terça-feira, 13 de janeiro de 2009

A bioética versus o niilismo tecnocientífico



Niilismo tecnocientífico, holismo moral e a 'bioética global' de V. R. Potter


Por: Fermin Roland Schramm

(Professor da Escola Nacional da Saúde Pública da Fundação OswaldoCruz/Fiocruz)



Este ensaio enfoca as vicissitudes da moralidade contemporânea a partir de um duplo ponto de vista: seu questionamento radical devido à vigência do 'niilismo tecnocientífico', supostamente responsável por uma transformação inédita da condição humana, inclusive das suas referências valorativas e normativas; e a emergência da moral aplicada, conhecida como 'bioética', produto de uma concepção secular, pluralista e pós-universalista destas referências.
Enfoca, em particular, a primeira fase da bioética, conhecida como fase dos pioneiros' e representada pela proposta de 'ética global' de V. R. Potter, que pretendia estabelecer novas relações entre fatos científicos e valores morais. Argumenta que esta visão 'global', aplicada à moralidade, vem sendo recuperada atualmente pelas concepções holistas, que pretendem estabelecer uma nova aliança entre ciência e transcendência.


Introdução

Na era de vigência da assim chamada 'globalização' dos circuitos financeiros, das redes da informática e das tecnologias, da circulação de mercadorias e das formas de consumo, a bioética — versão contemporânea da ética aplicada aos avanços das ciências biomédicas (Toulmin, 1982), nascida no começo da década de 1970 nos Estados Unidos — parece estar também sujeita a um processo de reformulação.
A partir da década de 1990, a pertinência e a legitimidade da bioética estão praticamente reconhecidas, após duas décadas de acirrados debates acerca de seu estatuto epistemológico e metodológico, por um lado, de sua utilidade pública na resolução de dilemas morais relativos ao bem-estar humano e aos cuidados em saúde, por outro. Entretanto, no momento em que é reconhecida tanto pela Academia quanto por um público cada vez mais amplo, a bioética parece voltar-se também para suas origens (Reich, 1996), preocupando- se não apenas com sua pertinência disciplinar e legitimidade pública, mas também com sua história. Prova desta preocupação em resgatar suas raízes são algumas iniciativas retrospectivas promovidas a partir de 1990, como aquela de Corrado Viafora e da Fundação Lanza em Padova, Itália (Viafora, 1990), aquelas norte-americanas de Seattle, em 1992, e de Houston, em 1993 (Reich, 1994). Segundo Warren Thomas Reich (1978), primeiro editor da Encyclopedia of Bioethics, teria tido uma "dupla origem", a bioética, mas com uma "unidade de intenções", graças a seus dois 'pioneiros': o oncologista Van Rensselaer Potter e o neonatologista André Hellegers (idem, 1994; 1995; 1996).
Potter é hoje reconhecido como o criador do neologismo bioethics com o sentido amplo de 'ética da sobrevivência' e autor de uma concepção 'global' de bioética (Potter, 1990; 1988; 1970). Hellegers é considerado o responsável pela institucionalização do novo campo disciplinar da ética aplicada, concretizada com a fundação do Joseph and Rose Kennedy Institute for Study of Human Reproduction and Bioethics na Universidade de Georgetown, em 1971.
Mas, observa Reich (1995, pp. 20, 3D, esta "dupla" origem da bioética deve ser interpretada como uma identidade de intenções. De fato, contrariamente à interpretação a posteriori que opôs os programas dos dois pioneiros a partir do desen-volvimento ulterior da disciplina, durante o qual afirmou-se o "modelo Georgetown", nos primórdios da disciplina teria existido um mesmo tipo de projeto interdisciplinar e inovador no campo da moral, razão pela qual seria preciso "reunir os gêmeos que têm sido separados desde a nascença".
Esta interpretação da identidade de intenções parece pertinente se considerarmos a "transição paradigmática" entre modernidade e pós-modernidade que afeta atualmente vários campos do saber (Santos, 1994, p. 34), inclusive o campo da "ciência da moral" ou ética-, em particular, se considerarmos a tentativa de estabelecer uma "nova aliança" (Stengers e Prigogine, 1979) entre ciências naturais e ciências humanas.
Em outras palavras, pode-se dizer que a nova aliança pretende vincular teoricamente os 'fatos' tecnocientíficos e os Valores' humanos, tendo em vista alguma forma de controle prático sobre os novos poderes da tecnociência, e a fortiori da biotecnociência. Dessa forma, pretende-se responder aos anseios acerca dos possíveis abusos contra a dignidade humana e os direitos fundamentais, resultantes da aplicação indiscriminada das tecnologias biomédicas (Reich, 1996), fonte de novas formas de poder. A forma de tecnociência mais visada é a biotecnociência, devido aos seus possíveis efeitos daninhos a médio e longo prazo sobre a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, assim como de seus ambientes naturais.
Depois de analisar criticamente o niilismo tecnocientífico e os debates iniciais da bioética, este artigo pretende apresentar o programa de 'bioética global' de V. R. Potter que, ao propor o novo campo interdisciplinar da bioética, participava das preocupações ecológicas e das cosmovisões alternativas e holísticas, que marcaram fortemente a cultura ocidental das décadas de 1960 e 1970, inclusive a cultura moral. Desde seus primeiros escritos publicados sobre a nova problemática moral (que será conhecida desde então como 'bioética'), Potter integrara no seu projeto moral esta visão holista e ambientalista (e em parte religiosa) presente no ethos alternativo norte-americano. Mas a concepção holista perdeu terreno nas décadas de 1970 e 1980 dentro do movimento da bioética, devido ao afirmar-se daquilo que Reich chamou de "modelo Georgetown". Atualmente, contudo, parece adquirir novo fôlego graças, por um lado, à globalização dos problemas, sobretudo os ambientais; por outro, devido ao interesse público crescente pelos desdobramentos possíveis da aplicação das biotecnologias (engenharia genética, clonagem etc.) no âmbito da vida, em particular, da vida humana.
Nesta fase de transição paradigmática que afeta os vários domínios da existência humana, delineia-se uma abordagem complexa da realidade e estabelecem-se novas inter-relações entre o universo dos fatos tecnocientíficos e o universo dos valores morais. Novas relações transdisciplinares são estabelecidas entre várias concepções morais, pretendendo-se, com isso, superar qualquer forma de reducionismo e de simplificação, considerados inadequados e insuficientes para enfrentar eficazmente os problemas do homem contemporâneo, seus novos poderes, logo seus novos direitos e deveres para com o fenômeno da vida. Ao repropor a leitura da obra de Potter, nossa intenção é dupla. Em primeiro lugar, 'crítica', porque no atual estágio de reconfiguração disciplinar no contexto da 'nova aliança' entre fatos e valores, é útil resgatar as raízes historicamente relevantes da disciplina. Em segundo, 'moral', porque atribuir ao legítimo proprietário suas idéias e intenções é uma questão de justiça com seu autor e com os leitores, sobretudo quando, após um longo esquecimento, tais idéias parecem ressurgir em outros contextos discursivos e valorativos.
Começaremos por caracterizar o assim chamado 'niilismo tecnocientífico' e seus efeitos sobre a moral. Em seguida, abordaremos o surgimento e o desenvolvimento da bioética. Por último, apresentaremos a concepção 'global' de bioética de Potter.




O niilismo tecnocientífico e suas relações com a moral

Ao analisar a situação da ética contemporânea no contexto da tecnociência, o sociólogo alemão Niklas Luhmann definiu a ética como um "paradigma perdido" (1990) e um "postulado compensatório" (1991, p. 55), epifenômeno do relativismo que afeta todo o edifício dos saberes e dos valores, em particular, seus fundamentos legitimadores, inclusive os fundamentos da moral. Esta 'perda' dar-se-ia apesar dos indícios de crescimento da demanda por ética nos vários âmbitos da vida contemporânea, como aqueles que se questionam sobre os aspectos morais implicados pelas novas formas de poder resultantes do saber-fazer tecnocientífico aplicado aos sistemas vivos.




Niklas Luhmann


Luhmann (1984, p. 319) já afirmara que "a ética pode exigir que se observe a lei moral pela sua força intrínseca, ... mas esta extravagância parece ser mais um sintoma de crise do que um esclarecimento científico". Outro sociólogo alemão, Ulrich Beck, autor de um conceituado ensaio sobre o caráter estrutural do 'risco' nas sociedades industriais e pós-industriais (1992), chegou a caracterizar esta presumida 'extravagância' inútil da ética com uma metáfora, afirmando que, "no modelo das ciências que se tornaram autônomas, a ética tem o papel que teriam os freios de uma bicicleta aplicados a um avião intercontinental" (1988, p. 194). Os dois sociólogos detectam um aspecto certamente relevante da moralidade do mundo contemporâneo, isto é, a profunda transformação que esta vem sofrendo graças ao impacto do saberfazer tecnocientífico sobre os vários âmbitos da vida individual e coletiva. Na nossa avaliação, contudo, este impacto não implica tanto uma eliminação tout court da moral, mas tão-somente uma reterritorialização desta e, no dizer de alguns autores (Jonas, 1987; 1979; Hottois, 1990; 1987), uma transformação e ampliação de seu campo, vindo a incluir aspectos antes impensáveis, tais como a responsabilidade para com as gerações futuras e até para com o fenômeno da vida como um todo.
A situação da ética contemporânea parece, portanto, assemelhar-se mais a de uma Torre de Babel de valores e princípios em conflito entre si, característica marcante de nossas sociedades secularizadas e pluralistas (Engelhardt, Jr., 1996), do que a uma verdadeira "nadificação" (Severino, 1982; 1980) da moralidade, resultante de uma cosmovisão cética radical sobre a legitimidade de qualquer instância reguladora e normalizadora do agir.
Mas, por outro lado, uma das razões principais que parecem confirmar a pertinência do ceticismo radical, resultante num processo de 'nadificação' da moral, é aquela que, a partir de uma interpretação da meditação de Heidegger (1990) sobre a Técnica enquanto metafísica realizada e esquecimento do Ser, pode ser caracterizada como 'niilismo tecnocientífico'.
Segundo esta interpretação, nossas existências encontrar-se-iam atualmente numa situação em que o paradigma perdido da ética teria sido corroído, e até substituído, pelo paradigma emergente da tecnociência, que impor-se-ia como único vencedor no 'mundo vivido', sendo que ele ordenaria e transformaria o mundo "com a inexorabilidade de um movimento geológico", graças a "uma 'logomaquia' infinita, sem vencedores ..., numa luta que tem por único resultado um ceticismo difuso" (Volpi, 1993, pp. 165, 164).
O niilismo tecnocientífico resultaria, portanto, numa racionalização funcional e radical da existência ou, mais exatamente, na 'racionalização' (pela ciência) e objetivação (pela técnica) do mundo vivido (Lebenswelt), fato este que implicaria também a fusão entre saber-fazer e poder, capaz de anular qualquer referência a paradigmas éticos legitimadores e reguladores, e tendo como efeitos inelutáveis conflitos inconciliáveis e intraduzíveis numa linguagem comum.
Assim sendo, nesta perspectiva nadificadora qualquer tentativa 'fundacionista' que pretendesse restaurar uma teoria ética nos moldes tradicionais (como 'ética das virtudes'), ou propor uma nova ética unificada por algum novo princípio geral, acabaria tornando-se pura ilusão de uma "época pré-científica" (idem, ibidem, p. 166).
Nesse caso, as únicas condutas razoáveis possíveis parecem ser aquelas decorrentes do fim da moralidade e sua substituição por um cinismo individualista e narcisista violento ou, então, da aceitação do relativismo dos valores, do caráter provisório, convencional e negociável de qualquer princípio instituinte, que não implicaria necessariamente uma nadificação da moralidade, mas sim sua complexificação e pluralização.
A tese da morte da moral não é facilmente sustentável, apesar de vários indícios que parecem confirmá-la, tais como o aumento de comportamentos violentos e a aparente generalização de uma verdadeira cultura cínica e da crueldade nas relações interpessoais, de grupos, coletividades, etnias e nações. Na nossa interpretação, tais comportamentos não indicariam uma verdadeira 'morte' da moral, fato que implicaria logicamente também a morte do social, logo de qualquer tipo de forma de vida humana minimamente organizada. Mais razoavelmente, dever-se-ia falar numa espécie de 'complexificação' do campo da moralidade. Ela resultaria, por um lado, do fim da moral tradicional, embasada em deveres absolutos, inquestionáveis e compartilhados por todos os membros de uma comunidade, e, por outro, da emergência de um novo tipo de moralidade resultante da coexistência conflitiva e precária de interesses (legítimos ou não) e valores correspondentes. Em suma, o ethos que parece delinear-se na nossa contemporaneidade tecnocientífica, pós-moderna e "pós-moralista" (Lipovetsky, 1992) parece ser mais pertinentemente representado pela imagem de "estrangeiros morais" (Engelhardt, Jr., 1996) do que por aquela de niilistas morais.
É neste contexto secularizado, pluralista e relativista que se situa o debate acerca das éticas aplicadas, em particular, acerca da bioética, uma das formas principais de ética aplicada dos nossos tempos.





Bioética: disciplina filosófica, nova ciência ou mterciência?

De fato, a bioética nasce no bojo da reabilitação da filosofia prática da década de I960 (Berti, 1993), trazida pela reflexão sobre os novos dilemas morais decorrentes da transformação do saber-fazer das ciências biomédicas. Constitui um dos momentos fortes desta recuperação, junto com a ética ambiental, a ética animal, a ética dos negócios, a tal ponto que pode-se dizer, parafraseando Toulmin (1982), que estas têm salvado a vida da ética, logo da própria filosofia prática.(1)
Desde seu começo, uma primeira questão relevante para a identidade da bioética foi a de saber se deveria ser uma disciplina científica, uma disciplina filosófica ou alguma 'interdisciplina', situada na fronteira comum entre ciência e filosofia e delineada por algum problema moral emergente (como os problemas ambientais ou outros). Caso se optasse pela terceira possibilidade, isso implicaria a transgressão da lei de Hume, que postula a distinção e a separação rigorosas entre fatos e valores, os fatos sendo referidos àquilo que supostamente é, os valores àquilo que deve ser. Esta lei é em princípio aceita em filosofia moral desde que George Moore (1903) a indicou para evitar aquela que chamou de falácia naturalista e que consiste em deduzir os aspectos normativos (o que 'deve ser') a partir de descrições da realidade (o que 'é').
Tanto Potter quanto Hellegers optaram pelo questionamento desta separação rigorosa, utilizando a metáfora da 'ponte' para sublinhar a vocação programaticamente interdisciplinar da bioética: 'ponte' entre ciência biológica e filosofia, para Potter (1971, 1970); 'ponte' entre medicina e filosofia para Hellegers (1976). Com a fundação do Kennedy Institute, em 1971, seguida em 1978 pela publicação da primeira Encyclopedia of Bioetbics (Reich, 1978), estabeleceu-se um consenso entre especialistas, que passaram a considerar a bioética como campo interdisciplinar da filosofia moral aplicada às ciências da vida e da saúde. Mais especificamente, a bioética, sem sair do campo da filosofia, tornou-se uma forma de ética aplicada que deveria lidar com os aspectos simultaneamente descritivos, explicativos e normativos relacionados aos fenômenos da biomedicina (Scarpelli, 1996). Dessa forma, assumia o papel de descrever e explicar de forma sistemática os comportamentos morais operantes nas várias culturas, individualizando os valores reguladores de tais comportamentos nas situações concretas de conflito relativos às modalidades 'corretas' de nascer, adoecer e morrer. O método adotado na avaliação de tais conflitos variava conforme a teoria moral adotada, mas, dentre estas, assumiu destaque especial o método conhecido como principialismo (principialism) (Clouser e Gert, 1990; Beauchamp e Childress, 1979), que consiste em aplicar uma série de princípios muito gerais, e praticamente consensuais, de uma determinada comunidade moral, aos casos concretos para avaliar, de forma racional e imparcial, sua moralidade.
Como sintetizara Reich na 'Apresentação' da Encyclopedia, a bioética deveria ser considerada como "o estudo sistemático da conduta humana, conduzido no âmbito das ciências da vida e da saúde, visto à luz dos valores e princípios morais". Mais recentemente, o bioeticista italiano Maurizio Mori (1992, p. 442) definiu-a como "reflexão crítica e (racionalmente) articulada sobre os problemas normativos levantados pela intervenção humana no mundo médico e biológico".
Esta foi a concepção majoritária em bioética durante as duas primeiras décadas de sua existência.
Na história da bioética existe também uma posição que se tornou minoritária, mas que parece ressurgir, junto com a reabilitação da abordagem holista nas ciências, que acompanha o fenômeno societário da globalização. Em particular, graças ao renovado interesse, por um lado, pelas teorias "comunitaristas" (Rasmussen, 1990) e "ecosóficas" (Naess, 1989), e, por outro, pelas tentativas de criar um novo ponto de vista 'holista' capaz de vincular ciência e transcendência em unidades 'globais' (Ardigò e Garelli, 1989; Barbour, 1990; Barrow, 1994; Brooke, 1991; Davies, 1994; 1988; Küng, 1992; Lazorthes, 1993; Peacocke, 1993; Russell, Stoeger e Coyne, 1988; Segundo, 1995; Talbot, 1993). É este movimento que pode ser caracterizado pela metáfora prigoginiana da "nova aliança", proposta inicialmente como um diálogo entre saber científico e saber humanístico (Stengers e Prigogine, 1979), a fim de superar a oposição tradicional entre "as duas culturas".
Contudo, junto com estas tentativas promissoras de ultrapassar dualismos, reducionismos e mecanicismos rumo a uma visão complexa (ou será que esta não é uma forma disfarçada de 'nova síntese' de tipo hegeliano?), supostamente mais conforme à rede de inter-relações existentes entre saberes e crenças, impulsionada tanto pelas ciências da vida quanto por uma espécie de 'reencantamento' do mundo, assiste-se também a um crescente movimento 'obscurantista', de tipo tecnófobo, induzido pelo temor perante os novos poderes da tecnociência, que atravessa tanto o senso comum da opinião pública quanto aquela que o matemático francês René Thom (1990, p. 61) chamou de "a epistemologia popular" dos cientistas.
Esta concepção holística e complexa, que pretende ser mais adaptada ao caráter problemático da moralidade na época pósmoderna, parece estar em sintonia com a concepção global proposta inicialmente por Potter (1975, p. 2.297), quando este autor vislumbrava uma "abordagem cibernética em vista de uma nova sabedoria do humano".
De fato, para Potter, esta ulterior versão de scienza nuova (como diria Giambattista Vico) deveria conseguir integrar simultaneamente três ordens de questões: os problemas médicos relativos à biologia humana, amplamente entendida; os problemas sanitários resultantes da degradação do meio ambiente natural e do habitat das outras espécies vivas; e os problemas morais decorrentes da competência humana em acompanhar, ou não, a transformação da qualidade de vida humana neste novo contexto tecnocientífico. Assim sendo, pode-se afirmar que as questões levantadas a partir do temor perante os novos poderes da tecnociência já estavam presentes mutatis mutandi na proposta de Potter, quando o autor concebia a bioética como uma nova ciência da vida, de tipo interdisciplinar e preocupada com a sobrevivência da espécie humana, quer dizer, capaz de integrar os conhecimentos da biologia humana (amplamente entendida); a competência em criar e acompanhar o desenvolvimento dos valores humanos; a emergência dos problemas relativos ao meio ambiente e ao relacionamento correto com os outros seres vivos, em prol da qualidade de vida humana (idem, 1971). Mas como explicar este interesse renovado pela globalidade dos problemas morais, em particular, para a bioética global de Potter, após duas décadas de predomínio das análises inspiradas prevalentemente nos métodos da filosofia analítica? Os motivos são provavelmente muitos e caberia a uma análise sociológica da cultura ou, talvez, a uma "epidemiologia das idéias" (Sperber, 1985) detectá-los com mais precisão, o que foge à competência e aos objetivos deste artigo. Contudo, pode-se supor a existência de um efeito detectável no Zeitgeist pós-modemo e na sua vertente 'pós-analítica' e 'neopragmática', sintetizável, por exemplo, pelas posições defendidas pelo filósofo norte-americano Richard Rorty (1989; 1982; 1979).





Rorty



Para Rorty, nossa época estaria assistindo ao esgotamento do programa da filosofia analítica anglo-americana que, desde o linguistic turn impulsionado pela lição de Wittgenstein, tornara obsoleta a problemática metafísica fundacionista em filosofia. Atualmente, esta não deveria mais preocupar-se em estabelecer proposições verdadeiras supostamente conformes à realidade existente (conclusão à qual, seja dito de passagem, já chegara o próprio Wittgenstein [1953]), nem proposições bem formadas lingüística e semanticamente, mas em criar o que é bem, bom e belo de ser pensado. Nesse sentido, o programa atual da filosofia só poderia ser ético e estético, preocupado com uma forte dimensão terapêutica consistente em reduzir o cinismo, a violência e a crueldade dos humanos.
Assim sendo, o programa neopragmático de Rorty consiste em perseguir a legitimidade de nossos enunciados não a partir de alguma conformidade com a realidade existente e independentemente dos atores envolvidos, mas porque tais enunciados teriam a capacidade de expressar nossas atitudes concretas perante nós mesmos, os outros e o mundo; ou seja, porque permitiriam incluir no nosso domínio de experiência (o nós) a solidariedade com o outro e as diferenças integráveis numa comunidade moral determinada (Rorty, 1989; 1979). Isto implicaria, para a própria filosofia, formular perguntas de forma e conteúdo novos, capazes de obter novas respostas úteis para lidar com nossos problemas concretos, mas tendo em vista também um programa de solidariedade capaz de integrar o 'outro' no universo de nossos cuidados.
Mas, além deste tipo de razões externas, aqui sintetizadas pelo recurso aos textos de Rorty, e que poderiam explicar cde fora' o renovado interesse pela 'ética global' defendida por Potter, é preciso também saber se existem razões internas à própria bioética, quer dizer, formadas a partir do desenvolvimento de sua problemática específica. Para tanto, uma interessante sugestão nos é fornecida por Reichlin (1994), quando aborda o estatuto epistemológico da disciplina, a fim de esclarecer os motivos dos impasses na prática clínica. Reichlin parte da constatação de que a bioética é de fato um tipo de conhecimento complexo, formado por três níveis hierárquicos distintos, mas inter-relacionados, de análise. Portanto, três concepções diferentes sobre o estatuto epistemológico da bioética coabitam um mesmo campo disciplinar (ou interdisciplinar):

1) a concepção que considera a bioética como aplicação de princípios morais aos problemas biomédicos em geral;

2) a concepção que a considera uma metodologia para conseguir julgamentos morais de casos clínicos; e

3) a concepção mais abrangente e interdisciplinar que permite a investigação pública da dimensão moral dos problemas sanitários.

Para o autor, cada uma destas concepções só alcança uma parte da problemática, e o desconhecimento deste caráter complexo da bioética estaria na origem de boa parte das confusões e dos conflitos que a atravessam, pois:

a) o primeiro nível implicaria análises aprofundadas do agir humano do ponto de vista das ciências biomédicas, feitas à luz de uma teoria ética geral capaz de detectar o que pode ser considerado 'bom', ou não, para a vida humana;

b) o segundo nível se relaciona com a formação profissional, objetivando construir um ethos adequado para os profissionais de saúde, que incluísse simultaneamente a responsabilização do profissional por suas práticas, o desenvolvimento de sua habilidade em perceber os valores morais em jogo numa situação determinada, e a competência em traduzir e aplicar os princípios éticos abstratos a práticas concretas; e

c) o terceiro teria relação com os aspectos jurídicos, políticos e sociológicos dos problemas morais, visando, sobretudo, a elaboração de orientações para o legislador, feitas num clima interdisciplinar, pluralista e tolerante.

Entretanto, tais níveis, embora inter-relacionados teoricamente, não deveriam ser confundidos na prática, pois cada um exigiria competências específicas. Por exemplo: o jurista não deveria intervir no primeiro nível, reservado à análise do filósofo, situado no "topo de uma relação hierárquica entre os três níveis" (idem, ibidem, p. 100), ao passo que o filósofo não deveria substituir o médico na solução de casos concretos, limitando-se ao papel de assessor, quando convocado pelo próprio profissional de saúde. Isso implicaria que "o trabalho bioético não se esgota com a solução dos problemas teóricos ... e que as questões que surgem nos outros dois níveis não podem ser resolvidas simplesmente deduzindo conseqüências a partir da compreensão teórica do assunto".
Os três níveis de pertinência apontados por Reichlin coexistem na concepção de bioética elaborada pelos pioneiros, quando esta surgia do magma de novos questionamentos que os movimentos sócio-culturais ocidentais formulavam sobre o sentido e os rumos da sociedade contemporânea. Em outras palavras, nesta primeira fase a bioética emergiu no contexto de uma nova sensibilidade em formação, inclusive moral. Sensibilidade mais livre com respeito aos ensinamentos da tradição considerados obsoletos para enfrentar os novos desafios éticos advindos da 'revolução terapêutica' das décadas de 1930 e 1940 e da 'revolução biológica' ocorrida nas de I960 e 1970 (Bernard, 1990), e também mais preocupada com as possíveis conseqüências, para o bem-estar humano, das escolhas tecnológicas, políticas, econômicas e ambientais que vinham sendo feitas nas sociedades em rápida evolução.
Nesta fase, optou-se afinal por um conjunto de valores norteadores, chamados princípios prima facie (Ross, 1930), tais como a autonomia individual, a justiça social, a beneficência e não maleficência, reunidos na já mencionada teoria do principialismo (Clouser e Gert, 1990; Beauchamp e Childress, 1994; 1979; Gillon, 1994).
Mas, desde a década de 1990, esta vem sofrendo críticas: argumenta-se que este modo de enfrentar os dilemas morais (que se apresentam no exercício concreto da medicina) resulta em conflitos insolúveis porque o 'mantra' principialista careceria de uma teoria moral unificada, capaz de dirimir tais dilemas (Clouser e Gert, 1990).
Esta crítica parece trazer de volta justamente aquilo que o principialismo, enquanto característica específica da identidade "secular" da bioética (Reich, 1996, p. 324), queria evitar e que a filosofia analítica ajudou a superar, a saber: o fundacionismo e a subsunção de todos os jogos de linguagem numa linguagem única e universalmente legítima.
Em nossa avaliação, este desejo de uma moral unificada pode ser considerado como indício do retorno de uma visão 'global' dos problemas morais, e é este fato que nos leva de volta a Potter, pois parece que a discussão moral da presente década esteja trazendo de volta as discussões travadas no começo da história da bioética. No retorno em espiral às origens, os problemas colocados por Potter podem ser utilizados como argumentos contra o principialismo, supostamente incapaz de dar conta da globalidade dos problemas morais, em consonância com um suposto caráter globalizado da tecnociência. Em particular, as questões levantadas por Potter adquirem, como vimos, um novo fôlego para as vertentes filosóficas que aliam conteúdos religiosos e ecológicos em visões holísticas da ciência. Mas é justamente a pertinência do holismo para abordar a situação de "estrangeiros morais" (Engelhardt, Jr., 1996), em que se debateriam as sociedades pluralistas e democráticas atuais, que está em questão.
Resumindo, o retorno ao texto de Potter justifica-se por uma contingência histórica e porque suas questões podem esclarecer a volta do pensamento global em ética.




A bioética global de V. R. Potter

Quando o oncologista Van Rensselaer Potter criou o neologismo bioethics num artigo publicado em 1970, a intenção era fundar uma "ciência da sobrevivência" resultante da junção entre "valores éticos e fatos biológicos". Um ano mais tarde, expôs suas idéias para um público mais vasto que o das revistas indexadas. Com as expressões "ciência da sobrevivência" e "ponte para o futuro", queria chamar a atenção para uma série de perigos que, conforme os anseios da época, estariam ameaçando a espécie humana, a menos que esta tivesse em devida consideração os ensinamentos fornecidos pelas ciências biológicas e a teoria da evolução.
A intenção do autor era, portanto, sublinhar a necessidade de uma nova forma de relacionamento com o mundo da vida, logo de uma nova ética, em sintonia com os novos tempos e preocupada com a qualidade de vida dos humanos presentes e futuros.
Por isso, Potter propôs a metáfora da 'ponte' para designar a nova disciplina emergente — a bioética — cujo conteúdo programático seria o de relacionar o desejo de uma "nova sabedoria que proporcion(asse) o conhecimento de como usar o conhecimento para a sobrevivência humana e o melhoramento da qualidade de vida" com a necessidade de desenvolver "um entendimento realista do conhecimento biológico e seus limites, a fim de fazer recomendações no campo das políticas públicas" (Potter, 1970, pp. 127, 131).
Como cidadão, Potter (idem, p. 137) compartilhava as preocupações ecológicas que faziam parte do imaginário norteamericano daqueles anos, mas, enquanto cientista, considerava-se um "mecanicista pragmático". Para o autor, não existia contradição entre o ponto de vista prevalentemente 'holista' do cidadão e aquele 'mecanicista' do homem da ciência. Ao tomar posição sobre o debate reducionismo versus holismo, Potter (idem, p. 136) considera absurda esta dicotomia no contexto das ciências biológicas, pois se "o inteiro organismo é mais do que a soma de suas partes", ele "origina-se da comunicação entre partes", sendo que "a comunicação é em termos de moléculas e é melhor compreendida pelo reducionismo, ao passo que ela forma a rede de feedbacks e a integração estrutural que torna realidade o mecanismo holístico", ou seja, "cada nível hierárquico é formado pelas conexões de feedbacks que vinculam suas unidades, integrando-as numa organização superior". Por isso, concluía Potter, "devemos combinar o reducionismo biológico e o holismo; em seguida, rumar para um holismo ecológico e ético, se é que o homem deve sobreviver e prosperar".
Em suma, o cientista Potter, conhecedor da teoria da evolução, sabia que a sobrevivência da espécie humana não constitui uma necessidade intrínseca da evolução, imputável a um pretenso "princípio antrópico", teleonômico, regulador e finalizador da evolução da matéria do simples ao complexo e do não humano para o humano. Mas para entender este ponto de vista integrador entre visão reducionista e visão holista é preciso ultrapassar a tendência a "equiparar reducionismo e mecanicismo, assim como o holismo com o vitalismo" (idem, ibidem, p. 136), pois só assim seria possível preservar níveis pertinentes e distintos de análise sem perder a visão do conjunto.
Com efeito, o mecanicismo explica a vida em termos meramente químicos e físicos e o vitalismo acredita que nenhum tipo de análise racional seja possível ao nível do todo. Em outras palavras, os mecanicistas consideram os sistemas vivos como sendo meras máquinas, mas sem saber explicar que tipo de máquinas são — questão aparentemente resolvida pela teoria autopoiética (Maturana e Varela, 1979; 1973) — ao passo que os vitalistas os consideram como totalidades inefáveis e misteriosas, portanto subtraídas ao poder explicativo.
É provável que o "mecanicista pragmático" Potter não quisesse privar-se de nenhum dos dois níveis da análise (o mecanicista e o holista), tentando integrá-los numa perspectiva global, mas preservando a especificidade de cada nível conforme o objetivo a ser atingido (a comunicação entre moléculas ou a integração estrutural ao nível do organismo).
Em suma, pode-se supor que quisesse preservar a distinção sem se privar da possibilidade de relacionar os níveis distintos. Potter (idem, ibidem, pp. 130, 137, 138, 139, 150-1) queria "mais ciência e melhor" porque considerava que o problema ético relevante não era o de saber se devemos interferir ou não no ambiente natural e nos processos biológicos. Para ele, contrariamente a uma doxa preservacionista recorrente em determinados ambientes conhecidos como ecologia profunda {deep ecology), esta questão já estava resolvida porque "a evolução cultural tem decidido que o humano quer transformar seu ambiente e sua própria biologia" e porque ele o faz "numa escala colossal (e) irreversível", razão pela qual "só podemos pleitear mais inteligência, mais preservação e mais responsabilidade ..., não uma moratória do novo conhecimento mas um acoplamento entre conhecimento biológico e valores humanos", logo "uma ética interdisciplinar ou biologicamente fundamentada".
A única escolha razoável para a humanidade supostamente ameaçada, no estágio evolutivo atual, seria "lidar com o conhecimento perigoso, procurando mais conhecimento", sendo que não intervir seria também uma forma de intervenção. É por isso que a solução moral adequada ao atual estágio evolutivo seria aquela representada pela bioética, entendida como forma de "balancear os apetites culturais frente às necessidades fisiológicas, no sentido de políticas públicas capazes de gerar a sabedoria necessária com relação ao como usar o saber em prol do bem social".
Estas questões foram retomadas em 1988 e 1990, quando o autor formulou explicitamente a teoria da "bioética global" para responder a seus críticos. Nesta ocasião, Potter (1990, p. 91) reiterou e aprofundou as posições iniciais de 1970, sublinhando o sentido de uma "moral evolutiva", ao mesmo tempo "humilde", "responsável" e "competente", ou seja, "diretamente voltada para a sobrevivência a longo prazo da espécie humana; ... a proteção da dignidade humana; ... o controle da fertilidade; a preservação e o restabelecimento de um ambiente saudável". Em particular, esta moral evolutiva deveria propiciar a capacidade de enfrentar aquilo que chamou de "fluxo fatal" (fatal flaw), presente na evolução, quer dizer, a lei evolutiva segundo a qual a seleção natural favoreceria apenas o que é imediatamente útil para os indivíduos altamente especializados e perfeitamente adaptados a seu meio, mas que pode ser fatal a longo prazo para uma determinada espécie, constituindo uma desvantagem, ou "fatalidade", para esta (como é o caso, relatado por Gould [1982], do panda gigante). Por isso, concluía Potter (idem, p. 98), o meio cultural (construção específica da espécie humana) deveria balancear os apetites, de curto prazo, do indivíduo e as necessidades, de longo prazo, da espécie, a fim de poder vislumbrar "uma sobrevivência aceitável, em contraste com a mera sobrevivência, ou uma sobrevivência miserável".
Contrariamente às outras espécies, para os humanos o desfecho da evolução pode ser, em princípio, diferente, desde que saibam opor-se ao fluxo fatal com os meios culturais e tecnocientíficos disponíveis, e que desejem, coletivamente, a sobrevivência.
É neste sentido que o desenvolvimento e a utilização de uma ciência competente em projetar a sobrevivência da espécie humana adquiriria, aos olhos de Potter, uma relevância ética. Numa entrevista posterior (Spinsanti, 1994), esclareceu que seu interesse pelas relações entre saber científico e responsabilidade moral devia ser compreendido à luz de sua formação religiosa presbiteriana e da preocupação com os problemas ecológicos das décadas de 1960 e 1970. Com relação a estes problemas reconheceu um débito com o pensamento de Leopold (1949), que os vinha abordando desde a década de 1940, quando dividiu o desenvolvimento moral em três estágios sucessivos: o da regulação das relações entre indivíduos; o das relações entre indivíduos e sociedade; e o das relações entre o homem e a biosfera.
Preocupado com o futuro da humanidade, Potter ficou impressionado com a leitura de um artigo de Margareth Mead (1957), no qual ela propunha a criação de cadeiras de ensino universitário sobre o futuro. Retomando o projeto da antropóloga, publicou em 1970, na mesma revista Science, um artigo sobre a 'dupla' responsabilidade dos universitários: não só com a tradicional procura e transmissão do conhecimento Verdadeiro', mas também com a sobrevivência da espécie humana e a qualidade de vida futura (Potter et ai, 1970).
Como o autor esclareceu na citada entrevista, esta "procura da verdade orientada para o futuro" implicaria tanto uma postura de "humildade frente ao futuro" quanto em "superar os limites disciplinares; exercer e aceitar as críticas e desenvolver abordagens e soluções pluralistas, apoiando-se em grupos interdisciplinares" (Spinsanti, 1994, p. 236).
É neste contexto de preocupações que deve ser vista a sua primeira proposta de uma bioética como ponte para o futuro. Contudo, ao propor este "novo paradigma" a "serviço da sobrevivência", Potter queria, em primeiro lugar, superar a contraposição entre ciência e ética, combinando "o conhecimento biológico com os valores humanos, num sistema biocibernético aberto de auto-avaliação".
Entretanto, a sua intenção não era propor mais uma síntese entre ciência e filosofia, mas sim "opor-se à perspectiva que considera a ética como vinda de fora da ciência, isto é, vinda da reflexão filosófica e teológica". Em suma, julgava que a ciência estava livre de valores e, como bom leitor de Teilhard de Chardin, considerava que a evolução moral fazia parte da própria hominização e, como tal, constituía um objeto legítimo da investigação científica. Entretanto, a 'aliança' entre ciência e filosofia não implicaria subordinar uma à outra. Implicaria, sim, vincular valores humanos e conhecimentos científicos, em particular aqueles vindos da fisiologia, genética e ecologia, pois "uma sobrevivência que salve a qualidade (da vida) só é possível se os sistemas éticos são compatíveis com o mundo real".
O novo paradigma da bioética pretendia, assim, "relacionar nossa natureza biológica e o conhecimento realista do mundo biológico com a formulação de políticas orientadas para a promoção do bem-estar social". À pergunta se a bioética não seria uma espécie de "religião da sobrevivência", Potter propôs corrigir a expressão substituindo-a por "exigência metaética" (idem, ibidem, pp. 237, 38, 239, 240).
Resumindo, a bioética global de Potter pretendia desenvolver uma "sabedoria biológica capaz de utilizar o saber para sobreviver", sendo que "a extensão da ética deste terceiro estágio (o de Leopold) é uma possibilidade evolutiva e uma necessidade ecológica" (idem, ibidem, pp. 241 e 244; Leopold, 1949).
Os problemas epistemológicos e metodológicos que a bioética global de Potter levanta são muitos, a começar pelo fato de contrariar a lei de Hume e de incorrer na 'falácia naturalista', que, como vimos, constituem uma espécie de limite para além do qual o discurso ético perderia sua identidade disciplinar.
Contudo, este tipo de transgressão aos limites estabelecidos entre campos do conhecimento são hoje moeda corrente nas concepções holistas em ética. Nesse sentido, citei longamente o pensador norte-americano porque sua posição, embora tenha se tornado minoritária em bioética,(2) parece hoje ressurgir nos anseios referentes aos biopoderes das biotecnociências no contexto de globalização vigente em termos de tecnologias, investimentos e informações. Valeu a pena, portanto, lembrar um dos pioneiros da bioética e mostrar como enfrentou esta problemática.




Conclusão

Como vimos, junto com o fenômeno da globalização (em relação à qual a bioética global de Potter funciona como uma espécie de metáfora antecipadora em ética), vêm também os 'anticorpos', representados pelas reações de desconfiança perante os supostos bem-feitos da tecnociência. Em particular, no imaginário do senso comum, assiste-se ao temor à biotecnociência e aos cenários apocalípticos de servidão e escravidão do humano que ela tornaria possíveis. Mas esta preocupação não faz parte apenas do imaginário popular. Ela pertence ao próprio imaginário filosófico do século XX, pois aparece nos escritos de Heidegger (1990), quando este fala sobre a essência da Técnica e a designa com o termo Ge-stellque, no idioleto heideggeriano significa "armação", "arrazoamento" e "imposição", resultante num "esquecimento do Ser" e na própria instrumentalização inelutável do humano.
Mas, como sugeriu o psicanalista Contardo Calligaris (1991), a instrumentalização do humano só ocorre se houver desejo de ser instrumento, quer dizer, por razões internas ao próprio sujeito e não automaticamente, pela simples existência da biotecnociência.
A este respeito, a posição de Potter parece clara: a reforma do humano por ele mesmo é um processo evolutivo irreversível, necessário à própria sobrevivência da espécie que, com a vigência do paradigma biotecnocientífico torna o Homo sapiens literalmente Homo creator (Anders, 1992).
Ou seja, para enfrentar os "riscos estruturais" crescentes que acompanham inevitavelmente os avanços tecnocientíficos das sociedades "neomodernas" atuais (Beck, 1992), só teríamos que melhorar nosso saber-fazer, mas tendo em vista também uma maior dose de sabedoria, capaz de aproveitar a "heurística do temor", aconselhada por (Jonas, 1987), em prol de uma liberdade responsável ou, nos termos de Potter, de uma "humildade responsável" (Potter, 1975).
No nosso entender, a desconfiança perante os biopoderes é salutar (é isso em substância que sugerem tanto a 'heurística do temor' de Jonas quanto a 'humildade responsável' de Potter), mas desde que ela não se torne uma posição obscurantista decorrente de avaliações erradas sobre o real alcance da biotecnociência, tanto no que diz respeito à sua capacidade em resolver problemas concretos da biologia humana quanto no que se refere aos possíveis desdobramentos futuros em termos de novas formas de instrumentalização e de escravidão do humano.
De fato, como sugere Jonas (1987), para a nossa própria evolução em ambientes cada vez mais complexos, não podemos mais prescindir dos avanços biotecnocientíficos. Tratando-se de uma condição necessária de nossa própria liberdade, logo também um estímulo para aprofundar nossa responsabilidade.
Em outras palavras, do momento em que nos tornamos potencialmente competentes em nos autocriar (graças aos progressos das biotecnociências), conforme nossos projetos e desejos (compartilhados e/ou negociados nas relações interpessoais e coletivas), tornamo-nos em princípio mais autônomos com relação a leis naturais e a princípios de autoridade transcendentes. Mas esta maior autonomia implica, também, maior responsabilidade, ou seja, uma "responsabilidade radical" (Schramm, 1996) para com o fenômeno da vida humana, que é uma reforma constante do natural pelo cultural, inclusive pela biotecnociência. Existem, evidentemente, limites orgânicos, psicológicos e sociais que devem ser respeitados a cada estágio evolutivo, sintetizáveis pela sabedoria prudencialznstotélica, mas tais limites são também dinâmicos, quer dizer, sujeitos ao processo de evolução que, no caso do humano, implicam atingir, graças à biotecnociência, novos patamares de "humanitude" (Jacquard, 1987), indispensáveis para a própria sobrevivência da espécie Homo sapiens num ambiente em rápida transformação pelas próprias mãos do Homo creator.


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Notas

1 Neste artigo, Toulmin afirma que a medicina teria tirado a ética do campo da metafísica, trazendo-a de volta para o domínio do debate público, e fornecendo a seus profissionais uma legitimidade social que não existia mais desde a época da Grécia Clássica.

2 O próprio Potter reconheceu isso: "tenho a impressão de que o movimento adotou o termo que propus, mas não as preocupações que eram as minhas" (Spinsanti, 1994, p. 244).




SCHRAMM, F. R.: 'Technoscientific nihilism, moral holism, and V. R. Potter's global bioethics'.

This essay addresses the vicissitudes of contemporary morality from a double perspective: on the one hand, a radical questioning grounded in the prevailing technoscientific nihilism, allegedly responsible for an unprecedented transformation in the human condition, including therein reference points regarding values and norms, and, on the other hand, the emergence of applied morals, known asbioethics, which is the result of a secular, pluralistic, and post-universalistic understanding of such reference points. Special focus is placed on the early phase of bioethics, known as the ''pioneerphase", when V. R Potter posited his "global ethics", meant to establish a new kind of relationship between scientific f acts and moral values. The essay argues that holistic concepts that seek to establish a new alliance between science and transcendence are currently being revived by this global viewpoint, applied to morality

KEYWORDS: technoscientific nihilism, holism, global bioethics.


Publicado em : História, Ciências, Saúde— Manguinhos, vol. IV(1):95-115 mar.-jun. 1997.

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