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domingo, 19 de agosto de 2012

Uma nova espiritualidade global?



Em seu último livro, Souci de soi, conscience du monde [Cuidado de si, consciência do mundo], o sociólogo Raphaël Lioger defende que a nossa época é o cenário de uma transformação radical do religioso, na qual o sagrado invade todas as esferas da vida social.



A reportagem é de Antoine Dhulster, publicada na revista Témoignage Chrétien, 23-06-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.



Eis a entrevista.



Em seu último livro, você explica que a nossa época assiste ao surgimento de uma nova religião: o indivíduo-globalismo. Você não vai um pouco longe demais ao defini-la como uma religião?



Tudo depende do que se entende por religião. Para mim, é o âmbito das atividades humanas em que se desenvolvem as instituições especializadas na produção e na difusão de mitos. Os mitos são os grandes relatos implícitos, impensados, aos quais todos nós aderimos. Eles estruturam a nossa existência e lhe dão um sentido. E isso, muito além da esfera "religiosa" em sentido estrito.



Por exemplo, no mundo cristão, a crença não se detém nas portas das igrejas. Ela está difundida em toda a sociedade, até mesmo nas atividades cotidianas. Eu acredito que o nosso mundo desenvolvido, ou pós-industrial, está submetido a uma nova tensão mítica, a um novo grande relato. Nesse novo marco, o indivíduo busca a sua realização, a resposta às suas perguntas metafísicas, em um processo que inclui preocupações globais: a ecologia, a paz mundial etc. A tensão entre essas duas dimensões – individual e global – é o que chamo indivíduo-globalismo.



Em que se baseia essa espiritualidade?



Em primeiro lugar, em uma visão moderna do ser humano, radicalmente diferente daquela que dominou durante séculos. Na antiguidade grega, pensava-se o ser humano como uma pessoa que adquiria sua dignidade na participação na vida da polis. Depois, dependendo dos contextos e das épocas, na vida da trib o, da família e da nação. Na época moderna, nasce o indivíduo. O conceito de indivíduo é a ideia segundo a qual o ser humano se volta à sua subjetividade, que é abissal, e que se torna, ela mesma, uma espécie de transcendência. Segundo elemento: a nossa visão de mundo. Também a partir da época moderna, se desenvolve uma visão do nosso universo como um conjunto infinito.



Até esse momento, a própria ideia de infinito era muito negativa. Os gregos pensavam o cosmos como algo perfeito, porque finito, determinado. Em pensadores como Kant, no fim do século XVIII, vê-se aparecer, portanto, essa dupla noção de indivíduo, que conquista a sua subjetividade em um mundo que se pensa já infinito. A lei moral está nele, como subjetividade abissal. E, por outro lado, há o universo infinito, o céu estrelado acima dele. No século XIX, particularmente com o movimento romântico, esse esquema de pensamento supera o quadro da razão e conquista o campo da emoção. Depois, alcança os nossos modos de viver. Antes marginalmente, em comunidades como a de Monte Verità, na Suíça, depois de forma espetacular com a Nova Era nos anos 1960 e com as nossas preocupações místicas e ecológicas hoje.



Eu tento mostrar que há uma continuidade entre esse longo processo intelectual – a subjetividade do sujeito e o mundo pensado como infinito – e o nosso modo de viver atual. Os mesmos elementos são mobilizados, na busca do bem-estar pessoal nos atos mais cotidianos e, ao mesmo tempo, com a preocupação de um equilíbrio global. Se alguém tivesse hibernando nos anos 1970 e se acordasse agora, constataria que os hippies tomaram o poder. Muitos pensadores analisaram essa reviravolta como a da pós-modernidade. Pessoalmente, defendo a ideia de que a pós-modernidade é a modernidade em atos.



Como imaginar a relação entre o indivíduo-globalismo e as religiões institucionais?



Há uma coexistência entre esse esquema e as grandes religiões. Estas continuam existindo porque o velho mundo, que as criou, ainda existe. Mas estamos em um período de transição. E, a meu ver, existem três possibilidades para as grandes religiões: ou resistem agarrando-se ao passado e, nesse caso, haverá a fuga dos fiéis; ou fazem compromissos com a modernidade e se mantêm vivas; ou antecipam as transformações futuras e, nesse caso, aumentarão seus fiéis.



Concretamente: no cristianismo, uma parte do indivíduo-globalismo, na sua versão emocional, se manifesta nos movimentos evangélicos, que veiculam uma efervescência coletiva e fazem com que os fiéis acreditem que poderão mudar as suas vidas. A Igreja Católica resistiu a essa mudança trazida pelos evangélicos. Resultado: perdeu todos os ciganos franceses, ou se tornaram praticamente neoevangélicos, embora continuando a praticar o culto de Maria, que normalmente é incompatível com o culto protestante, mas isso não é problema para eles. Em um certo ponto, a Igreja começou a compreender esse movimento e "enquadrou" a renovação carismática. Assim, ela passou para a segunda atitude, a da negociação.



Então, a Igreja Católica ainda tem uma carta na manga com relação à modernidade?



Sim, de forma evidente. O indivíduo-globalismo é o produto da modernidade. Mas também devemos l embrar que a modernidade é o produto da evolução dialética do cristianismo, do qual a Igreja Católica participa há 2.000 anos. A relação com o indivíduo pensado como sagrado está presente cristianismo mediante a ideia de encarnação. Lembremos ainda que a filosofia iluminista é um desenvolvimento da teologia cristã em um certo nível. Ora, é justamente a filosofia iluminista que faz nascer o indivíduo-globalismo. Portanto, a Igreja Católica pode se recompor compativelmente com esse novo mito. E ela já faz isso, através das suas redes e das suas ONGs que levam a voz católica ao mundo, à ONU, às instituições internacionais... Mas essa mudança de paradigma pressupõe o abandono de uma parte da sua dogmática, que a mantém nos velhos esquemas.



A Igreja poderia abandonar a sua dogmática? Você acredita nisso?



Pode haver uma resistência muito forte, mas a história nos mostra que a necessidade faz a norma. Por enquanto, a Igreja não está à beira do abismo, mas, quando chegar ao ponto em que não poderá nem mesmo manter o Vaticano, acho que ela aceitará reinterpretar o seu dogma.



Você certamente percebeu que a tendência atual, ao contrário, é o do retorno à Tradição...



Certamente, é um reflexo clássico, provocado pelo medo. Quando temos medo, nos retraímos. Falando em termos de imagem, constroem-se barragens para se proteger das correntes dominantes. Mas, ao fazer isso, proibimo-nos de pensar ou de compreender essas correntes, fixamos a atenção sobre as barragens artificiais. É o mesmo processo do debate francês sobre a identidade. Se fazemos um debate sobre a identidade, significa que a identidade não é mais evidente. Naturalmente, a identidade é algo impensável. Se eu preciso torná-la reflexivo, quer dizer que ela não existe mais. É a mesma coisa para a religião. Quando um indivíduo qu er se pensar tradicional, ou integralista, constata implicitamente que a sua tradição morreu.



Que fé, que conteúdo você vê para essa nova espiritualidade que anuncia?



As religiões se recompõem em torno a uma noção central, a energia, que é, ao mesmo tempo, salvadora e pessoal. Daí a noção de conexão, de conectividade entre o individual e o global, entre o indivíduo e a natureza. Nesse contexto, o próprio dogma católico é reinterpretado com essa ideia de energia. É preciso pensá-lo perto do imaginário da ioga, da espiritualidade oriental.



Então a sua tese é a de uma releitura da tradição cristã em uma versão sincrética influenciada pelas outras formas de espiritualidade?



Sim, e isso terá como resultado tornar-nos bipolares. Interiorizaremos, cada um de nós ao nosso nível, as culturas diferentes à nossa. Por exemplo, incensaremos o taoísmo ou o budismo, porque se pre ssupõe que sejam próximos à natureza. E, simetricamente, rejeitaremos o catolicismo... mas só em um primeiro momento, porque certos aspectos do catolicismo permitem pensar a ecologia, a união com a natureza, o equilíbrio global. É neste jogo de confrontos que o rolo compressor indivíduo-global avança e aproxima as religiões, focando-se na sua estética, mas removendo-lhes o seu núcleo dogmático. As religiões tornam-se pouco a pouco intercambiáveis. Na prática, vê-se o aparecimento de híbridos: faz-se ioga cabalística, gi gong cristão ou meditação zen recebendo a comunhão...



Mas, na prática, todos esses comportamentos continuam sendo individuais, muito limitados. Que rela� �ão existe com a prática religiosa da maioria?



Isso é muito menos limitado do que se pensa. No Ocidente, essa espiritualidade é levada adiante pela classe média. Falando em termos midiáticos, os "bobo" [neologismo criado pelo jornalista norte-americano David Brooks a partir da contração de "burguês-boêmio", para se referir a uma pessoa de um certo nível de vida com um estilo de vida pouco convencional]. Mas não só. Poderiam ser acrescentados os católicos de esquerda, muito interessados no diálogo inter-religioso ou o âmbito humanitário, processos indiscutivelmente indivíduo-globais.



As outras partes da população aderem ao mito indivíduo-global, mas não podem se permitir isso completamente, eu poderia dizer. O indivíduo-globalismo é a cor dominante do quadro, mas uma parte da população o percebe como degradado. Nem todos vivem o conhecimento de si mesmo, a realização pessoal, mas todos aspiram a isso. O único que chega a viver essa busca no seu cotidiano é o "bobo" no seu trabalho. Mas a busca, no entanto, se refere a todos. Assim, os outros vão viver os mesmos problemas... no seu tempo livre, fazendo estágios de desenvolvimento pessoal, viagens espirituais, consumindo produtos orgânicos etc.



E em escala planetária?



Encontramos a mesma assimetria. Aqueles que são objeto dos novos cultos (os povos tradicionais, por excelência) sabem que fazem parte do cenário da experiência espiritual que os cidadãos das sociedades pós-industriais buscam viver. Eles mesmos sã o obrigados a imaginar o que aqueles turistas esperam esteticamente para fazer com que vivam uma experiência. Senão, perdem a força de atração econômica. Portanto, há uma forte pressão ideológica, em que aqueles que jogam esse jogo de papéis (o que eu chamo de "hiperbeduínos" ou "hiperzulus") acabam se afastando do "núcleo" da sua cultura para corresponder às expectativas dos cidadãos das sociedades pós-industriais. Desse ponto de vista, a "valorização" do outro, na realidade, contribui para a sua destruição identitária. Em escala planetária, é a uniformização. As únicas diferenças que restam são estéticas, permitem viajar e viver a aventura para progredir interiormente e encontrar a si mesmos.



Essa mudança lhe parece irreversível?



Sim. Há precisamente a formação de um fundo mítico comum a toda a humanidade, que corresponde a uma situação política, econômica, em que todos já tomaram consciência da condição dos outros. Portanto, não é possível voltar atrás. Quais serão as consequências dessa revolução em algumas décadas? Poderão ser positivas ou negativas. Pode-se até imaginar um integralismo indivíduo-globalista: seitas de loucos poderiam querer destruir a humanidade ou instaurar uma ditadura anti-humanista por causa das devastações causadas pelos seres humanos ao meio ambiente. É possível. Assim como é possível um mundo em que a realização pessoal se tornará a norma dominante. O roteiro ainda está para ser escrito.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

As influências gnósticas de Peter Sloterdijk






As influências gnósticas de Peter Sloterdijk

Por: José Luiz Bueno - Universidade de São Paulo, Brasil


Resumem


O filósofo alemão Peter Sloterdijk, em uma de suas mais conhecidas obras, “Extrañamiento del Mundo” se propõe, em seu esforço de construir uma moderna teoria do homem, a retomar e fazer fecundo o que ele chama “um velho tema gnóstico”. Com os elementos adquiridos nesta retomada, também prentende atualizar a presente linguagem não-metafisica para que esta possa dar conta de aspectos da experiência humana de negação do mundo, tema em que somente nas línguas metafísicas se encontram recursos para a sua expressão. Assim, nos propomos a fazer um percurso por textos do filósofo alemão para avaliar se, e em que medida, os conceitos gnósticos estão presentes em seu pensamento.


Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk (1)


No prefácio de seu livro Extrañamiento del Mundo (2), Peter Sloterdijk diz que “encabeza una serie de tentativas de hacer fecundo um viejo tema gnostico para uma teoria moderna del hombre”. Nossa proposta é rastrear a presença destes conceitos gnósticos em alguns textos de nosso autor. Para tanto, analisaremos não somente o livro acima citado, mas também textos de seu livro Esferas II (3), procurando, assim, reconhecer se, e em que grau, a presença de tais conceitos em suas argumentações conformam de alguma maneira a estrutura de seu pensamento.

Peter Sloterdijk se pergunta no título de um capítulo de “Extrañamiento del Mundo” se o mundo é negável. Partindo desta questão, Sloterdijk se propõe a atualizar algumas idéias antigas, muito estruturais na consciência ocidental, e que se fazem presentes de maneiras empiricamente observáveis, como é o caso da prática das pessoas de estar e não estar no mundo. A música, a meditação não objetiva, o entretenimento, o sonho noturno e diurno, a religião, são, entre tantos outros, alguns caminhos do sujeito contemporâneo através dos quais este faz desaparecer o mundo externo para, talvez assim, aliviar o peso deste sobre si mesmo.

Entretanto, encarar esta questão não se esgota em somente fazer um simples discurso psicológico mecanicista de uma tendência biopsíquica do indivíduo humano. Ao menos é assim que vemos o esforço de Sloterdijk, que propõe que a antropologia e a psicanálise devem ser os sucedâneos da metafísica em tempos de pensamento não metafísico.

Para isso, deve-se ter novas formas de contar a história do homem, e discorrer sobre a metafisica de uma maneira melhor do que ela faria sobre si mesma. É assim que a linguagem poderosamente metafórica de Sloterdijk adquire seu sentido e sua aplicação. E este é o caso da grande linguagem metafórica das esferas. Esta imagem, que é assumida como sua principal maneira de expressão, não é apresentada como sua criação senão como uma morfologia universal identificável antropológica e historicamente.

Se as idéias e conceitos gnósticos se harmonizam com a metafórica das esferas é algo que vamos investigar neste ensaio.

Teoforia e serviço ao centro

Nos diz Sloterdijk que o caminho antropológico e histórico do homem começa em microsferas íntimas, do tipo útero-placenta, que estabelecem um modelo que se repete em planos macroesféricos. A saída ao mundo é a primeira experiência de uma esfera que explode e lança o homem ao desabrigo de um mundo sem teto.





Assim, a questão inicial se enfrenta localizando o homem no histórico espaço esférico que o constitui. A metafísica clássica empreendeu o esforço de compreender o homem como um ser epicêntrico (4) num todo macrosférico de centro absoluto. Meditando sobre a imagem mítica do gigante Atlas (5) que sustenta o mundo, nosso autor põe a questão da impossibilidade de uma visão excêntrica do mundo desde fora e, ao mesmo tempo, a mesma impossibilidade de uma visão absolutamente centrada da esfera ontológica. Com isso, o homem vê o mundo sensivelmente, o que significa não contemplá-lo em seu interior desde um ponto médio real, e também, ver a si mesmo como um ser ao mesmo tempo deslocado e excêntrico. Em termos gregos, os humanos não são apenas os mortais, mas também os removidos do centro, os marginais de Deus, semicegos, semiclarividentes. Entretanto, pensar metafisicamente ainda é pensar o homem como um ser epicêntrico atraído por este centro; então, sua existência epicêntrica significa saber-se exalado de um centro supremo sem poder se confundir com o mesmo.

Diferentemente da situação do Atlas, o que se sucede com os papéis sustentadores do ser humano é que, como epicentro, um centro deslocado do ponto central, está subordinado a um centro e é atraído e utilizado por este. E isto se pode encontrar na história cristã da salvação, na qual os seres humanos têm uma relação forte com o centro e são utilizados (6) por ele no autocumprimento da salvação.

Sloterdijk considera o caso da Virgem Maria como especialmente eloqüente (7). Em uma descrição naturalista, a relação mãe-filho, que é a situação fundamental da criação microesférica de intimidade, põe o peso anímico na mãe. Mas, esta ordem metafísica muda no caso de Maria pois a mãe não é a que produz a criança, senão que é apenas uma portadora, teófora, do homem-Deus, uma atlante íntima, pois se não leva o mundo sobre os ombros, carrega-o em seu interior, em seu ventre, na figura do homem-Deus. A ordem muda a ponto de não ser a mãe quem produz o filho, senão o contrário, o que porta (a mãe, criatura) é produzido e o que é portado (o filho, homem-Deus criador) é quem produz. A macroesfera utiliza completamente para si a microesfera. Assim, dever-se-ia dizer, em linguagem esferológica, que o epicentro deve dar o melhor de si mediante sua autodisposição nas ações do centro. E assim se alcança a utopia da relação forte entre epicentro e centro, na qual o epicentro se torna digno por delegação do centro.

Diz Sloterdijk:

“Así surge el modelo normativo de los grandes mundos: la metafísica de la cooperación y servicio al centro” (8).

Neste modelo, distinto da escravidão do gigante Atlas, o serviço ao centro deve se dar de maneira consciente, nunca como uma recepção passiva de estímulos provenientes do centro, mas em vez disso, como uma espécie de co-espontaneidade inteligente (9). A metafísica cristã não é de sumissão passiva ao centro, mas de que “el centro adyaciente tiende hacia al centro mediante sumisión activa” (10).

Sloterdijk, de passagem, faz notar que “el caminho de la subjetividad moderna conduce, a través de la cooperación con Dios, a uma igualdad mística de condición con él y, desde esta – después de la muerte de Dios – a la situação comprometida, aunque triunfal, de quedar sola como trabajadora para todo” (11).

Sloterdijk, em uma análise do mito de São Cristóvão (12) (Cristo-foros, o transportador do Cristo), o faz figurar como um substituto do Atlas, o que converte o mito do escravo que suporta um peso morto em um ato de solidariedade entre o epicentro e o centro, um ato metafísico de serviço.

O exemplo de São Cristóvão mostra uma solução para o problema do Atlante pois agora a esfera se converte em um todo no qual o centro está intimamente relacionado ao epicentro. O serviço cristofórico é um serviço dentro de uma relação de amor do centro ao epicentro. Assim, o modelo de serviço amoroso ao centro pode ser utilizado para a monarquia do centro, pois o que antes era esforço recalcitrante se converte agora em impulso servil.

O cristianismo estabelece um “principio de solidaridad anclado em espacio dual, puesto que concibe, ingenua y reflexivamente a la vez, la acción solidaria como cooperación del epicentro en el proyecto del centro”. (13)

Embora para os modernos, cujo pensamento se caracteriza por descentralizações de tipos vários, a metafísica esférica esteja esquecida, e embora os manuais de filosofia façam apenas alusões a uma velha ontologia das esferas, a história da velha metafísica européia, segundo Sloterdijk, “fue toda ella uma única meditación entusiástica de la esfera animada y de la existência cómplice” (14). Ou também que “entendida como ontoteología y cosmología filosófica, la metafísica clásica no fue otra cosa que un ritual-teoría inmensamente circunstanciado y complejo en honor de Su Majestad la Forma Redonda” (15).

O culto à monoesfera consistia de um esforço de apaziguar a inquietude humana diante de um mundo ampliado e assustadoramente aberto através de uma morfo-teología que aportava mais segurança e sentido de proteção, pois, com a esfera, se poderia abarcar o todo em um único giro.

Desta maneira, o evangelho da boa nova redonda fazia com que qualquer indivíduo, inclusive o mais distanciado do centro, pudesse ser alcançado por ele como que por um raio de bondade emanado do centro absoluto. Claramente se vê a presença do conceito de um centro bom que faz todo o entorno tornar-se abrigo para o ser humano desgarrado. Diz o nosso autor: “con la imagem de la esfera se extiende el evangelio de la inclusión total: nada real puede estar realmente fuera” (16).

Quando o poder procede do centro, nada fica absolutamente fora, nada fica separado, a não ser por um ato de rebeldia. A ontologia da esfera é uma meditação sobre a possibilidade de que tudo tenha sentido e de se estabelecer uma espécie de terapêutica da participação no todo.

A história do início do cristianismo mostra seus teólogos acomodando o conceito de Deus à metafísica das esferas. A relação da alma com Deus somente ocorre em uma relação forte e se ambos pertencem a um mesmo espaço interior comum, no qual Deus é o centro e as almas são pontos fora do centro, mas conectados a ele a partir da irradiação do centro.

Ficar fora do espaço interior, ou estar na excentricidade, foi um ato somente da figura que representa a exterioridade e a autorreferência, que, na teologia cristã, é o Satã e seu séquito de pecadores. Satã seria o símbolo de uma tese atéia de exterioridade, de uma liberdade religiosa relativa à teologia esférica e ao poder do centro e, além disso, a uma indiferença morfológica. De tal maneira que a imagem do inferno corresponderia muito bem à experiência moderna de múltiplas excentricidades autorreferentes.

Com esta idéia de um centro forte que atrai tudo a si, insere-se a idéia de altruísmo, pois a atração do centro é uma força dirigida ao outro. De forma que o centro esférico faz iguais o teocentrismo e o altruísmo, e além disso, os pontos excêntricos estão conectados não somente ao centro mas a todos os pontos adjacentes, estabelecendo a consciência de coexistência na esfera e a ética e a solidariedade como forças de coesão.

Nosso autor põe agora em destaque o mais potente contraste à metafísica ou teologia esferológica. O conceito de Deus se harmoniza com a esfera pois protege as fronteiras do ser frente ao nada, tendo isto garantido que o Deus esferocêntrico tenha permanecido em vigor enquanto seus teólogos sustentaram sua virtude de ser uma esfera. Entretanto, quando os filósofos e teólogos começaram a tomar a sério o atributo da infinitude de Deus, que Sloterdijk considera como o movimemto endógeno que deu lugar à modernidade (17) – pois em uma esfera infinita se perde a diferença ontológica entre dentro e fora e assim o centro está em toda parte e, portanto, em nenhuma. Este é o resultado da infinitização de Deus e do universo e que prepara a morte de Deus. Sloterdijk diz que a morte de Deus é uma “tragédia morfológica” (18). O Deus infinito é um Deus invisível, amorfo, o qual, por não fazer diferença entre dentro e fora, não pode oferecer nenhuma vantagem em se estar dentro dele.

A morte de Deus é a morte da esfera. O nascimento da modernidade põe em relevo a necessidade de cada ponto ser autorrefente, de sua posibilidade de ser um lugar em si mesmo, de que o egoísmo seja a única e última possibilidade de centralização. Todo aquele que é um “si mesmo” deve ocupar-se de si mesmo, seja este um indivíduo, um Estado, uma família ou uma empresa.

Sloterdijk propõe uma definição morfológica de modernidade como sendo um “excentrismo não-satânico” e denominará “espumas” as “aglomerações de pontos excêntricos autorreferentes” (19).

As imagens combinadas do “transporte” de Deus, o qual confere intimidade e proximidade interna com o Deus central, e a imagem da esfera todo-abarcante que protege as fronteiras contra o nada, são uma poderosa combinação da idéia de uma centelha divina produzida no centro e transportada pelo homem com a idéia de sua tendência a uma tentativa de aproximação, de estar conectado e de voltar ao centro divino para não ser arremessado fora do campo do ser no nada da não-existência. O que coincide com uma idéia gnóstica fundamental, que é a de que todas as centelhas divinas, constituintes do homem desejam voltar ao centro luminoso que as produziu.


Peter Sloterdijk




Meios puros, telecracias e a metafísica das telecomunicações

Um outro ponto de vista de importância na discussão da esferologia sloterdijkiana é a sua capacidade de demonstrar como se produz a coesão de um grande império através do conceito de poder central emanado e presente em todas as partes do império por meio da telecomunicação. Neste tema, a idéia de emanação, tão cara ao neoplatonismo e ao gnosticismo, será a mais fundamental.

Como avalia Sloterdijk, a antigüidade testemunhou o desenvolvimento da tecnologia de presença do poder à distância do centro. Os grandes impérios da antigüidade só podem ser compreendidos em seu sucesso mediante a presença de um uso consciente de uma telecracia em molde esferológico.

A essência mesma de um poder centralizado é a sua capacidade de atuar à distância como se estivesse alí e isto se dá com a criação de signos majestáticos que podem ser emitidos a qualquer parte do império representando o poder e fazendo-o presente in absentia. Na cultura cristã, o exemplo de encontro de ser e signo é o ritual da eucaristia.

O poder central se revela com capacidade de expansão e transportabilidade quando consegue estabelecer signos plenos nos quais participe seu poder e seus mensageiros plenipotenciários. Estabelecer signos do ser é criar a capacidade de emitir signos de poder a qualquer lugar onde não possa estar e onde, precisamente, deve estar.

O grande exemplo do apóstolo Paulo demonstra como é possível que um signo seja o mesmo que o remetente do signo, não somente uma lembraça deste mas o remetente mesmo. O verdadeiro emissário deve participar da substância do ser do remetente e deve manifestá-la em presença real (20). O mensageiro que ouviu diretamente a mensagem e a transporta faz com que os destinatários sejam responsáveis por suas reações diante da mensagem como se a houvessem ouvido diretamente do remetente (21). Este é o poder conferido ao mensageiro.

A característica que se exige do mensageiro é de que seja um meio puro, que não reclame co-autoria na mensagem, que não veja seu próprio interesse, que seja, portanto, diáfano, transparente, eliminando a distância entre o remetente e os destinatários, atuando, em outras palavras, como um neutrum, um mero canal. Do mensageiro também se espera um perfeito altruísmo, que se manifeste independentemente das características ou da situação atual do mensageiro. Veja-se o exemplo tanto de Moisés com sua língua pesada ou de Paulo com sua capacidade de escrever com uma prosa engenhosa: ambas as situações são indiferentes quando chega o tempo de serem usados como canais do emissor divino.

O caso do apóstolo, todavia, não se trata de um mero assunto de carteiro ou de enviado. O tipo de mensagem levado pelo apóstolo aporta um tipo de recepção da mensagem que não permite que o remetente mude o tipo de meio de envio da mensagem, por exemplo, fazendo-a escrita em vez de oral. O caso do apóstolo é paradoxal pois o remetente o faz a partir de sua transcendência e o mensageiro, por isso, torna-se insubstituível. Se o remetente perde o mensageiro, perde-se a mensagem e o Deus remetente não pode se manifestar no mundo.

Com a ascensão do Cristo, o remetente se colocou completamente nas mãos do processo evangélico. Sloterdijk cita as três instâncias em que o remetente se deixou em mãos dos mensageiros: “desde su retirada de la carne se convirtió plenamente em ser noticiable (predicación), plenamente em sociedad mediática (iglesia) y plenamente em procesamiemto informativo (teología)” (22). Estas dimensões dependem integralmente do apóstolo mensageiro plenipotenciário. Entretanto, a delegação de poderes do apóstolo não tem outra justificação a não ser ele mesmo; sua plenipotencialidade é autofundada. Somente se sabe que o apóstolo foi enviado com uma mensagem por que ele mesmo o disse. Mas a situação não é tão simples pois o apóstolo não fala em seu próprio nome e, além disso, diz que quem o enviou é que lhe deu tais poderes.

Desta maneira, o discurso apostólico somente se pode fundar e se fazer valer através de uma forma nova de transmissão da mensagem, especificamente cristã, que é a do “medium-ismo” (23). O apóstolo opera uma mudança ontológica de sujeito, trocando sua voz pela do remetente, de tal sorte que “Dios mismo es el hablante” (24).

O maior êxito do apóstolo como mensageiro possuído pela missiva é o de convencer os receptores da mensagem a também se converterem em mensageiros. Assim se pode compreender como foi possivel surgir um mundo em um mundo, um império em um império, a igreja operante no âmbito imperial.

A crença na universalidade da mensagem de Jesus a faz alcançar amplitude imperial, por isso deve ser levada e tornada presente em todo o império. Precisamente esta necessidade, fundada em uma visão macroesférica de uma notícia a ser levada a todo orbis terrarum, exigirá do cristianismo uma solução para o problema de um sistema universal eficiente de propaganda.

O neoplatonismo formulou o modelo que permite entender a energética do domínio à distância através de um processo radiocrático. Seu conceito básico é o de emanação, que tem no modelo solar um de seus exemplos, utilizado por Plotino para explicar como se emana um raio de luz ou calor que, por emanação, alcança as periferias do mundo manifesto.

O modelo platônico exige que se entenda que o sol central não apenas emite calor mas que suas emissões de luz levam consigo as formas ideais que se manifestam em objetos sensíveis e que os fazem reconhecíveis pelo intelecto (25).

Além do exemplo do sol, Sloterdijk cita o exemplo plotiniano do desfile real que mostra que mesmo as fileiras mais externas em desfile já representam a dignidade real, com o mesmo ocorrendo em todas as outras circunferências de poder em torno do rei (26). O processo de emanação é assim resumido por nosso autor: “una unica conmoción en el centro, por decirlo así, solar, que comienza como rayo, atraviesa el espacio como proceso de signos y acaba en un movimiento de mano” (27).

O imperador Constantino fez o grande amálgama entre os símbolos telecráticos imperiais solares e os signos bíblicos. Segundo Sloterdijk, através deste imperador solar, o cristianismo levou o platonismo ao poder fazendo do império cristianizado um neoplatonismo para o povo, com um rei filósofo batizado e com a emanação do poder a partir do centro (28).

O neoplatonismo, enquanto emanacionismo, permitiu conceber com suficiente clareza o modelo de emissão de poder, de delegação imperial e transmissão ontológica do poder. Com isto, o neoplatonismo se torna a ontologia política velada da cultura imperial (29).

Neste mesmo sentido, a filósofa brasileira Marilena Chauí, especialista em filosofia política e no filósofo Baruch de Spinoza, em seu livro “Política em Espinosa” faz a avaliação da importância fundamental da metafísica neoplatonista, incluindo-se os conceitos emanatistas hierárquicos do Pseudo-Dionísio Areopagita, como sendo a ontologia política da cultura da antigüidade e descreve como esta ontologia foi incorporada aos princípios da teologia política da Igreja em seu esforço de justificação do modelo de poder centralizado e emanado do trono do Pontífice (30).

As antigas técnicas de emissão emanacionistas dependem de que o “médium” seja perfeitamente desinteressado e que possa deslocar-se por todo o império, de forma que no nível divino isto se resolva com a figura desinteressada e pura, o mensageiro que, de tão desinteressado, não possui nem a si mesmo. Assim são as figuras dos anjos e arcanjos.

O imperador, entretanto, depende de ministros e funcionários quase-desinteressados, o que expõe a comunicação ao risco iminente da corrupção. O mal aparece quando o mensageiro abusa do poder de porta-mensagem ao introduzir seus interesses no processo de levar a mensagem. Isto representa o protótipo do mal e do malvado introduzindo-se no mundo.

As antigas culturas de domínio dependem da ascese (pureza) e fidelidade de servidores e funcionários, que são as virtudes do desinteresse nos mediadores do poder central . Um mensageiro que pense em si mesmo não executa sua missão com sentido, ele deve substituir seu ego pela subjetividade do senhor. O conceito de “diáfano” é o poderoso conceito de um mediador permeável.

O mensageiro deve renunciar ao seu si-mesmo antes de sair em missão. E isto, assim como a investidura no cargo de mensageiro, não se faz sem formalidade. O ser-para-o-serviço é o conceito que fundamenta o tabú do egoísmo e a proibição do narcisismo. A possibilidade de um ser humano esquecer-se de si mesmo para melhor servir a seu senhor é o que tornou possível esta ética de ser-para-servir, imprescindivel para a arquitetura do poder.

A idéia do olvido de si, a proibição do narcisismo e o tabú do egoísmo são frontalmente opostos à idéia tipicamente liberal dos egoísmos como forma socialmente organizada inclusive de distribuição do trabalho; além disso, a era moderna neutralizou e naturalizou o chamado “mal”.

Se Satã representa o mensageiro infiel, e sua falha – a traição - é considerada o pior dos pecados, o Cristo e a igreja representam o bom e fiel mensageiro e inauguram a nova era salvífica, e a estrutura eclesiástica garante a pureza da mensagem através da ação de uma oficina central, a Igreja do bispo e seus funcionários-sacerdotes, que censura as missivas para garantir as representações puras entregadas por funcionários desinteressados.

Põe-se, então, a questão de como grandes corpos políticos e eclesiásticos, desde o final da Antigüidade até os umbrais da Idade Moderna hajam organizado e fundamentado sua coerência “semiosférica”. Esta questão é melhor enfrentada se lhe pomos a questão diretamente: “Como es posible la síntesis de emanacionismo y apostolado?” (31)

Ou, em outras palabras, como é possível que o apóstolo, um mensageiro, ocupe o lugar de poder do imperador, cuja fundamentação de sua posição é emanacionista? Como o mensageiro se converte em imperador?

“En Esta Vida – Teorias Críticas del Nacimiento” (32)

Na parte 2 do capítulo em epígrafe de “Extrañamiento del Mundo”, Sloterdijk lembra que, segundo Spinoza, “determinatio est negatio”, e raciocina que, se isto vigir na grande escala, determinar o mundo quer dizer, ao mesmo tempo, dizer o que ele não é. Não há como determinar o mundo sem negá-lo. Todavia, para Sloterdijk, determinar o mundo ao mesmo tempo significa aglomerar tudo o que pode cair no espaço representativo, imaginativo, do existente, e pô-lo diante ou em destaque contra um fundo que se pode saber como um nada, ou ao menos como tudo aquilo que não é o todo e que o faz determinável. É a dualidade insuprimível do fundo-todo na esfera da representação. A metafísica, em seu campo discursivo, poderia, assim, ser definida como um “juego de pensamiento con la totalidad como figura” (33).

Deste ponto se pode voltar à questão inicial proposta sobre um pensamento pelo qual metafísica e psicanálise se encontrem e possam falar sobre “o mesmo”, o que se mostra claramente com a questão multicultural do nascimento. Sloterdijk avalia que ambas as disciplinas funcionam como escolas da recordação. A psicanálise tenta ouvir o que se diz “em mim” como vestígio do esforço de vir ao mundo enquanto a metafísica sinaliza “todo o aí” onde o existente está submergido.

Neste exato ponto, Sloterdijk faz um giro muito interessante ao afirmar que a tradição metafísica postula que “a morte faz pensar”, entretanto, ele diz que “retrocedendo ante la metafisica del reino de los muertos, se muestra que, en verdad, es el nacimiemto el que ‘hace’ pensar” (34) (falta a citação). Neste giro, o autor propõe que os discursos metafísicos anteriores tentaram mostrar que o nascimento é parte de um movimento do absoluto, além de pretender mascarar as implicações mortais do próprio fato de se haver nascido.

Mas a individuação é o processo que realmente importa, pois permite ao indivíduo saber que está aí embora não possua a lembrança de seu nascimento, e tenha como sua auto-definição um “rotundo yo-no-sé” (35) a respeito de sua natureza íntima. É a obscuridade relativa ao seu próprio nascimento que o possibilita como indivíduo. Diz o autor: “sé que eso que lleva a mi no lo sé como uno que estuvo presente” (36).

Mas este absoluto olvido do passo pelo desfiladeiro do nascimento é o próprio princípio da relativa felicidade inicial, pois se não há recordação, isso simplesmente pode querer dizer que não se passou nada que represente um motivo para que seja lembrado, e por conseqüência, não haver nada que recordar-se pode ser o mesmo que dizer que não deve ter havido um caráter absolutamente mau nesta experiência inicial.

Desta forma, não se ter a memória do fato do nascimento, não se ser testemunha de seu próprio vir ao tempo e ao mundo, ou seja, não ter que ver a si mesmo do exterior, de fora, nos protege contra o perigo de vermos a nós mesmos como seres que atravessam um certo intervalo de tempo relativamente definido e que caminhamos para o desaparecimento, que sejamos como alguém que está no mundo como um prisioneiro condenado à execução em sua própria cela. Sem o olvido da cisão inicial, e sem a conservação da irreflexão original, a vida se converte “nesta vida” e tudo se passa como uma liquidação penosa de conteúdos vitais ávidos de ser no tempo, a vida se passa como um “fragmento de finitude pánica” (37).

A metafísica faz o esforço de objetivar o indivíduo mediante o apontar para “esta vida” e aí fazer-se uma casuística metafísica do microcosmo individual. E isto é o intento metafisico de conquista de uma ausência de morte. Esta passagem “inaugura la aventura del radical ascenso de la negatividad” (38).

A metafísica de ambos os mundos, hindú e gnóstico, é casuísta e mostra o existir “nesta vida” como o marco de uma história casuísta absoluta. Mas, em ambos, também para a iluminação permanece obscura a razão última para a caída “neste mundo” e “nesta vida”. O que se consegue encontrar são explicações do “para” e do “como” na individualidade.

Mas a perplexidade do ser-no-mundo não encontra uma língua autêntica para sua expressão; não o encontra nos idiomas metafísicos antigos nem na língua da psicologia profunda, pois estas oferecem diferentes hermenêuticas do ir parar no mundo. Todas as metafísicas casuístas, todas as religiões de liberação e todas as psicoterapias não mecanicistas não são mais que respostas ao mesmo mal-estar pós-natal.

Analisando a descrição gnóstica do processo de descenso, de caída, neste mundo e a aquisição das qualidades negativas dos planos por onde a alma passa em seu descenso, assim também a da ascensão como processo de regresso, de subida, de expropriação do mundo e reintegração ao pleroma, notamos que se fecha o círculo hermenêutico que foi posto em marcha quando ocorreu a pergunta pelas condições do próprio nascimento-caída. Mas a terapia gnóstica de iluminação somente pode dizer-se exitosa quando faz o paciente tão feliz em sua iluminada consciência em Deus que não pergunta mais pelas razões de ter entrado no circuito de descenso-ascenso da alma.

Segundo a descrição de Sloterdijk, também na literatura antiga do hinduísmo o casuísmo do processo de vinda ao mundo parece ignorar as perguntas pelo sentido do haverem as almas ido parar no mundo. A escolha de um ventre na roda das reencarnações é um tema da alma consigo mesma, dependendo de sua história pré-nascimento e de seus méritos ou culpas. A negação do mundo pela liberação se torna um tema universal do mundo especialmente con o advento do budismo, que chega ao ponto máximo de que a saída radical da roda de reencarnações exige a negação radical dos ventres. Se há alguma alegria do absoluto pelo nascimento no brahmanismo, isto encontra na radical negação budista seu mais extremo oposto. O budismo considera que o brahmanismo ainda é um mascaramento de formas de manutenção do processo de reencarnação, ou seja, de afirmação dos ventres. Para o budismo, não há nenhum motivo que faça com que “esta vida” não seja a última.

Assim como no gnosticismo o ato de entendimento do vir a parar no mundo é a cura para a liberação, também a doutrina budista tem traços terapêuticos gnosiológicos, pois o saber ou conhecer o princípio do processo pode redimir as paixões impostas pelo não-saber que lançam a alma em um ventre. Neste ponto, pode-se considerar o papel da meditação não objetiva para o budismo como processo de regresso a antes da origem do processo de vir a esta vida, a este Eu, e submergir antes da origem, dissolvendo os primeiros vestígios de personalidade, e com sua atenção focalizada neutraliza os mais prematuros registros da experiência formadora do Eu.

Peter Sloterdijk

O Acosmismo (39)

Ora, é interessante notar que Sloterdijk aponta que, se a psicanálise mais ampla e a antropologia histórica querem desenvolver uma línguagem não metafisica para responder a nossas questões de como nos fizemos e o que somos, elas devem, para isso, “esforzarse por una traducción de las antiguas doctrinas sapienciales en una dicción moderna” (40).

O autor põe uma línguagem (a metafísica, antiga) diante da outra (a não metafisica, atual) e as mostra em seu conflito, onde a primera diz que a nova sofre da ignorância dos processos de negação e do vir-a-parar, enquanto que a nova argumenta que substitui o exercício espiritual pela clínica e a terapêutica, e nos casos mais árduos enfrentam o risco de nada ter a oferecer além de diagnósticos rígidos.

Diz Sloterdijk que “solo em alianza con la força de la tradición metafísica puede llegar la segunda lengua a ser lo bastante rica como para convencer como lengua universal de la ecumene psicológica-antropológica” (41).

Será rica a segunda língua se, para evitar o perigo de rápido esgotamento, conseguir fazer uma tradução dos antigos termos básicos das velhas metafísicas casuistas: iluminação, salvação, liberação.

O autor propõe como possíveis traduções: para a iluminação, uma teoria da ausência de mundo; para a salvação, uma teoria do acabar; e para a liberação, uma teoria da criatividade. Em uma escala ascendente de complexidade, a ordem seria iniciada pela liberação, uma vez que a modernidade encontrou na criatividade uma nova expressão para a velha metafísica. Depois, a salvação já oferece problemas mais complexos de tradução, pois depende da fé em que o bem tende à longevidade enquanto o mal é abreviável. Com a teoria do acabar se abarcam as três campanhas contra os males, as quais são as idéias políticas de reforma, a técnica e a clínica. Assim, salvação é o alívio pelo sair de círculos viciosos.




O mais difícil, diz Sloterdijk, é traduzir a iluminação. Esta tradução ainda parece um disparate para os dois lados, para metafísidos e para não metafísicos. Para os não metafísicos, a expressão foi abandonada e o objeto não desperta interesse. No amplo espectro de possibilidades de psicologias profundas, das mais ortodoxas às mais liberais, a fenomenologia da iluminação ainda faz passar o barateamento do fenômeno como sua tradução.

Pelo que se pode perceber, a língua não metafísica terá que secundar a metafísica se quiser obter êxito em fazer uma tradução deste fenômeno que ainda não se silenciou diante do mundo, pois faz parte de duas grandes tradições que desenvolveram poderosas culturas de iluminação. A iluminação recai sob as categorias não metafísicas pois ela mesma se propõe estágios de negação das dualidades Eu-mundo, de superação do mundo e sua liquidação através da iluminação; a iluminação conduz à desmundanização e também conduz para fora de toda doutrina do ser.

A doutrina budista assim como a gnose cunharam nomes poderosos para o estado mais elevado de ausência do mundo. Assim são os termos moksha e nirvana para o budismo, e seu equivalete preciso é o pleroma gnóstico. Ambos exigem que se supere qualquer hálito efetivo de energia de vício e fuga, pois estes são estados ainda mundanos e devem ser completamente neutralizados. Isto explica a unidade budista de samsara e nirvana (roda de nascimentos e quietude); pela mesma razão a gnose ensina a unidade de pleroma e kenoma (plenitude e vacuidade). Ambos são o ponto máximo de equilíbrio entre a “liberdade de” com a “liberdade para”.

Isto posto, a língua não metafisica da psicanálise-antropología deverá buscar sua expressão acosmista não somente para o ponto culminante, o limite, mas também para os acosmismos cotidianos.

O acosmismo é um tema de toda psicologia. Se as doutrinas psicológicas admitirem que o acosmismo é um complemento necessário para elas, “el viejo discurso de iluminación pierde mucha de su extravagancia”(42). A psicologia pode perceber que se pratica cotidianamente a arte de estar e de não estar no mundo. A diferença do acosmismo iluminado para aquele cotidiano é que o iluminado exige um estado de plenitude de consciência (43)

Assim, é necessário que toda psicologia assimile o acosmismo como um tema permanente sabendo inclusive que se pratica cotidianamente o acosmismo como uma arte de estar e não estar no mundo. Isto é posto de manifesto pela neuropsicologia como um aparato de defesa, pois a vigília permanente seria em verdade uma tortura permanente. Assim, pois, Sloterdijk propõe que a doutrina psicoanalítica do mecanismo de defesa contra a vigília permanente deve compreender-se “como un caso especial de la fenomenología general de la ausencia de mundo y su irrupción a través de lo real emergente” (44).


Peter Sloterdijk

Uma tentativa de conclusão...

À guisa de conclusão, gostaríamos de propor que este percurso por alguns textos de Sloterdijk parece apontar para um pano-de-fundo- gnóstico de seu pensamento que não é somente um caso de estilo. Sua metáforica esferológica, sua análise do mecanismo telecrático de poder em um mundo esférico que se propõe como auto-abrigo em resposta e como proteção contra o externo e contra um nada, além do conceito neoplatônico de emanacionismo para explicar o poder e a constituição da mais duradoura estrutura de poder emanacionista de centro esférico, que é a Igreja Católica, sua avaliação da língua antiga da metafísica casuísta do gnosticismo e do budismo, indicam que a temática do pessimismo gnóstico toma um caráter novo com sua linguagem não metafísica. Entretanto, em que pese seu posicionamento na linguagem não metafísica da psicanálise e da antropologia histórica, seus temas e sua perspectiva psicológica assim como o tema do acosmismo gnóstico e sua metafórica esferológica soam como uma cosmologia gnóstica em novos termos.

Nos parece que realmente se pode perceber que os motivos do autor indicados no prólogo do livro “Extrañamiento del Mundo” não ficaram restritos ao próprio livro, mas que permanecem em seu horizonte teórico como cenário e base para todo o desenvolvimento conceitual a que ele se propõe.

***

Investigación realizada por el Licenciado José Luiz Bueno durante el 'Seminario Sloterdijk', Programa de Postgrado del Instituto de Filosofía de la PUCV, dictado por el Prof. Dr. Adolfo Vásquez Rocca, 1º Semestre Académico, 2007.




* Lic. José Luiz Bueno

Licenciado en Filosofia por la Universidade de São Paulo (Brasil)

Estudiante de Postgrado en Filosofia por la Pontifícia Universidad Católica de Valparaiso (Chile)

Programa de Postgrado. Instituto de Filosofía de la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Seminario Nietzsche – Sloterdijk Prof. Dr. Adolfo Vásquez Rocca


Membro do Núcleo de Estudos em Mística e Santidade (antiguo Grupo de Pesquisa “Religião: Teoria e Experiência”) del Departamento de Estudos Pós-Graduados de la Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, desde el 2004.

Ponencia en el I Congreso Brasileño de Filosofía de la Religión, en Brasilia, Brasil, en el año 2005, con el Título “As Conseqüências de se entender o pensamento de Spinoza como monista”.


Artículo en la Revista Agnes - Cadernos de Pesquisa em Teoria da Religião, publicação do NEMES – Núcleo de Estudos em Mística e Santidade (antigo Religião, Teoria e Experiência), certificado pelo CNPq - do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUCSP, con el título “Deus e Liberdade – (Dios y Libertad: Spinoza en el pensamiento político contemporáneo)".

Artículo:

Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk; medios puros, telecracias y la metafísica de la telecomunicación.


Notas

1 Las influencias gnósticas en Peter Sloterdijk; medios puros, telecracias y la metafísica de la telecomunicación.
2 SLOTERDIJK, Peter. Extrañamiento del Mundo. Pre-Textos, Valencia. 1998.
3 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: Globos. Macrosferología. Siruela, Madrid. 2004.
4 Por “epicentro” entende-se aqui não o centro absoluto da esfera mas um tipo de centro secundário, distinto do centro absoluto, mas que tem certa força própria e consciência tanto de seu deslocamento em relação ao centro absoluto como de sua capacidade de gerar movimento.
5 SLOTERDIJK, Peter, Esferas II, op.cit., pp 87ss
6 Os exemplos seguintes explicitarão a idéia de serem “utilizados”
7 SLOTERDIJK, Peter. Esferas II, op.cit., pg 92
8 Idem, pg 97
9 Idem, pg 98
10 Ibid
11 Ibid.
12 Ibid.
13 Idem, Pg 102
14 Idem, Pg 106
15 Idem, pg 106.
16 Idem, pg 107
17 Idem, pg 115
18 Idem, pg 117
19 Idem , pg 123
20 Idem, pg 586
21 Idem, pg 588
22 Idem, pg 592
23 Idem, pg 593
24 Idem, pg 594, apud Kierkegaard.
25 Idem, pg 614
26 Idem, pg 614
27 Idem, pg 616
28 Idem, pg 627
29 Idem, pg 630
30 Chauí, Marilena. Política em Espinosa. Companhia das Letras, São Paulo, 2003
31 Idem, pg 645
32 Extrañamiento del Mundo, Cap. V, “¿Es el mundo negable? Sobre el espíritu de India y la Gnosis Occidental” – Pg 229ss
33 Idem, pg 230
34 Idem, pg 232
35 Idem, pg 233
36 Idem, pg 234
37 Idem, ppg 234-235
38 Idem, Pp 235-236
39 Idem, pg 250
40 Idem, idem
41 Idem, pg 252
42 Idem, pg 257
43 Idem, pp 255-256
44 Idem, pg 258
Revista Observaciones Filosóficas - Nº 5 / 2007


Abstract

The german philosopher Peter Sloterdijk in one of his mostly known books, “Extrañamiento del Mundo” makes a proposition to update a old gnostic subject in order to achieve a contemporaneous theory of Man. He also proposes to update the contemporary non-metaphisical language with the help of the old metaphisical language, mainly the one used by the western gnostic tradition, in order to make the contemporaneous one able to deal with the human experience of denial of the world. So we propose to make an investigation in some of our german philosopher’s texts to evaluate how far goes the influence of those gnostic concepts over his thought.





sexta-feira, 23 de julho de 2010

Cristianismo e xamanismo


The Pharmacratic Inquisition
Gênero: Astrologia e xamanismo
Diretor: Andrew Rutajit
Duração: 1h58 minutos
Ano de Lançamento: 2007
País de Origem: Estados Unidos
Idioma do Áudio: Inglês

"O filme argumenta que virtualmente toda a mitologia, simbolismo e a história de Jesus e das tradições Cristãs estão relacionadas a dois assuntos básicos: astrologia e xamanismo. Para aqueles não familiares com as evidências que apóiam esta declaração, este filme pode ser verdadeiramente revolucionário e abrir a mente.

Muito do material do filme está apoiado no trabalho de John Allegro. Allegro foi um dos acadêmicos originalmente escolhidos para traduzir os Pergaminhos do Mar Morto, escritos Católicos antigos, descobertos em Qumran próximo ao Mar Morto no meio do século XX. Diferentemente de seus colegas, Allegro não era comprometido com a Igreja Católica e portanto foi capaz de desenvolver suas próprias teorias e interpretações, livre do dogma Católico. O resultado foi a sugestão radical de que Jesus era um cogumelo psicoativo. Em particular, Allegro argumentou que a mitologia e o simbolismo que rodeiam Jesus Cristo apontam para o cogumelo Amanita muscaria, o icônico cogumelo vermelho e branco tão comum no simbolismo e imagens Cristãs.

O cogumelo Amanita tem papel central no filme e é apresentado como base dos elementos xamânicos no Cristianismo. Existe uma história longa de uso do Amanita entre xamãs do norte europeu e da Sibéria, as próprias culturas de onde se origina a palavra "xamã". Nestas culturas, xamanismo era sinônimo do uso do Amanita e o conhecimento de suas propriedades psicoativas eram bem conhecidos em toda esta região do mundo. Portanto a influência do uso xamânico do Amanita no Cristianismo não deveria necessariamente surpreender, mas o argumento de que Jesus é o Amanita, e não um personagem histórico, é provavelmente surpresa para muitos.

O filme faz uma argumentação convincente para esta conexão entre Jesus e o Amanita, e mesmo com os cogumelos psilocibe, através da apresentação do simbolismo Católico, iconografia e imagens. Quando se olha cuidadosamente para a Igreja Católica, o simbolismo do Amanita parece abundante, das roupas dos Papas e cardinais até afrescos, arcos de passagem e arquitetura de igrejas. Mesmo os mitos, como do Santo Graal, parecem cair na categoria de simbolismo do amanita. Realmente, quando as imagens são apresentadas desta maneira, a comparação com o amanita se torna imediatamente óbvia e difícil de desbancar.

Mesmo Papai Noel recebe o tratamento amanita neste filme. Aqui o elfo bom velhinho é apresentado no contexto do xamanismo do norte europeu, onde, de acordo com a tradição, o xamã secava seus amanitas em um pinheiro e depois visitava os yurts de sua comunidade, entrando pelo buraco para fumaça trazendo de presente para as pessoas cogumelos sagrados. Não é muito estender esta visão para perceber que estes xamãs que passeavam com renas foram o modelo icônico para o velho gordo Noel vestido de vermelho e branco, ele mesmo parecendo muito com o amanita.

O filme apresenta, adicionalmente à influência do xamanismo e de cogumelos psicoativos no Cristianismo, a relação entre astrologia e astronomia com o mito Cristão. Aqui os produtores fornecem argumentos convincentes para a correlação entre o mito Cristão e o céu no Solstício de inverno, incluindo as Eras Zodiacais, demonstrando graficamente como estes contos da estrela brilhante, os três reis, a morte e ressurreição de Jesus todos se encaixam com fatos previamente conhecidos do céu noturno e a mudança das estações.

Por fim, a Inquisição Farmacrática desafia muitos dos pressupostos e crenças que podemos ter sobre o Cristianismo e suas figuras centrais, mostrando evidências provocativas de que as coisas não são como parecem nesta tradição. Se for verdade, a pergunta que vem é: Será que a Igreja Católica ainda usa o amanita secretamente nos confins do Vaticano? Estariam eles realmente escondendo esta verdade fundamental por dois milênios, ou eles mesmos passaram a acreditar nos mitos que foram criados para comunicar e esconder a verdadeira identidade de Jesus Cristo? Assista este filme e tome sua decisão."



sábado, 17 de abril de 2010

Observações Sobre as Tendências Religiosas




Por: Gary Snyder



É bom lembrar que todas as religiões contêm noventa por cento de fraude e são responsáveis por numerosos males sociais. Mesmo assim, dentro da geração beat verifica-se a existência de três tendências:

1. Busca da visão e da iluminação. Esse resultado é obtido geralmente pelo uso sistemático de drogas. A marijuana é um recurso de consumo diário e o peiote é o verdadeiro estimulante da percepção. Tanto um como o outro são complementados às vezes por práticas iogues, álcool ou similares. Embora uma boa parte de auto-consciência possa ser obtida pelo uso inteligente das drogas, o hábito de "drogar-se" não conduz a nada porque falta exatamente inteligência, vontade e compreensão. Uma sensação puramente pessoal, obtida às custas de um tóxico, não beneficia ninguém.

2. Amor, respeito à vida, abandono, Whitman, pacifismo, anarquismo, etc. Todas essas tendências são provenientes de inúmeras tradições, entre as quais a religião Quakers, o Budismo Shinshu, o Sufismo, etc. Todas são frutos de um coração generoso e apaixonado. Em suas manifestações mais dignas, essas tendências levaram algumas pessoas a condenarem ativamente as guerras, fundar comunidades e amarem-se umas às outras. Em parte, elas também são responsáveis pela mística dos "anjos", a glorificação das viagens a pé e das caronas, bem como por uma forma de entusiasmo inconsciente. Se respeitam a vida, não respeitam a sabedoria da impassibilidade e a morte. E essa é uma de suas falhas.

3. Disciplina, estética e tradição. Essas tendências são bem anteriores ao surgimento oficial da geração beat. Diferenciam-se da doutrina "Tudo é um" na medida em que seus praticantes estabeleceram uma religião tradicional, tentaram incorporar o sentimento de sua arte e de sua história, e praticam qualquer ascese que for necessária. Uma pessoa pode tornar-se um dançarino aimu ou um xamã yurok, ou até mesmo um monge trapista, se ela realmente o deseja. O que falta nesse tópico, é o que os dois primeiros possuem, ou seja, uma existência perfeitamente adaptada à realidade do mundo e percepções realmente verdadeiras do inconsciente.

A conclusão prosaica é a seguinte: se uma pessoa não for capaz de compreender todos esses aspectos - contemplação (que não seja pelo uso de drogas), moralidade (que para mim significa protesto social) e sabedoria - ela não estará à altura de levar uma autêntica vida beat. Mesmo assim, poderá ir bastante longe nessa direção, o que é preferível que ficar rodando pelas salas de aula ou escrever tratados sobre o budismo e a felicidade das massas, como os caretas fazem com tanto sucesso.





extraído de: Protopia - Texto do Gary Snyder



Fonte: Blog Epifenomenologia


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A experiência mística entre êxtases e ''transe''





O corpo do soberano: nas sociedades tradicionais, o líder tem algo que o torna diferente dos outros. Um arcaísmo que voltou a irromper nas nossas democracias.

Publicamos aqui o artigo de Marino Niola, antropólogo da contemporaneidade italiano e professor da Università degli Studi Suor Orsola Benincasa, de Nápoles, na Itália, publicado no jornal La Repubblica, 13-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Se o poder é uma espécie de possessão, então a política é uma espécie de transe. Um curto-circuito estático entre o carisma de um líder e a exaltação de uma multidão que saiu fora de si. Essa é a forma elementar da política, em que o poder surge diretamente do corpo do chefe, dos espíritos animais do domínio. Que, nas sociedades tradicionais, se revelam no ritual remoto do transe, em que o líder encarna aquele poder irresistível que o torna outro, diferente dos comuns mortais e o faz ultrapassar a soleira da humanidade colocando-o entre a ferocidade da fera e a onipotência do deus.

Essa paisagem antropológica tão arcaica parece pertencer a um passado já distante, porém, surpreendentemente, volta a irromper nas nossas democracias maduras. Em formas novas, naturalmente, mas que ainda conservam uma estreita ligação entre poder e transe, herança de uma história social e biológica esquecida que continua, porém, totalmente inscrita no nosso genoma político. Com a diferença de que, há muito tempo, os ritos do poder tinham a ver com o corpo físico do chefe, enquanto hoje o que está em primeiro plano é o seu simulacro midiático.

Quem o afirma é o antropólogo belga L uc de Heusch, seguidor de Claude Lévi-Strauss e, como ele, estruturalista fervente e surrealista de primeira hora, em um livro recém publicado, cujo título "Con gli spiriti in corpo. Transe, estasi, follia d'amore" [Com os espíritos no corpo. Transe, êxtases, loucura de amor] já anuncia o programa do autor (Ed. Bollati Boringhieri, 227 páginas).

Uma sugestiva viagem através do êxtase e do transe em busca daquele fundo primitivo que resta dentro da nossa civilização. Partindo das monarquias africanas com os seus espetaculares cerimoniais surpreendentemente próximos de dramas shakespearianos. Nos quais a essência da soberania se mostra em toda a sua plenitude justamente quando, no corpo do rei em transe, revelam-se as forças obscuras do poder: a violência, a transgress� �o sexual, a promiscuidade.

Em alguns casos, o rito coloca em cena até o parricídio e o incesto com uma sequência edípica que teria feito a felicidade de Freud. Por meio do espetáculo da degeneração monstruosa do líder, a sociedade coloca em cena, portanto, os seus aspectos mais inconfessáveis, tudo o que não se pode fazer e que, pelo contrário, o poder faz. E justamente isso ele torna objeto de execração e ao mesmo tempo de admiração.

O transe aparece, portanto, como um sismógrafo das forças que se combatem no homem e na sociedade. Uma transição escrita sobre o corpo alterado e mutante do soberano que reflete simbolicamente as incógnitas e os perigos de uma transformação social fora de controle. Mas também, como ocorre hoje, as insídias de uma sedução exercida pelo líder que rapta a a lma do povo em um êxtase multitudinário. Em uma relação de fusão em que qualquer um se perde no outro. Em uma experiência de perda e alteração de si muito semelhante à transe. Assim como o significado literal da palavra seduzir que é o de desviar, mandar para fora.

Hoje, o chefe carismático é o que satisfaz o desejo dos seus eleitores de serem seduzidos. E estabelece uma relação direta com o seu povo, que passa por meio da contínua visibilidade do seu corpo. Assim, o fio que une estética, erótica e política aparece em toda a sua força vital, uma força quase animal. O chefe político na civilização comunicante move-se justamente como o macho dominante dos chipanzés que tem necessidade de estar constantemente sob os olhos absortos do bando, transformando, porém, o olhar físico em contemplação televisiva, a distância real em ilusória familiaridade.

O grande enigma da história contemporânea, conclui De Heusch, é justamente o retorno efetivo e sempre mais opressor do macho dominante, mas nas formas híbridas do presente que transformam a antiga relação física entre poder e potência, entre supremacia social e domínio sexual sobre as mulheres do grupo em um hiperbólico "jus primae noctis" midiático. De forma a dizer que, hoje, mais do que nunca, a política está entre a sedução e a possessão.



quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A Filosofia Perene de Frithjof Schuon



Frithjof Schuon (Basiléia, 18 de junho de 1907 — Bloomington, 5 de maio de 1998) foi um metafísico, filósofo das religiões, poeta e pintor, principal porta-voz da Filosofia Perene, juntamente com René Guénon.

Nascido na Suíça alemã, Frithjof Schuon se estabeleceu em Paris na juventude, onde exerceu seu ofício de desenhista têxtil. De perfil filosófico e espiritual, absorveu jovem ainda as obras de Platão e do Vedanta indiano, interessando-se ao mesmo tempo pela sabedoria mística e esotérica das grandes religiões mundiais, especialmente Cristianismo, Islã e Budismo.

Leitor do metafísico francês René Guénon, ele viajou ao Cairo em 1938 e em 1939 para conhecê-lo pessoalmente. No Magrebe, buscou o conhecimento espiritual dos mestres sufis, tendo contatado especialmente a tarica (confraria mística) do celebrado mestre sufi Ahmad al-Alawi.

Após a Segunda Grande Guerra, Schuon, então residente em Lausanne, empreendeu diversas viagens internacionais, com o objetivo de contatar autoridades espirituais das diversas tradições e recolher material para seus livros. Visitou a Índia, o Egito, o Marrocos, Grécia, Espanha e as planícies da América do Norte, para travar contato direto com o patrimônio espiritual dos índios. Sua via espiritual, centrada na "religio perennis", difundiu-se ao longo das últimas décadas pela Europa, América do Norte, América do Sul e Ásia.

Frithjof Schuon faleceu em 5 de maio de 1998 em Bloomington, Indiana, EUA, para onde havia emigrado em 1980.

A Filosofia Perene

A idéia central da Filosofia Perene exposta por Schuon e Guénon é que a verdade metafísica fundamental é simultaneamente universal e perene, não pertencendo a nenhuma religião em particular. As diversas religiões mundiais expõem esta Verdade una segundo suas linguagens próprias.

Esta Verdade com "V" maiúsculo é como a luz incolor, e as religiões históricas (Cristianismo, Islã, Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, Taoísmo, Confucionismo) são como as várias cores do espectro. O Cristianismo, por exemplo, transmite a "luz incolor" da Verdade fundamental através de um vidro "vermelho". O Islã, mediante a lente "verde". O Hinduísmo pelo vidro "amarelo", e assim por diante.

A Filosofia Perene certamente não se pretende uma "nova religião", destinada a substituir as religiões tradicionais, nem é uma “super religião”, que as fundiria num único organismo. Para ela, a Verdade é veiculada de “formas” diferentes pelas distintas religiões mundiais e milenares (a antigüidade e a universalidade funcionam como legitimadoras das tradições). Ou seja, a doutrina metafísica de Cristianismo, Islã, Hinduísmo etc sobre o Absoluto, Deus, o homem e o pós-vida, por exemplo, é convergente. Mas seus dogmas, rituais e moralidade são distintos.

A Filosofia Perene não sustenta que todas as religiões são iguais, como parece dizer um ecumenismo tão fácil como superficial. Ela diz justamente o contrário, ou seja, que a razão de ser destas distintas tradições é veicular a Verdade una para povos e épocas específicas. Isto é, a Verdade perene e universal está além das formas, é supra-formal, enquanto as religiões exteriorizam esta Verdade una segundo seus modos específicos.

A idéia histórica da Filosofia Perene existe desde a época do Renascimento (séculos XV e XVI), mas ela passou a se tornar mais conhecida no Ocidente no início do século XX, graças às obras do francês René Guénon (1886-1951), do indiano Ananda Coomaraswamy (1877-1947); do suíço-alemão Titus Burckhardt (1908-1984) e, sobretudo, de Schuon. É preciso mencionar também o livro de Aldous Huxley, The Perennial Philosophy, de (1945), apesar da perspectiva de Huxley ser mais literária do que propriamente espiritual.

Vida

Frithjof Schuon nasceu numa família católica alemã. Seu pai era violinista da Orquestra Sinfônica de Basiléia (Suíça) e professor no conservatório local. Seu único irmão foi ordenado sacerdote católico e se tornou monge da Trapa, a ordem mais rigorosa do Catolicismo.

Ao longo de sua vida, Schuon fez diversas viagens internacionais, com o fim de contatar autoridades espirituais das diferentes religiões e recolher material para seus livros.

Esteve várias vezes no Magrebe (nas décadas de 1920 e 1930, onde conviveu com o célebre cheikh sufi Ahmad al-Alawi, um dos grandes místicos do Islã no século XX); no Egito (em 1938 e 1939, onde se encontrou com René Guénon e Martin Lings); na Índia (em 1939); na Turquia; na Grécia; no Marrocos e em boa parte da Europa ocidental.

Na década de 1960, visitou seus amigos índios, das tribos Sioux e Crow, nos Estados Unidos. Como resultado, escreveu o estimulante volume sobre a civilização Pele-Vermelha, "The Plain Indians in Art and Philosophy" ("Os índios das planícies na arte na filosofia"), que contém, além de penetrantes ensaios sobre a religião e a sabedoria índia, suas impressionantes pinturas de mesma temática.

Nos Estados Unidos, onde passou a viver a partir de 1981, em uma chácara no Meio-Oeste, Frithjof Schuon escreveu seus últimos livros de ensaios, como Sur les traces de la Religion pérenne (1982); Approches du phénomène religieux (1984); Résumé de métaphysique intégrale (1985); Avoir un centre (1988); Racines de la condition humaine(1990); Les Perles du pèlerin (1991); Le Jeu des Masques (1992); e La Transfiguration de l’Homme (1995).

Nos três últimos anos de vida, escreveu mais de três mil poemas breves em alemão; esta impactante obra traduz em linguagem literária e direta sua mensagem global.

Frithjof Schuon morreu em sua casa, em 5 de maio de 1998.

Obra

Frithjof Schuon é autor de uma obra singular e original, única no mundo contemporâneo ao reunir exposição da verdade metafísica compartilhada por todas as grandes religiões mundiais, guiamento espiritual profundo e crítica da mentalidade relativista e materialista da modernidade. Além disso, foi um poeta inspirado, autor de diversos livros de poesia, e artista plástico original. Segundo o autor brasileiro Mateus Soares de Azevedo, ele é o Platão de nossa época, e até um pouco mais.

Schuon escreveu mais de vinte livros de metafísica, filosofia das religiões, espiritualidade, arte e cultura tradicional (ver lista abaixo). O primeiro deles expõe uma de suas idéias fundamentais, a da unidade transcendente das religiões. "Tesouros do Budismo" expõe a essência da religião do Buda, vista sob a luz universalista da filosofia perene. O mesmo se dá, mutatis mutandis, com o Hinduísmo ("Langage of the Self"); com o Islã ("Para Compreender o Islã") e com o Cristianismo ("Christianisme/Islam").

De acordo com o autor australiano Harry Oldmeadow, "a obra de Schuon forma um corpo imponente e abrange uma espantosa variedade de religiões e assuntos metafísicos, sem quaisquer superficialidades e simplificações que se esperaria de um autor cobrindo terreno tão vasto" (Em: Sophia-The Journal of Tradicional Studies. Volume 4, Nº2, 1998. Reproduzido em português em Sabedoria Perene: http://sabedoriaperene.blogspot.com/2009/02/um-sabio-para-os-tempos-o-papel-e-obra.html)

A maioria dos livros já foi traduzida para as principais línguas do mundo, como inglês, espanhol, alemão, italiano, russo e árabe. Suas obras em Português são os seguintes:

"A Transfiguração do Homem"(São José dos Campos, 2009. Tradução de Alberto V. Queiroz.)

"Para Compreender o Islã" (Rio de Janeiro, 2006. Tradução e introdução de M. Soares de Azevedo)

"O Homem no Universo" (São Paulo, 2001. Tradução e introdução de M. Soares de Azevedo e Alberto Queiroz)

"O Sentido das Raças" (São Paulo, 2002. Tradução de Alberto Queiroz e Sérgio Sampaio e introdução de M.Soares de Azevedo)

"O Esoterismo como princípio e como Caminho" (São Paulo, 1995)

"A Unidade Transcendente das Religiões" (Lisboa, 1989)

Há ainda uma antologia intitulada "Islã: O credo é a conduta" (Rio de Janeiro, 1990, organizada por Roberto Bartholo e Arminda Campos) em que Schuon é o principal colaborador.

Poesia

Nos derradeiros anos de vida, Schuon escreveu mais de três mil poemas relativamente breves, em alemão. Uma seleção desses poemas foi logo publicada pela editora alemã Herder, em quatro pequenos volumes intitulados Glück, Leben, Sinn e Liebe (Felicidade, Vida, Sentido e Amor). Posteriormente, a editora suíça Les Sept Flèches iniciou a publicação da obra integral numa edição bilíngue em alemão e francês, terminada recentemente com o lançamento do décimo volume. Os poemas sintetizam numa linguagem direta suas visões filosóficas; são como uma suma metafísica e espiritual de toda a rica mensagem schuoniana para o homem contemporâneo.

Em termos de conteúdo, como escreveu William Stoddart na revista perenialista brasileira Religio Perennis, "os poemas alemães de Frithjof Schuon são similares aos de sua coleção inglesa Road to the Heart (1995), mas eles são muito mais numerosos, e o conjunto de imagens, muito mais rico e poderoso. Os poemas abrangem todo aspecto possível da doutrina metafísica, do método espiritual, das virtudes espirituais e do papel e função da beleza. Eles exprimem toda subtileza concebível de conselhos espirituais e morais — e isso não apenas em termos gerais, mas com excepcionais intimidade, detalhe e precisão. Eles exibem incrível agudeza, profundidade, abrangência e compaixão."

"Alguns poemas, prossegue Stoddart, são autobiográficos, com reminiscências de lugares em que Schuon viveu ou que ele visitou: Basiléia e Paris, as ruas de contos de fadas de velhas cidades alemãs, o Marrocos e a Andaluzia, a Turquia e a Grécia, o Oeste norte-americano. Outros evocam o gênio de certos povos, como os hindus, os japoneses, os árabes, os peles-vermelhas, e também os cossacos e os ciganos. Outros ainda elucidam o papel da música, da dança e da própria poesia. Em um ou dois poemas, o mundo moderno ateu é o tema de um comentário mordaz e por vezes duramente jocoso.

O prêmio Nobel de Literatura T. S. Eliot disse o seguinte acerca da primeira obra de Schuon ("A Unidade Transcendente das Religiões"):

É o livro mais impressionante sobre as religiões do Oriente e do Ocidente que eu já li.



Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frithjof_Schuon

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Hinduísmo e a busca pelo moksa


Entrevista especial com Klaus Klostermaier


“A noção hindu de dharma é muito mais abrangente que o termo ocidental ‘religião’. Seu significado implica ‘modo de viver’ (...) e deve expressar a ordem natural das coisas”, esclarece Klaus Klostermaier, pesquisador de Hinduísmo e história indiana, à IHU On-Line, por e-mail. Na entrevista a seguir, ele explica que o hinduísmo é politeísta, mas os hindus são monoteístas. De acordo com o professor, as escrituras falam de 330 milhões de deuses, mas cada hindu escolhe seu próprio istadevata, ou seja, seu deus. “As principais religiões hindus como vaisnavismo, saivismo e saktismo adoram o mesmo deus sob diferentes nomes. Mas todos concordam em que somente existe um único principio último: o Criador Mantenedor e Destruidor do Universo”, enfatiza.

Os aproximadamente 900 milhões de hindus, menciona o pesquisador, mantêm diferentes atitudes em relação ao hinduísmo: “desde a identificação total até a rejeição completa”. Mas em comparação com a Europa Cristã, informa, “a Índia hindu continua sendo muito religiosa”.

Ao comentar o sentido de tradições antigas como o hinduísmo, que existe há mais de 6000 anos, e sua relevância no mundo pós-moderno, Klaus Klostermaier é enfático: “acredito que já estamos entrando num pós-pós-modernismo”. E explica: “Muitos estão buscando a religião da pessoa pensante, não crença cega ou devoção tradicional. Mestres espirituais de todas as origens encontram grandes audiências hoje em dia, quase que por toda a parte”.

Klaus Klostermaier é doutor em Filosofia pela Gregoriana de Roma e atualmente professor de Estudo das Religiões na University of Manitoba . Entre sua produção bibliográfica, destacamos Hinduism: A Beginner's Guide (2008); Hindu Writings: A Short Introduction to the Major Sources (2001); A Survey of Hinduism (3rd ed. 2007) e Hindu and Christian in Vridaban.

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Quais aspectos históricos caracterizam o aparecimento do hinduísmo e sua permanência no Oriente ao longo dos séculos?

Klaus Klostermaier -
Hinduísmo é o nome de uma grande variedade de diferentes religiões que surgiram na Índia no decorrer de um tempo muito longo, possivelmente mais de 6000 anos. O elemento comum, teoricamente, é a aceitação do Veda como texto revelado. O termo “hinduísmo” como designação para religiões indianas foi uma invenção de estrangeiros. Os próprios hindus tinham chamado sua religião de vaidika dharma (dispensa [ou ministração] védica) ou sanatana dharma (dispensa eterna). A noção hindu de dharma é muito mais abrangente que o termo ocidental “religião”. Seu significado implica “modo de viver” e não depende de um fundador histórico, mas deve expressar a ordem natural das coisas. Vir Sarvarkar, nacionalista hindu do séc. XX, definiu a pessoa hindu como alguém cuja Terra Santa é a Índia. Os hindus consideram os rios, as montanhas e os mares da Índia como sagrados, e, por toda a Índia, há um grande número de cidades santas que são a meta de milhões de peregrinos. O estreito vínculo do hinduísmo com a geografia e natureza da Índia é uma das razões para sua resistência face aos numerosos desafios vindos de fora. O hinduísmo é parte integrante da história e cultura da Índia.

IHU On-Line — Os indianos continuam observando o sistema de castas? Como é a percepção dessa divisão social? Ela gerou grandes desigualdades entre os cidadãos?

Klaus Klostermaier -
Casta é um assunto muito complexo. Nas escrituras hindus, ela é descrita como uma divisão da humanidade, implantada bem no início do mundo, pelo Criador. Ao longo de toda a história conhecida da Índia, ela foi um fator importante: os brâmanes, a casta mais elevada, controlavam as escrituras e rituais religiosos, xátrias eram os governantes e comandantes militares, vaixás, os comerciantes e negociantes, e sudras, os trabalhadores. Havia grande número de "excluídos" ["outcastes", párias] e tecnicamente estavam fora da lei que regulava a sociedade de castas. A pessoa se tornava um pária ao violar regulamentos de casta, por exemplo, ao negligenciar rituais ou deixar de seguir as regras da própria casta. As quatro “castas” (varnas) mencionadas acima se dividiam em cerca de três mil jatis (linhagens de nas cença), que são de grande importância prática principalmente em conexão com o casamento. Na Índia de hoje, a divisão entre as castas não é tão evidente como costumava ser. Os brâmanes podem ser homens de negócio ou produtores rurais, e sudras podem ocupar posições elevadas no governo. Mas, socialmente, os jatis continuam muito importantes, principalmente no contexto do casamento. Isto vale também para cristãos indianos! Basta uma olhada nos anúncios matrimoniais nos jornais locais. A desigualdade baseada na casta veio à tona principalmente entre as pessoas pertencentes a uma casta e as sem casta. Os chamados Dalits (“gente oprimida”), que se organizaram politicamente faz pouco tempo, eram originalmente excluídos, e agora estão se revoltando contra uma sociedade dominada pela casta. A constituição indiana proibiu desqualificações baseadas no fato de a pessoa não ter casta, mas nã o aboliu as castas em si. Mahatma Gandhi lutou pelos direitos dos excluídos, mas insistiu em preservar a sociedade de castas. Ele ficou muito indignado com o Dr. Ambedkar (que era um excluído que veio a ser conhecido advogado), quando este, em protesto contra o sistema de castas hindu, se converteu para o budismo e levou junto consigo milhões de outros excluídos, que, atualmente, formam a comunidade neobudista na Índia.

IHU On-Line — Para os Cristãos, no ocidente, naturalmente, há um Deus. Enquanto isso, persiste, entre os indianos, a crença em diversos deuses. Como o senhor caracterizaria a espiritualidade e a divindade no hinduísmo?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo é politeísta, ao passo que os hindus são monoteístas. Enquanto as escrituras do hinduísmo falam de 330 milhões de deuses, cada hindu escolhe seu próprio istadevata, isto é, a forma na qual adoram a Deus. Todos os teólogos hindus insistem na unicidade de Deus. O termo deva, geralmente traduzido como “deus”, na verdade significa um tipo de poder maior. As principais religiões hindus como vaisnavismo, saivismo e saktismo adoram o mesmo deus sob diferentes nomes. Mas todos concordam em que somente existe um único principio último: o Criador Mantenedor e Destruidor do Universo. Como já dizia o Veda: “O principio supremo é um único, as pessoas o chamam por nomes diferentes”.

IHU On-Line — Quais as características do vaisnavismo, e por que é considerado o maior segmento do hinduísmo moderno?

Klaus Klostermaier –
Numericamente, o vaisnavismo é o maior segmento do hinduísmo. Cerca de 70% dos hindus são vaisnavas. O vaisnavismo em si é subdividido num grande número de sampradayas (tradições de culto). Sua característica é o culto de Vixnu como Criador, Preservador e Redentor. Algumas escrituras do vaisnavismo, como o Bhagavad Gita e o Bhagavata Purana, são amplamente aceitas por todos os hindus (e até mesmo não-hindus) como inspiradas (inspirational). Alguns dos lugares mais populares de romaria na Índia (Tirupati, Srirangam, Puri, Mathura-Vrindaban, Dwarka, Vixnu-Kanci e outros) são centros vaisnava visitados por milhões todos os anos.

IHU On-Line — Quais paralelos o senhor reconhece entre cristianismo e vaisnavismo?

Klaus Klostermaier -
Os paralelos são bem numerosos. Ambas são religiões da graça e ambas enfatizam o amor de Deus (bhakti) como objetivo supremo. Na Bengala Krishna, é chamado Kristo. Há imagens de Yasoda (mãe de criação de Krishna) e Krishna, as quais poderiam com facilidade ser consideradas imagens de Maria com o menino Jesus. Ambas as religiões enfatizam a vida de moralidade e são contra os extremos do ascetismo. Muitos santos vaisnava poderiam facilmente ser considerados santos cristãos, e vice e versa.

IHU On-Line — O que caracteriza as mitologias e filosofias de salvação nas tradições religiosas da Índia?

Klaus Klostermaier -
Este é um tópico vastíssimo que não pode ser respondido em um parágrafo. Escrevi todo um livro sobre Mitologias e Filosofias de Salvação nas Tradições Teístas da Índia (Wilfried Laurier Press, 1984), no qual tentei resumir a extensa literatura hindu sobre este tópico. Numa casca de noz: todas descrevem a condição humana natural como insatisfatória e carente de salvação. Elas também concordam em que Deus deseja o melhor para todas as pessoas e interfere de muitas maneiras em suas vidas com o objetivo de salvá-las. Elas também descrevem a condição última das pessoas libertas como sendo de extrema felicidade [bliss] na presença de Deus. Os sistemas filosóficos indianos esboçam modos de salvação e especificam os meios necessários para atingir moksa (libertação última).

IHU On-Line — A Ásia se caracteriza pela diversidade das religiões. Como o hinduísmo se relaciona com outras tradições religiosas orientais como, é claro, a chinesa?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo é tipicamente indiano e praticamente não há paralelos entre o hinduísmo, o taoísmo e o confucionismo. O budismo começou na Índia e se tornou uma das principais religiões da China, mas os elementos típicos do hinduísmo não foram transmitidos para a China. O hinduísmo foi “exportado” para a Indonésia e para a Indochina no início da Idade Média por meio de colonizadores e invasores que fundaram reinos nesses países. A maioria dos outrora famosos templos hindus nessas regiões, atualmente, está em ruínas, e o hinduísmo foi suplantado por outras religiões (budismo, islamismo).

IHU On-Line — Que influência exercem os deuses e a religião hindus na vida dos indianos? Como é que as suas crenças conformam a ética e os princípios indianos?

Klaus Klostermaier -
Entre os 900 milhões de hindus, pode-se encontrar as mais diferentes atitudes em relação ao hinduísmo: desde a identificação total até a rejeição completa. De um modo geral, grande percentual dos hindus observa práticas religiosas visitando templos, orando, prestando culto etc. Em muitos lares hindus, um cômodo (ou parte de um cômodo) fica reservado para a imagem de uma divindade, sendo a adoração diária diante da mesma muito comum ainda hoje. Em comparação com a Europa cristã, a Índia hindu continua sendo muito religiosa. Símbolos hindus podem ser encontrados por toda a parte, e milhões de hindus, em qualquer época do ano, estão peregrinando para alguma das numerosas cidades santas. Há milhões de sadhus hindus (“gente santa” que deixou suas famílias por razões religiosas) e, por toda a parte, gozam de grande respeito. Festas hindus são celebradas com grande participação popular, com a declamação e encenação de livros sagrados como o Ramayana são muito comuns. (Uma produção de TV sobre o Ramayana foi assistida por centenas de milhões na Índia, que consideraram o ato de assistir uma espécie de culto.) A ética hindu tradicional continua sendo a espinha dorsal da moralidade indiana. Grande número de pregadores hindus populares promove reuniões públicas onde explicam e inculcam a ética do Bhagavadgita.

IHU On-Line — Qual é a preocupação do hinduísmo em relação ao ser humano moderno? Neste sentido, que contribuições a religião pode oferecer neste momento de crise global (crise de valores, econômica, ambiental, ética)?

Klaus Klostermaier -
O hinduísmo contemporâneo cobre imenso espectro de atitudes para com a modernidade (ocidental). Há hindus extremamente conservadores bem como progressistas, e toda a escala entre um e outro. De um modo geral, os hindus se adaptaram de modo relativamente rápido à boa parte daquilo que é considerado “moderno”. Não é por acaso que hoje em dia os indianos lideram muitas áreas da tecnologia da informação. Alguns hindus tentam, de modo bastante explícito, aplicar os princípios do hinduísmo às práticas de negócio modernas. Também há numerosos ambientalistas e economistas hindus. De um modo geral, os indianos tentam resolver as diversas crises mencionadas, apelando para princípios indianos (hindus).

IHU On-Line — Para o teólogo alemão Hans Küng, existe um principio que pode ser encontrado em muitas tradições religiosas e éticas da humanidade: não faça aos outros o que você não quer que eles façam a você (ou, em termos positivos, faça aos outros o que você quer que lhe façam). O senhor também considera que este pode ser um princípio, uma norma incondicional entre as nações e as religiões?

Klaus Klostermaier -
A máxima mencionada, que é a “regra de ouro”, é menos um princípio religioso que uma expressão de sabedoria profana. Naturalmente, também pode ser encontrada no hinduísmo. Trata-se de um requisito mínimo para a paz social (e também para a paz internacional): sua violação seria tola e contraproducente.

IHU On-Line — O senhor concorda com a ideia de que estamos entrando numa sociedade pós-metafísica? Neste sentido, qual é o papel das religiões e especialmente do hinduísmo?

Klaus Klostermaier -
Você provavelmente está se referindo ao que se chama de “pós-modernismo”, que é uma mistura de cientificismo, freudismo e marxismo. Não o tenho em grande consideração e acredito que já estamos entrando num pós-pós-modernismo. Há muitos sinais de que está despertando novamente o pensamento metafísico entre os cientistas mais avançados, especialmente os físicos. Eu poderia citar com facilidade uma dúzia de livros recentes para embasar esta afirmação. A popularidade das numerosas facetas do hinduísmo no Ocidente, por exemplo, yoga, crença na transmigração etc. também é digna de nota. Muitos estão buscando a religião da pessoa pensante, não crença cega ou devoção tradicional. Mestres espirituais de todas as origens encontram grandes audiências hoje em dia, quase que por toda a parte. Observe, por exemplo, a popularidade do Dalai Lama. O pensamento metafísico indiano, por exemplo, Vedanta, tem grande potencial também para os dias de hoje.

IHU On-Line — O senhor gostaria de acrescentar alguma opinião sobre algo não perguntado?

Klaus Klostermaier -
Gostaria de acrescentar, a título de conclusão, um parágrafo do meu livro “Survey of Hinduism” [Visão Geral do Hinduísmo] (State University of New York Press, 2007, p. 454): “O hinduísmo, no passado e no presente, teve e tem suas deficiências. Ninguém pode ignorá-las. Mas ele sempre teve vitalidade e substância espiritual genuína o suficiente para compensá-las. Sua abertura para a realidade, seu caráter experimental e experiencial, suas intuições genuínas e seus sábios autênticos são uma garantia de que continuará crescendo e tendo relevância.”