quinta-feira, 31 de julho de 2008

O espaço indeterminado




Entrevista com Renato Ortiz


“Se pensarmos que Maio de 68 tinha uma proposta política, certamente diríamos: algo deu errado”, reflete o professor da Unicamp, Renato Ortiz. Em entrevista à edição do dia 14-07-2008 do Jornal da Unicamp, Ortiz analisa, 40 anos depois, o ano de 1968 e reflete sobre as conseqüências dos movimentos ocorridos na contemporaneidade. A entrevista foi concedida ao jornalista Álvaro Kassab.

Eis a entrevista.

Quais são, na sua opinião, as dimensões simbólica e histórica dos episódios de 1968. Eles sintetizaram, de alguma forma, o século XX?

Renato Ortiz –
Creio que é necessário dizer, antes de mais nada, de que 68 estamos falando. A data é emblemática quando se refere ao Maio francês, mas sua extensão a outros contextos deve ser feita com uma certa prudência. O Brasil de 68 não é a França de 68. O espírito libertário que soprava partilhava alguns elementos comuns, mas ele era também distinto. Na França a revolta foi uma surpresa, uma espécie de “falha” geológica da sociedade capitalista, como se subitamente o seu solo desmoronasse. O 68 francês não foi programado, tampouco era um movimento programático. Ele tinha como alvo crítico qualquer tipo de programa ou ideologia, da Igreja ao Partido Comunista, da família ao liberalismo.

No Brasil, lutava-se contra a ditadura e o ideal socialista era uma utopia palpável, encarnada em partidos políticos que, em princípio, o implantariam. Na França lutava-se contra a noção de partido; no Brasil almejava-se a criação de novos partidos, desde que, claro, fossem revolucionários. Talvez fosse possível dizer que os movimentos, brasileiro e latino-americano, sintetizavam, de alguma forma, as aspirações políticas que floresceram ao longo do século XX. Maio de 68 marca provavelmente o início de uma outra época.

Quais das utopias do período ainda sobrevivem?

Renato Ortiz –
Vou desdobrar a pergunta em duas dimensões: 1) quais as utopias que sobrevivem e 2) é possível uma utopia no mundo contemporâneo? A resposta varia em função do que estamos considerando. Os movimentos latino-americanos, cujos ideais eram o socialismo ou o comunismo, fazem parte de todo um processo que se inicia com a modernidade do século XIX. Ao longo do século XX ele se consolida e se expande – revolução russa, cubana, advento dos sociais-democratas na Europa etc. Este ideário da esquerda entrou em crise, embora não tenha desaparecido. Crise significa: não possui a mesma legitimidade que antes desfrutava. Não se deve esquecer que o século XX foi calcado num conjunto de experiências que muitas vezes se realizaram de maneira perversa – penso no stalinismo. Dizer, porém, que este ideário, mesmo em crise, permanece significa considerá-lo no interior de um outro contexto. Daí a indagação: “qual seria uma proposta socialista para o século XXI?”. Somos incapazes de dar uma resposta convincente para tal questão.

Neste sentido, uma nova utopia necessitaria de uma outra formulação, conseguindo projetar “à frente” a esperança coletiva. Porém, se fizermos a pergunta da segunda maneira, eu diria que Maio de 68, por ser uma “brecha” na ordem da sociedade, uma “falha” no status quo, nos ensina que o futuro, apesar de todas as tendências objetivas que o definem, encerra um elemento aleatório. Neste nicho encerra-se o espírito utópico.

Quais são, na sua opinião, as mudanças comportamentais tributárias de 68?

Renato Ortiz –
É difícil responder a este tipo de pergunta sem cairmos num certo reducionismo. Não se pode atribuir às mudanças comportamentais apenas a um movimento político específico. Elas decorrem de um conjunto de transformações, sociais, culturais, econômicas e até mesmo demográficas – por exemplo, o tamanho da unidade familiar. Eu diria, entretanto, que o 68 francês avança um elemento novo, que posteriormente ficará mais explícito com o caminhar dos anos. Eu me refiro à idéia de que a política encontra-se, também, fora das instituições consagradas – partido, governo, sindicato – e se estende para as práticas comportamentais. Ela invade o espaço simbólico da cultura para materializar-se no cotidiano.

Os operários tiveram um papel importante nas manifestações de 68. Contudo, viu-se depois, muitas das conquistas caíram no limbo. A flexibilização, o desemprego e o discurso (predominante) das estruturas enxutas acabaram prevalecendo, esvaziando sobremaneira o papel dos sindicatos, sobretudo a partir dos anos 90. O que ocorreu?

Renato Ortiz –
Eu faria novamente a distinção entre o 68 francês e o brasileiro. No caso francês, os atores principais da revolta – os estudantes – tinham a ilusão de eliminar os sindicatos da luta política e romanticamente pensavam estabelecer uma relação “sem intermediários” entre os ideais da revolta e o “povo”. Não se deve esquecer: lutava-se também contra as lideranças comunistas e sindicais. Elas teriam se “aburguesado”. No Brasil, o movimento sindical, após o golpe de 64, foi desmantelado pelo governo autoritário. Em 68, os estudantes pretendiam estar juntos com o que restava do movimento sindical na sua luta contra a intransigência ditatorial. A questão da flexibilização do trabalho é de outra natureza. Ela diz respeito às transformações estruturais do mundo do trabalho, e dificilmente poderiam ser imediatamente associadas ao quadro político da época.

Há quem defenda a tese de que o capitalismo não apenas mimetizou muitas das bandeiras anticapitalistas do movimento como soube usá-las para causar uma espécie de “entorpecimento” de uma sociedade que teria caminhado a passos largos para o individualismo – e, não raro, para o conservadorismo. O senhor concorda com essa tese?

Renato Ortiz –
Eu desconfio das teses que situam as transformações históricas, para falar como os marxistas, apenas na “superestrutura” da sociedade. Maio de 68, principalmente o francês, tinha um forte elemento existencialista, ou seja, individual. O Ser da revolta era um Eu que não queria resignar-se à ordem institucional estabelecida – da família ao partido. Mas ele diferia do existencialismo tipo sartriano. A revolta era individual, porém, somente poderia se manifestar como algo coletivo. Foi esta junção entre indivíduo e sociedade, pessoal e coletivo, que tornou a explosão fascinante, e de uma certa forma inédita.

O individualismo da sociedade de consumo tem traços em comum com a revolta anterior. Não se pode negar isso. Um deles diz respeito ao uso da dimensão simbólica na esfera da política. Mas não nos esqueçamos: 68 paralisou todo um país, mobilizou intelectuais, artistas, operários, o governo e as forças policiais, o que é distinto de uma festa rave na qual após a descarga frenética das emoções individuais, todos retornam ao lar.

Uma das bandeiras de 1968 era o discurso contra a sociedade de consumo – em última instância contra a “mercadorização”. Porém, o mercado – e conseqüentemente o consumo – avançou sobre todos os quadrantes do planeta. O que deu errado?

Renato Ortiz –
Se pensarmos que Maio de 68 tinha uma proposta política, certamente diríamos: algo deu errado. Mas creio que 68 não continha nada desta natureza. Tratava-se, como diziam os franceses, de um “acontecimento”, algo que nos desvendava, não a forma como deveríamos atuar, mas muito mais a idéia de que o “sonho” era possível.

Em que medida, na sua opinião, a globalização pulverizou – ou banalizou – as conquistas pós-68?

Renato Ortiz –
A globalização da economia e a mundialização da cultura configuram uma nova situação na qual se organiza a ordem mundial. Isso tem implicações políticas que vão muito além do tema de 68. A existência de uma modernidade-mundo, na qual operam instituições transnacionais, a emergência de uma esfera planetária do consumo, redimensionam a forma de se fazer e pensar a política – que já não mais se limita ao Estado-nação. Não se trata apenas das “conquistas de 68”, é todo um quadro político que se redefine.

As bandeiras hoje são outras, a começar da própria sobrevivência da espécie, em todas as suas dimensões – na ambiental, nas hordas de imigrantes, no sem número de excluídos, no advento de novas tecnologias (e suas conseqüências) etc. O senhor acredita no advento de um novo 68?

Renato Ortiz –
As bandeiras são certamente outras. Há inclusive o surgimento de utopias novas como a Ecologia – embora não me seduzam tanto, malgrado sua importância inconteste – e até mesmo o ressurgimento de esperanças de natureza religiosas. Muito se falou sobre o “fim das utopias”. Eu sempre fui cético em relação a certas posturas intelectuais: “fim” da história, das ideologias, da cultura de massa, da arte, do trabalho. Esse tipo de afirmação tem muito de retórico e pouco de realidade. O que 68 nos ensina é que a ordem social, qualquer que seja ela, nunca é imutável. Nas suas frestas insinuam-se as inconsistências – dizia-se antes, as contradições. Neste sentido, 68 pode ser visto como uma metáfora. Ela é uma janela para o futuro, um espaço no qual se aninharia o indeterminado.







quarta-feira, 30 de julho de 2008

Site: The Kassandra Project


Em 30 de Novembro de 2007, uma interessante página apareceu na Blogosfera. Trata-se do "Kassandra Project: freedom against disinformation". Uma página dedicada à liberdade, aos direitos civis à denúncia do controle e manipulação de informações - cujo crescimento assustador temos assistido em todo o mundo, sobretudo nos EUA.

Conta também com uma espécie de "TV" - pois o Kassandra Project veicula vídeos acessáveis no YouTube. (Endereço: http://kassandraproject.wordpress.com/kassandras-tv/).



Vai aqui uma amostra do conteúdo do site (tradução livre):


"

Big Brother” Presidential Directive: “Biometrics for Identification and Screening to Enhance National Security
” - matéria publicada em 13/06/2008




"A mais recente medida emanada da administração Bush - sem virtualmente ter contado com qualquer cobertura da imprensa - é a NSPD 59 (HSPD 24), entitulada 'Biometrias para Identificação e Filmagem com vistas à Melhoria da Segurança Nacional'.

A NSPD se coloca diretamente contra os cidadãs americanos.

Foi adotada sem debate público ou aprovação do Congresso. Seus relevantes procedimentos têm enormes implicações.

A NSPD59 vai bem além da questão da identificação biométrica, pois recomenda a coleta e armazenamento de informações "biográficas relacionadas", significando informações sobre vidas privadas de cidadãos americanos, nos mínimos detalhes, as quais serão "efetuadas dentro da lei":



"O banco de dados contextual que acompanha o banco biométrico inclui informações sobre data e local de nascimento, nacionalidade, endereço atual e histórico de endereços, emprego atual e histórico de empregos, números de telefones atuais e seu histórico, utilização dos serviçoes públicos, impostos e taxas. Outro banco de dados contextual pode incluir contas bancárias, histórico do cartão de crédito, além dos arquivos criminais a nível local, estadual e federal. O banco de dados também poderia incluir os julgamentos e outros registros públicos envolvendo disputas legais, custódias de crianças, registros de casamento e divórcio."


A diretiva utiliza o 11 de setembro como uma justificação global para promover uma caça às bruchas contra a dissenção dos cidadãos, estabelecendo ao mesmo tempo uma atmosfera de medo e intimidação em todo o País.

A medida também clama pela integração de vários bancos de dados, como também a cooperação entre órgãos, vislumbrando como objetivo final a centralização de informações sobre cidadãos americanos."









A Meditação da Introspecção (Vipassana Bhavana)


(Do livro "O Budismo Vivo e o Mundo Contemporâneo" de Lama Anagarika Govinda)



A Meditação Vipássana chamada de Meditação da Introspecção ou da Percepção opera em dois níveis: no nível psicológico e no nível espiritual.
No nível psicológico a meditação ajuda-nos primeiro a chegar a um acordo com os nossos estados mentais negativos. Aprendendo a observar atentamente as nossas variações de humor e aceitando-as, iremos conhecer os nossos eus secretos: os estados mentais de raiva, culpa, ansiedade, tristeza e depressão. A meditação nos ensina como lidar com todos eles. Estando consciente desses estados, não tentando fugir deles mas aceitando-os realmente como são. Isto significa que nós nem os ampliamos nem fazemos as coisas piores fantasiando, nem sonhamos acordados pensando nos deixar ser apanhados pelas emoções. Ao invés disso, desenvolvemos a conscientização e a observação, nós permitimos que os estados mentais sejam eles mesmos. Então experimentamos por nós mesmos exatamente o que o Buda ensinou: observando e vigiando os estados da mente, eles perdem energia, enfraquecem gradativamente e após um tempo extinguem-se completamente.
Do mesmo modo, até mesmo os sentimentos profundamente reprimidos no subconsciente vão emergir e enfraquecer até que tenhamos purificado completamente a mente de todos os estados negativos. Gradativamente começamos a experimentar mais e mais os estados positivos da mente: amor, compaixão, alegria, harmonia e paz. Esta transformação tem seu efeito sobre nossos relacionamentos e na nossa vida diária, fazendo-nos pessoas muito mais felizes!
No nível espiritual, como o processo de purificação da mente continua, com a concentração e a conscientização, surge então a sabedoria intuitiva e começamos a ver a natureza real da mente. Percebe-se e compreende-se as características da vida humana: sua insatisfatoriedade essencial e sua natureza impermanente. A consciência continua operando assim até o momento em que, sendo favoráveis as condições, ela penetra no Absoluto, além do corpo e da mente - o Nirvana.
Isto é apenas um resumo de como a meditação funciona, mas lembrem-se quando meditamos, não pensamos acerca disto, nós apenas desenvolvemos a vigilância e a consciência. Apenas observamos o que surge na mente, não ficamos procurando por coisa alguma.
Você compreendeu que o Buda não ensinou um sistema no qual todos tivessem que acreditar antes de começar a praticar. O que ele fez foi ensinar uma teoria, dar-nos um método, uma técnica: a prática da meditação. através da qual podemos testar tal teoria. Como a meditação não é um sistema de crença, ela pode ser praticada por qualquer pessoa independente de sua religião ou crença pessoal. Ela é simplesmente o Caminho para a Purificação Mental. Ela é útil para cada e para todos os seres humanos.
Esperamos que você continue a praticar para seu próprio benefício e para o benefício de todos os seres. Possa sua meditação ser proveitosa!
Venha meditar conosco!

O Significado De "Insight", Conhecimento e Sabedoria No Budismo

Em contraste com as religiões baseadas em improváveis artigos de fé, a base do budismo é o entendimento. Esse fato iludiu alguns observadores ocidentais que pensavam no budismo como uma doutrina puramente racional que pode ser compreendida em termos apenas intelectuais. No entanto, o entendimento no budismo significa um insight na natureza da realidade é de sempre o produto de experiência imediata.
Começando com a experiência do sofrimento como um axioma primário, válido universalmente, o budismo adota o ponto de vista de que somente aquilo que foi experimentado, e não o que se pensou, tem valor de realidade. Desta maneira, o Buda-Dharma prova que é uma religião genuína, mesmo que não solicite revelações não-provadas advindas de um domínio sobrenatural como os adeptos de uma religião normalmente têm que aceitar.
Próximo da virada desse século, alguns hinduistas tentaram apresentar o budismo como um sistema filosófico-moral amplamente baseado em considerações psicológicas.
Mas o budismo é mais do que uma filosofia, porque não despreza a razão nem a lógica, apenas as usa dentro da esfera apropriada. Também transcende os limites de qualquer sistema psicológico porque não está confinado à análise e à classificação de forças e fenômenos psíquicos reconhecidos, mas ensina seu uso, transformação e transcendência. O budismo também não pode ser reduzido a um sistema moral válido para o tempo todo ou como "um guia para fazer o bem", pois penetra uma esfera que transcende todo o dualismo e está estabelecida em uma ética que sai do entendimento mais profundo e da visão interior.
Assim, poderíamos dizer que o Buda-Dharma é, como experiência e como caminho para a realização prática, uma religião; como a formulação intelectual dessa experiência, uma filosofia, e como resultado da análise sistemática, uma psicologia. Quem trilha esse caminho adquire uma norma de comportamento que não vem por imposição externa, mas é resultante de um processo de amadurecimento interior que podemos observar de fora, chamar de moralidade. Mas essa moralidade no Budismo não é tanto o ponto de partida - como em muitas outras religiões - quanto o resultado de uma experiência religiosa que produziu tal mudança decisiva em nosso ponto de vista que começamos a ver o mundo com novos olhos.
Por essa razão, Buda não colocou no início da Nobre Senda Óctupla uma mudança em nosso modo de vida e comportamento, mas a visão controlada de mundo em nós e com relação a nós mesmos; pois só assim conseguimos conquistar um insight sem preconceitos sobre natureza da existência e das coisas, e então, através da mudança em nosso ponto de vista, atingir uma reorientação completa para a nossa luta. Esse modo de observar as coisas é chamado em páli samma ditthi, que os indologistas sempre traduzem como "visão correta " ou "opinião".
Mas samma ditthi significa mais do que um mero acordo com algumas idéias morais ou dogmáticas preconcebidas. É uma maneira de ver que ultrapassa os pares de opostos dualisticamente concebidos, de um ponto de vista unilateral, condicionado pelo ego. Samma significa o que é perfeito, inteiro, isto é, nem dividido nem unilateral; alguma coisa de fato, completamente adequada a todos os níveis de consciência.
Aquele que desenvolveu o samma ditthi é, portanto, uma pessoa que não olha as coisas de forma parcial, mas as vê de forma equilibrada e sem preconceitos, e que em objetivos, atos e palavras é capaz de enxergar e respeitar o ponto de vista dos outros tanto como o seu próprio. Pois Buda estava bem consciente da relatividade de todas as formulações conceituais. Não estava, portanto, preocupado em divulgar uma verdade abstrata, mas em apresentar um método que desse capacidade às pessoas para chegar à visão da verdade, isto é, experimentar a realidade. Assim, ele não apresentou uma nova fé, mas tentou libertar o pensamento das pessoas dos princípios dogmáticos de forma a possibilitar uma visão da realidade livre de preconceitos.
Está bem claro que ele foi o primeiro entre os grandes líderes religiosos e pensadores da humanidade a descobrir que o que importa não é tanto os resultados finais padronizados, isto é, nosso conhecimento conceitual em forma de idéias, confissões religiosas e "verdades eternas", ou na forma de "fatos científicos" e fórmulas, mas o que leva a esse conhecimento, o método de pensamento e ação. A adoção dos resultados do pensamento das outras pessoas - ou até mesmo dos chamados "fatos simples", quando isso é feito sem senso crítico, geralmente é mais um obstáculo do que vantagem, porque coloca um bloqueio à experiência direta e por isso pode se tornar um perigo. Dessa forma, uma educação que consiste inteiramente de um acúmulo conhecimentos e padrões de pensamento já prontos leva à esterilidade espiritual. O conhecimento e a fé que perderam sua ligação com a vida se transformam em ignorância e superstição. O mais importante e o mais essencial é a capacidade para a concentração e para o pensamento criativo. Em vez de ter como objetivo a erudição, deveríamos preservar a capacidade para o aprendizado em si, e assim manter a mente aberta e receptiva.
Por outro lado, Buda jamais negou a importância do pensamento e da lógica; designou o lugar que ocupam e mostrou a seus discípulos a sua relatividade: a ligação insolúvel pela qual o pensamento e a lógica se encerram em um único sistema de interdependência e condicionalidade mútuas.
Há uma admissão tácita de que o mundo que construímos com o nosso pensamento é idêntico ao mundo de nossa experiência, na verdade ao mundo "tal como é". Mas, essa é uma das fontes principais de nossa visão errônea daquilo que chamamos de "mundo". O mundo que experimentamos na verdade inclui o mundo dos nossos pensamentos, mas esse mundo nunca pode compreender totalmente aquele que experimentamos, porque vivemos simultaneamente em várias dimensões, das quais o intelecto (ou acapacidade para o pensamento discursivo) é apenas uma delas.
Buda não procurava discípulos cegos que seguissem suas instruções mecanicamente, sem entender suas razões ou necessidades. Para ele, o valor da ação humana não está no efeito aparente, mas no motivo, na atitude dessa consciência da qual surgiu. Queria que seus discípulos o seguissem por causa de seu próprio insight na realidade acentuada pelo ensinamento, e não da simples fé na superioridade de sua sabedoria ou de sua pessoa. A única fé que esperava de seus alunos era a fé em seus próprios poderes interiores.
O que o mestre suscitou, portanto não foi a ênfase em um racionalismo frio, unilateral, mas a cooperação harmoniosa de todos os poderes da psique humana, entre os quais a razão é o princípio da discriminação e do direcionamento.
O ensinamento do Buda começa com a apresentação das Quatro Nobres Verdades. Mas, devido aos limites estreitos da consciência individual, seu significado não pode ser percebido de forma completa quando se está iniciando no Caminho. Se fôssemos capazes de atingir isso, conquistaríamos a liberdade imediatamente e os passos seguintes seriam desnecessários. Mas o simples fato do sofrimento e suas causas imediatas é algo que podemos experimentar em todas as fases da vida, de forma que um simples processo de observação e análise da experiência de uma pessoa, ainda que limitado, é suficiente para convencer um ser pensante de que a tese do Buda é razoável e aceitável.
Da mesma forma, se o indivíduo inicia seu caminho exigindo a "visão perfeita", isso não significa a aceitação de um dogma em particular estabelecido para todo o tempo, ou de alguma crença ou artigo de fé, mas o insight imparcial e sem preconceitos na natureza das coisas e de todas as ocorrências exatamente como são.
Samma ditthi, então, não é uma simples aceitação de algumas idéias religiosas ou morais preconcebidas. Significa uma maneira cada vez mais perfeita e nunca unilateral de ver as coisas. Portanto, não é verdade que tantos problemas do mundo vêm principalmente do fato de todos verem as coisas a partir de seu próprio ponto de observação? Não deveríamos, em vez de nos trancarmos a tudo que seja desagradável e doloroso, encarar o fato do sofrimento e descobrir suas causas, fato este que está em nós e que conseqüentemente só por nós pode ser superado?
Se prosseguirmos dessa maneira, manifesta-se dentro de nós a consciência do objetivo grandioso, o objetivo do esclarecimento e da libertação, e também do caminho que leva a sua realização. Samma ditthi é assim o experimentar, e não apenas a aceitação intelectual das Quatro Nobres Verdades proclamadas por Buda. Somente a partir de tal atitude é que a decisão perfeita que abrange toda a humanidade pode surgir, o que exige o compromisso da pessoa como um todo no pensamento, na palavra e na vontade, o que levará, através da interiorização e penetração, à perfeita iluminação.


http://www.casadobruxo.com.br/textos/magia83.htm

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Albert Schweitzer


Por: Rubem Alves

"É um homem grande, 1.90 de altura; obviamente, um homem forte. Seus cabelos castanhos já estão grisalhos. E tem um grande bigode. Seus olhos profundos são azuis e bondosos. E o seu piscar revela humor. Um veadinho se esfrega nele pedindo carinho e sua mão grande deixa a caneta sobre a mesa e delicadamente agrada o bichinho. Lá fora, os crocodilos algumas vezes dormem com suas enormes mandíbulas abertas. E há os hipopótamos, os pelicanos, a vegetação impenetrável que se reflete nas águas barrentas do rio."


A aparência é de um homem sólidamente plantado nesse mundo. Mas não é verdade. Seu coração e sua cabeça se movem de acordo com uma lógica estranha de um outro mundo que só ele vê.

Nasceu em 1875, numa aldeia da Alsácia, filho de um pastor protestante. Desde muito cedo ficou claro que ele era diferente. Sua sensibilidade para a música chegava à dor. Ele mesmo conta que, à primeira vez que ouviu duas vozes cantando em dueto - ele era muito pequeno ainda - ele teve de se encostar na parede para não cair. Outra vez, ouvindo pela primeira vez um conjunto de metais ele quase desmaiou por execesso de prazer. Com cinco anos começou a tocar piano. Mas logo se apaixonou pelo órgão de tubos da igreja na qual o seu pai era pastor. Aos nove anos já era o organista oficial da igreja, e tocava para os serviços religiosos.

Sentimento amoroso idêntico lhe provocavam os animais. Ele relata que, mesmo antes de ir para a escola, lhe era incompreensível o fato de que as orações da noite que sua mãe orava com ele apenas os seres humanos fossem mencionados. "Assim, quando minha mãe terminava as orações e me beijava, eu orava silenciosa-mente uma oração que compus para todas as criaturas vivas" : "Oh, Pai, celeste, protege e abeçoa todas as coisas que vivem; guarda-as do mal e faz com que elas repousem em paz."

Ele conta de um incidente acontecido quando ele tinha sete ou oito anos de idade. Um amigo mais velho ensinou-o a fazer estilingues. Por pura brincadeira. Mas chegou um momento terrível. O amigo convidou-a a ir para o bosque matar alguns pássaros. Pequeno, sem jeito de dizer não, ele foi. Chegaram a uma árvore ainda sem folhas onde pássaros estavam cantando. Então o amigo parou, pôs uma pedra no estilingue e se preparou para o tiro. Aterrorizado ele não tinha coragem de fazer nada. Mas nesse momento os sinos da igreja começaram a tocar, ele se encheu de coragem e espantou os pássaros.

Seu amor pelas coisas vivas não era apenas amor pelos animais. Ele sabia que por vezes era preciso que coisas vivas fossem mortas para que outros vivessem. Por exemplo, para que as vacas vivessem os fazendeiros tinham de cortar a relva florida com ceifadeiras. Mas ele sofria vendo que, tendo terminado o trabalho de cortar a relva, ao voltar para a casa, as suas ceifadeiras fossem esmagando flores, sem necessidade. Também as flores têm o direito de viver.


Também não podia contemplar o sofrimento dos animais em cativeiro. "Detesto exibições de animais amestrados. ´Por quanto sofrimento aquelas pobres criaturas têm de passar a fim de dar uns poucos momentos de prazer a homens vazios de qualquer pensamento ou sentimento por eles."


O nome desse jovem era Albert Schweitzer. Doutorou-se em música, tornou-se o maior intérprete de Bach da Europa, dando concertos continuamente. Doutorou-se em teologia e escreveu um dos mais importantes livros de teologia desse século. Doutorou-se também em filosofia, e era professor na universidade de Estrasburgo, sendo também pastor e pregador.


Schweitzer tinha tudo aquilo que uma pessoa normal pode desejar. Ele era reconhecido por todos. Mas havia uma frase de Jesus que o seguia sempre: "A quem muito se lhe deu, muito se lhe pedirá." E, aos vinte anos, ele fez um trato com Deus. Até os trinta anos ele iria fazer tudo aquilo que lhe dava prazer: daria concertos, falaria sobre literatura, sobre teologia, sobre filosofia. Ao trinta anos ele iniciaria um novo caminho. E foi o que ele fez. Aos trinta anos entrou para a escola de medicina, doutorou-se em medicina, e mudou-se para a África, para tratar de uns pobres homens atacados pelas doenças e abandonados. E lá passou o resto de sua vida.


É preciso entender que Schweitzer não era só um médico curando doentes. Ele não se conformaria com isso. Dentro dele viviam a música, a filosofia, o misticismo, a ética. Schweitzer sabia que somente o pensamento muda as pessoas. E o que ele mais desejava era descobrir o princípio que vivia encarnado nele. E ele conta que foi numa noite - ele e remadores navegavam pelo rio para chegar a uma outra aldeia - seu pensamento não parava - e ele se perguntava - "qual é o princípio ético?". De repente, como um relâmpago, apareceu na sua cabeça a expressão: reverência pela vida. Tudo o que é vivo deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o desejo dos homens.


Há algo estranho na psicologia de Schweitzer. Um dos maiores desejos da alma humana - de todos - é o desejo de reconhecimento. Na Europa Schweitzer era admirado universalmente: organista, filósofo, teólogo, escritor. Aos vinte e poucos anos seu nome já era símbolo. Aí toma uma decisão que o levaria para longe de todos os olhos que o admiravam: a absoluta solidão de uma aldeia miserável. Hoje uma decisão como a dele seria imediatamente notada: os jornais e a televisão logo fariam brilhar a sua imagem de Cavaleiro Solitário - e ele apareceria como heroi. Seria grande, imensamente grande na sua renúncia! Também as renúncias podem ser motivo de vaidade! ( A esse respeito relembro a última cena do filme O Advogado do Diabo. Merece ser visto de novo. )Mas ele opta pela invisibilidade, a solidão, longe de todos os olhos e de todos os aplausos.. Isso só tem uma explicação: ele era, antes de tudo, um místico. O que lhe importava não era a brilho narcísico mas a consciência de ser verdadeiro com o princípio de "reverência pela vida", o seu mais alto princípio religioso.


Esse princípio, Schweitzer viveu intensamente. Não é difícil ter reverência pelas coisas fracas, a relva, os insetos, os animais. Fracos, eles não têm o poder de nos resistir. Difícil é ter reverência pelos homens fortes, que se encontram ao nosso lado. Jesus ordenou "amar o próximo". Porque é fácil amar o distante. O próximo é aquele que está no meu caminho, que tem o poder de me dizer não. Mais difícil que amar os doentes, que são carência pura, fraqueza pura, dependência pura, mendicância pura, é amar aqueles que estão ao meu lado e que são tão fotrtes quanto eu. Reverência pelos que estão ao meu lado. Se Schweitzer se relacionou com os pobres negros doentes por meio da compaixão, ele se relacionou seus próximos, iguais, companheiros de hospital por meio de amizade. E ele formula, na sua Ética, o princípio de que "um homem nunca pode ser sacrificado para um fim."


Schweitzer não era um ser desse mundo. Talvez ele tenha compreendido isso e que essa tenha sido uma das razões porque ele saiu do mundo civilizado, se embrenhando nas selvas da África. No mundo civilizado, das organizações, será possível ter reverência pelo próximo? Na lógica das organizações não há "próximos" nem amigas. A lógica das organizações diz: "cada funcionário é apenas um meio para o fim da organização, não importa quão grandioso ele seja!" Nas organizações os sinos das igrejas não tocam para impedir que o pássaro seja morto.



sexta-feira, 25 de julho de 2008

Ernst Bloch, utopia e revolução


Por: Voltaire Schilling (*)




Ele foi uma espécie de exceção na filosofia dos começos do século XX, visto que o que o atraiu sua reflexão não foram os ascendentes aspectos científicos e tecnológicos, como no caso dos marxistas evolucionistas ou dos neopositivistas em geral. O que fascinou Ernst Bloch, pensador judeu-alemão falecido em 1977, foram os elementos imaginativos, os "sonhos diurnos" de todos nós, e como eles tinham o poder de modelar o comportamento e a cultura dos homens. Filósofo de tendência marxista, tratou de ressaltar o quanto à doutrina de Marx, ainda que produto histórico do iluminismo e da revolução industrial, foi também herdeira dos movimentos cristão-milenaristas da Europa Ocidental.




Marxismo e Messianismo

Todo o esforço teórico de Karl Marx e de Friedrich Engels foi apresentar a doutrina do Materialismo Dialético como que amparada nos foros da revolução positivista do século XIX. O socialismo deles - ao contrário dos socialistas "utópicos" como Saint-Simon, Owen, Fourier, ou de tantos outros delirantes pregadores de sociedades ideais - era "científico", e queriam a máxima distância das fantasias igualitárias que reformadores sociais, seus contemporâneos, faziam. Assim sendo, "utopia" para a dupla era algo pejorativo, produto de mentes bem intencionadas mas imprecisas, que nada possuíam de valor prático. Ao tempo em que implicavam com a utopia, denunciaram ainda mais a "ideologia", cortina de idéias e sutis pretextos outros usados pelas classes dominantes para justificarem o seu domínio e a exploração a que submetiam as massas. Somente a proposta deles, extraída de rigoroso estudo da economia-política capitalista, da história e da sociedade em geral, é que realmente tinha valor, o "socialismo científico". Para Marx, a catástrofe do capitalismo com o subseqüente fim do domínio da burguesia, a ocorrer mais adiante, não era uma previsão escatológica mas resultado da essência interna do sistema por ele detalhadamente examinado com rigor de um dissecador de laboratório.
Pois nada disso Ernst Bloch levou em consideração, fazendo com que se deixasse seduzir exatamente pelo que Marx e Engels mais repeliam, isto é, aquelas fabulações de querer implantar na terra o Reino dos Céus, ainda que em sua versão secularizada. Bloch, afastando-se da pretensão científica do marxismo, procurou enfatizar o conteúdo messiânico e salvacionista que a doutrina revolucionária era portadora. Seguramente, para ele, o atrativo dela estava nos seus elementos emocionais-redentores e não nos racionais-evolucionistas.
Por isso, o Marx de Bloch é o dos Frühschriften: os escritos juvenis de Marx, os "Manuscritos econômico-filosóficos", a "Sagrada Família", a "Ideologia Alemã", as "Teses sobre Feuerbach", e tantos outros ensaios dos anos de 1844-5, tempo em que ele não era marxista, quando o gosto do pensador era ainda envolver-se com idéias, com ideologias, e não com estatísticas ou índices de produção econômica que predominam no Das Kapital.
Deste modo, a utopia, que Marx e Engels botaram aos empurrões para fora do movimento socialista do século XIX, ressurgia nos começos do século XX para ocupar o âmago da reflexão filosófica e política de Bloch. Na verdade ele realizou uma complexa e uma tanto estranha síntese que envolvia o messianismo judaico-cristão com o marxismo, tudo interpretado ao viés da filosofia hegeliana.


O retorno da utopia

Antes de se dar prosseguimento, importa esclarecer o uso do conceito utopia por Bloch, utilizado por ele de maneira bem mais ampla e genérica do que comumente é conhecida. Na terminologia das ciências sociais e políticas, a palavra utopia é sempre associada à descrição de uma sociedade inexistente, a algo ainda não concreto e que jamais houve de fato, a não ser na dialética imaginativa de Platão ("República") ou na narrativa de Thomas More ("Utopia"), e tantos outros narradores imaginativos. Para Bloch não. Este uso, apesar de ser o mais corriqueiro e célebre, parece-lhe limitado, é apenas um dos aspectos de como o fenômeno utópico aparece.
A utopia de Bloch é algo superdimensionado. É, por assim dizer, todo e qualquer pensamento maravilhoso que brota da mente humana. Pode ser a constituição de uma sociedade perfeita, arquitetura intelectual de uma infinidade de reformadores religiosos e de filósofos sociais, ou um simples desejo de que ocorram coisas melhores no futuro. Pode por igual surgir nos versos do poeta, no sonhar acordado de um Goethe, de um Klopstok, de um Hölderlin,ou ainda nos castelos no ar das histórias infantis e das aventuras de Karl May, e os tantos "sonhos diurnos" que nos acometem em diversos instantes ao longo da vida.(*)
Ela, a utopia, é uma manifestação intelectual "do pressentimento da esperança", um quadro imaginário e impreciso do porvir, e que ao contrário de manifestar-se como uma inconseqüente fabulação, é fato fundamental na construção do futuro.
(*) "O sonho acordado", diz Pierre Furter, um dos seus comentadores, "manifesta uma verdadeira fome psíquica pelo qual o homem imagina planos futuros e outras situações em que supere os problemas, as dificuldades e as obrigações de um hoje onipresente. Assim, os sonhos acordados nos dão uma primeira forma tosca, vaga, talvez ilusória, do que será, numa fase mais elaborada, a utopia" (in "Dialética da Esperança", cit. p/ Suzana Albornoz, 1985)





O reaparecer das utopias

Com a modernidade, as utopias reapareceram como forma peculiar de conhecimento e processo secularizado das experiências milenaristas ocorridas no passado. O ardor dos anabatistas e demais seitas igualitárias do comunismo medieval, que lutaram para impor na terra o Reino dos Céus, apresentava-se agora, nos tempos atuais, não mais por meios transcendentais, senão que se utilizando os recursos racionais colocados à disposição pela Revolução Iluminista do século XVIII e levadas a diante pelo Movimento Socialista. Ainda assim a utopia continua presa a sua Dimensão Escatológica, inerente ao seu conceito (ver Thomas Münzer als Theologe der Revolution, livro de Bloch, de 1923).
O utópico encontra-se espalhado por todos os lados, não há uma só cultura conhecida que ignore a sua presença visto que se converteu numa "dimensão antropológica essencial". Uma sociedade sem utopia é tão impossível como a um ser humano não sonhar.
Todavia foi inegável que a sua primeira obra relevante, redigida numa prosa marcadamente expressionista, Geist der Utopie, "Do Espírito da Utopia", publicada em 1918, nasceu sob o impacto da Revolução Russa de 1917 e pelo clima de insurreição geral que começou a predominar na Europa nos anos derradeiros da Primeira Guerra Mundial. A realidade da explosão revolucionária atiçou-lhe a busca pelo significado mais profundo e diverso da utopia.

Uma filosofia do futuro

Bloch observou que Marx provocara uma quebra e uma reviravolta no que até então era a fixação básica da filosofia ocidental. Desde a rememoração, a amnésia de Platão, até o tardio vôo da coruja de Hegel, ela tinha sua atenção voltada para o que já sucedera: o grego para a viagem que a alma realizava em direção ao arquétipo, bem antes do corpo nascer, e o alemão para a história do espírito visto pelo pássaro de Minerva, com os olhos voltados para o que ocorrera. Marx foi o primeiro pensador moderno a colocá-la, a filosofia, como um poderoso instrumento capaz de vir a escrutar o Zukunfts, o futuro, abrindo assim o caminho do novo, para a "problemática do novum", incluindo uma reflexão mais elaborada e precisa do que nos aguarda pela frente.
Coube-lhe sobrepujar os horizontes estreitos da mentalidade tradicional considerando as transformações das condições existentes numa possível realidade. É a doutrina que incluiu o futuro (a implantação da sociedade socialista) como fator essencial para a compreensão do passado e o entendimento do presente.
Neste momento da análise da contribuição do marxismo, Bloch faz uma advertência sobre os dois tipos de futuro. Recorrendo à expressão de Heidegger, define um deles como "inautêntico": o que continua velho, puramente cronológico, que não apresenta nada de novo, uma repetição monótona do mesmo, ao qual ele contrapõe o futuro "autêntico", positivo, onde "floresce a esperança, em que não há falsidade", o futuro como realização da utopia formadora de um ser distinto.(*)


(*) Bloch, que viveu os anos de guerra exilado nos Estados Unidos, deixou a América para atender ao convite da Universidade Karl Marx, em Leipzig, na Alemanha Oriental. Todavia, seu humanismo não demorou a entrar em choque com o neo-stalinismo que imperava no lado comunista. Em 1961, aproveitando uma viagem para o lado ocidental, ele e sua família não retornam, radicando-se em Tübingen, na Suábia, onde ele veio a falecer em 4 de agosto de 1977.


Bibliografia


Albornoz, Suzana – Ética e Utopia. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985.
Bloch, Ernst – L´Esprit de la Utopie. Paris: Gallimard, 1977.
Bloch, Ernst - Thomas Münzer, teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
Bloch, Ernst - O Principio Esperança. São Paulo: Contraponto, 2006, 3 v.
Furter, Pierre - Dialética da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974



(*)Quem é Voltaire Schilling
:

Nascido em 1944, é professor de História e Mestrando na UFRGS, responsável pelo Projeto Cultural do Curso Universitário. Escreveu 8 livros (*) e mais de 40 polígrafos, a maioria sobre História e História das Idéias Políticas.

É professor do Curso de Jornalismo Aplicado da RBS-RS e palestrante da AJURIS-RS. Fez o Curso de Língua e Cultura alemã em Berlim em 1986, onde foi palestrante na Universidade Livre. Representou o Brasil na Feira Internacional do Livro de Jerusalém, em 1991.
É articulista da Zero Hora-RS na página de “Opinião”, colaborador do Caderno de Cultura ZH e, também, foi comentarista de assuntos internacionais, culturais e políticos do programa “Câmera 2” na TV Guaíba-RS.


Livros


O Nazismo: breve história ilustrada, Editora da Universidade Federal/RS, Porto Alegre, 1988, 85 págs.

Confrontos: o pensamento político alemão, Editora da Universidade Federal/RS, Porto Alegre, 1996, 93 págs.

Estados Unidos versus América Latina: as etapas da dominação, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1991, 78 págs.

A Revolução Chinesa: colonialismo/Maoísmo/ Revisionismo, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1984, 119 págs.

Momentos da História: a função da história na conjuntura social, Editora Tchê, Porto Alegre, 1988, 148 págs.

Tempos da História, Editora Solivros, Porto Alegre, 1995, 357 págs.

As Grandes correntes do pensamento, Editora AGE, Porto Alegre, 1998,159 págs.

O conflito das idéias, Editora AGE, Porto Alegre, 1999, 199 págs.




EXCESSOS DO CULTURALISMO: PÓS-MODERNIDADE OU AMERICANIZAÇÃO DA ESQUERDA ?



Por: J.A. LINDGREN ALVES


Embaixador de carreira, atual cônsul geral do Brasil em São Francisco (EUA), ex-diretor geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores (Brasília) e ex-membro da Subcomissão das Nações Unidas para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias (Genebra)




Resumo


Assim como o neoliberalismo, as teorias da pós-modernidade espalharam-se por todo o mundo, em um processo que teve início nos Estados Unidos. Os movimentos sociais, ao se tornarem culturalistas, incorporaram e desenvolveram o pós-modernismo, abandonando o universalismo que sempre caracterizara as posições de esquerda. Essa americanização dos movimentos sociais permitiu estabelecer firmemente as questões de gênero, sexualidade e etnicidade na agenda política, mas tal agenda se tornou tão exclusivista que deixou de contemplar conquistas sociais mais amplas. Tendo em conta a especificidade de cada situação, os movimentos sociais do Brasil precisam saber avaliar melhor os modelos que pretendem seguir.

***



Jameson



One remembers, indeed, Freud’s delight at discovering an obscure tribal culture, which alone among the multitudinous traditions of dream-analysis on the earth had managed to hit on the notion that all dreams had hidden sexual meanings – except for sexual dreams, which meant something else! So also it would seem in the postmodernist debate, and the depoliticized bureaucratic society to which it corresponds, where all seemingly cultural positions turn out to be symbolic forms of political moralizing, except for the single overtly political note, which suggests a slippage form politics back into culture again.1
FREDRIC JAMESON, 1984



Zizek




It is crucial to perceive how postmodern racism emerges as the ultimate consequence of the postpolitical suspension of the political, of the reduction of the state to a mere police agent servicing the (consensually established) needs of market forces and multiculturalist, tolerant humanitarianism.2
SLAVOJ ZIZEK, 1998


INTRODUÇÃO

No cenário de desumanização em que acaba de transcorrer a passagem do século XX ao século XXI, os males de nosso mundo canhestramente globalizado são quase sempre atribuídos, com justíssimas razões, ao absolutismo do mercado como única verdade nos quatro cantos da Terra.
Raramente assumido pelos agentes que o propagam com a designação doutrinária que o torna reconhecido, o neoliberalismo penetra e se consolida inclusive nas cidadelas antes mais inexpugnáveis ao imperialismo do capital. Menos perceptível, porque muito mais sutil, e muito menos criticada, porque geralmente vista por seu lado positivo, a mesma disseminação se dá com as idéias da pós-modernidade e seu antiuniversalismo.
Originárias do Ocidente tanto quanto o iluminismo por elas denunciado, as teorias “pós-modernas” são hoje em dia estudadas em quase todo o planeta, na Europa como nas Américas, na Índia como na Eslovênia, na Sérvia como na Austrália, nos centros de estudos de Berkeley como nas universidades de Pequim (ou Beijing, como se diz agora). Entendê-las é sempre bom, em qualquer parte do mundo. Difícil é evitar que sua manipulação não acabe funcionando como alavanca e escusa aos males generalizados pelo absolutismo do mercado.
Enquanto na esfera da economia, o neoliberalismo é, como se alega, a doutrina necessária daquilo que a tradução do “idioma global” rotula de capitalismo tardio (em inglês, late capitalism), a pósmodernidade – ou pós-modernismo, no dizer de grandes críticos como Fredric Jameson e Terry Eagleton – é a lógica cultural que o fundamenta e dele emana na esfera das artes, da literatura, das ciências humanas e de práticas político-sociais correntes. Por menos que assim deseje o logos relativizante do pósmodernismo “epistêmico” (para falar com Foucault), simultaneamente individualista e anti-subjetivista num desconstrutivismo infinito (para falar com Derrida), sua praxis da diferença exacerbada concorre fatalmente para que o mercado se apresente como o universal que sobrou. Mais do que pelo fim da Guerra Fria e do chamado “socialismo real”, isso se tornou possível porque em algum momento do século XX, particularmente em torno de 1968, os antigos atores das lutas universalistas passaram a encarar separadamente cultura e economia. E, como quase tudo o que tem ocorrido na experiência histórica do mundo desde o século XVIII, para o bem e para o mal, essa separação metodológica, intelectualmente engendrada no pensamento europeu, traduziu-se em práticas consistentes primeiro nos Estados Unidos. De lá se espalhou por todos os continentes, num processo de americanização muito pouco analisado.
Quando se diz americanização, pensa-se logo, em geral, pelo lado positivo, no espírito empreendedor que constrói obras fabulosas, no pragmatismo imediatista do pensamento e da ação, na paixão pelo novo como sinônimo de progresso, na divulgação dos ideais e dos meios de higiene e conforto, no liberalismo político e nas instituições-modelo das democracias modernas. Pelo lado negativo, costumam vir à mente, ademais da imagem costumeira do capitalista gordo (que antes fumava charuto e hoje é antitabagista sobretudo para não pagar contribuições sociais e indenizações) a esmagar o trabalhador, a propaganda eficaz comercial ou não, os modismos de gosto duvidoso, as baboseiras hollywoodianas, os hambúrgueres sabor-papel engolidos com Coca ou Pepsi-Cola, o consumismo irrefreável como vício e auto-afirmação, a dominação da realidade pelos media – ou pela “mídia”, como se diz no Brasil, com redação aportuguesada e gênero e número invertidos de palavra latina pronunciada em inglês.
Há também, evidentemente, americanizações que são neutras, como a dos jeans e do rock, totalmente universalizados. Mas existe, igualmente, outro tipo de americanização cultural, mais sutil e ambivalente, a que pouca gente se refere, até porque talvez dela não se dê a devida conta: a americanização de movimentos sociais a partir de suas lideranças. Sua compreensão é necessária ao nosso Brasil
dual, onde o arcaico e o pós-moderno convivem num (des)equilíbrio absurdo, a fim de que a luta imprescindível pela modernização nacional não se venha a revelar ainda mais problemática do muito que já tem sido.
Para procurar entender essa americanização “da esquerda” é preciso retroceder no tempo a uma fase também tumultuada, mas num sentido distinto de nosso tumulto atual.

OS GOOD OLD SIXTIES E A CULTURALIZAÇÃO DA POLÍTICA

Os “bons anos 60” são para qualquer um a época dos Beatles e da bossa nova, do LSD e dos grandes festivais, de Kennedy e de Khrushev, do Sputnik e da viagem à Lua, de Che Guevara e de Mao, da pílula anticoncepcional e do sexo livre sem ids. São igualmente anos de Guerra Fria e Guerra do Vietnã, de desobediência civil e rebelião dos jovens, de revolução e contra-revolução, da Primavera de Praga e da Doutrina Brejnev. São também, em vastas partes do mundo relativamente periféricas (o Brasil, entre elas), anos de agitação e golpes militares, de passeatas e repressão, de idealismo utópico e ditaduras crescentemente sombrias. Para a Organização das Nações Unidas (ONU), a década de 60 foi, sobretudo, a década da descolonização. Foi nela que se deu a independência do maior número de Estados afro-asiáticos emersos do sistema colonial.
Foi nela que se estabeleceu o conceito positivo de um Terceiro Mundo capaz de produzir progresso com liberdade para toda a “aldeia global”, e ganhou foros de possibilidade tangível uma Nova Ordem Econômica Internacional – sepultada antes de nas cer. Foi, apesar de tudo, no cômputo geral do mundo, uma época de otimismo, embalado por esperanças emancipatórias, com crença num futuro solidário, diferente da época presente.
Entre os acontecimentos de maior influência local e internacional até agora, a década de 60 testemunhou os êxitos do movimento negro norte-americano pelos direitos civis, assim como o encerramento de sua mobilização nacional unitária e unificadora. Testemunhou da mesma forma o fortalecimento do movimento de mulheres como força social autônoma, assinalando o início da revolução que causou. Ambos os movimentos e suas transformações tiveram e têm ainda reflexos bastante profundos no cenário brasileiro.

Os Avatares do Movimento Norte-americano pelos Direitos Civis

É ponto pacífico entre historiadores da matéria que o assassinato de Martin Luther King Jr., em 4 de abril de 1968, praticamente encerrou a fase do movimento norte-americano pelos direitos civis, que exigia do governo da União responsabilidade e
ação garantidora da não-discriminação racial. Encerrou-o não somente porque foi conseqüência imediata dessa morte a aprovação pelo Congresso do Civil Rights Act de 1968, que deveria culminar a reforma legislativa em defesa da igualdade formal, proibindo a discriminação habitacional e federalizando a obrigação de controlar ingerências contra direitos da pessoa. Encerrou-o sobretudo porque, depois dela, as facções predominantes no movimento negro – que já existiam antes, mas não eram tão expressivas – não mais compartilhariam o “sonho” de Martin Luther King de uma “cidadania de primeira classe”, numa sociedade irmanada, em que as pessoas não fossem julgadas “pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”.3 Visibilidade e impacto maior, nos Estados Unidos e no resto do mundo, passaria a ter a movimentação black power, cujo líder Stokely Carmichael logo advertiu a “América Branca” do erro que ela teria cometido: o de “matar o único homem de nossa raça, na geração mais velha do país, a quem os militantes, os revolucionários e as massas de pessoas negras ainda escutariam”.4
Na seqüela do assassinato de Luther King, os guetos urbanos negros entraram em convulsão. Os levantes civis de caráter racial, em mais de uma centena de cidades, e a repressão a eles tiveram um saldo negativo de 40 mortos, três mil feridos e bilhões de dólares perdidos em propriedades destruídas.5 Pior e mais conseqüente foi o fortalecimento, naquele período, da convicção entre os jovens negros de que a sociedade norte-americana seria, nas palavras de Alan Brinkley, “irredimivelmente racista”, e o “liberalismo tolerante e inter-racial, inadequado à tarefa da libertação”.6 Para isso também contribuiu o assassinato de Robert Kennedy, pré-candidato à presidência da República pelo Partido Democrata, em 6 de junho de 1968, como que a reconfirmar, trágica e eloqüentemente, a suposta incapacidade de assimilação das aspirações igualitaristas da população pobre, em geral, e das minorias étnicas, em particular, pelo liberalismo avançado, que ele simbolizara. Reação ajustada a um sistema segregacionista, que, conforme herança classificatória escravista do antigo Império Britânico, definia a população nãobranca pelo critério de “uma gota de sangue” (este permitira no passado a escravidão de quem tivesse algum ascendente negro e até hoje rejeita a mestiçagem como espúria), o radicalismo black power, que se tornou predominante no movimento negro norte-americano, ainda assim não era monolítico. Na classificação de Manfred Berg, havia entre seus militantes diferentes facções, “pluralistas” e “nacionalistas”. Os “pluralistas” postulavam o “controle comunitário” do comércio, das escolas e da polícia nas áreas de população negra, além de organizações políticas efetivamente independentes (em contraste com a National Association for the Advancement of Colored People–NAACP, maior agrupamento nacional, até agora existente, que sempre dialogou com o governo, exerce pressão no Congresso e repudia o racismo às avessas). Mas eram reputados moderados por aceitarem a idéia de uma “sociedade norteamericana”. Os “nacionalistas”, por sua vez, subdividiam-se em separatistas territoriais, revolucionários anticapitalistas e culturalistas afrocêntricos. Todos utilizavam conceitos e terminologia marxista, mas todos davam prioridade – ou exclusividade – ao recorte racial sobre o recorte de classe.7 A continuação dessa história é bastante conhecida. Enquanto os programas sociais da “guerra contra a pobreza” de Lyndon Johnson sucumbiam ante os gastos – e derrotas – da guerra do Vietnã, e a “nova esquerda” assumia um revolucionarismo extremamente difuso, a exacerbação “nacionalista” – hoje em dia se diz culturalista – do movimento negro alienou os brancos liberais que com ele se aliavam e votavam no Partido Democrata. O segregacionismo branco voltou ao proscênio com a candidatura independente de George Wallace à presidência da República;8 a classe média, normalmente alienada, que simpatizara com os negros sofredores do início da década, passou a encarar o movimento negro crescentemente assertivo como uma ameaça à Nação; Richard Nixon foi eleito presidente pelo Partido Republicano no final de 1968 (tendo sido ele quem, afinal, adotou o sistema de quotas nas contratações de serviços públicos, que complementariam
a “ação afirmativa” da esfera da educação).
O movimento negro norte-americano, como instrumento articulador de luta no cenário político nacional, praticamente deixou de existir. Manteve, por outro lado, perfil alto e militante no exterior. Já havendo influído na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965 (cujo artigo 4.º preconiza o sistema de preferências da “ação afirmativa”), seu consistente ativismo na campanha internacional contra o apartheid sul-africano, até a abolição desse regime, teve provavelmente maior repercussão em governos estrangeiros do que nos governos de Washington. Serviu e serve ainda de modelo, em muitos aspectos, às lutas dos negros brasileiros e de outros países, por reconhecimento e melhores condições sociais. Dentro do país, porém, sua influência se manifesta quase exclusivamente no campo cultural.
Escritores negros, norte-americanos e de outras nacionalidades, passaram a fazer parte do cânon obrigatório escolar; os livros didáticos atuais procuram valorizar o elemento negro na história do país; as grandes universidades contam com departamentos de estudos étnicos. Até mesmo uma celebração alternativa ao Natal, a Kwanzaa, inventada em Los Angeles, em 1996, por Ronald McKinley (rebatizado Maulana Ron Karenga) com denominação swahili e inspiração africana, mas não existente na África, foi oficializada no calendário cívico-escolar entre 26 e 31 de dezembro, para livrar os afro-americanos da “humilhação” de comemorar um festejo europeu.9 Sintomaticamente, numa população negra ainda majoritariamente cristã e protestante, bastante dividida hoje em dia pelo viés classista (inclusive no que diz respeito às posições diante da ação afirmativa, ora em declínio no país), o grupo politicamente militante mais numeroso, herdeiro da tradição black power nos dias atuais, parece ser a Nação do Islã, liderada por Louis Farrakhan, espécie de resposta culturalista ao movimento branco da Identidade Cristã, protestante e profundamente racista.10 Em 1968, pouco após a morte de Martin Luther King, seu herdeiro e continuador político Ralph Abernethy tentou reeditar a histórica Marcha sobre Washington de 1963, decisiva no contexto da luta pelos direitos civis, na qual King uma vez mais expusera, com grande repercussão, o seu “sonho” igualitarista.11 A passeata de Abernethy, cinco anos depois, tinha o objetivo de manter viva a mobilização integracionista, já então voltada contra a pobreza e a discriminação econômica incidente sobretudo nos negros, acorde com a visão de King (por ele preconizada, mas nos dias de hoje quase totalmente esquecida) de que os direitos civis não se realizam separadamente dos direitos econômico-sociais. O evento de 1968 obteve participação e repercussão diminutas. Em 1995, o líder muçulmano Louis Farrakhan decidiu fazer o mesmo de 1963, convocando uma “Marcha de Um Milhão” sobre Washington. Tendo ou não realmente um milhão de participantes, a convergência de negros em 1995 sobre a capital da República causou impacto pela magnitude e trouxe à Nação do Islã grande notoriedade. Impressionou, da mesma forma, num sentido radicalmente oposto, porque, ao contrário do caráter abrangente e multirracial de sua antecessora exitosa dos tempos de Luther King, a marcha de Farrakhan excluiu não somente os brancos, mas também as mulheres de qualquer raça ou cor.12 Ao alienar as mulheres dessa grande iniciativa e, conseqüentemente, da atividade política em geral, em paralelo à exibição de um fundamentalismo retrógrado que poucas nações islâmicas africanas ou asiáticas ainda ousariam ostentar,13 a Nação do Islã norte-americana se auto-elimina a possibilidade de receber apoio de outros movimentos sociais conseqüentes, particularmente daquele que mais cresceu desde a década de 60, nos Estados Unidos e internacionalmente: o movimento das mulheres.

O Movimento Internacional das Mulheres: feminismo da igualdade e feminismo da diferença

É fato bastante documentado, pelo menos no Ocidente, que a luta histórica das mulheres por seus direitos humanos, gerais e a elas específicos, vem de longa data. Todos conhecem a figura das sufragettes norte-americanas e britânicas em suas manifestações pelos direitos políticos da população feminina, por tanto tempo denegados ainda no século XX.
Muitas mulheres e homens, não necessariamente militantes, são familiarizados com o extraordinário projeto de Declaração dos Direitos da Mulher, redigido por Olympe de Gouges no calor da Revolução Francesa. Alguns – mais corretamente, algumas – terão lido a obra de Mary Wollstonecraft A Vindication of the Rights of Women, também do século XVIII. Praticamente todas as sociedades, ocidentais e orientais, atualmente cultivam com admiração as personagens históricas respectivas que funcionaram como precursoras do movimento feminista. Foi, contudo, na década de 60, no contexto das lutas antiautoritárias da chamada “nova esquerda”, com sua visão abrangente das opressões disseminadas nas sociedades capitalistas, assim como nos países de socialismo burocrático, e com o célebre slogan de que “o pessoal é político”, que o movimento social das mulheres, como atualmente entendido, começou a firmar-se com autonomia e vigor. Emergiu nos Estados Unidos em paralelo aos movimentos contra a Guerra do Vietnã e pelos direitos civis, recebendo desse segundo influência notável. Um de seus marcos foi, por sinal, a fundação por Betty Friedan, em 6 de outubro de 1966, da National Organization of Women (NOW), que, a exemplo do NAACP dos negros, postulava a igualdade de direitos – nesse caso com os homens – em todos os aspectos da vida social, econômica e institucional.14 Cronista “engajado” da rebelião dos anos 60, Todd Gitlin descreve, com episódios ilustrativos, como as estudantes e jovens norte-americanas militantes da nova esquerda foram se distanciando gradativamente de seus companheiros de campanhas libertárias e igualitaristas, no curso de 68. Faziam-no ao observar, na pele própria e das outras, a distância gritante existente entre o antiautoritarismo por eles propugnado e o conservadorismo opressivo que mantinham nas relações privadas.15 A autonomia, originalmente forjada em grupos de estudo que liam Simone de Beauvoir e Betty Friedan, desenvolvia teorias próprias, emancipatórias, a respaldar sua asserção política, e se organizava em redes, nacionais e transnacionais, para a ação desejada. Germinaria primeiro na forma do movimento women’s lib, que iria incentivar suas homólogas transcontinentais na Europa Ocidental,16 na América Latina, no Japão e no Brasil, ainda durante a efervescência social de 1968.
Ao contrário do movimento negro norteamericano, arrefecido no final dos anos 60 em contraste com a radicalização das facções culturalistas, o movimento de mulheres ganhou força decisiva a partir dos anos 70. Isso se deu tanto em função de seu ativismo manifestado em diferentes países, como por sua penetração no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e sua incorporação pelo Conselho Econômico e Social. A ONU proclamou 1975 como “Ano Internacional da Mulher”, convocando na cidade do México a I Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, a qual, por sua vez, ensejou a elaboração da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Assembléia Geral em 1979 (internacionalmente em vigor desde 1981, embora com muitas reservas).
A Conferência do México de 1975 iniciou a série de encontros mundiais sobre a situação da mulher, o quarto dos quais até agora – mas certamente não o último da série – foi a Conferência de Beijing, de 1995, maior encontro internacional de todos os tempos.17
Não cabe aqui uma tentativa de análise das diferentes vertentes do movimento feminista, que variavam desde posições igualitaristas, liberais e socialistas (feminismo da igualdade), às posturas essencialistas, antipatriarcais e “separatistas”, associadas ou não ao lesbianismo prático e ideológico (feminismo da diferença), muitas vezes em articulação com o movimento dos gays.18 Cabe, sim, observar que, ademais da entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho em escala planetária, de sua crescente presença na vida pública, política e econômica da maioria dos países, das conquistas representadas pelas creches e legislações de apoio à maternidade, pela afirmação de seus direitos reprodutivos e sexuais, o movimento de mulheres praticamente modificou em todo o mundo a maneira de pensar e, em muitas partes, o comportamento de todos. Com raras exceções deliberadas e ainda muitos deslizes de linguagem geralmente inadvertidos (até mesmo entre as mulheres), o homem já não se apresenta sozinho como sinônimo da espécie; os direitos humanos, em todas as suas categorias, passaram a abranger também, necessariamente, todos os direitos da mulher; 19 o discurso oficial dos governos e movimentos sociais – sem falar no da Academia – passou a atentar mais seriamente para as distorções que o discurso
tradicional embutia, facilitando a perpetuação de opressões; a mulher tornou-se afinal reconhecida universalmente como sujeito da História (exceto provavelmente para pós-modernos empedernidos que rejeitam as noções “iluministas” de história e de sujeito, de natureza humana e, sobretudo, de valores universais).
De todos os conceitos oriundos do pensamento feminista, o que se tem comprovado mais permanente e conseqüente é o do gênero. Na expressiva colocação de Gerda Lerner, ele seria “a de- finição cultural de uma conduta como apropriada aos sexos em uma sociedade dada em uma época dada. Gênero é uma série de papéis culturais. É um disfarce, uma máscara, uma camisa de força na qual os homens e mulheres dançam sua dança desigual”. 20
Interpretado a partir da linguagem dominante, mas em oposição a um determinismo biológico atribuído ao sexo, o conceito feminista de gênero desvendou as relações de poder que subjaziam à limitação “natural” da mulher ao espaço doméstico, revelando a posição de inferioridade que lhe era culturalmente imposta. Foi, no dizer de María-Milagros Rivero Garretas, “uma categoria de análise tremendamente libertadora quando cunhada no início dos anos 70”, embora com o passar do tempo ela se tenha revelado “menos revolucionária do que as de patriarcado ou de política sexual”.21 Talvez precisamente por isso, por ser menos revolucionária, a conceituação feminista de gênero tenha obtido aceitação universal. Incorporada também pelos homens, ela é hoje consagrada em diversos documentos normativos internacionais, em particular na Plataforma de Ação da Conferência de Beijing, de 1995. Esta assinala em seu terceiro parágrafo: A Plataforma de Ação salienta que as mulheres compartilham problemas comuns que só podem ser resolvidos por seu trabalho conjunto e em parceria com os homens para alcançar o objetivo da igualdade de gênero em todo o mundo. Ela respeita e valoriza a total diversidade de situações e condições das mulheres e reconhece que algumas mulheres enfrentam barreiras especiais a sua
capacitação.22 Ainda que o chamado “feminismo da diferença” continue a produzir teorias revolucionárias com algum alcance prático entre grupos reduzidos, não é ele que se tem demonstrado útil para os avanços das mulheres em geral. Seja na Conferência de Beijing, seja na prática social de quase todos os países, é o “feminismo da igualdade” que tem conseguido vitórias, acrescidas ao longo dos anos (malgrado graves regressões, relativamente isoladas em determinadas regiões e culturas). Tais conquistas gradativas, que representam, no conjunto, profunda ruptura com uma tradição histórica de mais de 4 mil anos, asseguram plenamente ao movimento de mulheres nascido na década de 60 inquestionável caráter revolucionário, não sendo exagerado afirmar ter ele constituído, no século XX, a única revolução que deu certo – apesar de obviamente inacabada.

OS IMPASSES DO CULTURALISMO EXACERBADO

Se até o momento este texto se concentrou nas experiências dos movimentos dos negros e das mulheres, iniciados nos Estados Unidos e extrapolados para o resto do mundo com as necessárias adaptações, é porque ambos trazem em si, no que têm de vitoriosos, a mensagem do universalismo, sem a qual se dissolve a idéia dos direitos humanos. No entanto, para muitos intelectuais que se pretendem comunitariamente orgânicos numa linha gramsciana desvinculada de classe, essas “facções” de maior êxito em ambos os movimentos alegadamente não representariam “a esquerda”. Esta residiria apenas no essencialismo radical do “culturalismo” aguerrido, praticado na Academia, dos Estados Unidos e alhures.
Não é preciso recorrer ao chavão despiciente do “politicamente correto” (PC), usado pela direita para criticar os excessos do culturalismo. A um observador distanciado como o autor destas linhas impressiona a freqüência com que se lê e ouve nos Estados Unidos a expressão culture wars (guerras de culturas), significando o radicalismo identitário da militância cultural, o patrulhamento por ela dos estudos e da linguagem acadêmica, em detrimento da participação efetiva em causas abrangentes de interesse geral. Impressiona mais ainda a massa crítica de estudos aprofundados por intelectuais que se autoconsideram de esquerda – sejam da “esquerda antiga”, progressista liberal ou socialista, sejam ex-integrantes
da “nova esquerda”, agora já envelhecida, sejam ainda pragmáticos pós-modernos, de esquerda moderada – preocupados com a fragmentação política propiciada pelo multiculturalismo rígido ora praticado na sociedade norte-americana.23 Exagerada ou acurada, soa significativa a imagem, já quase clássica, de Todd Gitlin, em seu Crepúsculo de Sonhos Comuns (título de livro que é de per si um grande achado), de que “enquanto a esquerda marchava sobre os departamentos de inglês nas universidades, a direita conquistava a Casa Branca”.24 Bastante citada pelos que compartilham tal preocupação, a frase de Todd Gitlin resume acuradamente as idéias e inquietações dele próprio e de todos os demais. Porque foi a partir da opção pelo direito à diferença na militância radical de esquerda que o conservadorismo se firmou, de maneira quase absoluta, na política norte-americana. Firmou-se, aliás, antes e mais profundamente do que o próprio neoliberalismo (este iniciado com Reagan) como verdadeiro pensamento único das elites dominantes. Com seus aspectos morais e religiosos muito estritos, suas vertentes nativistas e patrióticas, seus valores tradicionais de família e comunidade (ainda que com acenos episódicos em favor de parentes homossexuais “desgarrados”), mas nenhuma atenção à situação de classe e à exploração pelo poder, o conservadorismo norte-americano ficou tão “consensual”
que tornou negligenciáveis as diferenças entre os dois grandes partidos. Quem tiver dúvidas sobre sua continuidade até os dias de hoje pode consultar as eleições presidenciais de 2000, de resultados tão próximos quanto os programas dos dois candidatos principais, sem desatentar para a performance irrisória da alternativa oferecida por Ralph Nader e o Partido Verde à chamada corporate America. É, aliás, sob o rótulo oficial de “conservadorismo compassivo” que o novo presidente da República, George W. Bush, dá início, no século XXI, ao governo da única potência mundial verdadeira.
É verdade que as preocupações dos autores aqui aludidos voltam-se para a sociedade norteamericana em sua especificidade, ecoando, com análises e sugestões, dúvidas levantadas em muitas áreas – e muito exploradas pela direita – se ainda existiria de fato uma nação norte-americana. Mas a insistência dessas preocupações deve valer pelo menos como sinal de alerta também para outros povos em que o multiculturalismo imperfeito também está presente, com graus maiores ou menores de explosividade latente.
Com ou sem nexo causal imediato, desde que os grandes movimentos sociais, começando pelos Estados Unidos, passaram a atentar mais para objetivos identitários do que para a comunidade nacional e o universo de todos os seres humanos, o neoliberalismo implantou-se decisivamente em todo o globo terrestre. As “guerras culturais” adquiriram, no mundo, feições muito mais sangrentas do que na América (do Norte ou do Sul). Os conflitos novos da ex-Iugoslávia, da Chechênia, da Ásia Central exsoviética, de Ruanda, do Burundi, do Congo, assim como outros, antigos, recrudescidos por quase todo o continente asiático, são casos de gravidade variada em que minorias identitárias étnicas ou religiosas explodem ou são esmagadas com violência, na periferia do mundo globalizado pelo neoliberalismo multicultural. A mesma lógica se manifesta no centro europeu do sistema internacional, em incidentes de agressão discriminatória, muitas vezes respaldada por políticas “nacionalistas”, contra imigrantes, ciganos e judeus. Não se precisa, portanto, de especialização no tema das minorias para perceber, como o professor Will Kymlicka, que “desde o fim da Guerra Fria, os conflitos etnoculturais tornaram-se a fonte mais comum de violência política no mundo, e eles não mostram qualquer sinal de arrefecimento”. 25 Nem é de estranhar tampouco que o crítico mais versátil e profundo da obsessão multiculturalista – que ele chama de pós-moderna e pós-política, associada ao livre mercado e ao humanitarismo – surgido nos anos 90 seja originário de país que antes integrava a esfacelada Iugoslávia: o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Ljubljana.26 Não se quer aqui dizer que a insistência no cultural como elemento de autoconscientização não tenha representado papel emancipatório importante, ou que a abstração da cultura do determinismo econômico, impulsionada pelo pós-estruturalismo francês e adotada com grande convicção pela “nova esquerda” dos anos 60 e 70, não tenha sido útil, em especial no Ocidente. Porque esclarecedora de muitos aspectos até então encobertos das realidades sociais, a separação interpretativa desses dois condicionantes – cultura e economia – conscientizou vastos segmentos populacionais para mobilizações necessárias. A compreensão das opressões disfarçadas no discurso universalista tradicional, da onipresença do poder sobre os corpos dos indivíduos – explicitada por Foucault e muito desenvolvida no pensamento feminista – e da instrumentalização da razão iluminista para fins anti-humanistas – analisada por Horkheimer e Adorno, que não eram “pós-modernistas” – foi elemento imprescindível aos poucos avanços sociais efetivamente alcançados na segunda metade do século passado. Mas é válido indagar até que ponto a globalização incontrolada teria dado margem ao nível atual de fragmentação e indiferentismo planetários, se as alas “esclarecidas” dos movimentos emancipatórios não tivessem adotado, com o fervor que o fizeram, um perspectivismo radical; se, com a obsessão identitária, não tivessem acabado por reduzir suas metas a fins microcomunitários; se a noção do direito à diferença não tivesse sobrepujado a dos direitos humanos; se a esquerda da esquerda – sua suposta vanguarda – não se tivesse também americanizado. Com preocupações voltadas para seu país, o norte-americano Todd Gitlin observa: Muitos expoentes da política de identidades são fundamentalistas – na linguagem da Academia, “essencialistas” – e a crença em diferenças grupais essenciais facilmente transita para a crença em uma superioridade. (...) O cultivo da diferença não é nada de novo, mas a pura profusão de identidades que reivindicam separação política nos dias de hoje é sem precedentes. E aqui está talvez a novidade mais estranha da situação presente: que o conjunto de reconhecimentos
grupais tome tanta energia daquilo que se apresenta como esquerda.27 A observação de Gitlin, professor em Berkeley, motivada pelo cenário que o circunda, é complementada tomando por base a Europa, com maior abrangência, por Terry Eagleton, professor em Oxford, para quem:
O Ocidente está agora inchado de políticos radicais cuja ignorância das tradições socialistas, nem por isso menos suas, é, entre outras coisas, decorrência de amnésia pós-modernista. E nós nos estamos referindo aqui ao maior movimento de reforma a que a história já assistiu. (...) Encontramo-nos agora confrontados com a situação meio farsante de uma esquerda cultural que mantém um silêncio embaraçado ou indiferente sobre aquele poder que é a cor invisível da própria vida diária, que determina nossa existência – às vezes literalmente – em qualquer lugar, que decide em larga medida o destino das nações e os conflitos destrutivos
entre elas. É como se quase todas as outras formas de sistemas opressivos – Estado, media, patriarcado, racismo, neocolonialismo – pudessem ser debatidas sem problema, mas não aquele que tão freqüentemente define a agenda de longo prazo para todos esses assuntos, ou pelo menos está implicado com eles até a raiz.28 O poder a que se refere Terry Eagleton é, evidentemente, o poder do capital; o sistema, o do capitalismo em sua fase atual. Estes o pós-modernismo não discute. Nem se preocupa em sugerir contrapesos ou alternativas plausíveis, a não ser dentro dos grupos de identidade restritos ou em esquemas teóricos tão impraticáveis quanto confusos29 – por mais que os pós-estruturalistas, pelo menos nos anos 60, tanto se rebelassem contra todas as opressões. Daí a radical afirmação de Slavoj Zizek, conhecedor das feições mais sombrias do fundamentalismo identitário micronacionalista em sua própria região, de que a maneira apropriada de se lutar contra o ódio étnico não é com sua suposta contrapartida natural, a tolerância étnica, e sim com mais ódio político dirigido contra o inimigo comum.30 Embora outros ódios destrutivos abundem no multiculturalismo atualmente hegemônico no Ocidente, esse ódio político criativo, de feições e objetivos universalistas, propugnado pelo filósofo de Ljubljana, não existe nos Estados Unidos. Nem tem condições de existir de forma coordenada, por razões muito específicas que veremos em seguida, embora algum lampejo de articulação nessa linha comece a aparecer na confusa movimentação de vários grupos da sociedade civil organizados em rede contra os emblemas da globalização corrente.

ESPECIFICIDADES NORTE-AMERICANAS INTRANSPONÍVEIS

Em decorrência do afrocentrismo originalmente black power, o negro norte-americano é hoje oficialmente designado African American (não Afro- American, como seria gramaticalmente correto, aparentemente porque, no entender dos radicais, a expressão hifenizada implicaria a valorização do termo “americano” sobre o prefixo “afro”).31 Por emulação, os índios, antigos “peles vermelhas” – que também começaram a atuar coordenadamente em 1968 32 – passaram a chamar-se Native Americans. Para uma sociedade que sempre foi muito mais um mosaico de peças justapostas do que o cadinho misturador (melting pot) pelo qual a propaganda oficial a definia, o gentílico composto tornou-se um grande achado. Os brancos minoritários, inicialmente perseguidos ou ainda objeto de preconceitos, também se autodenominaram “americanos irlandeses” (Irish Americans), “americanos poloneses” (Polish Americans) e assim por diante, para valorizar as respectivas “culturas”. Sempre desconsiderando a mestiçagem como categorização válida, por mais que ela seja evidente e, no caso em questão, autenticamente norte-americana, o serviço de imigração e os censos oficiais passaram a exigir que os indivíduos “não-brancos” se autoclassificassem como African American, Native American, Asian ou Pacific Islander, ademais do quase injurioso Hispanic (que se aplica a todos os brasileiros não-negros, assim como aos mapuches, aimaras e quêchuas, ou descendentes de incas, astecas e maias, mas não aos cidadãos espanhóis), 33 ao passo que os brancos de origem européia são simplesmente brancos, ainda que se considerem predominantemente russos, irlandeses ou italianos. Nos Estados Unidos, com suas peculiaridades históricas, econômicas e organizacionais, essas identificações diferenciais persistentes e obsessivas dos descendentes de escravos, de coolies e de imigrantes de toda e qualquer origem – contrastantes com o que ocorre com inegável naturalidade no Brasil (sem aqui pretender exumar o defunto mito de nossa democracia racial)34 – têm suas razões de ser, não apenas “culturais”. Uma delas, não-contemplada a priori, mas não-negligenciável a posteriori, é a própria expansão capitalista do mercado doméstico de bens de consumo, com a oferta de produtos e a propaganda ajustadas ao recorte identitário das minorias-alvo. Estas, com um total nacional de 77 milhões de pessoas e já representando mais da metade da população da Califórnia, levam as agências publicitárias a movimentar anualmente 2 bilhões de dólares em campanhas adaptadas ao perfil psicossomático e idiossincrático de cada minoria.35 Do ponto de vista histórico, é praticamente incontroverso entre os estudiosos da matéria que a nação norte-americana idealizada pelos founding fathers (Pais Fundadores) era para ser exclusivamente branca, protestante e anglo-saxã – ou, mais corretamente, anglo-germânica em geral. Ainda que a composição da população se tenha alterado substancialmente com o passar do tempo, essa idealização germanófila antiintegracionista e antimiscigenante subjazia à idéia da “sociedade norte-americana” até recentemente. Seria natural, portanto, que as “minorias” étnicas encontrassem meios organizacionais para se afirmarem como “cidadãs” efetivas, ainda que para isso sua “nacionalidade” precisasse aparecer composta, remetendo-se às origens ascendentes, em contraste com a cidadania oficial, simplesmente “americana”. Além disso, a auto-identificação dos indivíduos nessas categorias restritivas era e ainda é necessária para que a respectiva microcomunidade receba os recursos orçamentários pertinentes, distribuídos às diferentes constituencies de acordo com o número de seus integrantes, inclusive para o ensino público das respectivas línguas e/ou “tradições”. Michael Lind divide a história dos Estados Unidos desde a Guerra de Independência em três fases distintas. A Primeira República, que ele chama de Anglo-América, estendeu-se até a Guerra de Secessão. Nela havia dúvidas até se os irlandeses, por serem católicos, seriam realmente “americanos”, quanto mais os judeus e os negros. A Segunda República, ou Euro-América, conquanto iniciada após a abolição da escravatura, definiria como condição de “americanidade” apenas a ascendência européia e uma religião cristã, não necessariamente o protestantismo.
Esse abrandamento de critérios visava a abarcar na “nação americana” as massas de imigrantes brancos entrados no país desde o final do século XIX até a década de 1950. Os negros, evidentemente, continuavam excluídos. A Terceira República, ou a América Multicultural, corresponde à época atual, tendo se iniciado com o movimento pelos direitos civis. Ao contrário, porém, do que o movimento postulava, Michael Lind detecta atualmente uma verdadeira inversão de resultados: “Uma revolução que começou como uma tentativa de expurgar o direito e a política de classificações raciais e de alargar a classe média com a inclusão dos desprivilegiados terminou, ironicamente, dando origem ao renascimento do governo com consciência de raça e ao triunfo do conservadorismo econômico”.36
Nos meios acadêmicos dos Estados Unidos multiplicam-se os estudos dedicados aos direitos das minorias e às formas possíveis de implementálos com legitimidade, inclusive no que diz respeito à representação política.37 Quase todos se voltam para a situação norte-americana em sua especificidade, abordando muito superficialmente casos graves como o dos Bálcãs. E a sociedade norte-americana, passada ou atual, é tão distinta das sociedades “homogêneas” européias (em que as camadas heterogêneas se têm comprovado geralmente tão belicosas ou se acham tão cerceadas que não dá para falar em direitos coletivos) quanto de uma sociedade miscigenada como a brasileira, ou a cubana, ou a venezuelana (em que nada do que é discutido nos textos tem possibilidade de aplicação). Exemplo desse tipo de estudo certamente intransferível para outras realidades – se é que tem alguma possibilidade de aplicação concreta nos próprios Estados Unidos – pode ser visto nas propostas de Iris Marion Young para
dar legitimidade à representação de grupos minoritários na esfera política (mediante a alocação de fundos para que os grupos possam reunir-se e elaborar linhas de ação a serem consideradas pelos decisionmakers etc.). Independentemente do mérito das propostas, a lista de “grupos” contemplados por Íris Marion Young relaciona as seguintes categorias de indivíduos: “mulheres, negros, americanos nativos, chicanos, portorriquenhos e outros americanos de língua espanhola, americanos asiáticos, homens gays, lésbicas, pessoas da classe trabalhadora (working class people), pessoas pobres (poor people), idosos e pessoas portadoras de deficiências físicas ou mentais”.38 A par da intransferibilidade das sugestões da autora – pelas características inteiramente distintas das minorias existentes em outros países, pela imprecisão das fronteiras grupais em populações miscigenadas e pela evidente indisponibilidade de recursos públicos para a implementação de tais consultas regulares em países do Terceiro Mundo –, poder-seia inquirir se esse tipo de formulação, e até de preocupação, não é mera decorrência de hábito que o culturalismo identitário dos anos 60 e 70 e o multiculturalismo oficial vigente desde então criaram no pensamento de esquerda. Afinal, se os “grupos” contemplados na proposta envolvem as “pessoas pobres” em geral e as “pessoas da classe trabalhadora”, seria necessária essa divisão toda? Não seria mais lógico lutar simplesmente pelos direitos de representação adequada dos pobres e trabalhadores? Faz sentido falar nos pobres como uma minoria cultural assemelhada, por exemplo, à dos chicanos? Será que a mulher rica não-trabalhadora faz questão de representação especial? Será que o burocrata negro bem-sucedido ou o chicano proprietário de firma lucrativa, investidores ambos em mercados financeiros, que votam regularmente no Partido Republicano e são contra a “ação afirmativa”, porque perpetuaria discriminações disfarçadas,39 estarão tão preocupados com a representação de sua “cultura africana” ou “hispânica”?40 Com o crescimento exponencial das minorias raciais hispânica e asiática (na Califórnia, o mais populoso dos 50 estados, os brancos já são apenas 46,7%), com o desmantelamento em curso da “ação afirmativa” e com a tendência à abolição do ensino público bilíngüe, o multiculturalismo obsessivo norte-americano torna-se uma forma de asserção identitária crescentemente expletiva, que pouco traz de concreto – a não ser, talvez, em matéria de autoestima. Mas aí pode colocar-se um novo problema para os mestiços. Afinal, se é evidente que as culturas se mesclam, porque não o podem fazer os indivíduos? Jamais reconhecidos como tais, os mestiços norte-americanos podem agora, desde o censo de 2000, autodefinir-se como plurirraciais, pertencentes a mais de uma “etnia de origem” (African American e Hispanic, por exemplo), mas não como os mulatos, caboclos, cafusos ou genericamente “pardos” (nos recenseamentos brasileiros) que efetivamente são. Não o fazem, em primeiro lugar, porque os formulários do recenseamento não contemplam essa opção. Em segundo lugar, não o fazem por temer reduções de recursos para a respectiva constituency racial com que mais se identificam.41 Não o fazem, também, porque, tendo sido por tanto tempo considerados negros pelo critério escravista britânico da gota de sangue “contaminadora”, legalmente mantido após a independência, a abolição e a Guerra
Civil do século XIX, inclusive na proibição de casamentos mistos, tal critério se acha hoje interiorizado de tal maneira que ao próprio mestiço pareceria “de direita” declarar-se miscigenado.42 Numa sociedade em que a mistura etno-racial é forçada a gerar identidades duplas ou múltiplas, não sínteses criativas, uma sociedade mestiça será sempre objeto de desconfiança, e o sincretismo cultural, sempre visto com maus olhos. Assim como para o indivíduo oriundo de acasalamento inter-racial soaria vergonhoso assumir-se mestiço nos Estados Unidos, o próprio jazz, evidentemente híbrido, reconhecido por todos no passado como predominantemente negro, começa a ter sua negritude contestada. 43 Para o movimento negro norte-americano (ou o pouco que resta dele com expressividade política), assim como para os negros brasileiros por ele influenciados, a sociedade brasileira, além de injusta, que efetivamente é, representa uma dor de cabeça não somente para a busca de soluções. É um problema difícil de ser entendido.

A PÓS-MODERNIDADE NA ATUAÇÃO SOCIAL

Naquilo que constitui de longe sua conquista mais durável, segundo a análise intimorata de Terry Eagleton, o pós-modernismo ajudou a estabelecer as questões de gênero, sexualidade e etnicidade na agenda política de maneira tão firme que se torna hoje impossível imaginar seu abandono sem uma luta decisiva.44 Ajudou, como o professor de Oxford faz questão de sublinhar, porque, conforme por ele recordado e aqui explicitado desde o início, o movimento pelos direitos civis e o movimento de mulheres precederam à pós-modernidade e ao conjunto de teorias que se impuseram como pós-modernismo. 45 Mas esse estabelecimento das novas questões identitárias foi feito, ainda segundo Terry Eagleton, “em mera substituição às formas mais clássicas das políticas de esquerda, que lidavam com classe, Estado, ideologia, revolução, modos de produção material”.46 Ao respaldar com seu arsenal teórico o essencialismo identitário nos movimentos sociais, o pensamento pós-moderno estimulou o perspectivismo epistemológico na teoria do conhecimento e reintroduziu o relativismo dos valores no fulcro das ciências humanas. Produziu, assim, uma inversão inusitada nas posições da esquerda, do universalismo igualitarista à defesa intransigente do direito à diferença, colocando-a numa situação bastante aproximada daquela que sempre foi da direita, defensora de tradições e crenças singulares como elementos imprescindíveis ao progresso do grupo. Como diz Eric Hobsbawm:
Hoje tanto a direita como a esquerda acham-se dominadas por políticas de identidade. Infelizmente, o perigo de desintegração numa simples aliança de minorias é inusualmente grande para a esquerda, pois o declínio dos grandes slogans universalistas do iluminismo, que eram essencialmente slogans de esquerda, deixa-a sem qualquer caminho óbvio para formular o interesse comum através de fronteiras seccionais. O único dos chamados “novos movimentos sociais” que atravessa todas essas fronteiras é o dos ecologistas. Mas, infelizmente, seu atrativo político é limitado e tende a permanecer assim.47
Perfeitas na substância, essas críticas e inquietações, enunciadas na Europa por pensadores ligados à chamada “esquerda antiga”, socialista ou social-democrata, voltam-se sobretudo, ainda que não apenas, para a esquerda norte-americana, cuja capacidade de influência externa é, no mundo pós-Guerra Fria, esmagadoramente maior do que a de qualquer outra. Nas palavras sempre francas de Terry Eagleton,
Muito do pós-modernismo originou-se dos Estados Unidos, ou pelo menos criou raízes rapidamente por lá, e reflete alguns dos problemas políticos mais intratáveis daquele país. É assim, talvez, um pouco etnocêntrico desse antietnocentrismo, embora não um gesto desconhecido daquela nação, projetar seu quintal político sobre o mundo ao largo. Há hoje um instituto de estudos pós-modernos na Universidade de Beijing, enquanto a China importa Derrida junto com Diet Coke.48
A influência da esquerda norte-americana é, sem dúvida, sensível no meio universitário de outros países, assim como entre lideranças de movimentos sociais contemporâneos. É ela que faz presente no Brasil como no resto do mundo uma admiração acrítica pelas teorias pós-modernas, transformadas em modismos a que se apegam os mais variados intelectuais, “desconstrutivistas” ou não. É ela que faz muitos militantes brasileiros assumirem posições que nos Estados Unidos podem, talvez, justificar-se pela opulência capitalista, mas no Brasil soam absurdas e impraticáveis ante nossas características antropológicas e condições econômicas (como a reivindicação de indenizações financeiras pela escravidão passada, a ser paga não se sabe bem a quem, com verbas tiradas não se sabe de onde, ou da remuneração pelo governo do trabalho doméstico das mulheres). É ela que produz atualmente nossa inacreditável capacidade de autoflagelação, considerando- nos piores do que todos os demais nos campos mais diversos: no racismo (depois de termos sido apontados como modelo pelos intelectuais franceses, que não desconheciam nossos problemas, mas viam a miscigenação como o melhor caminho para sua superação), no machismo (quando o Brasil ostenta número maior de governadoras de estado ou prefeitas de cidades importantes do que os Estados Unidos, onde o puritanismo da sociedade é capaz de punir as prostitutas de rua pelo crime de prostituição e isentar a pornografia mais gritante que pague impostos comerciais), na perseguição à homossexualidade (é fato que se matam homossexuais em ambos os países, mas daí a dizer-se que as perseguições brasileiras configuram uma política governamental a justificar concessão de asilo é algo que evidentemente extrapola a realidade).49 Isso para não falar de nossos crimes ecológicos, supostamente decorrentes de políticas governamentais maquiavélicas ou da índole má de nosso povo, em contraste com o natural respeito norte-americano pelas culturas tradicionais (os poucos Native Americans sobreviventes que o digam!) e seu arraigado preservacionismo ambiental (os Estados Unidos destruíram toda a mata primitiva, atualmente replantada, da Costa Leste, em muito menos tempo do que o Brasil vem destruindo a mata atlântica, e o mesmo vem ocorrendo com a redwood forest californiana, sem que a população esteja nem de longe em situação de miséria desesperada). Malgrado todos esses caveats, pertinentes para a situação do Brasil e do mundo, o autor destas linhas acredita que nem todas “as esquerdas” se tenham efetivamente “americanizado”. A grande americanização político-social que houve em todo o mundo com o final da Guerra Fria parece ter sido temporalmente limitada até meados da década passada. Nessa época, o triunfalismo neoliberal, com o respaldo de antigos pensadores “progressistas”, chegara a afirmar que a divisão de posições políticas entre esquerda e direita se encontrava superada. Por sorte, o grande Norberto Bobbio, com sua sapiência habitual, foi dos primeiros a chamar atenção para tal falácia. E a recolocar as posições da esquerda verdadeira em seu eixo natural, evidentemente universalista, ainda que diante de problemas particularizados, ao afirmar, em 1994: Nenhuma pessoa de esquerda pode deixar de admitir que a esquerda de hoje não é mais a de ontem. Mas, enquanto existirem homens cujo empenho político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniqüidades das sociedades contemporâneas – hoje talvez menos ofensivas do que em épocas passadas, mas bem mais visíveis –, eles carregarão consigo os ideais que há mais de um século têm distinguido todas as esquerdas da história.50 A esquerda relativista, epistemologicamente perspectivista e obsessivamente identitária foi e é, por razões muito específicas já aqui explicitadas, a esquerda “cultural” norte-americana. Mas, afinal, sejamos francos: a expressão “esquerda norte-americana” é de per si, quase sempre, um oximoro, tão incongruente que chega a transformar em “de esquerda” liberais que alhures seriam no máximo conservadores esclarecidos. A militância de esquerda existiu, sim, nos Estados Unidos, inclusive em sentido revolucionário, com números expressivos, apenas episodicamente, como nos anos da década de 1960, em virtude de uma guerra imperialista que dizimava suas vidas e esperanças, em território distante. Hoje em dia há, é verdade, entre os norte-americanos, muita gente inspirada por ideais de solidariedade altruísta, capaz de praticar filantropia nos mais distantes rincões, muitas vezes ao risco da própria vida. Algumas o fazem com uma paixão mais ou menos arrogante, capaz de enfrentar com altivez e heroísmo os mais cruéis ditadores; outras com uma ingenuidade que irrita os próprios beneficiários. Mas figuras humanísticas com a profundidade e a abrangência temática de um Noam Chomski são raríssimas numa população de mais de 280 milhões. Além de desconhecidas do cidadão comum, chegam a soar chocantes nos próprios meios intelectuais pelo contraste com tudo o mais que se vê na circunvizinhança. Os demais militantes da “esquerda norte-americana” só podem ser “culturalistas”, porque a isso são impelidos pelas circunstâncias do país, em particular sua riqueza astronômica (embora muito concentrada, ela é tão avassaladora que não pode deixar de ter importante efeito cascata). Nas palavras demolidoras de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant: “O ‘multiculturalismo’ americano não é nem um conceito, nem uma teoria, nem um movimento social ou político – ainda que pretenda ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso-tela (...) que engana tanto aqueles que estão nele como os que não estão. Além do que é um discurso norteamericano, embora pense e se apresente como universal”. 51
De um modo geral, com as exceções que confirmam a regra, a esquerda européia contemporânea não aparece refletida nas preocupações de Terry Eagleton e de Eric Hobsbawm reproduzidas neste texto e certamente não se enquadra no foco de atenções exclusivamente norte-americano de Todd Gitlin ou de Michael Lind (assim como de Richard Rorty e muitos outros pensadores norte-americanos não-mencionados nominalmente neste artigo). A França tem demonstrado que a aliança estudantes- trabalhadores de 1968 ainda é capaz de reverberar em novas greves, como as de 1995, de alcance respeitável. A maioria dos intelectuais europeus, a exemplo desses aqui citados, e outros ex-integrantes da hoje velha “nova esquerda” não cessam de denunciar o neocapitalismo vigente, apontando idéias plausíveis que pelo menos controlem sua voracidade. Preocupam-se, sim, conforme demonstram Bourdieu e Wacquant na citação acima, com a possibilidade de contaminação da esquerda de outros continentes por características da “esquerda cultural” norte-americana. Mas até mesmo o feminismo, movimento social originalmente norte-americano que mais contribuiu com idéias e ações para o pósmodernismo teórico, evoluiu de tal maneira, sem abandonar o conceito de gênero, para objetivos tão abrangentes que já há quem fale hoje – errônea e enganadoramente – de uma fase “pós-feminista”.52 Se, como interpreta Terry Eagleton, a maior contribuição do pós-modernismo às lutas sociais contemporâneas foi a asserção do gênero, da sexualidade e da etnicidade na agenda política, isso foi e permanece positivo. O que não se pode permitir é que, a exemplo do que ainda ocorre em setores da esquerda norte-americana ou setores americanizados alhures, o identitário se erija em absoluto, o essencialismo
cultural se torne a única preocupação política e o perspectivismo domine a idéia do conhecimento, renegando a possibilidade do real universal.
As diferenças precisam, sim, ser respeitadas – muito mais do que “toleradas”, que é vocábulo da direita –, mas elas não se podem sobrepor ao ideal mais amplo da igualdade, eterna e incontestemente de esquerda, e que, exatamente por isso, deu origem e justificação às próprias lutas identitárias das minorias oprimidas.
Em Seattle, em 1999, contra a OMC, assim como em Washington e Praga, em 2000, contra o FMI e o Banco Mundial, os movimentos mais heterogêneos, inclusive norte-americanos, articulados em cadeia, amalgamados por algum tipo de identidade, demonstraram, na forma de protestos e passeatas, estar conscientes de que precisam unir-se para lograr objetivos mais amplos, de sentido universal e igualitarista. Uma primeira tentativa de organização mais coerente ocorreu em Porto Alegre, no Fórum Social Internacional, no início de 2001.
Os objetivos focais desses movimentos não foram ainda alcançados, até mesmo porque eles são hoje de difícil definição. Mas uma conquista, pelo menos, eles certamente já ajudaram a obter: no discurso contemporâneo agora ninguém mais fala em “consenso neoliberal”.

O MOVIMENTO SOCIAL PELOS DIREITOS HUMANOS

No texto citado um pouco acima, Eric Hobsbawm declara que apenas o ecologismo, entre os novos movimentos sociais, ultrapassa todas as fronteiras seccionais da esquerda. Já Boaventura de Sousa Santos reconhece, alhures, com alguma perplexidade, que é na linguagem dos direitos humanos que atualmente se manifestam os agentes sociais cuja mobilização emancipatória no passado girava em torno das idéias de socialismo e revolução.53 Na verdade, o movimento internacional dos direitos humanos também ultrapassa fronteiras seccionais – menos, naturalmente, as seções que compõem a extrema esquerda, assim como a extrema direita, refratárias por definição à idéia de direitos. O problema é que esse segundo “novo movimento social”, ainda mais do que os outros, antigos e modernos, sofre forte influência de posições norte-americanas. Por isso, com exceção do período de 1993, quando ajudou a mobilizar o mundo para a Conferência de Viena sobre direitos humanos, seu “atrativo político” se afigura ainda mais limitado do que o do ambientalismo. Sem preocupações econômicas corretas, com os direitos econômicos e sociais crescentemente transferidos à filantropia da sociedade civil e os direitos civis impostos internacionalmente pela ótica do humanitarismo (militar ou não), a nova normatividade emergente para os direitos humanos configura, no lúcido e chocante entendimento de Slavoj Zizek, “a forma em que se apresenta seu exato oposto”.54 Levando em conta a influência enorme dos Estados Unidos nessa esfera, para se ter esperança é preciso estabelecer uma clara distinção entre os grupos norte-americanos que efetivamente defendem os direitos humanos da Declaração Universal, inclusive nos Estados Unidos, e aqueles de visão mais curta, reprodutores acríticos do que lhes ensinam os ideólogos do patriotismo ianque, que condenam sem senso crítico tudo o que não espelhe os direitos civis norte-americanos. Os primeiros, se influentes no mundo, podem ajudar concretamente a luta pelos direitos de todos, gravemente violados também em seu próprio país. Os segundos podem até ter razão em muitas oportunidades, ao não encontrarem alhures o respeito dos Estados Unidos pelos direitos civis, mas tendem a perdê-la logo, pois ignoram – sem querer ou deliberadamente – a trama de influências complexas, nacionais e internacionais, políticas, jurídicas, religiosas e sobretudo econômicas, que interagem nesses direitos. A fim de se evitar uma multiplicação de Kossovos no cenário unipolar desse princípio de século, antes de partir pelo mundo numa das típicas cruzadas de que se imbuem com freqüência os cidadãos peregrinos da terra da Liberdade, do Marlborough e do McDonald’s, seria bom se cada um deles tratasse de fazer seu exame de consciência. E forçasse seus altos representantes nos três níveis de governo a fazer também o dever de casa, que, para ser universal, é de todos. A nós, os influídos de sempre, cabe, porém, a maior das responsabilidades, na medida em que dela depende nossa sobrevivência autônoma: a de escolher adequadamente quem, afinal, tem legitimidade para nos ajudar na matéria, num mundo em que os universais vêm perdendo a parada para os identitários diversos. Ou optar por seguir às apalpadelas nosso próprio caminho, cientes de que o Brasil que queremos não pode, não deseja, nem tem condições para desejar ser, a sério, culturalmente essencialista.
O Brasil precisa ser, sim, antidiscriminatório com os que, de alguma maneira, aparecem “diferentes” e auxiliá-los a vencer, material e psicologicamente, a inferioridade em que tantas vezes vivem. Até porque, queiramos ou não os cidadãos brasileiros, a “diferença” é parte ontológica de nossa identidade essencial. São, portanto, absolutamente inaceitáveis a disparidade de níveis econômico-sociais que ainda separam os segmentos negros e brancos de nossa população, assim como a violência “civil”, criminal e policial, que brutaliza prioritariamente negros e mestiços, situados na parte mais baixa da escala social.
Mas o Brasil precisa ser sobretudo mais equânime na distribuição universalista da riqueza nacional, ou simplesmente não será. Essa melhor distribuição da abundância ou da escassez, juntamente com a da justiça, já tão postergada no decurso da História pátria, não ocorrerá se abandonarmos, em favor de uma eficácia ilusória engendrada pela globalização sem amarras, a possibilidade de políticas públicas voltadas para as vastas camadas de pobres e miseráveis, sem identidade ou cidadania dignas desses termos. Ou se simplesmente importarmos, sem a devida massa crítica, modelos que podem até ser válidos, mas ainda nem sequer deram certo, nas sociedades específicas, modernas ou pósmodernas, dentro das quais se criaram.


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Notas

1 Tradução.
2 Tradução.
3 Apud BERG, 1998, p. 417. O célebre discurso de King que insistia no “I have a dream” foi feito no encerramento da Marcha sobre Washington, em agosto de 1963.
4 Ibid., p. 398.
5 Segundo as contas de BRINKLEY, 1998, p. 224.
6 Ibid.
7 BERG, 1998, p. 408.
8 O ex-governador do Alabama, candidato pelo Partido Independente, não ganhou, mas obteve votação impressionante.
9 Nas escolas públicas elementares de São Francisco, crianças de todas as etnias, que não têm nenhuma idéia do que seja o swahili, muito menos da parte do mundo em que essa língua é falada, são forçadas a decorar palavras exóticas, malpronunciadas em inglês, cujo significado comporia os “conceitos-chave”, muito idealizados, da kwanzaa, recentemente inventada nos Estados Unidos. Menos mal quando se recorda que foi também na Califórnia (região de São Francisco), e na mesma época, que a esquerda cultural afro-americana tentou, sem êxito, adotar o inglês malfalado dos negros incultos como língua oficial de ensino comunitário, denominada ebonics (de ebony, ébano).
10 Como já descrevi alhures as características de ambas, permito-me remeter a meu “No peito e na raça – a americanização do Brasil e a brasilianização da América” (LINDGREN ALVES, 2000).
11 Cf. supra nota 3. [confirmar] Na verdade, a metáfora do sonho fora usada antes por Martin Luther King em diferentes sermões, mas foi na marcha de 1968 que o discurso se tornou nacional e internacionalmente conhecido.
12 BERG, 1998, p. 419. No entender de Manfred Berg, essa marcha deve ser vista como uma manifestação importante de solidariedade e orgulho racial de um vasto segmento da população que ainda se considera vítima de discriminações. Mas a mensagem de auto-afirmação, capitalismo negro, disciplina e combate às drogas da Nação do Islã, com seus “vigilantes muçulmanos” e seu racismo radical, antibranco e anti-semita, seria “conservadora”.
13 A revolução iraniana contou com participação decisiva das mulheres. Ainda que depois lhes tenham imposto o tchador, os aiatolás nunca chegaram a excluí-las totalmente da política. Apenas a Arábia Saudita e alguns poucos emirados árabes do Golfo, para não falar do desvario obsessivo dos talibãs afegães, seguem políticas de exclusão total das mulheres em qualquer atividade pública.
14 CASTELLS, 1997, p. 177.
15 GITLIN, 1987, sobretudo cap. 16: “Women: revolution in the revolution”,pp. 362-376.
16 Sobre a influência do movimento de mulheres norte-americanas na Alemanha, cf. MALECK-LEWY & MALECK, 1998, pp. 373-395.
17 Sobre a Conferência de Beijing, cf. LINDGREN ALVES, 1996.
18 Para uma análise dessas vertentes, cf. CASTELLS, 1997, particularmente o capítulo intitulado “The end of patriarchalism”. As expressões feminismo da igualdade e feminismo da diferença, bastante difundidas, eu retirei de RIVERO GARRETAS, 1994.
19 Para uma idéia dos direitos específicos da mulher e sua inclusão no rol dos direitos humanos universais, cf. LINDGREN ALVES, 1996 e 1997, pp. 86-97.
20 Apud RIVERO GARRETAS, 1994, p. 79 (minha tradução).
21 Ibid., p. 78.
22 Report of the Fourth World Conference on Women (Beijing, 4-15 September1995), documento das Nações Unidas A/CONF.177/20, p. 10 (minha tradução). Antes da Conferência, Abramovay já observava que o conceito gênero era central e permeava todo o projeto da Plataforma de Ação, “o que implica trabalhar uma visão renovada das relações sociais” (ABRAMOVAY, 1995, p. 214).
23 Entre a massa de autores e títulos que tratam do problema, posso citar como exemplos o liberal Michael Lind, em The next American nation, o ex-ativista da nova esquerda Todd Gitlin, no muito conhecido The twilight of common dreams, o gozador Robert Hughes em seu quase best seller The culture of complaint, e o filósofo pragmático, antimetafísico e pósmoderno heterodoxo Richard Rorty, em Achieving our nation.
24 GITLIN, 1995, cap. 5: “Marching on the English Department Whilethe Right Took the White House”, pp. 126-165.
25 KYMLICKA, 1995, “Introduction”, p. 1 (minha tradução).
26 Cf. segunda epígrafe no início deste ensaio, retirada de ZIZEK (1998, p. 997). Com já onze livros muito densos e uma infinidade de artigos publicados no Reino Unido, Estados Unidos e outros países do Ocidente (inclusive agora no Brasil), Slavoj Zizek é considerado, inter alia, por Terry Eagleton “o mais formidavelmente brilhante expoente da psicanálise, na verdade da teoria da cultura em geral, que emergiu na Europa nas últimas décadas” (citado na contracapa de Did somebody say totalitarianism?).
27 GITLIN, 1995, pp. 164-165 (minha tradução).
28 EAGLETON, 1996, pp. 22-23.
29 Como as sugestões para uma justiça efetiva, atenta às diferenças de valores das minorias oprimidas, feitas por Lyotard, em Le Différend (1988), ou por Derrida, em “Force de loi: le ‘fondement mystique de l’autorité’” (1990).
30 ZIZEK, 2000, p. 11.
31 Todd Gitlin, que repudia o uso crítico da expressão “politicamente correto”, conta, não obstante, como um estudante negro, em atitude absurda, manifestou-se ofendido com o fato de determinado livro didático usar inadvertidamente a expressão (correta) Afro-American, apontado isso como uma “clara evidência de racismo” do autor. Cf. GITLIN, 1995, p.18.
32 Ocuparam a ilha da Baía de São Francisco, onde se localiza o presídio de Alcatraz, durante várias semanas, com o objetivo de chamar atenção para seus infortúnios.
33 Já tive a oportunidade de assinalar a público de São Francisco, que me achou “divertido”, serem os brasileiros tão hispânicos, no máximo, quanto os norte-americanos anglo-saxões são góticos. Quanto a nossos irmãos de América Latina nos Estados Unidos, eles aceitam, como nós, brasileiros, sem nenhuma hesitação, a qualificação de latinos (dita em inglês com um o no final, para diferenciar de Latin, que quer dizer latino, derivado do Lácio ou da língua latina de Roma Antiga). Nunca ouvi, porém, um mexicano, chileno, boliviano ou peruano qualificar-se voluntariamente como hispânico. Afinal, isso deve corresponder a um brasileiro autoclassificar-se como lusitano.
34 Para não haver mal-entendidos sobre minha posição a respeito desse mito, remeto novamente a LINDGREN ALVES, 2000.
35 Cf., sobre o assunto, o interessante artigo de HALTER (2000). A autora, professora de história na Universidade de Boston, chama atenção inter alia para o fato de que a própria Kwanzaa, celebrada a partir de 26 de dezembro para marcar o caráter anticonsumista da “tradição” negra, em contraste com o Natal, branco e comercializado, encontra-se hoje desvirtuada pela massa de produtos e brinquedos especialmente fabricados com adaptações para venda nesse período, a cujo consumo se entregam com afinco e deleite os afro-americanos. Da mesma forma que as lojas se enchem da menorahs estilizados e caros para os judeus celebrarem, pouco antes do Natal cristão, a Hanukkah israelita, cada dia mais “glamourosa” nos Estados Unidos e oficializada por políticos de todos os credos, que não perdem a oportunidade de ostentar em cerimônias públicas sua tolerância
multiculturalista. O mesmo sentido capitalista evidente poderia ser lembrado a propósito, por exemplo, dos cruzeiros marítimos e vôos charter organizados para gays, uma vez que a orientação sexual é nos dias de hoje também uma categoria cultural.
36 LIND, 1996, pp. 11-12.
37 Uma dessas coletâneas de estudos pode ser encontrada na antologia editada por KYMLICKA (1995).
38 YOUNG, 1989, p. 261, apud PHILLIPS, 1995, p. 291.
39 Muitas lideranças econômicas negras têm-se colocado ostensivamente contra a ação afirmativa com esse tipo de argumento (cf. LINDGREN ALVES, 2000, pp. 95-96).
40 Não quero, evidentemente, dizer com isso que todos os chicanos e negros bem-sucedidos sejam republicanos (ao contrário, a maioria parece ainda ser democrata), ou que sejam contrários à ação afirmativa (a maioria dos bem-sucedidos ainda a favorece e a defende com vigor). Menos ainda pretendo afirmar que eles não sejam objeto de discriminações. O que quero dizer é que sua visão pode ser diferente daqueles que se mantêm em piores condições sociais, preferindo uma assimilação mais completa no mainstream da sociedade norte-americana. E que, em função de seu êxito individual na “sociedade nacional”, a asserção “cultural” de suas origens, reais ou idealizadas, pode constituir mais um fator de incômodo do que uma forma desejada de auto-afirmação.
41 A imprensa interpreta que o número surpreendentemente pequeno de pessoas que se autoqualificaram como pertencentes a mais de uma etnia – média nacional de apenas 2,4% – no recenseamento de 2000 tenha-se devido a esse temor (KIM & NESS, 2001).
42 Orgulhoso da extraordinária diversidade racial apurada na Califórnia pelo censo de 2000, o liberalíssimo S. Francisco Chronicle, em editorial intitulado “California’s changing face”, declarava que “the greatest impact of this amazing diversity is that the five percent of Californians who identify themselve as multiracial have muted such arbitrary racial designations as ‘white’, ‘brown’, or ‘black’”. E evidenciando a falácia do melting pot norteamericano tão alardeado na propaganda oficial, celebrava: “Welcome to the new face of California – not yet a melting pot, but something far more glorious than the sum of its parts” (S. Francisco Chronicle, 30/mar./2001).
43 Acabam de ocorrer na Califórnia debates, cujo resultado desconheço, envolvendo de um lado críticos de jazz, de outro ex-militantes black power, para tentar chegar a uma conclusão se o jazz é ou não música negra.
44 EAGLETON, 1996, p. 22.
45 Ibid., p. 136. Além disso, como assinala Terry Eagleton, nem todos os ativistas desses movimentos definiriam sua política em termos pósmodernos.
46 Ibid., p. 22.
47 HOBSBAWM, 1996, in: ISHAY, 1997, p. 279.
48 EAGLETON, 1996, p. 122.
49 O argumento tem sido utilizado por brasileiros gays em situação ilegal nos Estados Unidos, particularmente na região de São Francisco, para assim evitar a repatriação. Que eles o utilizem não é extraordinário. Curioso é esse argumento vir sendo aceito pela justiça de um país e de uma comunidade cujos gays freqüentemente organizam excursões turísticas para usufruir exatamente daquilo que é anunciado como o liberalismo dos costumes sexuais brasileiros.
50 BOBBIO, 1995, pp. 23-24.
51 BOURDIEU & WACQUANT, 2000.
52 Cf. sobre esse assunto as diversas matérias publicadas no caderno Mais!, da Folha de S.Paulo de 15/out./2000, que têm como chamada “A Nova Onda do Feminismo”, em particular a entrevista com Juliet Mitchell, de Maria Lucia Pallares-Burke.
53 SOUSA SANTOS, 1997, p. 105.
54 ZIZEK, 2001, pp. 244-245.


The Excesses of Culturalism: postmodernity or the americanization of the Left?


Abstract
Just like neoliberalism, postmodernity theories have spread out in theworld in a process that has started in the United States. On becoming culturalist, social movements have incorporated and developed postmodernism, setting aside the universalism that has always characterized the Left. Such americanization of social movements has firmly established questions of gender, sexuality and ethnicity on the political agenda, but the agenda itself has become so exclusivist that it stopped addressing further social advancements. Bearing in mind the specificity of each situation, Brazilian social movements should better evaluate the models they intend to follow.

Keywords SOCIAL MOVEMENTS – IDENTITIES – CULTURALISM – RACE – GENDER – POSTMODERNITY – UNITED STATES – BRAZIL.