O ciclo do dom confunde-se com o ciclo da vida ao realçar a relação orgânica entre qualidade do vínculo e da aliança e finalidade da vida humana. Trata-se de uma questão de interesse moral e que tem implicações políticas na medida em que, como nos lembra J. Baechler, “um fim é a solução de um problema de sobrevivência posto à espécie pela sua natureza, uma solução que põe de imediato um novo problema: o que fazer para que a solução se torne real?” (Baechler, 2002, p. 63). O ciclo do dom permite compreender que a qualidade da relação entre o ser humano e a natureza em geral depende de uma questão moral: a capacidade de correr o risco de se relacionar com outros, com vistas à produção do mundo pelo trabalho, pela política, pela honra ou dignidade, mas, sobretudo, pelo interesse coletivo de se fazer alianças com vistas a tornar perene o movimento fluido das instituições sociais e culturais.15 Tal risco é devidamente assinalado por Mauss nas conclusões do Ensaio sobre a dádiva, ao propor que, de uma ponta à outra da evolução humana, não há duas sabedorias: “Que adotemos então como princípio de nossa vida o que sempre foi um princípio e sempre o será: sair de si, dar, de maneira livre e obrigatória; não há risco de nos enganarmos” (Mauss, 2003, p. 301). A maturação do ciclo do dom, esclarece, favorece o entendimento, a amizade, a aliança e a honra, do mesmo modo que, no lado contrário, sua interrupção é motivo para a inimizade, a desonra e a guerra. Como teoria relacional, o dom permite enfoques originais e múltiplas interpretações da realidade, inclusive a de repensar a produção econômica e o trabalho social não apenas a partir da exploração e do conflito, mas incorporando indicadores de bem-estar e de “vida boa”. Ao ampliar a compreensão da sociedade pela introdução do simbolismo,16 Mauss superou a dicotomia que tinha aprisionado Durkheim entre o sagrado e o profano (Caillé, 1998) e fez avançar a compreensão da sociedade superando outra dicotomia clássica da sociologia, aquela entre agência e estrutura. Mediante a concepção do simbolismo, diz Karsenti, percebe-se “que a oposição entre individual e coletivo perde literalmente toda pertinência. Ou melhor, temos que aceitar que esta distinção corresponde apenas a variações diferenciadas de um simbolismo único, característico de uma sociedade determinada” (Karsenti, 1994, p. 91). Enfim, neste trabalho de desconstrução de um mito de “economia natural” que teria existido, desde sempre, a partir da presença de um homo oeconomicus agindo motivado por seus interesses individuais e egoístas, vários autores concordam (Karsenti, 1994; Godbout, 1998a; Caillé, 2000b; Martins, 2005) que o mais importante na crítica de Mauss ao utilitarismo foi demonstrar que os bens que circulam na sociedade não são apenas materiais, mas, sobretudo, simbólicos. Diz Godbout que no ato de doação de algo a alguém, não é apenas a coisa que é dada, mas, também, a intenção (Godbout, 2000) ou o “hau”, o “espírito da coisa” (Mauss, 1999, p. 161). Assim, na organização da prática social, há sempre dois bens em circulação: um material, a coisa dada, um simbólico, a intenção oferecida. Merleau-Ponty entendeu claramente a importância de Mauss para as ciências sociais ao afirmar que sem negar os princípios da escola francesa ou os de Durkheim, ele conseguiu superar o erro de situar o observador fora do objeto observado, erro que impediria a “penetração paciente do objeto, a comunicação com ele” (Merleau-Ponty, 1960, p. 126). Mas esta penetração no fenômeno apenas pode ocorrer, explica o autor, se entendermos que o fato social não é uma realidade bruta, mas “um sistema eficaz de símbolos ou uma rede de valores simbólicos que se insere no mais profundo dos indivíduos”, levando-nos a compreender que não temos que escolher entre indivíduo e sociedade, pois são tudo totalidades ou conjuntos articulados (Idem, p. 125).
Por conseguinte, enfatiza Merleau-Ponty, Mauss, ao conceber o social como um simbolismo, permitiu-se os meios de respeitar a realidade do indivíduo, aquela do social e a variedade de culturas, sem tornar umas e outras impermeáveis entre si. “Uma razão ampliada deve ser capaz de penetrar até o irracional da magia e do dom” (Idem, p. 126). O fato social total A simpatia de Mauss para com o movimento associacionista do início do século XX, na França, levou-o a refletir em profundidade sobre os motivos variados da associação humana. Segundo ele, tais motivos não podem ser restringidos a certos determinantes particulares – econômicos, políticos e/ou culturais –, visto que tudo tem relevância para a constituição do vínculo social, sendo a sociedade um “fato social total”. A crítica ao utilitarismo mercantil, de um lado, o resgate da dimensão moral da vida social, de outro, levaram Mauss a rever e ampliar a noção de fato social de Durkheim. Para ele, a sociedade seria um “fato social total” e no interior do conjunto de prestações e contraprestações que definem a vida social em geral, a atividade econômica e mercantil seria apenas um aspecto particular deste conjunto, limitando-se pelo caráter dos rituais e das obrigações coletivas. A esse respeito, esclarece Karsenti que o dom permite revelar os comportamentos de homens concretos e não um conjunto de regras jurídicas ou morais definidas abstratamente. Nesse sentido, complementa ele, o fato social total, longe de indicar uma generalidade desencarnada, “emana da descrição de uma realidade constituída de experiências comuns que manifestam a vida do grupo como grupo: “O completo, mediante um singular desvio, se identifica ao concreto, concebido sob a forma da expressão viva de um grupo social considerado na sua globalidade” (Karsenti, 1994, p. 45). Neste esforço de entender as razões não econômicas das trocas sociais, Mauss foi levado a rever a premissa durkheimiana do fato social, reapresentando-o como “fato social total”. Esta revisão teórica aponta, portanto, para um acontecimento inédito das ciências sociais, que foi produzido entre Durkheim e Mauss, a saber, a invenção do simbolismo. Os estudos sobre as significações subjetivas das trocas, que o levam a valorizar a idéia de totalidade, foram sistematizados a partir das revisões feitas por Mauss das análises durkheimianas do sagrado, da religião e das representações coletivas, como o demonstra Camile Tarot (1999). A compreensão da sociedade como fato social total permitiu a Mauss superar as dualidades conceituais presentes no pensamento de seu tio, Émile, articulando de modo dialógico categorias aparentemente opostas, como o macro e o micro, o subjetivo e o objetivo, o individual e o grupal, o sagrado e o profano, o cultural e o social, a práxis e a teoria, o unidisciplinar e o multidisciplinar.17 A sistematização dos estudos sobre a dádiva levou Mauss, de certo modo, a uma ruptura parcial com o esquema teórico de Durkheim. Enquanto este via a obrigação como a condição central e incondicional da moral social, Mauss entendia que o sistema moral conhecia certa flexibilização, resultante da pluralidade de determinações. Assim, embora considere o dom uma obrigação em última instância, ele reconhece que, na prática, há uma ambivalência constitutiva do dom entre a obrigação e a liberdade, entre o material e o simbólico e que se insinuam no movimento de produção do fato social que é total. A atualidade da contribuição de Mauss para as ciências sociais pode ser, assim, sintetizada em dois pontos fundamentais: a definição da sociedade como um fato social total, permitindo articular adequadamente aquelas dicotomias tradicionais da sociologia já referidas, e a introdução do simbolismo como fundamento último das trocas entre pessoas morais. Trata-se de uma contribuição de importância paralela àquela do sujeito do inconsciente de S. Freud, com a diferença de que, em Mauss, a noção de pessoa moral não se limita às injunções de crenças coletivas, como em Durkheim, nem ao cognitivismo individualista, da psicologia experimental. A pessoa moral, em Mauss, supera ambas as posições pela ênfase sobre o valor da relação na constituição da sociedade. A proposição do dom como base de uma ciência moral e humanista18 explica-se pelo seu reconhecimento como fenômeno de caráter relacional e paradoxal que articula diferentes planos do conhecimento, como aqueles formados pelos pares do objetivo e do subjetivo, do micro e do macro, do profano e do sagrado, do individual e do social. Trata-se de um sistema de conhecimento, ao um só tempo, simples e complexo. Simples, na medida em que busca explicar a realidade, inicialmente, não a partir de estruturas regulamentadas, mas, diversamente, a partir de um sistema informal, aquele das trocas diretas entre indivíduos e grupos no plano da vida cotidiana. Complexo, porque ambiciona ultrapassar o campo restrito do plano microssociológico para demonstrar que as regras paradoxais que delimitam as trocas da vida cotidiana se reproduzem igualmente na esfera macrossociológica dos sistemas formais, de forma sub-reptícia certamente, mas decisiva para selar por meio da confiança a validade dos contratos jurídicos e administrativos. Ele teve sucesso na empreitada teórica do “fato social total” – que é uma categoria abrangente do ponto de vista teórico e disciplinar –, quando entendeu que a aliança nasce de uma expressividade coletiva e compartilhada – gestos, rituais, trocas, mortes etc. – que envolve todos os membros do grupo, acionando, para isso, os recursos afetivos, cognitivos, materiais e espirituais existentes na comunidade. Do mesmo modo, percebeu que a construção da aliança entre pessoas morais exige que o conjunto de recursos visíveis e invisíveis (materiais e simbólicos) disponíveis na tradição e na memória circule permanentemente, envolvendo todos os participantes em ações recíprocas de doações, recebimentos e retribuições. A recusa de participar de tais atividades – festas, rituais, serviços gratuitos, trabalhos conjuntos etc. – em geral é percebida pela comunidade como um sinal negativo, como se fosse uma manifestação de descaso ou mesmo de inimizade. Enfim, a idéia de “fato social total” pressupõe a presença de sistemas de reciprocidades das atividades humanas, sustentados por um simbolismo generalizado em todos os planos da vida, começando com mais intensidade afetiva e menos regulação cognitiva no plano do cotidiano (do indivíduo, da família, dos amigos etc.) e se estendendo com menos intensidade afetiva e mais regulação cognitiva para as estruturas formais (da economia, da política, da religião, da ciência etc.). Isto é, tudo o que se troca – tudo o que se dá, que se recebe ou que se retribui – é carregado de sentidos duplos: as palavras são pronunciadas com gestos expressivos, os presentes são dados com boas ou más intenções, as ordens são proferidas com sentimentos de orgulho ou de baixo-estima, as mercadorias são vendidas com imagens de sedução ou de repulsão. Pela associação do dom com o simbolismo generalizado, Mauss conseguiu demonstrar que as coisas materiais ofertadas, as hospitalidades dadas e os serviços prestados são plenos de significações que, num lado, favorecem a aliança e o vínculo e, no lado contrário, a inimizade. Compreendido como “fato social total”, o sistema do dom deixa de constituir uma teoria do domínio particular de determinada disciplina – seja ela a antropologia, a etnologia, a história, a sociologia, a política, a lingüística ou outra qualquer –, para aparecer como o fundamento de uma ciência moral antiutilitarista poderosa, que oferece os recursos conceituais necessários à crítica do pensamento mercantilista hegemônico e à revalorização do indivíduo dentro dos sistemas de obrigações coletivas. A força crítica do dom está no seu caráter paradoxal, permitindo compreender a sociedade como um conjunto de fatores diversos que se entrecruzam, mas que não se submetem funcionalmente a uma determinação qualquer, seja ela a religião – nas sociedades tradicionais –, ou a economia de mercado – nas sociedades modernas. O reconhecimento do paradoxo do dom explica-se, por outro lado, pela sua possibilidade de demonstrar, a partir do simbolismo, que a realidade social e cultural é fabricada por significações compartilhadas por indivíduos e grupos sociais, que sustentam a invenção do mundo em vários planos: no micro e no macro, no individual e no social, no sagrado e no profano, assim como, podemos acrescentar, no masculino e no feminino, no similar e no diverso. Do mesmo modo, ao permitir compreender que essas trocas entre indivíduos, grupos e nações são, em geral, incertas, indeterminadas e assimétricas, o sistema do dom contribui para que se entenda que a regra de equivalência típica da economia de mercado – um bem dado implica em um bem pago – não é uma regra geral, como propõem os doutrinadores liberais e utilitaristas, mas a exceção. Analisando a sociedade a partir do “fato social total”, percebe-se, diferentemente, que grande parte das trocas segue uma regra assimétrica que se estende no tempo, gerando um endividamento simbólico coletivo dos membros da coletividade e expresso em regras, rituais, proibições e permissões. Certamente o reconhecimento da existência de trocas assimétricas não significa que estamos na ordem da democracia. Ao contrário, inúmeras sociedades tradicionais e mesmo modernas instituem sistemas de dominação a partir de assimetrias, como vemos no Brasil, por exemplo, a partir da instituição do clientelismo. Mas, o simples reconhecimento da pluralidade de lógicas de organização do imaginário sócio- histórico e das práticas concretas, sejam elas simétricas ou assimétricas, é fundamental para se desnaturalizar a ideologia mercantilista e utilitarista que se propõe a aparecer como a única e legítima lógica de organização da vida moderna. Tal reconhecimento da diversidade é fundamental para se entender que, por trás do fetichismo da troca econômica simétrica, que está na base da lógica mercantil e cujo lema é trabalhar para consumir e acumular, há um desejo – assimétrico – bem mais amplo de compartilhar a vida, pois esta não pode ser vivida individualmente, mas apenas coletivamente. Tal consciência coletiva implícita é a base de uma ordem moral geral ligada ao anseio de preservação da sociedade e, em última instância, do ser humano, que é o motivo primeiro e último da constituição do vínculo social, da aliança e da política solidária. Na verdade, o “rochedo no qual se assenta a vida social”, como lembra Mauss na conclusão do Ensaio..., apenas é detectado quando entendemos que os bens que circulam no interior da sociedade são sempre portadores de um duplo sentido, material e simbólico. A tese do fato social total surge, na obra de Mauss, quando ele compreende que todos os eventos possuem uma significação simbólica para a vida social. Ao assim proceder, ele aprofunda a tese de Durkheim acerca da existência de uma obrigação social que sobredetermina a liberdade individual. Mas, ao mesmo tempo, o autor entende que as regras podem ser transgredidas ou negadas, pela vivência da liberdade, fazendo do que era paz, guerra, e vice-versa. Mauss faz este aprofundamento ao introduzir uma compreensão simbólica da prática social não redutível apenas aos aspectos materiais ou aos valores utilitaristas baseados nos cálculos, nas necessidades e nas preferências. Pela valorização do simbólico, ele concluiu que tudo na sociedade é importante para esclarecer sua origem e funcionamento,sendo de particular relevância aqueles fatos que consideramos banais e irrisórios, como os risos, os gestos, as falas, os rituais, as danças, além, é claro, dos serviços e dos bens materiais (Mauss, 2003, p. 191).
O dom e o interacionismo crítico
Dom e compreensão
Como é possível a sociedade? Com esta pergunta C. Papilloud abre seu texto sobre uma reflexão comparativa entre Mauss e Simmel, para defender a tese de que esses dois autores são os reais precursores de uma abordagem inédita da relação humana, que pode ser definida como interacionismo crítico. Para Papilloud, a conversão de Maus para as teses interacionistas significou certo distanciamento de Durkheim, o que ficou evidente quando Mauss e Paul Falconnet escreveram o texto “Sociologia” para a Grande enciclopédia, no ual afirmam que o social se reconhece “pela presença de suas ações e reações, de suas interações” (Mauss, 1901, apud Papilloud, 2004, p. 61).
A. Caillé também propõe que o sistema da dádiva constitui uma abordagem interacionista, por excelência. Mas uma abordagem interacionista que não se limita ao plano microssociológico, pois considera com o mesmo valor a esfera macrossociológica. A compreensão do sistema do dom como uma modalidade particular do interacionismo teria ficado encoberta pela maneira como Lévi-Strauss inseriu o dom dentro dos estudos antropológicos (Caillé, 1998). Ao reduzir o dom a um sistema de troca relativamente rígido e próprio de sociedades tradicionais, a antropologia estrutural teria dificultado que viesse à tona a contribuição fundamental de Mauss para as ciências sociais e para o entendimento do dom como fato político, interativo e dinâmico. É necessário, assim, romper o véu que isolava o dom dentro das ciências sociais (e da filosofia moral, acrescentamos), o qual induzia os pesquisadores a vê-lo como um fenômeno de interesse meramente antropológico e estrutural, com pouca relevância para outras disciplinas, sobretudo para aquelas relacionadas com o interacionismo. Devese notar que há diferentes escolas interacionistas, que não se situam apenas nos Estados Unidos e que se enraízam historicamente em outros países. Nesse sentido, Caillé lembra que, tal como os interacionismos de Simmel e de Elias, aquele de inspiração maussiana se diferencia do norte-americano por algumas razões. Em primeiro lugar, a excessiva ênfase dos estudiosos norte-americanos no plano microssociológico – no chamado “face a face”. No caso do interacionismo em Mauss, diferentemente, “não somente é o conjunto das interações entre as pessoas que ele tende a considerar, na escala da sociedade no seu todo, mas também as relações das pessoas com os objetos, com as coerções materiais, em suma, com a morfologia social”. Desse modo, conclui Caillé, temos aqui uma espécie de “interacionismo generalizado”, que tem mais a ver com a sociologia histórica comparativa weberiana e com o marxismo do que com a psicologia social (base do interacionismo norte-americano) (Caillé, 2002b, p. 247).
Nesta tentativa de enquadramento da teoria do dom como uma abordagem interacionista aberta a uma compreensão ampliada da sociedade, é importante relacionar como o símbolo da aliança surge na teoria maussiana do simbolismo: Ora, esta [a aliança] não é outra coisa senão a do político. A questão sobre a qual Mauss encerrava o Ensaio sobre o dom. Pois tudo em Mauss leva de fato a esta questão do político [...] os símbolos só têm vida e significação enquanto representam, comemoram, performam ou renovam um dom, uma ad-sociação ou, de modo mais geral, o político. Enquanto podem ser compreendidos e portanto traduzidos uns nos outros (Idem, pp. 251-253). Ou seja, a passagem de um entendimento do dom como uma regra rígida para uma leitura pósestruturalista, que o compreende como uma significação da aliança, abre inevitavelmente perspectivas promissoras de uma aproximação dos estudos sobre o dom com o interacionismo crítico. Este entendimento da teoria do dom dentro de uma tradição teórica compreensiva e fenomenológica, que dialoga em diferentes níveis com as sociologias de Simmel, de Weber, de Schutz e do interacionismo simbólico, sobretudo o de Goffman, é importante para situarmos os caminhos de investigação possíveis a partir do dom. A compreensão e a explicação deste sistema não pressupõem o estudo do indivíduo nem do grupo, tampouco o estudo dos planos macro ou microssociológico, considerados isoladamente. A idéia da sociedade como um “fato social total” explica-se pelo valor da circulação das coisas entre os indivíduos e os grupos. Nesse sentido, ao fazer a crítica aos limites da teoria marxista sobre o trabalho, Vandenberghe esclarece – reiterando comentário de Godbout (1998b) a este respeito – que o valor da dádiva não é ligado nem ao uso nem à troca, mas ao vínculo, ao relacional, reforçando a compreensão interacionista da dádiva. Assim, conclui: “Invertendo a caracterização do fetichismo da mercadoria feita por Marx, poderíamos dizer que as relações entre as pessoas (na dádiva) não mais aparecem como uma relação entre coisas, mas que as relações entre coisas agora aparecem como uma relação entre pessoas” (Vandenberghe, 2004, p. 110). Esta observação é interessante para entendermos que, ao se enfatizar a relação entre pessoas na dádiva, a circulação dos objetos, ou o “espírito das coisas” – o hau, dos antigos –, tanto pode reforçar práticas emancipatórias como, ao contrário, práticas conservadoras. Tudo depende, logo, da vivência da associação e da aliança, o que nos leva necessariamente a articular, no sistema do dom, interação e experiência vivida, sociologia interativa e sociologia fenomenológica.
Os estudos sobre a dádiva despertam, inevitavelmente, certa curiosidade sobre a ação social direta, sobre as modalidades de existência das práticas sociais no plano microssocial. Isto não anula, todavia, o interesse da teoria da dádiva para os estudos macrossociológicos, das organizações formais. Na verdade, quando nos debruçamos sobre os requisitos da confiança entre atores sociais e agentes institucionais no interior de organizações como as burocrático-legais ou, então, as mercantis, ou ainda nas práticas do mundo do trabalho, observamos que esta confiança não pode ser obtida nem pelas cláusulas contratuais livres entre parceiros, nem pela obrigação legal. Ao contrário, a confiança exige certo risco, qual seja, o de acreditar que aquele outro com quem me relaciono não vai me trair, embora nada assegure isso. Há um risco inerente ao dom pelo fato de não haver certeza de que o donatário vai receber a ação ou vai retribuí-la. Tudo é possível! (Fixot, 1994, p. 187). Este risco não pode ser simetricamente calculado, ele está aberto às incertezas. Isto explica, portanto, o interesse dos parceiros comerciais ou dos agentes burocráticos de que as pessoas se conheçam, que tenham antecedentes de honestidade e lealdade. Pois, no lado contrário, sob o peso da desconfiança e da corrupção, os sistemas formais inevitavelmente se degradam. Mas, é certamente no âmbito das relações interpessoais que a dádiva aparece com maior nitidez. Porque é no plano da ação direta que se constrói primeiramente a sociedade, onde são edificadas as bases intersticiais das organizações formais e informais. Ali, nascem as redes sócio-humanas – sistemas de trocas diretas entre familiares, vizinhos e amigos –, as quais existem de maneira subjacente a outras redes, como as sociotécnicas – que aparecem como exigência de gestão das organizações formais – ou as socioinstitucionais – que aparecem como exigência de governança entre Estado e sociedade civil, envolvendo agências governamentais e não-governamentais (Martins e Fontes, 2004).
O mercado de trabalho também não pode funcionar a contento caso patrões e empregados, ou produtores e consumidores, desconfiem das intenções uns dos outros. Em todos esses casos, os contratos devem ser legitimados por um mínimo de confiança no outro, uma aposta indiscutível no dom, de modo que o interesse objetivo revelado pela mercadoria ou pela lei possa aparecer como algo natural, como se o contrato encerrasse em si mesmo uma cláusula oculta de confiança e respeito, o que é falso. Isto é, apesar de o dom funcionar mais visivelmente nas socialidades primárias,19 ele continua a aparecer como recurso fundamental para permitir, no plano das socialidades secundárias, que os parceiros dos campos mercantil ou burocrático se disponham a incorporar livremente as regras do jogo, como se confiar nas regras sem duvidar de sua validade fosse algo eminentemente natural. A dádiva funciona, assim, em geral, nos dois registros, o primário e o secundário, embora tenha maior visibilidade no primeiro.
Dom e vida associativa
A contribuição de Mauss para a crítica teórica se faz pela demonstração de que o dom não é apenas uma teoria ingênua, fundada supostamente sobre as intenções generosas e altruístas do ser humano, servindo para repensar o conjunto das instituições sociais a partir dos seus fundamentos morais e normativos que variam de sociedade para sociedade. As tentativas de estigmatizar o sistema do dom como uma teoria ingênua, escondem preconceitos e ignorância a respeito de um pensamento que se apóia num sistema de motivações complexas da ação social. A teoria do dom constitui uma saída teórica importante para dar conta da complexidade e da diversidade das motivações sociais, inclusive aquelas utilitárias, presentes na vida cotidiana.
Mauss não rejeita, simplesmente, as teses liberais. Ao contrário, ele buscou esclarecer que o interesse é um motivo importante da prática social, mas que a própria idéia de interesse é complexa, na medida em que, além do interesse materialista e calculista, pode-se falar de interesse pela honra e pelo poder não apenas em função de si mesmo mas também para o outro. Na vida real, o interesse do sujeito não se centra, necessariamente, apenas na sua própria pessoa, mas na de todos com quem mantém interação na vida privada ou na vida pública. Cada um de nós revela, em algum momento da vida cotidiana, um interesse que transcende o ego e se transporta para o outro – seja ele alguém da família, um conhecido ou um mero desconhecido –, e este tipo de ação se faz, no mais das vezes, de forma espontânea. Não custa lembrar que tal compreensão ampliada do motivo do interesse não tem apenas valor teórico, mas prático, uma vez que pode impactar favoravelmente a reconfiguração das políticas públicas e de novas modalidades de participação da sociedade civil na organização da esfera pública, por exemplo. O caráter paradigmático do sistema do dom traz uma contribuição inestimável para repensar as abordagens teóricas e metodológicas na sociologia, em diversos campos: do trabalho, da família, da religião, do desenvolvimento e da política, entre outros. De fato, a idéia da sociedade como um “fato social total” fabricado a partir de bens simbólicos e materiais não apenas amplia o entendimento da ação social, como permite, igualmente, se atravessar mais facilmente as fronteiras interdisciplinares, tudo em benefício de um pensamento moral e político mais complexo. Para isso, é importante chamar a atenção sobre o fato de que a teoria do dom é eminentemente relacional, não se fixando, por conseguinte, nem na estrutura nem na agência, mas no ciclo incessante de prestações e contraprestações de bens materiais e simbólicos. O ciclo de endividamento simbólico suscitado pela circulação de bens (bens simbólicos, como intenções, gestos, gentilezas e rituais, e bens materiais, como serviços a terceiros, auto-ajuda, utensílios ou mesmo mercadorias) institui necessariamente vínculos e alianças que estão na base da produção das identidades, dos lugares e das estruturas. Em contrapartida, quando alguém deixa de cumprir as expectativas coletivas geradas pelo endividamento mútuo (ao se aceitar algo de alguém, necessariamente entramos em dívida com esta pessoa, mas, caso não queiramos manter a reciprocidade, basta não retribuirmos o gesto, a intenção ou o bem dado) desfaz-se o vínculo e a aliança. Esta compreensão dinâmica da ação social tem, na prática, o mesmo efeito que significa a passagem da descrição da realidade externa, de um momento inicial em que ela é apreendida, como uma fotografia, para um outro momento, em que é apreendida pelas imagens de um vídeo. A perspectiva de sistematização de uma nova leitura do dom tem pertinência clara no sentido de enfatizar o valor do fato associativo e do movimento associacionista (Martins, 2005; Chanial, 2001) e/ou a importância de se pensar um novo paradigma da ação coletiva que enfatize o valor da solidariedade e da participação na sociedade civil. Esta observação é mais do que justificada num mundo globalizado, em que crescem as demandas por reconhecimento, por participação e por inclusão e as reações violentas pelas recusas desses direitos à cidadania e à vida saudável. No desenvolvimento de uma sociologia do dom, prestamos especial ênfase ao modo de organização das socialidades primárias, isto é, à esfera microssociológica, com a intenção de verificar as perspectivas de construção de uma discursividade crítica no interior delas, via redes locais, como a família, a vizinhança e as associações. Uma discursividade que considere tanto o confronto de saberes diferenciados (técnicos e populares) como as negociações e as alianças alinhavadas entre agências governamentais, não-governamentais (ONG s, Igrejas), associações de bairro e atores sociais, no âmbito local. O desafio, no fundo, é observarmos se as possibilidades inscritas nas redes sociais existentes nas municipalidades e nas comunidades são suficientes para incrementar o surgimento de práticas associativas mais horizontais e abertas a novas modalidades de solidariedade e de cooperação, práticas essas que legitimam o surgimento de uma esfera cívica e pública politicamente consistente. Pois, apenas a partir de uma esfera com esta característica, isto é, ancorada nas trocas diretas, é possível pensar numa experiência de cidadania democrática ampliada, plural e participativa, que respeite as diferenças e as universalidades dos sistemas simbólicos e de poder.
Contribuição da teoria do dom para a crítica do pensamento utilitarista hegemônico
A força do dom como “princípio ativo” de uma crítica teórica capaz de se contrapor à doutrina utilitarista dominante ficou tolhida, já dissemos anteriormente, pelo modo como a antropologia estrutural traduziu o dom no seu próprio domínio conceitual, limitando, por conseguinte, seu impacto à análise das sociedades tradicionais e inibindo a compreensão do seu potencial para o entendimento das sociedades contemporâneas. Mas, com a crise do estruturalismo no contexto da globalização de idéias nos fins dos anos de 1970, houve um maior intercâmbio de pesquisadores, gerando uma aproximação fértil, geográfica, temática e conceitual das grandes escolas do pensamento humanista, sobretudo as francesa, anglosaxônica e germânica. No que diz respeito especificamente à escola francesa de sociologia, a crise do estruturalismo permitiu resgatar a contribuição de Mauss a partir de uma crítica cultural e social renovada pela filosofia política francesa e pela filosofia analítica inglesa, a primeira enfatizando o tema da democracia, a segunda, o tema da linguagem da vida cotidiana. Nessa mesma direção, a aproximação da tradição renovada de Mauss com o interacionismo norte-americano, nos anos de 1980, permitiu flexibilizar a vinculação excessiva do dom com a obrigação moral coletiva, o que abriu caminho para realçar o papel da liberdade individual ou do dom do indivíduo na constituição da prática social. Em suma, o debate que se sucede à crise do estruturalismo propiciou compreender que o sistema do dom aplica-se, igualmente, às sociedades tradicionais e às modernas, às sociedades fundadas em crenças a-históricas e àquelas fundadas na criação histórica, sendo ele peça central para se repensar a economia, a política e a democracia numa perspectiva antiutilitarista. O reconhecimento do valor do dom para a explicação da sociedade moderna individualista implica, necessariamente, que os motivos fundamentais das prestações e das contraprestações humanas não são apenas de caráter obrigatório e dados pelas crenças e tradições, como verificamos nas sociedades tradicionais estudadas pelos antropólogos clássicos. Semelhantes motivos são também de caráter livre e espontâneo, gerados pelos desejos e utopias de indivíduos e grupos sociais, como é próprio das sociedades contemporâneas. Do mesmo modo, os indivíduos e pessoas morais não se relacionam apenas pelo interesse por si, mas pelo interesse pelo outro, ou, então, interesse pelo poder, ou pela honra ou pelo prestígio. Enfim, ao se desprender da imagem egoísta e individualista, o interesse torna-se “desinteressamento”, ou seja, interesse que se desprende de sua referência para se tornar outra referência de si ou interesse do outro (Caillé, 2006). Por conseguinte, mais do que uma mera atualização do sistema do dom, este reconhecimento da presença de motivos variados da ação humana aponta para uma crítica teórica de valor moral indiscutível. Esse projeto intelectual re-humanizante, que está presente na obra de Mauss, não é um fato isolado. Ele se cruza, na verdade, com outras contribuições relevantes para esse tipo de crítica ao reducionismo utilitarista e ao pensamento objetivista, como aquelas oferecidas ao longo do século XX por autores como Simmel, Mead, Merleau-Ponty, Goffman, Habermas, Castoriadis, Lefort, Taylor, entre outros. No seu conjunto, as obras desses autores evidenciam o valor da liberdade para a emancipação do ser humano, mas a partir de um lugar diverso daquele do liberalismo clássico, que é basicamente centrado no interesse individual. Tal diferença se evidencia pelo fato de que esses autores entendem a liberdade como um motivo que extrapola o mero interesse individual ou grupal, para encerrar um valor humano coletivo imprescindível para uma perspectiva democrática e participativa ampliada. A leitura do Ensaio sobre a dádiva a partir da ótica de um sistema teórico interdisciplinar mais amplo – que incorpora, paradoxalmente, motivos diversos da ação humana, como os de liberdade e obrigação, do interesse e do desinteresse – permite introduzir uma série de inovações significativas para o pensamento humanista crítico. Para atingir o dogma utilitarista, Mauss buscou demonstrar, por exemplo, o equívoco de reduzir as origens da vida social à idéia de uma “economia natural”, fundada numa representação abstrata denominada homo oeconomicus, como propõem os economistas clássicos. Na crítica ao utilitarismo materialista, em conseqüência, Mauss buscou reinterpretar a economia do mercado com base em uma abordagem socioantropológica e interacionista mais ampla, pela qual o mercado é visto como um mecanismo de regulação entre outros. Tal opção teórica levou-o a rediscutir em profundidade outras noções complementares, como aquelas relacionadas ao contrato, ao trabalho e à utilidade, e novas modalidades de compreensão e interpretação da realidade vivida que, no seu conjunto, revelam uma complexa teoria das motivações humanas. Por isso consideramos que o sistema da dádiva encerra as bases de uma ciência moral de caráter interdisciplinar, fundamental para o avanço do novo movimento teórico nas ciências sociais, sem negligenciar a contribuição decisiva do estruturalismo na demonstração do simbolismo para as práticas culturais e sociais.
Notas
1 N uma primeira aproximação, a título de esclarecimento para os que não são iniciados no assunto, podemos dizer que o sistema do dom consiste num conjunto de prestações e contraprestações que se expandem ou se retraem mediante uma tríplice obrigação – doação, recepção e retribuição de bens materiais e simbólicos –, sendo constatada sua presença em todas as sociedades existentes, tradicionais e modernas, conforme deduzimos da leitura de Marcel Mauss.
2 P ara Alain Caillé, os dois outros paradigmas, o individualista e o holista, apresentam-se sempre como verdades abstratas e intemporais. Função, estrutura, valores e cálculo, interesse individual e boas razões apresentar-se-iam sempre pelas mesmas modalidades independentemente de tempo ou lugar. Em contrapartida, o paradigma do dom deixa tudo aberto às investigações histórica, etnológica ou sociológica sem trazer respostas prontas. Nesse sentido, o dom seria antiparadigmático (Caillé, 2002b, p. 81).
3 Segundo Axel Honneth, a tese de Durkheim sobre a divisão do trabalho social é um insight importante para a compreensão da solidariedade social, na medida em que demonstrou que tal solidariedade nas sociedades modernas depende das formas democráticas e reflexivas da divisão do trabalho (Honneth, 2002, p. 275). Ora, tal releitura é curiosa, uma vez que as teses de Durkheim sobre a divisão do trabalho eram vistas como provas de um funcionalismo que fazia do fundador da sociologia francesa um autor, sob certos aspectos, suspeito. A retradução de Honneth traz novas luzes sobre o tema.
4 E videntemente, estamos nos referindo aqui à tradição do catolicismo tradicional. Pois, no lado oposto, vimos surgir no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, uma outra tradição religiosa católica, como a da Teologia da Libertação,
que defende a reinterpretação de temas importantes, como o da caridade, com impactos positivos sobre o socialismo associativo de movimentos como, por exemplo, o MST e o da economia solidária.
5 O papel do pai da antropologia estrutural na formulação de uma certa leitura do dom pode ser mais bem compreendido a partir do esclarecimento fornecido a este respeito pelo sociólogo canadense Marcel Fournier, o mais importante biógrafo de Mauss. Num fórum especial sobre as “Novas Sociologias”, no Encontro Anual da Anpocs, em 2004, Fournier esclareceu que Lévi-Strauss, em uma carta a um amigo, teria dito que Mauss teve o mérito de chegar até o rio, mas ele, Lévi-Strauss, é que teria feito a travessia das águas. Embora esta afirmativa sirva para reforçar a vinculação de Mauss com a antropologia estrutural, ela é, em si, insuficiente. Não pelo fato de que Lévi-Strauss não tenha feito bom uso do sistema teórico do dom, mas porque este sistema se abre para outros usos e entendimentos, e, sobretudo, para a construção de uma crítica teórica e moral mais ampla.
6 Como veremos mais adiante, ao realçar a ambivalência da ação social o dom permite demonstrar que as motivações humanas não podem, em absoluto, se limitar à função do egoísmo e do interesse material.
7 Contra um pensamento operacional, próprio da antiga ciência experimental de base cartesiana que entende a criação humana como o produto de um processo de informações concebido sobre o modelo da máquina humana, Merleau-Ponty propõe, na sua última obra escrita em vida, L’oeuil et l’esprit, um corpo que acorde outros corpos associados, os “outros” que não são meus congêneres (Merleau-Ponty, 1964a, pp. 12-13). E porque o corpo vê e se move, ele tem as coisas em torno de si mesmo; elas (as coisas) estão incrustadas na própria carne como um anexo ou um prolongamento dele, fazendo parte da definição plena do corpo, sendo que o mundo é feito do próprio corpo (Idem, p. 19).
8 Souza escapa dos perigos do culturalismo, presentes nessas narrativas que insistem sobre a originalidade, recorrendo com oportunidade à genealogia do indivíduo moderno realizada por Charles Taylor em A fonte do self (2005). Tal recurso facilita explicar que a noção de indivíduo é complexa e contraditória e que o self pode conhecer diferentes formas generalizantes, que não se reduzem nem àquela do individualismo moderno ocidental (Souza, 2001a, p. 182) nem a de leituras dicotômicas e culturalistas sobre a pessoa moral. Não cabe aqui entrar nesta discussão riquíssima da ontologia moral do Ocidente, formulada por Taylor, mas é necessário sublinhar sua pertinência para o que aqui estamos discutindo, a saber, que a genealogia do trabalho intelectual e a consideração pela análise reflexiva das condições lingüísticas, culturais, emocionais e, sobretudo, morais, presentes no vivido, são decisivas para se delimitar a construção do conhecimento num certo lugar e num certo tempo.
9 Clifford Geertz, com base em sua vasta experiência de antropologia comparada, oferece mais elementos para situar este debate sobre a ação intelectual no “terreno”. Afirma ele que nossa compreensão de nós mesmos e de outros – nós mesmos entre outros – “é influenciada não apenas pelo intercâmbio com nossas próprias formas culturais mas, também, e de maneira bastante significativa, pela caracterização que antropólogos críticos, historiadores e outros, fazem das formas culturais que nos são alheias, transformando-as, depois de retrabalhadas e redirecionadas, em secundariamente nossas” (Geertz, 2001, pp. 17-18). Geertz está pensando aqui nas vicissitudes do antropólogo no “terreno” e dos perigos de se fazer “imaginação moral” esquecendo-se do imperativo da diversidade cultural.
10 Já há material relevante disponível na Revue du Mauss sobre a produção teórica pós-estruturalista nos últimos 25 anos. No Brasil, porém, o trabalho de retradução dos estudos sobre o dom ainda necessita de maior visibilidade acadêmica, embora iniciativas práticas venham ocorrendo nas grandes associações científicas como Anpocs, SBS – Sociedade Brasileira de Sociologia e a ABA – Associação Brasileira de Antropologia.
11 A idéia de totalização do social, que propõe Mauss a partir do dom e que será discutida mais adiante, implica, lembra Karsenti, num importante deslocamento epistemológico que apresenta Mauss como peça fundamental no nascimento da lingüística que, como se sabe, foi fundada oficialmente por Saussure no seu Cours de linguistique general, ministrado no ano de 1916 (Karsenti, 1994, p. 88).
12 “Agora, é o indivíduo que é a fonte da mudança social. Ele sempre foi, mas não o sabia. As leis eram decididas por seus príncipes e suas religiões. Seus costumes pareciam-lhe sair de suas técnicas. E estas últimas estavam cravadas no artesanato, permitindo-lhe mais a ingeniosidade do que a inovação. O engenheiro surgiu lentamente com as primeiras máquinas. E as sociedades modernas mudam rapidamente como nunca antes visto. Trata-se, mesmo considerando todas as dificuldades, da ação do indivíduo” (Mauss, 2004, p. 140).
13 E sta crítica, que tem uma significação preciosa, tanto cultural como também social e política, aproxima Mauss de outro grande teórico antiutilitarista do século XX, Karl Polanyi, que demonstrou na sua obra clássica, A grande transformação, a dependência estreita da economia de mercado com a cultura histórica de uma época e de uma determinada civilização.
14 A sigla M.A.U.S.S. tem dois significados: prestar uma homenagem a Marcel Mauss, um dos fundadores da escola francesa de sociologia e sintetizar o descontentamento de um grupo de intelectuais com a “fragilidade da ciência econômica e de suas pretensões explicativas” (Caillé, 1989, p. 7). No início, antiutilitarismo significava apenas antieconomicismo. Na declaração de intenções do M.A.U.S.S, os signatários do documento assinalam que “o objetivo do movimento era sobretudo de relançar ou de lançar uma discussão e uma informação científica sobre a questão das dimensões não mercantis e não monetárias da troca”. “Não se trata de opor a axiomática do interesse a um certo espiritualismo do desprendimento, da gratuidade ou da ação não finalizada, mas de opor a esta axiomática limites precisos de legitimidade, tanto atuais como passadas, metodológicas e antropológicas. Para isto, importa reabrir o debate que havia sido iniciado sobretudo por Mauss, Malinowski e Polanyi [...]” (Bullletin du MAUSS,1982, p. 9). Apenas nos fins da década de 1980, esta crítica antiutilitarista difusa transforma-se numa crítica antiutilitarista propositiva, que elege o sistema do dom como veículo central para se avançar na desconstrução do caráter restritivo das teses economicistas dominantes, e na crítica à proposta ingênua da economia de mercado como uma economia natural que existiria desde sempre, estando hipoteticamente na origem e no desenvolvimento de todas as sociedades humanas.
15 N esse sentido, a crítica antiutilitarista de Mauss fica muito próxima daquela empreendida por um filósofo moral da contemporaneidade, Charles Taylor. Para este autor, o utilitarismo clássico equivoca-se ao tentar rejeitar as distinções qualitativas e hiperdimensionar a quantificação e o cálculo (Taylor, 2005, p. 39). Ambos os autores buscam desnaturalizar o utilitarismo e provar a existência de uma fundamentação moral por trás das motivações utilitaristas. Mauss critica a idéia de uma economia natural, que existiria desde sempre; Taylor, ideais como o self desprendido que, ao objetivar o mundo circundante, inclusive as emoções, produz uma espécie de distanciamento e agir instrumental sobre o mundo, que gera ilusões como a da economia natural, por exemplo. Ambos sublinham uma “valorização forte” (noção proposta por Taylor) dos bens à nossa disposição, no sentido de que tais bens precisam de uma distinção qualitativa, uma vez que, lembra Taylor, eles funcionam “em algum sentido como padrão para nós” (Idem, p. 36).
16 A valorização do simbolismo não significa a desconsideração dos condicionantes sociais, históricos e mesmo biológicos do ser humano. Ao contrário, amplia a compreensão do sujeito humano ao permitir sair de uma concepção objetivista para uma outra mais ampla, que integra os planos da interioridade e das redes de inserção do self no mundo. Pelo simbolismo pode se compreender, enfim, que as próprias nomeações desses condicionantes – o que chamamos de biológico, corporal, objetivo ou subjetivo – varia de cultura para cultura e depende dos esquemas perceptivos prevalecentes em diferentes sociedades. Esta idéia de uma corporeidade humana como fenômeno social e cultural, como motivo simbólico é bem desenvolvida em A sociologia do corpo, de David Le Breton (2006).
17 E m Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty critica o dualismo cartesiano e a exaltação que ele considera ilusória da separação entre sujeito e objeto. Pensa ele, diferentemente, que tudo que o indivíduo percebe é extensão dele, e o olhar objetivado – que cria a ilusão da separação entre o sujeito e o objeto – é secundário com relação à sua expressividade, a seu “sentir total” que engloba o subjetivo e o objetivo. Para o autor, tal separação apenas é possível, do ponto de vista lógico, pela leitura simplificada da percepção fenomenal que enfatiza a exterioridade do corpo, produzindo uma “imagem empobrecida” do verdadeiro corpo, que apenas se revela integralmente na sua expressão fenomenal (Merleau-Ponty, 1999, p. 493). Pensamos que a idéia de sentir total deste filósofo está intimamente ligada àquela de fato social total de Mauss.
18 N o número especial de comemoração dos dez anos de fundação do Boletim do MAUSS (depois transformado em revista), em 1992, intitulado “Dez anos de evolução das ciências sociais: metamorfose do MAUSS”, Alain Caillé propõe, num texto provocativo intitulado “É preciso criar uma nova disciplina nas ciências sociais e qual?”, a fundação de uma filosofia política que teria a eficácia da ciência. Para ele, a filosofia política atual seria a melhor representação de um modelo normativo para as ciências sociais (Caillé, 1992, p. 40). Sem desconsiderar esta proposta, pensamos todavia que os avanços no debate sobre o dom desde então têm revelado existir uma força moral que termina se impondo ao elemento político, embora nele se inspire para assegurar a sua aderência normativa e prática. Daí considerarmos que a expressão “ciência moral humanista” pode também ser apropriada para pôr em relevo a questão dos incondicionantes da ação social e sua importância na constituição da aliança e, também, da democracia.
19 I nspirado nos estudos sobre o dom, Caillé propõe haver uma tendência da sociedade moderna a provocar a separação crescente entre dois registros de socialidades, que permanecem bastante imbricados em sociedades mais tradicionais. O primeiro registro é o das socialidades primárias, no qual as relações entre as pessoas são mais importantes do que os papéis funcionais que elas desenvolvem. Trata-se do registro da família, dos parentes, dos amigos e dos vizinhos. No registro das socialidades secundárias, ao contrário, a funcionalidade dos atores sociais vale mais do que suas personalidades, como se observa nas práticas do mercado, do Estado e da ciência. Nenhuma administração governamental pode funcionar caso não exista o espírito do serviço público, assim como uma pátria não sobrevive caso ninguém se disponha a morrer por ela (Caillé, 2002a, p. 196). O mesmo se pode dizer do serviço médico. Os hospitais e as clínicas médicas não podem funcionar eficazmente caso não haja algum tipo de solidariedade entre médicos, enfermeiras, funcionários e familiares em torno do sofrimento do doente, espelhando, em cada personagem envolvido, a proximidade inexorável da morte e da finitude.
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Palavras-chave: Dádiva; Teoria social; Marcel Mauss; Movimento antiutilitarista.
Os estudos sobre o dom oferecem uma contribuição inestimável para a teoria social hoje, que ultrapassam os usos oferecidos pela antropologia estrutural. Eles são relevantes para se repensar o social e a política e permitem um diálogo em profundidade com várias outras correntes do pensamento. Ao se reavaliar o dom na atualidade, sobretudo a partir das novas leituras contemporâneas sobre o tema, como aquela oferecida pelo M.A.U.S.S. (Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais), descortina-se também uma outra compreensão da escola sociológica francesa e de Marcel Mauss, em particular, o primeiro a sistematizar os estudos sobre a dádiva.
FROM Lév i-Strauss TO M.A.U.S.S. – ANTI-UTILITARI AN MO VEMENT IN THE SOCIAL SCIENCES: GIFT ITINERARIES
Paulo Henrique Martins
Keywords: Gift; Social theory; Marcel Mauss; Anti-utilitarian movement. Studies on the gift offer an invaluable contribution to the current social theory, surpassing utilizations offered by the structural anthropology. They are relevant for rethinking the social and politics allowing a deep dialog with many other thinking currents. In reevaluating the gift today, especially from the standpoint of new contemporary versions on the theme, such as the one offered by the so-called M.A.U.S.S. – Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (Anti-Utilitarian Movement in the Social Sciences), another comprehension of the French sociological school of is uncovered, particularly Marcel Mauss, the first one to systematize the studies on the gift.
De LÉvi-Strauss AU M.A.U.S.S. – MoUv EMENT Ant iUt ilita rist E DANS LES SCIENCES SOCIALES : ITIn ÉRAIR ES DU Don
Paulo Henrique Martins
Mots-clés:
Don; Théorie sociale; Marcel Mauss; Mouvement antiutilitariste. Les études sur le don offrent une contribution inestimable à la théorie sociale d’aujourd’hui, qui dépasse les usages offerts par l’anthropologie structurelle. Ils sont importants pour repenser le social et la politique et permettent un dialogue en profondeur avec plusieurs autres courants de pensée. Lorsqu’on évalue le don dans l’actualité, surtout à partir dês nouvelles lectures contemporaines sur le sujet, comme celles proposées par le M.A.U.S.S. (Mouvement Antiutilitariste dans les Sciences Sociales), appara»t également une autre compréhension de l’école sociologique française et, particulièrement, de Marcel Mauss, qui a été le premier à systématiser les études sur le don.
Fonte: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol.23, n.66 - fevereiro/2008