalismo, de forma que cada sexo tem características que, de alguma forma milagrosa, são opostas às do outro sexo. Se os homens são racionais, então, a mulher deve ser... - surpresa - irracional. (Esse método instigou Jung quando tentou fazer uma psicologia cultural nos anos de 1930, porque tornou judeus e alemães, duas faces de um mesmo par binário).

(3) Todo o problema do anti-semitismo.

Agora, se você acrescentar a essas três, a acusação de que alguns junguianos são fundamentalistas cruéis e que outros deixaram de ser junguianos, eu teria que ser, notavelmente, Panglosiano para esperar ser muito apreciado. Isto leva tempo. Pergunte a Fordham ou a Hillman, não que deva me comparar a eles, mas porque os dois, realmente, modernizaram a psicologia junguiana.

As pessoas não gostam do termo pós-junguiano por que elas querem ser tanto (a) junguianas, (b) elas mesmas, (c) ecléticas. Mas, quanto mais eu trabalho sobre essa palavra - e responder suas perguntas faz parte disso – percebo estar ficando mais difícil para qualquer um escapar da natureza de Janus dos pós-junguianos: retornando a Jung e indo além de Jung para... o quê, exatamente? Acho que mesmo os fundamentalistas buscam – por mais Jung. Os psicanalistas junguianos buscam a psicanálise.

Penso que o problema, como muitos tem argumentado, é de identidade. Os junguianos formam uma profissão, uma comunidade, um movimento – até mesmo um culto? E qual é, exatamente, a nossa história? Quão confiáveis podem ser os Ur-textos da psicologia analítica (pós-Shamdasani e outros)?

Por favor, não me entenda mal. Parafraseando a resenha de Memórias, Sonhos e Reflexão, de Phillip Toynbee , compartilho das emoções junguianas. Apenas para dar um exemplo, minha religião – o judaísmo - está se tornando, para mim, uma essência e, mais intensamente ainda, um fenômeno introvertido. Penso que Jung foi, realmente, a figura inspiradora na passagem das religiões para os espaços privados no indivíduo. Quantas pessoas dizem que são cristãs com "c" minúsculo e nunca vão a igreja? Não sei o que os teólogos diriam, porém penso que o impacto da psicologia (junguiana) sobre a religião foi de facilitar a introversão da sensibilidade religiosa. O lado negativo, ou ruim, disso é que a contribuição pública da religião (por exemplo, o debate moralmente modulado sobre questões atuais) ficará muda se a religião continuar, por assim dizer, apenas em uma base privada.

Kulkarni: Essa referência à religião me remete a algo que pensei há muito tempo: a aparente evolução singular de seus interesses. Você começou analisando nossa herança do "homem Jung," ajudando-nos, especialmente, a reconhecer suas falhas nas áreas de gênero e sexualidade (1985) e, depois, se engajou num processo de criticar o legado de suas idéias nessas e em outras áreas (1989, 1991). Isto parece ter colocado-o na arena muito "anti-junguiana" da política (1993), onde, vigorosamente, desafiou a tendência junguiana de ver fronteiras onde não há nenhuma (i.e., entre os assim chamados mundos externo e interno), insistindo que muitas coisas que tínhamos pensado ser puramente psicológica, "têm raízes políticas" e "não são tão 'internas' quanto parecem". E agora, em alguns de seus mais recentes trabalhos (1998), você está fazendo inserções na área da espiritualidade, buscando uma conexão entre espiritualidade, psicoterapia e política. Poderia parecer que você está sendo impulsionado por um intenso desejo de construir uma ponte sobre as brechas entre distintas arenas da vida humana. O que o levou para a espiritualidade neste momento?

Samuels: Dando uma resposta curta, foi que compreendi como muitas variantes da espiritualidade sempre existiram, que muitas delas são do meu interesse e que as muitas coisas que me movem poderiam ser entendidas em termos de variantes da espiritualidade. Isso me ajudou a ver por que torno-me tão incrivelmente apaixonado por muitas coisas, até o ponto onde me sinto preenchido por sentimentos e imagens dos mais diferentes tipos: música country, questões sociais, comida e assim por diante. Eu não tinha compreendido que estava tendo experiências espirituais porque havia 'aprendido' que isso não deveria ser considerado assim.

Logo, tive que teorizar sobre isso e me veio à idéia de que existem três tipos básicos de espiritualidade contemporânea.

Ao primeiro, chamo de espiritualidade social. Não gosto da idéia de que pessoas espirituais se reunem para fazer coisas em sociedade, coisas que melhoram a vida dos outros. Para mim, é o ato de estar junto em sociedade que conduz à dimensão espiritual. Isto é, esse tipo de espiritualidade é envolvida no que parece ser seu oposto: ação social e organização política, por exemplo. Penso que isto é, um pouco, um judeu adotando a espiritualidade, mas tenho um pressentimento de que isto está se tornando mais válido. Talvez estejamos vendo a ascensão de uma esquerda religiosa! Espiritualidade não está subvertida quando a ação social está na agenda, ela é aumentada.

Ao segundo tipo, chamo de espiritualidade profissional. Isto tem a ver com o reconhecimento, não apenas de que o profissional importa, mas, também, que a espiritualidade tem a ver com artificio e não apenas com as coisas ditas "naturais". Nós fazemos espiritualidade, este é o ponto. Não apenas literalmente, em nosso trabalho, mas, também, na construção de relacionamentos, da cultura e em tudo mais que se apresenta para o humano. Tem sido difícil transmitir, para as pessoas, essa visão particular: que espiritualidade é um negócio planejado e artificial.

O terceiro tipo é a espiritualidade profana (seguindo o famoso livro "Misticismo Sagrado e Profano" de Zaehner). Senti que era hora de revisitar as conexões entre espiritualidade e sexualidade, no sentido de prazer sexual e não, tão somente, no de relacionamentos Eu-Tu. Mas, existe mais do que sexualidade na espiritualidade profana; existe, também, todo o componente espiritual na cultura popular e até no que, também, devemos condenar como materialismo e consumismo.

Kulkarni: Estou fascinada por esse modo muito criativo de pensar a espiritualidade. Você parece, com efeito, estar tentando reivindicar o conceito de espírito, vendo-o como constelado em formas que não requerem a cisão mente-corpo. Poderia ser argumentado - razoavelmente, creio eu – que Jung tentou, embora, nem sempre de maneira bem sucedido, evitar esta cisão ao teorizar sobre a função transcendente. Você está sugerindo uma variação desta idéia?

Samuels: Eu não tinha pensado nisso antes de você ter mencionado, mas, o que diz faz sentido para mim. Vou tomar emprestada esta idéia. Muitas vezes a forma de teorizar de Jung é de imensa ajuda, mesmo se alguns detalhes e elementos de avaliação sejam um pouco mais problemáticos.

Kulkarni: E, esse tipo de apreciação de alguns dos trabalhos de Jung, parecem estar vinculados a algo que sempre me marcou em seu trabalho, a saber: sua insistência de que nós (junguianos) movemos nosso foco para longe do homem Jung, voltando-o para nós mesmos. Isto é, que examinamos as várias falhas de Jung (como as três que você identificou acima) "não como problemas dele, mas como nosso", porque herdamos um corpo de teoria junguiana, o qual continua, ainda hoje, a ser permeado pelos vários preconceitos de Jung. Sua intenção, aqui, parece-me ser a de nos ajudar a imaginar modos de superar aqueles aspectos da teoria de Jung que são androcêntricos ou fixados a determinados contextos culturais, ou que nos mantêm confinados num mundo estreito e "interno", descobrindo novas formas de tornar a teoria junguiana mais relevante para um maior número de pessoas. Você tem sugerido, por exemplo, que devemos estar mais dispostos a 'sujar' nossas mãos, tornando-nos mais envolvidos com o mundo e seus problemas – por exemplo, com os desafios apresentados pela multiculturalismo, capitalismo, economia de mercado, anti-semitismo, etc. Esta é, realmente, a extremidade radical do pensamento junguiano. Existem outros junguianos nisto com você? E quais são as principais áreas com as quais os junguianos têm que se confrontar hoje?

Samuels: Para mim, a coisa mais importante é que nós, junguianos, e outras escolas de análise ou terapia, não tentamos fazer nada no mundo externo por conta própria. Estou dizendo, afetuosamente, que deveríamos tentar ter um terapeuta em todo comitê policial, assim como eles têm um estatístico, mas do outro lado do espectro. Mas, por Deus, não nos deixe ter um comitê de terapeutas – isto seria o inferno!

Logo, o trabalho multidisciplinar é a chave aqui. Agora, deixe-me fazer um aparente desvio, para marcar algo importante. Se queremos engajar outros para trabalhar conosco, de forma multidisciplinar, então, temos que esclarecer nosso procedimento sobre as difíceis questões que estamos discutindo: anti-semitismo, sexismo e tudo mais. Ou, então, por que alguém iria querer trabalhar conosco?

Penso que, também, existe um problema que chamo de pseudo-especialidade junguiana. Com isso quero dizer quando um de nós – isso poderia ser eu em relação à política! – entra em uma área que é estranha às nossas principais áreas de especialidade. E, então, começamos a escrever com uma autoridade que não é exatamente real. Aqueles que mais ofendem são os que, entre nós, desejam ser críticos literários e antropólogos, embora, como havia dito, muitas pessoas, inclusive eu, caem nisso. Realmente, não sei qual é a solução para isso. Alguns de nós foram especialistas numa área antes de se tornarem analistas, mas o problema é que ficamos desatualizados.

O problema que estou tentando localizar é como sermos parceiros confiáveis, neste sério empreendimento inter ou multidisciplinar. Para alguns junguianos, talvez isso não importe tanto, para mim, importa.

Kulkarni: Muitos junguianos parecem hesitantes em entrar nesse desafio de estarem mais envolvidos em abordagens interdisciplinares da psique, abordagens que poderiam, inevitavelmente, nos deixar mais envolvidos, não apenas no mundo, mas também com os outros. Alguns temem que tal envolvimento com o "mundo externo" poderia levar-nos a diluir a teoria junguiana ou a perder nosso foco no "mundo interno" e no processo de individuação. Como você responde a tal preocupação?

Samuels: Não desconsidero aquelas pessoas que têm essas preocupações, embora ache que não há necessidade de se preocupar com isso. Primeiro, porque isto, sinceramente, não é o caso de uma coisa ou outra, mas de conjugar estas duas perspectivas. O problema é que é muito difícil de se aderir a uma abordagem pluralística e, facilmente, caímos em uma perspectiva interna ou externa .

Quando estou dando supervisão, acho útil, simplesmente, tomar a perspectiva oposta àquela que o terapeuta usa correntemente, de forma que, se seu trabalho for muito intra-psíquico, especulo sobre questões culturais e vice-versa.

Pessoalmente, tenho dificuldade com a resolução holística dessas questões que algumas pessoas podem manejar. Creio que existem diferenças entre esferas e domínios da existência e diferentes aspectos do universo, tais como o mundo interno e o mundo da política. Algumas vezes, o holismo criterioso é o caminho a seguir. Mas, fico desanimado com a quantidade de holismo barato que está presente e a forma como é usado, para apaziguar as ansiedades que vida do mundo moderno engendram em nós.

Kulkarni: Por "holismo barato," suponho que esteja incluindo muito do que exite sob a rubrica da "Nova Era". Parece-me que muitos junguianos têm se agregado a esse movimento popular – alguns, talvez, por fama e ganho financeiro, mas outros porque sentem que este é o meio de "passar a mensagem" para uma audiência maior. Você vê isto como problemático?

Samuels: Bem, nós saberemos a resposta a isso quando o livro de David Tacey, sobre Jung e a Nova Era, sair!! Sinceramente, não me importo com o que parece ser alguns dos excessos e maluquices dos seguidores da Nova Era – suas buscas por espiritualidade não devem ser muito diferentes das minhas ou das suas. Se um marciano viesse à Terra, poderia, ela ou ele, ser, realmente, capaz de falar sobre as diferenças entre os junguianos, os seguidores da Nova Era e os psicanalistas? Duvido. O que tem me preocupado é a aparente falta de interesse nas questões sociais por parte destes seguidores, mas isso tem começado a mudar nos últimos anos – por exemplo, em relação à ecologia. Tenho preocupação sobre a idealização dos povos indígenas, que me lembra os escritos de Jung sobre os chamados "primitivos". De um lado, quão maravilhoso é poder ajudar a civilização ocidental! Por outro lado, isto pode ser complacente e contribuir para as desvantagens materiais de tais grupos idealizados por sua sabedoria, enquanto não se erguer algo efetivamente contrário à aqueles interesses, principalmente no ocidente, que ameaçam destruir os povos indígenas do mundo.

Kulkarni: Gostaria de voltar agora a algo que você mencionou anteriormente - sobre estar incomodado com a atual teoria dos arquétipos. Acho que muitos de nossos leitores estariam interessados em ouvir mais sobre suas idéias a esse respeito. Por exemplo, você está dizendo, de fato, que Jung confundiu nossas experiências de poderosos (e numinosos?) afetos humanos por "arquétipos" universais? Isso não estaria ainda mais perto de "instinto" do que Jung permitiu? E como você, então, entende ou usa conceitos, como o de imago?

Samuels: Sim, você está certa em me ouvir dizer que é na área dos afetos que posso descobrir o que é conhecido por arquetípico. Normalmente, argumento que nada no universo é arquetípico, nada! Mas, tudo tem a capacidade ou potencial para estimular um nível arquetípico de excitamento emocional em nós. Isso quer dizer que os arquétipos estão, verdadeiramente, no olhar do observador e, assim, tão provável de ser encontrado no dia-a-dia habitual, assim como nas áreas oficiais, onde supomos encontrá-los – tais como a religião ou a infância.

Não posso mais comprar a idéia de uma espécie de andaime no qual as coisas são penduradas, que é um modo de imaginar a irreprensentabilidade dos arquétipos; que eles são formais e vazios, a menos que sejam preenchidos por alguma propriedade, padrão ou fenômeno.

Considero que nós, junguianos, temos que aceitar as teorias de difusão e migração cultural que desmontam a idéia de que existe um grupo de imagens a-históricas e universais. Similarmente, aqueles que querem crer nos arquétipos pertencentes à área biológica, têm que explicar porque nosso conceito particular não acrescenta nada ao que os biólogos e etnólogos já estão fazendo.

A parte mais difícil parece ser a de manter os arquétipos como um conceito ou constructo psicológico. Fui culpado disso em Jung e os Pós-junguianos, quando fiz uma grande lista de comparações e analogias entre arquétipos e idéias de outras disciplinas.

Arquétipo é uma palavra de poder e tende a ser usada erradamente. Contudo, muitas pessoas parecem ligá-lo à emoção, o que me ajuda em meu projeto de tentar fazer exatamente isso, mas de forma, inteiramente, teórica. O trabalho de Louis Stewart sobre afetos me vem à mente aqui e é excelente em introduzir a dimensão afetiva. Stewart foi um psicólogo academicamente formado e durante muito tempo analista junguiano na Bay Area.

Kulkarni: Você fez várias referências à "comunidade junguiana", o que me permite uma variação de uma questão levantada por você mesmo: O que somos nós? – "uma profissão... uma comunidade... um movimento?... um culto?" Parece-me que um dos únicos aspectos característicos da comunidade junguiana tem sido essa capacidade de criar espaços e organizações, nos quais leigos e profissionais podem se encontrar e aprender juntos. Contudo, isto parece estar mudando. Em vários círculos junguianos, parece estar havendo um crescente elitismo, que não apenas desencoraja os leigos de estarem ativamente envolvidos, mas também aumenta a divisão entre a comunidade junguiana "oficial" dos "que já estão dentro" (i.e., analistas e analistas em formação) e a comunidade junguiana mais ampla, porém não-oficial de "estranhos" (i.e., profissionais não-analistas, cujo trabalho – muitas vezes, o mais provocativo feito atualmente – de maneira característica, passa desapercebido no mundo junguiano oficial). O que acha que está acontecendo aqui?

Samuels: Num artigo sobre a história do Clube de Psicologia de Zurique, disse que achava que a profissionalização da psicologia analítica significava que havíamos perdido algo incalculável. Os clubes podem continuar a funcionar como espaços onde analistas e não-analistas podem se encontrar, mas o obstáculo é que os clubes têm verdadeiros fiéis em seu interior. O que torna a vida um bocado difícil para àqueles que têm uma atitude crítica para com Jung. Idealmente, como os fundadores do Clube de Psicologia Analítica de Londres mantiveram, os Clubes poderiam ser "universidades de psicologia analítica".

O que me conduz ao meu atual grande amor, que é a academia ocidental com todas as suas gloriosas contradições. A função da psicologia analítica na academia poderia ser muito interessante. Por exemplo, estamos testemunhando uma enorme mudança epistemológica, na qual, não apenas, a divisão observador-observado torna-se menos clara no modo em que os físicos têm nos ensinado, mas as próprias fontes de conhecimento trocaram seu locus. Elas trocam de um lugar para outro no mundo e em nós mesmos. Chamo a isso de subjetivação do conhecimento e outros a chamam de feminilização do conhecimento, ou conhecimento intuitivo, ou suave, ou tácito e assim por diante.

Essa epistemologia tem perigos por causa do slogan 'no seu coração você sabe que ele está certo', que foi usado pelo ditador Mussolini . Então, não poderia querer uma abordagem do conhecimento exclusivamente baseada neste tipo de epistemologia. Mas, pluralisticamente, como sempre, eu diria que o conhecimento subjetivo é tão válido quanto outros tipos.

As universidades estão começando a perceber isso, mas estão encarando um grande problema que é o de não ter, absolutamente, um repertório de abordagens teóricas para acomodar tais conhecimentos. De fato, elas têm, usualmente, sido contra este tipo de pensamento.

O modo em que terapeutas e analistas têm aprendido, através dos anos, a usar seu conhecimento subjetivo em uma busca objetiva para o bem-estar do paciente ou cliente, é um modelo muito proveitoso para os profissionais das ciências humanas e sociais copiarem. Acho que, de algum modo, uma de nossas maiores contribuições ao pensamento será está idéia de que a entidade, pessoa, ou tema que se confronta num espaço, de certo modo controlado, envia-lhe mensagens, as quais você pode receber e decodificar, naquilo que, em contexto clínico, é chamado de contra-transferência.

Kulkarni: Acho que você está pontuando algo, extremamente, importante aqui, que discute a tomada feminista e, relativamente pós-moderna, dos conceitos de "subjetivo" e "subjetividade" — um entendimento que eu chamaria de hermenêutico (no sentido gadameriano). Na perspectiva gadameriana, não existe subjetividade pura porque nenhum de nós pode ser independente de nossa "tradição" (isto é, da matriz de nossa cultura coletiva, teorias, ideologias, história, costumes, crenças, etc., - tudo o que nos permeia e nos condiciona e, portanto, que afeta e molda as interpretações que permitem o entendimento). Nesta estrutura, todo entendimento resulta de um inter-jogo entre as forças da tradição e as experiências do indvíduo. Isso permite uma menor atitude subjetivista, sem abandonar totalmente o conceito de subjetividade. E tudo isso me parece estar conectado ao seu desejo de desconstruir os arquétipos e de nos re-estabelecer no afeto. O que me permite fazer uma outra pergunta: você parece querer nos lembrar que o afeto encarnado está no centro da vida humana e, de lá, nos liga de volta à comunidade, através da política e, agora, através da espiritualidade. É esta a sua missão?

Samuels: Bem, a palavra missão que você usou me deixou sem jeito. Não sei sobre missão. Mas, entendo porque devo ter feito você usar esta palavra!

Kulkarni: Na realidade, eu a usei com prazer desde que o percebi como alguém que, não apenas exibe uma grande paixão pelo o que acredita, mas que também está preocupado com algumas questões filosóficas profundas. Eu diria sobre você, o que alguém disse sobre Gadamer, que "foi [seu] destino retornar à questão ainda mais básica, prática e política, sobre o modo correto de viver" (Frederick G. Lawrence em "Introdução do Tradutor" para Hans-Georg Gadamer: Reason in the age of Science, 1981, p. xiv) – exceto que eu diria que você chega até isso, psicologicamente.

Isto me leva à minha última pergunta: Quem são os indivíduos que estão sendo formados para serem analistas hoje e do que se trata a formação? Isto é, a maioria dos junguianos têm ouvido as estórias apócrifas sobre como Jung era feliz de ser Jung, e não "um junguiano", e como foi relutante em se envolver no estabelecimento de um programa formal para o treinamento de analistas "junguianos". Apesar de qualquer receio, contudo, Jung se envolveu no estabelecimento de um instituto em Zurich e, desde então, muitos outros institutos e programas de formação têm aparecido em todo o mundo. O procedimento para entrar e a conclusão desses programas parecem ser assunto de algumas controvérsias: qual é o objetivo da formação? Alguns acreditam que os programas de formação têm se tornado veículos para preservar a ortodoxia, ou para o estabelecimento de uma classe de elite de analistas, que formam algum tipo de clube para os quais eles irão convidar apenas outros iguais. O que você acha? Essas críticas são válidas?

Samuels: Bem, tenho debatido a respeito de um programa de ação afirmativa, no qual nós tornaríamos mais fácil para diferentes tipos de pessoas treinarem para serem analistas, porque sinto que isso é necessário em termos de responsabilidade social e, também, porque sinto que analistas nascem, não são feitos. Mas, a corrente está contra essa visão e até os requisitos aplicados à formação tornam-se mais e mais rígidos.

Esta é a razão pela qual gosto de trabalhar com a IAAP (Associação Internacional de Psicologia Analítica) em áreas limites, onde, simplesmente, não se pode fazer o mesmo tipo de demanda que se faz no ocidente. Tenho aprendido muito em minhas viagens a lugares que eu tenho sido admitido para ensinar.

Para voltar à sua questão, penso que a razão, pela qual, muitos dos programas de treinamento de hoje são tão deprimentes como lugares para se estar é que estão cheios de zelo psicanalítico (ao contrário do zelo junguiano). Isso tende a levar à monocromização do campo. E ele não é, de forma alguma, monótono. Tipos excêntricos, singulares, suis generis, afluem.

Encontrei felicidade, amizade e aceitação nesse estranho mundo junguiano e irei defendê-lo até a morte.



Andrew Samuels é Professor de Psicologia Analítica na Universidade de Essex e Professor Visitante dos Estudos Psicanalíticos na Universidade de Londres. Ele é analista junguiano, conferencista e consultor político. Seus livros incluem Jung e Post-Jungians, A Critical Dictionary of Jungian Analysis e The Plural Psyche. The Secret Life of Politics será publicado no ano 2000.

Claudette Kulkarni é psicoterapeuta particular, sem vínculo institucional e do Persad Center (uma agência de saúde mental que dá assistência às "minorias sexuais", à comunidade e aos familiares de aidéticos), Pittisburgh, PA. Ela é a autora de Lesbians and Lesbianisms: A Post-Jungian Perspective, and "Radicalizing Jungian Theory" em Contemporary Perspectives on Psycotherapy and Homosexualities. Ela é co-editora do The Round Table Review.

Tradução
Adriana Bisi Nicolau
Revisão
Carlos Bernardi
Marta Chagas
Marcus Quintaes