segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Tolstoi





Publico a comunicação de José Milhazes na sessão realizada no Centro Cultural de Belém a propósito do centenário da morte de Lev (Leão) Tolstoi.

"Excelentíssimos senhores e amigos, começo por agradecer-vos pelo facto de terem vindo a esta reunião organizada pelo Centro Cultural de Belém.

Fui convidado a apresentar a esta reunião uma comunicação sobre um olhar de Leão Tolstoi sobre a Rússia, tarefa que rapidamente compreendi ser muito difícil, se não impossível, visto que o grande escritor e pensador russo não se preocupou apenas e não tanto dos problemas da sua pátria, mas de toda a Humanidade. As suas ideias filosóficas e morais visam melhorar a Humanidade em geral, e não apenas a Rússia em particular. O aperfeiçoamento moral e espiritual dos russos era, para Leão Tolstoi, parte integrante do aperfeiçoamento moral universal. É a ele que pertence a frase: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.

Tão paradoxais são as ideias do pensador, como iremos ver mais abaixo, como paradoxais são as atitudes das autoridades russas face a ele em diversas épocas.

Pode parecer inacreditável, mas é verdade: em 2008, na Rússia não foram praticamente celebrados os 180 anos do seu nascimento. Mais, nesse ano, por incrível que pareça, três tribunais russos consideraram algumas das suas ideias “extremistas”.

Tolstoi foi acusado de “atiçar a inimizade e ódio contra a religião”, o que fez ressuscitar a luta entre o escritor/pensador e a Igreja Ortodoxa da Rússia que terminou com a sua excomunhão.

Mas é preciso reconhecer que o centenário da sua morte não está a passar despercebido, bem pelo contrário. E simbólico é o facto de, ontem, ter reaberto ao público, depois de obras de restauro, a casa-museu de Tolstoi em Iassnaia Polan, ninho da nobreza onde o conde nasceu.



Na reviravolta moral e ética que irá ocorrer na vida de Tolstoi, sobre a qual nos debruçaremos mais abaixo, o pensador russo dedicou particular atenção ao Cristianismo como uma doutrina moral e as ideias éticas dessa religião são interpretadas por ele de um ponto de vista humanista, como a base da irmandade universal dos homens.

Isto levou-o a analisar o Evangelho e obras teológicas de um ponto de vista crítico, dando essa análise origem a obras como “Estudo da Teologia Dogmática”, “Em que consiste a minha fé” e “O Reino de Deus está dentro de nós”.

Essas e outras obras foram mal recebidas pela Igreja Ortodoxa Russa, pois ele questionava a dogmática cristã, negava a necessidade da existência do corpo clerical e criticava fortemente a aproximação da Igreja em relação ao Estado.

Aqui convém recordar que, desde a época de Pedro o Grande, no início do séc. XVIII e a revolução comunista de 1917, a Igreja Ortodoxa Russa, a mais numerosa no Império, dependia directamente do Governo russo através do Procurador do Santo Sínodo, ou seja, era dirigida por um funcionário leigo. Na era comunista, o Santo Sínodo foi substituído por um Comité Estatal para Assuntos Religiosos. Ou seja, a Igreja estava acorrentada e dominada pelo poder civil, o que era fortemente contestado não só por Tolstoi.

Essas críticas foram bem recebidas por uma parte significativa da intelectualidade russa, mas receberam fortes críticas da Igreja Ortodoxa e levaram a que o Santo Sínodo excomungasse Tolstoi em 1901.

Em 2006, Kirill I, actual Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia da Igreja Ortodoxa Russa, justificou da seguinte forma a excomunhão do escritor:

"Alguns consideram que a Igreja amaldiçoou o grande escritor, como se o tivesse injustamente ofendido. Não é nada disso. A Igreja apenas constatou o que realmente existia" - declarou o clérigo ortodoxo no programa televisivo "A Palavra do Pastor". Segundo ele, "a excomunhão é apenas a constatação do facto de que uma dada pessoa não pertence à Igreja, e isto é particularmente importante compreender no caso da história de Leão Tolstoi".

"O próprio escritor afastou-se da Igreja. E o que ele disse de Cristo, da Igreja, dos sacramentos mostra a sua rotura total com a Igreja" - sublinhou o futuro patriarca, acrescentando: "e visto que muitas pessoas estavam convencidas de que Leão Tolstoi, falando assim e continuando a ser um cristão ortodoxo, lançava grande confusão no seio da Igreja e na vida social".

Deve-se constatar também que tanto o regime czarista que governou a Rússia até 1917, como o regime comunista que ruiu em 1991, nunca ousaram pôr em causa a importância de Tolstoi enquanto escritor, mas levantavam sérias reservas face a Tolstoi enquanto pensador.

O dirigente comunista Vladimir Lénine, no artigo “Lev Tolstoi como espelho da revolução russa”, escrito a propósito da primeira revolução russa de 1905, sublinha, por um lado, o papel do escritor como um denunciador dos maiores males e chagas da sociedade capitalista, mas, por outro lado, considera-o a expressão do pensamento retrógrado dos camponeses russos.

Como é sabido, o pensamento de Leão Tolstoi mudou radicalmente durante a sua longa vida. Enquanto jovem, o seu comportamento pouco se distinguia do comportamento dos nobres russos da sua idade. Rafael Lowenfeld, escritor alemão, tradutor das obras de Tolstoi para a língua alemã e um dos seus primeiros biógrafos, escreveu: “Depois das privações de Sevastopol, onde Tolstoi combateu durante a Guerra da Crimeia, a vida da capital era duplamente encantadora para um jovem rico, alegre, impressionável e aberto. Tolstoi gastava dias inteiros e até noites em borracheiras, cartas e festas com ciganos”.

Segundo alguns estudiosos, o processo de revisão radical dos princípios étnicos e morais iniciou-se precisamente depois da sua participação na Guerra da Crimeia, em 1854, onde combateu heroicamente em Sevastopol. É esse o cenário das suas obras reunidas na colectânea “Contos de Sevastopol”.

Regressado a São Petersburgo, em Novembro de 1855, Tolstoi adere ao círculo literário Sovremennik, que reunia famosos homens das letras como Nekrassov, Turgueniev, Ostroksvi e Gontcharov. Ele é recebido como “a grande esperança da literatura russa”, participa em jantares e conferências, vê-se envolvido nas discussões e conflitos entre escritores, mas rapidamente se sente um estranho naquele meio. “Essas pessoas faziam-me enjoar, eu próprio estava enjoado comigo mesmo”, escreveu ele em “Confissões”.

A morte do irmão mais velho Nicolau, em 1860, é outro dos marcos importantes da transfiguração moral e ética do escritor, transfiguração essa que demorou cerca de 30 anos, durante os quais escreveu as mais conhecidas das suas obras “Guerra e Paz”, “Ana Karenina” e “Ressurreição”.

Este último romance é de extrema importância nessa transfiguração moral de Tolstoi, pois é uma espécie de confissão de um dos graves pecados da sua juventude. Dmitri Nekhliudov e Ekaterina Maslova têm protótipos na vida real. O escritor contou ao seu biógrafo Pavel Biriukov sobre os “crimes” que cometeu durante a juventude ao seduzir Gacha, criada de uma das suas irmãs: “ela era pura, eu seduzia-a, ela foi expulsa e perdeu-se”.

Durante essa travessia, Lev Tolstoi começa a preocupar-se cada vez mais com os problemas da Humanidade em geral, considerando que os problemas do seu país só poderiam ser resolvidos nesse contexto.

Não será exagero afirmar que o pensador Tolstoi apresentou soluções para os problemas da Rússia e do mundo nos finais do séc. XIX e início do séc. XX que continuam a ser radicais ainda hoje.

Tomemos, por exemplo, a ideia de Estado do pensador, expressa numa das suas últimas obras: “O caminho da vida”.

Não conhecendo pessoalmente, nem mantendo correspondência com Piotr Kropotkin, Lev Tolstoi tem do Estado uma opinião muito idêntica à de um dos pais do anarquismo. É próxima também a posição face à cidadania: “Não pode um homem que vive no Canadá ou no Kanzas, na Boémia, na Ucrânia, Normandia, ser livre enquanto se considerar, e frequentemente, ter orgulho em ser cidadão britânico, norte-americano, austríaco, russo. Não pode também o Governo, cuja vocação consiste em conservar a unidade de uma união tão impossível e sem sentido como a Rússia, Grã-Bretanha, Alemanha, França, dar aos seus cidadãos a verdadeira liberdade, nem algo semelhante a ela como é feito em todas as engenhosas constituições monárquicas, republicanas ou democráticas”.

Segundo ele, “a principal e quase única razão da ausência de liberdade é a pseudo-doutrina sobre a necessidade do Estado. As pessoas podem ser privadas da liberdade mesmo sem Estado. Mas não pode haver liberdade se as pessoas pertencerem ao Estado”.

E aqui não há excepções, nem para os estadistas mais bem intencionados. Tolstoi é peremptório: “Um estadista honesto e virtuoso é uma contradição interna tal como uma prostituta casta ou um alcoólico sóbrio”.

Quantos dos políticos actuais desmentem esta constatação do pensador russo? – pergunto eu.



Leão Tolstoi cita as palavras de Mikhail Bakunin, outro dos grandes ideólogos e teorizadores do anarquisno: “As mudanças que se colocam agora perante a Humanidade consistem na transição do estado animal para o humano. Esta transição só é possível com o desaparecimento do Estado”.

Mas, ao contrário dos teóricos do anarquismo, Tolstoi recusa liminarmente a violência como meio para acabar com o poder e até a existência do Estado.




Isto levou a que alguns dos estudiosos o coloquem entre os pais do anarquismo, mas, ao contrário dos anarquistas clássicos, Tolstoi vê o fim do Estado no estabelecimento daquilo a que chama o “verdadeiro cristianismo”. Por isso, o seu anarquismo é definido como “anarquismo cristão”.

“A doutrina cristã não prevê destruir nada, nem uma organização sua que substitua a anterior. A doutrina cristã distingue-se de todas as outras doutrinas sociais não porque ela fale de uma ou de outra organização da vida, mas em que consiste o mal e o verdadeiro bem da vida de cada pessoa e, por conseguinte, de todas as pessoas”.

No fundo, para Tolstoi, o Estado deixa de ter sentido de existência se as pessoas seguirem os princípios: “não faças ao outro o que não queres que te faça a ti”, “ama o próximo como a ti mesmo”.

No entanto, o seu “cristianismo” entrou em colisão com a igreja oficial na Rússia, pois, tal como no caso do Estado, o pensador russo não aceita uma igreja estruturada, organizada.

Esta forte contradição fez perder a paciência da Igreja oficial, no caso, a Igreja Ortodoxa Russa, que acabou por excomungar o pensador. Tolstoi não via nessa instituição religiosa a sucessora do Estado, mas o fim deste implicava também o desaparecimento da primeira, pois “a verdadeira fé não precisa de Igreja”. Como está bem explícito no título de um dos seus livros: “O Reino de Deus está em vós”.

Esta visão anti-Estado de Tolstoi prevê a negação de todas as instituições que o constituem e em que ele se baseia: a negação da propriedade privada, dos tribunais, do serviço militar e da violência em geral.

No caso da violência, tal como face ao Estado, Tolstoi recusa-a totalmente como meio de conseguir objectivos políticos, sociais e económicos. Numa das obras já citadas “O Reino de Deus está em vós”, o pensador expôs as bases da sua doutrina de não-violência e de resistência pacífica, que teve seguidores famosos como Mahatma Gandhi e Martin Luther King.

Neste sentido, as ideias do escritor russo aproximam-se também do Budismo, religião que ele conhecia muito bem e estudou profundamente.

“Uma das principais desgraças das pessoas é a concepção falsa de que umas pessoas podem, através da violência, melhorar, organizar a vida de outras pessoas”, escreveu Tolstoi no “Caminho da Vida”.

Palavras visionárias do pensador russo sobre os regimes ditatoriais: comunismo e fascismo, que marcaram o século XX.

Este poder de visão está bem patente na análise que Leão Tolstoi faz da Revolução Republicana de 1910 em Portugal.

O grande escritor e pensador russo, recebeu a notícia com alguma dose de humor.

Valentin Bulgakov, um dos secretários de Tolstoi, escreveu nas suas memórias: “Em Setembro (Outubro segundo o calendário gregoriano) rebentou a revolução em Portugal. Eu contei a Lev Nikolaevitch que, segundo as informações dos jornais, o rei português Manuel, depois de fugir do palácio, esteve duas horas escondido numa adega. Tolstoi observou a propósito: - As revoluções são inevitáveis nos Estados modernos. É como um incêndio, toda a Terra arderá... Chegará a hora e todos eles, esses reis, esconder-se-ão nas adegas!”.

Porém, ao analisar o carácter “relativamente pacífico da revolução em Portugal, Tolstoi assinalou: “No nosso país, se tal coisa acontecer, não terá lugar uma revolução portuguesa”.

Os posteriores acontecimentos na Rússia vieram dar-lhe razão. Em nome da construção de uma sociedade sem classes e de um futuro comunista sem Estado, Lénine, Trotski e Estaline transformaram o seu país num verdadeiro campo de concentração. “Tanto os estadistas como os revolucionários consideram justo e útil matar outras pessoas. Eles têm princípios segundo os quais pensam que podem saber quem é necessário precisamente matar para o bem comum”, sublinha Tolstoi.

Com ideias como estas, certamente que Tolstoi teria sido devorado pelo Moloque bolchevique ou cuspido do seu país, como foram expulsos centenas de cientistas, escritores, filósofos, etc.

Mas voltemos atrás, à medida que a idade vai avançando, o pensador vai radicalizando a sua posição de negação do mundo envolvente, não poupando nada, nem ninguém, incluindo a sua própria pessoa. É o período de obras como “A morte de Ivan Ilitch”, “A Sonata para Kreutzer”, o “Padre Sérgio”, o “Cadáver Vivo” ou o conto “Após o Baile”. Ao mesmo tempo que descreve um quadro da desigualdade social e do modo fútil como as camadas instruídas queimam a vida, Tolstoi continua a colocar perante si e perante a sociedade questões sobre o sentido da vida e da fé, intensifica as críticas a todos os institutos do Estado, nega a ciência, a arte, os tribunais, o casamento, os êxitos da civilização.

No Verão de 1909, um dos visitantes de Iassnaia Poliana, residência de Tolstoi nos arredores de Moscovo, começou a manifestar o seu entusiasmo e agradecimento pela escrita de obras como “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”. O escritor respondeu: “isso é o mesmo que ir visitar Edisson e dizer-lhe que o respeito muito porque dança bem mazurka”.

“Dou importância a outro tipo de livros”, acrescentou ele tendo em vista as suas obras de cariz filosófico e religioso.

Em obras suas de crítica cultural e estética: “Sobre a Arte”, “O que é a arte?”, “A escravidão do nosso tempo”, “De Sheakspeare e do drama”, Tolstoi faz uma crítica demolidora de génios como Dante, Rafael, Sheakspeare, Bethoven, etc., chegando à conclusão. “quanto mais nos entregamos à beleza, mais no afastamos do bem”.

Assim Tolstoi chega à renúncia total do que é material: “Tenho nojo da minha vida; sinto-me mergulhado nos pecados, logo que saio de um, entro noutro. Como emendar pelo menos um pouco a minha vida? Há um meio de todo eficaz: reconhecer a minha vida no espírito, e não no corpo, não participar em actos sujos da vida corporal. Se desejares isso de todo o coração, verás como a tua vida começará a emendar-se. A vida era má apenas porque a tua vida espiritual servia a vida corporal.

A sua filosofia e princípios morais, à medida que se iam radicalizando, acabavam por entrar em contradição com a própria vida real de Tolstoi e provocavam conflitos no seio da numerosa família. A sua negação da propriedade privada, por exemplo, foi uma das razões que o leva a romper com a família no fim da vida. Isso provocou forte descontentamento de vários membros da família, incluindo a esposa.

Recusando-se a seguir o princípio do “olha para o que digno, mas não para o que eu faço”, Tolstoi dá o último passo na ruptura com o mundo que o rodeia e abandona o lar e a família.

A sua fuga do lar no fim da vida parece ser a sua última tentativa de materializar as suas ideias, mas faltou tempo. Passou por alguns dos lugares mais sagrados da Ortodoxia russa, mas acabou por não se reconciliar com a igreja, como lhe pediam numerosos amigos.

A 20 de Novembro de 1910, Tolstoi falecia na pequena estação ferroviária de Astapov.

Não obstante as autoridades czaristas terem feito tudo para que o funeral de Tolstoi não se transformasse num acontecimento nacional, vários milhares de pessoas conseguiram chegar a Iassnaia Poliana, para participarem no seu funeral.

Talvez outro paradoxo. A julgar por alguns números, o seu legado intelectual é muito mais procurado fora do que dentro da Rússia. Por exemplo, se a livraria electrónica russa ozon – a maior do país - tem à venda menos de cem títulos de Tolstoi, sendo a maioria livros usados, na amazona.com, em inglês, poderemos encontrar mais de cinco mil títulos.

O sacerdote, filósofo e teólogo ortodoxo Alexandre Men, barbaramente assassinado nos anos 90 do séc. XX, escreveu: “Tolstoi continua a ser a voz da consciência. É a censura viva para aqueles que estão convencidos de que vivem em conformidade com os princípios morais”.

O ditado bem diz que “ninguém é profeta na sua própria terra”. No caso de Tolstoi, a palavra terra deve ser escrita com letra maiúscula, ser sinónimo de planeta.

Não poderia deixar de abordar, antes de terminar a minha comunicação, a Cimeira Rússia-NATO que se realizou ontem em Lisboa. Acho que a data não foi escolhida para que esse evento coincidisse com o dia do centenário da morte do grande pensador russo, mas o facto é que coincidiu.

Falou-se muito de guerra e de paz, talvez mais da primeira do que na segunda, mas o certo é que ouvi numerosas vezes os dirigentes de numerosos países a declarem até à exaustão que “a guerra fria terminou”. Ao conversar com um alto representante de um dos países membros da NATO, perguntei: “Terminou a guerra fria? Outra vez?”.

Ele olhou para mim e acrescentou: desta vez, parece mesmo que sim. Se assim for, e se as relações entre a Rússia e a NATO continuarem a evoluir no sentido da aproximação, da redução do vector militar e do aumento da vertente civil e humanitária na cooperação bilateral, então poderemos alimentar uma esperança muito ténue de que, pelo menos no Velho Continente, algum dos ideais de Tolstoi se concretize.

Obrigado pela atenção.