domingo, 22 de novembro de 2009

Os Ensinamentos de Ramana Maharshi em Suas Próprias Palavras






Edited by Arthur Osborne

1- A TEORIA BÁSICA

D.: Existem graus de ilusão?

B.: A ilusão é em si ilusória. Ela deve ser vista por alguém que encontra-se fora dela, mas como pode um observador assim estar sujeito a ela? Então, como ele pode falar de graus de ilusão?(1)

A ilusão é aquilo que faz os seres tomarem por real e existente por si aquilo que é inexistente e irreal, isto é, a trilogia mundo-ego-Deus.(2)

A essência da mente é apenas atenção ou consciência. Entretanto, quando o ego nubla a mente, esta adota as funções de raciocínio, pensamento e percepção. A mente universal, não sendo limitada pelo ego, não tem nada exterior a si, e portanto ela é apenas consciência. É isso o que a Bíblia quer dizer com “EU SOU O QUE EU SOU”.(3)

D.: Quando eu procuro o “eu” eu não vejo nada.

B.: Você diz isso porque você está acostumado a identificar o seu eu com o seu corpo e a sua visão com os seus olhos. O que existe para ser visto? E por quem? E como? (...) Na verdade não há nada para ver. Como você se reconhece agora? Você precisa por um espelho na sua frente para reconhecer a si mesmo? A consciência em si é o “eu”. Realize-a e isto é a verdade.

D.: Quando eu investigo a origem dos pensamentos há a percepção do “eu”, mas isso não me satisfaz.

B.: Exatamente. Isso acontece porque essa percepção de “eu” está associada a uma forma, talvez a forma do corpo físico. Mas nada deveria ser associado ao Eu puro.(4)

Tudo o que nasce deve morrer; tudo o que é adquirido será perdido. Você nasceu?
[Não,] você existe eternamente. O Eu Real nunca pode ser perdido.(5)
Se os méritos e deméritos de um homem são iguais ele renasce imediatamente na Terra; se os seus méritos superam seus deméritos ele primeiro vai ao céu em seu corpo sutil, já se seus deméritos superam seus méritos ele vai primeiro ao inferno. Mas em ambos os casos ele renasce posteriormente na Terra. Tudo isso é descrito nas escrituras, mas na verdade não existe nem nascimento nem morte; cada um simplesmente permanece como realmente é. Apenas isso é a Verdade.(6)

S.: Mas a partir de meu próprio nível de entendimento eu vejo a mim mesma e ao meu filho como reais.

B.: Você pensava sobre o seu filho antes dele nascer? O pensamento veio depois dele nascer, e continua após sua morte. Ele só é o seu filho na medida em que você pensa nele. Para onde ele foi? Para a fonte de onde ele surgiu. Enquanto você continuar existindo ele continua também. Mas se você deixar de se identificar com o corpo e realizar o Eu Real essa confusão desaparecerá. Você é eterna, e verá que os outros também o são. Enquanto isso não for realizado haverá sempre a tristeza e o desgosto, fruto dos falsos valores que são produzidos pelo conhecimento errôneo e pela identificação errônea.(7)

B.: Que felicidade você pode obter das coisas exteriores a você mesmo? Quando você a obtém, quanto tempo ela dura? Se você negar o ego e ignorá-lo, você estará livre. Se você o aceitar, ele irá lhe impor limitações e levá-lo a lutar em vão para superá-las. Foi assim que o “ladrão” arruinou o Rei Janaka. Ser o Eu que você realmente é, é o único meio de realizar a Bem-Aventurança que é sempre sua.(8)

B.: [Para um devoto que tinha perdido seu filho] A tristeza só existe enquanto a pessoa pensa que possui uma forma definida, mas se a forma é transcendida a pessoa conhece o Eu Único como eterno. Não existe nascimento nem morte. Apenas o corpo nasce, e o corpo é uma criação do ego. No entanto, o ego não é comumente percebido sem o corpo, e por isso você o identifica com o corpo. O que importa é o pensamento. (...) Se um homem pensa que ele nasceu ele inevitavelmente sentirá medo da morte. Deixe que ele descubra se ele alguma vez nasceu ou se existe nascimento para o Eu Real.(9)

D.: Se alguém que nós amamos morre isso nos faz sofrer. Nós deveríamos, então, para evitar este sofrimento, amar a todos igualmente ou não amar ninguém em absoluto?

B.: Se alguém que amamos morre isso causa sofrimento àquele que continua vivo. A maneira de se livrar do sofrimento é não continuar vivendo. Mate o sofredor – assim quem está lá para sofrer? O ego deve morrer, é o único jeito. As duas alternativas que você sugere dão no mesmo. Quando percebemos que todos são apenas o Eu Único, quem está lá para amar ou odiar?(10)

D.: Estou com dor de dente – isso é apenas um pensamento?

B.: Sim.

D.: Então por que eu não consigo simplesmente pensar que meu dente está normal e assim me curar?

B.: Não se sente a dor de dente quando se está absorto em outros pensamentos ou quando se está dormindo.

D.: Mas ela ainda sim continua.

B.: A convicção humana de que o mundo é real é tão forte que é difícil se libertar dela. Mas o mundo não é mais real do que o sujeito que o vê.

D.: No momento está acontecendo a guerra Sino-Japonesa. Se ela é apenas imaginação, pode o Bhagavan imaginar que ela não está acontecendo e assim acabar com ela?

B.: (Rindo) O Bhagavan que você vê (como um ser exterior) é tanto um pensamento seu quanto a própria guerra Sino-Japonesa.(11)

B.: A Bem-Aventurança do Eu Real só pode se manifestar numa mente que se torna sutil e estável por meio da meditação. Aquele que experimenta essa Bem-Aventurança alcança a libertação ainda neste corpo.(12)

(Por óbvio, ele insistia na necessidade da pureza mental. Quando alguém reclamava que era muito fraco para resistir às tendências inferiores, Bhagavan simplesmente lhe dizia para se esforçar mais. Porém, dependendo do temperamento do buscador ele dizia para este descobrir quem tem tendências inferiores, ou simplesmente para confiar em Deus.)

B.: O livre arbítrio é o presente surgindo para uma faculdade limitada de visão e vontade. Este mesmo ego, quando olha para suas atividades passadas, percebe que elas se desenvolveram segundo certas “leis” ou regras – sendo o seu próprio livre arbítrio um dos elos dessa corrente causal. Então o ego percebe que a Onipotência e Onisciência Divinas agiram através do seu aparente livre arbítrio. Então a pessoa chega à conclusão de que o ego é guiado pelas aparências.(13)

D.: Os deuses, Ishvara e Vishnu, e seus céus, Kailas e Vaikuntha, são reais?

B.: Tão reais quanto você no seu corpo.

D.: O que eu quero saber é se eles possuem uma existência fenomenal, tal como o meu corpo, ou se são meras ficções, tais como os chifres de uma lebre?

B.: Eles de fato existem.

D.: Sendo assim, eles devem estar em algum lugar. Onde eles estão?

B.: Em você.


Arunachala está dentro e não fora. O Eu Real é Arunachala.(14)

Por que se preocupar com Deus? Nós não sabemos se Deus existe mas sabemos que existimos, então primeiro concentre-se em si mesmo. Descubra quem você é.(15)


Todo o Vedanta está contido nas duas declarações bíblicas “Eu sou o que Eu sou” e “Permaneça imóvel e saiba que Eu sou Deus.

D.: Então o que me impede de conhecer a mim mesmo ou Deus?

B.: A sua mente que divaga e seus caminhos desvirtuados.(16)

B.: Entregar-se completamente significa que você deve aceitar a vontade de Deus, e não reclamar do que não lhe agrada. As coisas podem se revelar diferentes do que pareciam. O sofrimento e a aflição muitas vezes levam a pessoa a ter fé em Deus.(17)

B.: Eles rezam a Deus e no final da oração dizem: “Seja feita a Vossa vontade”. Se a vontade Dele vai ser feita, então por que eles oram? (...) Não é necessário dizer a Ele o que você precisa. Ele conhece muito bem suas verdadeiras necessidades, e cuidará de atende-las. (18)

D.: As nossas preces são atendidas?

B.: Sim, elas são atendidas. Nenhum pensamento é emitido em vão. Cada pensamento produzirá o seu efeito em um ponto ou em outro. A força do pensamento nunca será em vão.(19)

B.: O homem é pecado. Não existe o sentimento de ser um ser humano durante o sono profundo. O pensamento-corpo faz nascer a idéia do pecado. O nascimento do pensamento em si é o pecado.(20)

Q.: Mas qual é o método?

B.: Volte para o lugar de onde você veio.

Q.: De onde eu vim?

B.: É exatamente isso que você precisa descobrir.

(...)

Q.: Qual é a prova que tenho?

B.: Alguém precisa de alguma prova de sua própria existência? Apenas esteja consciente de si mesmo e todo o resto será conhecido.

Q.: Então por que os dualistas e não-dualistas discutem tanto?

B.: Se cada um deles se ocupasse apenas da sua tarefa (de buscar a Realização) não haveria discussões.(21)

2- DA TEORIA À PRÁTICA

B.: É verdade que não estamos aprisionados. Quer dizer, para o Eu Real não há prisão. E também é verdade que cedo ou tarde você retornará à sua Fonte. Mas enquanto isso, se você cometer más ações, como você as chama, você terá que enfrentar as suas conseqüências. Você não pode escapar disso. Se um homem lhe bate, você pode dizer: “Eu sou livre. Eu não sou afetado pela surra e a dor não existe para mim. Deixa ele continuar batendo”? Se você realmente chegou a esse ponto então você pode fazer o que quiser; caso contrário, qual é a utilidade de apenas dizer em palavras que você é livre [enquanto ainda não é]?(22)

Todas as atividades que o corpo deve passar foram determinadas no momento em que ele veio à existência. Não cabe a você aceitá-las ou rejeitá-las. A única liberdade que você tem é voltar-se para dentro e aí renunciar às atividades.(23)

B.: Por que este corpo surgiu? Ele foi feito para passar pelas várias experiências que foram determinadas para a pessoa nesta vida... Quanto à liberdade, o homem é sempre livre para não se identificar com o corpo e para não se deixar afetar pelos prazeres e dores resultantes das atividades do corpo.(24)

D.: O ser humano tem algum livre arbítrio ou tudo na sua vida é predeterminado?

B.: O livre arbítrio existe junto com a individualidade. Enquanto houver individualidade haverá livre arbítrio. As escrituras todas se baseiam nesse ponto e aconselham direcionar o livre arbítrio na direção certa.

Predestinação na teoria mas o livre arbítrio na prática.


B.: Assim, a consciência natural e não discriminativa só é alcançada depois do esforço da meditação. A forma da meditação vai depender do que lhe atrai mais. Veja o que lhe ajuda a afastar todos os outros pensamentos e adote isso para sua meditação.

B.: Se você consegue apenas permanecer quieto sem se envolver em nenhuma outra atividade, isso é ótimo. Mas se isso não for possível, qual é a utilidade de permanecer inativo apenas em relação à busca pela Realização [e ativo em relação ao resto]? Enquanto você

Enquanto houver ego o esforço é necessário. Quando o ego cessa as ações se tornam espontâneas.(25)

Ninguém tem sucesso sem esforço. O controle da mente não é seu direito de nascença – os poucos que dominam a mente alcançaram isso graças ao seu esforço perseverante.(26)

O esforço é necessário até o momento da Realização.(27)

B.: Você pensar que deve fazer um esforço para se libertar desse sonho da vigília, e os esforços que você faz para alcançar a Realização, são tudo partes do sonho.(28)

B.: Entregue-se de uma vez por todas e acabe com o desejo. Enquanto houver a noção de que você é o agente, o desejo vai continuar, e assim o ego também.(29)


3 - A VIDA NO MUNDO


B.: Por que os seus deveres ou ocupações na vida deveriam atrapalhar o seu esforço espiritual? Por exemplo, há uma diferença entre suas atividades em casa e no trabalho. No trabalho você está desapegado: você apenas cumpre o seu dever e não se importa com o que vai acontecer, não está preocupado com o ganho ou perda do seu chefe ou empregador. Os seus deveres com a família, por outro lado, são desempenhados com apego: você está sempre preocupado se as suas ações vão trazer benefício a você e sua família. Mas é possível desempenhar todas as atividades da vida com desapego e ver apenas o Eu Superior como real. É errado pensar que se você permanecer fixado interiormente no Eu Real os seus deveres na vida não serão bem desempenhados. É como um ator no palco: ele se veste do personagem, age como ele e até sente que é parte da peça, mas na verdade sabe que na vida real não é o personagem, mas outra pessoa. Da mesma maneira, por que deveria a consciência do corpo ou o sentimento “eu-sou-o-corpo” lhe perturbar, uma vez que você saiba que na verdade você não é o corpo mas sim o Eu Real? Nada que o corpo faça deveria afastá-lo da permanência como Eu real. Permanecer fixado no Eu Real não irá interferir com o desempenho adequado e efetivo de quaisquer deveres que o corpo tenha, assim como o fato de o ator saber a sua verdadeira identidade não interfere no personagem que ele representa no palco.(30)

B.: Não há nenhuma lei que diga que as ações só podem ser feitas com base no sentimento “eu-sou-o-agente”, então não há motivo para perguntar se elas podem ser feitas e os deveres serem cumpridos sem essa noção. Pegue como exemplo o caso de um contador que trabalha o dia inteiro no escritório e cumpre suas tarefas diligentemente.

Pode parecer aos olhos dos outros que ele está carregando nas costas todas as responsabilidades financeiras da instituição; porém, se ele estiver consciente que não é pessoalmente afetado pelas entradas e saídas de capital ele conseguirá permanecer desapegado e livre da noção “eu-sou-o-agente”, embora desempenhe suas tarefas perfeitamente bem. Da mesma forma, é possível a um sábio pai de família que busque ardorosamente a Libertação cumprir seus deveres sem nenhum apego, considerando a si mesmo apenas como um mero instrumento para isso. Uma atividade assim não é um obstáculo ao Caminho do Conhecimento (jnana-marga), e nem é o Conhecimento um fator que impeça o cumprimento dos deveres da vida. A Compreensão e a atividade nunca são mutuamente excludentes – uma não atrapalha a outra.(31)

B.: Se os objetos tivessem uma existência independente, ou seja, se existissem fora e separados de você, então seria possível você se afastar deles. Mas eles não existem assim – a sua existência depende de você, do seu pensamento. Então onde você pode ir para fugir deles?(32)

B.: A ação feita abnegadamente purifica a mente e a ajuda a concentrar-se na meditação.

D.: Mas e se eu fosse apenas meditar constantemente sem fazer mais nada?

B.: Tente e veja. As suas tendências mentais inerentes não lhe deixarão em paz. A meditação só acontece passo a passo, através do enfraquecimento dessas tendências por meio da graça do Guru.(33)

D.: Eu não sinto mais nenhum prazer em minha vida familiar. Não me resta mais nada para fazer lá; eu fiz tudo o que deveria ser feito e agora já tem netos e netas na casa. Eu deveria continuar lá ou deveria abandonar a casa e ir embora?

B.: Você deve ficar onde você está agora. Mas onde está você? Você está na casa ou a casa está em você? Existe alguma casa separada de você? Se você se estabilizar na sua própria morada você verá que todas as coisas desaparecerão em você e perguntas como essas se tornarão desnecessárias.

D.: Então eu devo continuar em casa?

B.: Você deve continuar no seu verdadeiro estado.(34)

B.: O mundo está apenas na mente. (...) Renúncia é a não-identificação do Eu com o não-Eu. Quando a ignorância desaparece, o não-Eu cessa de existir. Essa é a verdadeira renúncia.

B.: Os esforços sinceros nunca falham – com certeza eles resultarão em sucesso.(35)

B.: No entanto, é mil vezes mais tolo querer carregar o seu próprio fardo uma vez que se tenha iniciado a busca espiritual, quer seja pelo caminho do conhecimento (jnana) quer pelo da devoção (bhakti).

B.: O Senhor do universo carrega todo o fardo – você apenas imagina fazê-lo. Você pode seguramente entregar todos os seus fardos e problemas a Ele. Então o que quer que você precise fazer acontecerá no momento certo, e você será apenas um instrumento para isso. Não imagine que você não possa agir a não ser que tenha o desejo de fazê-lo. Não é o desejo que lhe dá a força necessária [para agir] – a força é a de Deus.(36)

B.: Por que se preocupar com o futuro? Você nem conhece o presente direito. Cuide do presente e o futuro cuidará de si próprio.

B.: Como você é, assim é o mundo. Qual é a utilidade de tentar entender o mundo sem entender a si mesmo? Os buscadores da Verdade não precisam se preocupar com isso. As pessoas desperdiçam sua energia com essas perguntas desnecessárias.(37)

B.: Durante o seu trabalho a pessoa deve se render ao Poder Maior e nunca perder de vista que é este Poder que faz tudo. Então como ficar orgulhoso? A pessoa não deveria nem se preocupar com o resultado de suas ações. Só assim o karma será altruísta.(38)

E.W.: Se existissem cem pessoas que realizaram o Eu Real, isso não seria um benefício maior ao mundo?

B.: Quando você diz “Eu Real” você está se referindo ao ilimitado, mas quando você fala em “pessoas” você limita o significado. Há apenas um Eu Infinito.

(...)

E.W.: Na Europa as pessoas não entendem que um homem pode ajudar a humanidade mesmo vivendo isolado. As pessoas imaginam que apenas aqueles que trabalham no mundo podem ser úteis. Quando essa confusão vai terminar? A mente dos europeus vai continuar patinando na lama ou vai compreender a Verdade?

B.: Esqueça-se de “Europa” ou “América”. Onde eles estão senão na sua própria mente? Compreenda o seu verdadeiro Eu e então tudo mais é compreendido. Se você vê inúmeras pessoas em um sonho e depois acorda e se lembra do sonho, você vai tentar descobrir se essas pessoas que você criou no sonho também estão acordadas?(39)



Sri Ramana Maharshi (Sri Bhagavan)


4 - O GURU

B.: Isso depende do que você chama de Guru. Um Guru não precisa necessariamente ter uma forma física. Dattatreya disse que teve vinte e quatro Gurus – os cinco elementos, etc. Isso quer dizer que tudo no mundo era seu Guru. O Guru é absolutamente necessário.

Os Upanishads dizem que ninguém além do Guru pode tirar o homem da selva das percepções sensoriais e formações mentais; logo, o Guru é indispensável.(40)

B.: É verdade que o Ser do Guru é idêntico ao do discípulo. No entanto, apenas muito raramente uma pessoa pode compreender seu verdadeiro Ser sem a graça do Guru.(41)

B.: O mestre está no interior. Se ele fosse um ser estranho pelo qual você espera, ele também estaria fadado a desaparecer. De que adianta um ser transitório como esse?

(...)

D.: Então, o que o devoto deve fazer?

B.: Ele só precisa viver de acordo com as palavras do Mestre e trabalhar no seu interior.
Com o tempo você perceberá que a Felicidade só surge quando você deixa de existir. A fim de alcançar esse estado você deve entregar-se. Então o mestre perceberá que você está em um estado propício para receber o ensinamento, e assim Ele irá guiá-lo.(42)

B.: Se o eu individual for buscado ele não será encontrado em lugar algum. Isso é o Guru. Assim era Dakshinamurti.(43)

D.: Então Bhagavan tem discípulos?

B.: Como eu disse, do ponto de vista do discípulo a Graça do Guru é como um oceano: se ele vier com um copo ele sairá com um copo cheio. Não faz sentido dizer que o oceano é mesquinho; quanto maior for o recipiente mais água ele poderá carregar. Depende tudo do discípulo.(44)

Eles dizem que estou morrendo, mas eu não vou embora. Onde eu poderia ir? Eu estou aqui.(45)


5 - AUTO-INQUIRIÇÃO

D.: Mas pedir para a mente voltar-se para dentro e buscar sua Fonte não é empregá-la?

B.: É claro, estamos usando a mente. É de conhecimento comum que a mente só pode ser extinta com a ajuda da mente. Mas a diferença é que ao invés de começar dizendo que a mente existe e que eu quero destruí-la, você começa buscando sua fonte, e quando você encontra a Fonte você vê que a mente não existe. A mente voltada para fora resulta em pensamentos e objetos; voltada para o interior ela se torna ela mesma o Eu Real.(46)

B.: Eu não disse que você deve ficar rejeitando pensamentos. Se você agarrar a si mesmo – ou seja, se você agarrar o pensamento-eu (ou ego) – e mantiver-se interessado apenas nesse único pensamento, então os outros pensamentos serão rejeitados e desaparecerão automaticamente.(47)

B.: A investigação “Quem sou eu?” significa tentar encontrar a fonte do ego ou pensamento-eu. Então você não deve ocupar a mente com outros pensamentos, tais como “Eu não sou o corpo”, etc. Buscar a fonte do “eu” é um meio de se livrar dos outros pensamentos.(48)

B.: A individualidade [o pensamento “eu”] é aquilo que está consciente da existência dos pensamentos e da sua seqüência. Essa individualidade é o ego ou, como as pessoas dizem, é o “eu”.

B.: Você não precisa eliminar nenhum falso “eu”. Como pode o “eu” eliminar a si mesmo? Tudo o que você precisa fazer é encontrar a Fonte do “eu”, e permanecer lá. O seu esforço só pode levá-la até este ponto. A partir daí o Transcendental vai tomar conta de si mesmo. Você não pode fazer mais nada então. Nenhum esforço pode chegar até Ele.(49)

B.: As noções de prisão e libertação são meras modificações mentais (vrittis). (...) Se, portanto, a pessoa investigar [em busca dessa] fonte: “Para quem existe a prisão e libertação?”, será descoberto que é “Para mim”, isto é, para a própria pessoa. Se então ela investigar “Quem sou eu?” sinceramente, descobrirá que não existe o “eu” e “meu”.

Aquilo que “sobra”, uma vez que o “eu” desaparece – ou melhor, é visto como não existente –, é realizado de forma vívida e direta como o Eu que ilumina a si mesmo e que é como é. Essa Realização viva, que é a experiência direta e imediata da Verdade Suprema, vem naturalmente, sem nada de especial sobre ela, a todos aqueles que, permanecendo assim como são, mergulham interiormente sem permitir que a mente se exteriorize nem por um momento, e nem desperdiçam seu tempo em conversas vãs.(50)

V.: Imagine que eu tenha o pensamento “cavalo”, e procure saber de onde ele veio. Fazendo isso eu vejo que ele vem da memória, e que esta surgiu da percepção passada de um “cavalo”, mas isso é tudo.

B.: Quem lhe pediu para pensar tudo isso? Esses também são pensamentos... Qual é o bem que você espera ganhar pensando assim sobre a memória e a percepção? O “eu” que tem essa percepção e memória, de onde ele vem? Descubra. A percepção, a memória e qualquer outra experiência surgem sempre para este “eu”. Você não tem essas experiências durante o sono e mesmo assim você existe enquanto dorme, assim como existe agora. Isso apenas mostra que o EU continua enquanto as outras coisas vão e vem. (...)

B.: Você veio da mesma Fonte em que estava durante o sono.

V.: Os Upanishads dizem: Aquele que conhece Brahman torna-se Brahman.

B.: Não se trata de “tornar-se” mas sim de Ser.(51)


(“Não existe ‘realizar o Eu Superior’” – o Bhagavan costumava assim lembrar, aos que perguntavam, que apenas o Eu Real é, agora e sempre, e que não é algo novo a ser descoberto. Esse paradoxo é a essência do não-dualismo.)

B.: Tudo o que você precisa fazer é abandonar a sua identificação com esse corpo e abandonar todos os pensamentos de coisas externas, isto é, de coisas que não são o Eu Real. Por mais que a mente se exteriorize em direção aos objetos dos sentidos, detenha-a e fixe-a no Eu. Esse é todo esforço que você precisa fazer.(52)

B.: Todos buscam apenas aquilo que lhes trará felicidade. A sua mente divaga em direção aos objetos exteriores pois você acredita que encontrará felicidade neles; mas descubra de onde a felicidade realmente vem, mesmo a felicidade que você acredita originar-se dos objetos dos sentidos. Então você perceberá que toda felicidade vem apenas do Eu e, com isso, será capaz de permanecer no Eu [devido à força do seu desejo natural por felicidade].(53)

B.: Concentração não é pensar sobre algo. Pelo contrário, é excluir todos os pensamentos, já que todos os pensamentos obstruem a experiência do verdadeiro ser da pessoa.(54)

D.: Se o “eu” é uma ilusão, quem é que afasta este “eu”?

B.: O “Eu” afasta a ilusão do “eu” e mesmo assim continua sendo “Eu” – tal é o paradoxo da Auto-Realização. Mas os seres Realizados não vêem nenhum paradoxo nisto.

(...)

Você pode abandonar esta ou aquela das “minhas” posses; mas se, ao invés disso, você abandonar o “eu” e “meu”, tudo é abandonado de uma vez só, e a própria semente da posse é destruída. Com isso corta-se o mal pela raiz. Mas a força do desapego deve ser grande para que isso seja possível. A ânsia de fazer isso deve ser igual à ânsia de alguém que está sendo afogado e tem que subir à superfície para respirar.(55)

B.: O que é necessário é manter-se sempre fixo no Eu Real. Os obstáculos a isso são, por um lado, as distrações causadas pelas coisas do mundo (incluindo objetos dos sentidos, desejos e tendências) e, por outro, o sono. (...) Mas outro método é simplesmente não se preocupar com o sono. Quando quer que ele venha, você não pode evitá-lo, então simplesmente mantenha-se fixo no Eu Real, ou na sua meditação, em cada momento da sua vida desperta, e retorne à meditação no momento em que você acordar. Isso será suficiente.

Assim, mesmo durante o sono a mesma corrente de consciência estará trabalhando.(56)

B.: Você nunca deve ficar satisfeito com qualquer experiência que tenha. Quer você sinta prazer ou medo, pergunte-se quem sente isso e continue seus esforços até que prazer e medo sejam ambos transcendidos e que a dualidade cesse, permanecendo assim apenas a Realidade. Não há nada de errado em experimentar essas coisas, desde que você não pare por aí.(57)

B.: Não se importe se há visões, sons, vazio, ou qualquer outra coisa. Você está presente nessas experiências ou não? Você deve ter estado lá para poder dizer que experimentou um vazio. Permanecer fixo neste “você” do início ao fim é a busca. (...) É a mente que vê objetos e tem experiências que se depara com o vazio quando pára de ver e experimentar, mas essa mente não é você. Você é a iluminação constante que dá vida tanto à experiência quanto ao vazio.

(...) Nos versos 212 e 213 do Vivekachudamani, depois de o discípulo dizer: “Agora que eliminei os cinco revestimentos como sendo não-Eu, percebo que nada permanece”, o Guru responde que o Eu Real, ou ISTO, pelo qual todas as modificações – inclusive o ego e suas criações e a ausência delas (o vazio) – são percebidas, está sempre lá.(58)

B.: A mente é pura por natureza, mas se contamina quando se envolve com os objetos. O ideal é mantê-la ativa em sua busca sem abrir as portas para as impressões sensoriais e sem pensar em outras coisas.(59)

B.: .Para aqueles que seguem jnana marga (o caminho do Conhecimento) a auto-inquirição é suficiente para desenvolver todas as qualidades divinas – eles não precisam se preocupar em fazer mais nada.(60)

B.: A Consciência que percebe o vazio é o Eu Real.

B.: Permaneça sem pensar. Enquanto houver pensamento haverá medo.(61)


6 - OUTROS MÉTODOS

B.: Todo mundo está consciente de que existe. No entanto as pessoas se esquecem dessa consciência e vão buscar Deus. Qual é a utilidade de fixar a atenção entre as sobrancelhas? O objetivo de tal conselho é ajudar a mente a se concentrar. É um método poderoso de controlar a mente e evitar sua disperção.

B.: Você se considera o sujeito, o observador, e o ponto no qual você fixa a sua atenção se torna o objeto visto. Isto é apenas bhavana. Quando, ao contrário, você vê o próprio observador, você mergulha no Eu Real e torna-se um com ele – isso é o Coração.

D.: Não é útil fazer um voto de silêncio?

B.: Um voto é apenas um voto. Ele pode ajudar a meditação até certo ponto; mas qual é a utilidade de meramente manter a boca fechada se você permite à sua mente mover-se desenfreadamente? Por outro lado, se a mente está envolvida na meditação qual a necessidade da fala? Nada é tão bom quanto a própria meditação. Qual é a utilidade de um voto de silêncio se a pessoa está absorta na atividade [mental]?(62)

D.: O que ajuda a (1) concentração e (2) a superação das distrações?

B.: Fisicamente, o sistema digestivo e demais órgãos devem estar livres de irritação.

Para isso a alimentação deve ser regulada em qualidade e quantidade. (...) Mentalmente, tenha interesse em apenas uma coisa e fixe sua mente nisso. Deixe esse interesse absorve-lo completamente excluindo todo o resto. Isso é desapego (vairagya) e concentração.(63)

B.: Tudo o que se fala sobre a entrega é como roubar açúcar de uma imagem de açúcar de Ganesha e depois oferecê-lo ao mesmo Ganesha. Você diz que oferece seu corpo e alma e todas as suas posses a Deus – mas eles são seus para você poder oferecer? No máximo você pode dizer: “Eu erroneamente imaginei até agora que essas coisas, que na verdade são Vossas, eram minhas. Agora percebo que elas pertencem a Vós, e não mais agirei como se minhas fossem”. E esse conhecimento de que não existe nada além de Deus (Brahman) ou Eu Real (Atman), de que “eu” e “meu” são meras ficções, e que apenas o Eu Real existe, é Jnana.(64)

Dr. Syed: Gostaria de saber quais são os passos por meio dos quais eu posso atingir a entrega?

B.: Há dois caminhos. Um é buscar a fonte do “eu” e mergulhar nessa Fonte; o outro é sentir “eu sou impotente sozinho; apenas Deus é todo-poderoso, e a única maneira de eu estar seguro é me atirando completamente Nele”, assim desenvolvendo gradualmente a convicção de que apenas Deus existe, e de que o ego é irrelevante. Ambos os métodos levam ao mesmo objetivo. A entrega completa é apenas outro nome para Jnana ou Libertação.(65)

B.: “Semelhante ao sono”, está correto. É o estado natural. Como você agora se identifica com o ego, você olha para o estado natural como se fosse algo que interrompesse seu trabalho ou prática. Então você deve ter essa experiência repetida até que você perceba que esse estado é seu estado natural.(66)

D.: Swami, como pode o domínio do ego ser afrouxado?

B.: Não se acrescentando novas vasanas (tendências mentais) a ele.(67)

B.: O exame da natureza transitória das coisas exteriores leva ao desapego (vairagya). Assim, a investigação ou inquirição é o primeiro e mais importante passo. Quando ela se torna automática resulta em indiferença à riqueza, fama, conforto, prazeres, etc. Então o pensamento-“eu” é investigado até chegar-se à fonte do “eu”, o Coração, que é a meta final.(68)


7 - A META


B.: “Não se preocupe com a Libertação. Primeiro descubra se há aprisionamento. Investigue a você mesmo primeiro”.(69)

D.: Pode a Auto-Realização uma vez alcançada ser perdida?

B.: A Realização leva tempo para se estabilizar. O Eu Real certamente está dentro da experiência direta de todos, mas não da forma como eles imaginam. Só se pode dizer que ele é como é. (...) Devido à flutuação das vasanas, a Realização demora a se estabilizar. A Realização súbita não é suficiente para acabar com o ciclo de renascimentos, e ela não pode se tornar permanente enquanto houver vasanas. Na presença de um grande mestre as vasanas deixam de ser ativas e a mente se torna quieta, de forma que o samadhi (absorção no Real) resulta, assim como na presença de vários meios [mágicos] o fogo não queima.

Assim, na presença do mestre o discípulo ganha conhecimento verdadeiro e uma experiência correta. Mas para isso ser estabilizado é necessário um esforço adicional.

Então o discípulo saberá que isso é seu verdadeiro Ser, e assim será libertado mesmo enquanto no corpo.(70)

D.: Esse método parece ser mais rápido que o método comum de desenvolver as virtudes postas como necessárias à Realização.

B.: Sim. Todos os erros e defeitos estão centrados no ego. Quando o ego desaparece a Realização resulta naturalmente.(71)

B.: A paz só pode reinar quando não há perturbação, e a perturbação existe por causa dos pensamentos que surgem na mente. Quando a mente está ausente, há paz perfeita. A menos que a pessoa tenha aniquilado a mente, ela não pode ter paz e ser feliz. E se a própria pessoa não for feliz ela não poderá dar felicidade aos “outros”.(72)

Então, “EU-SOU” é Deus.(73)

D.: O que é samadhi?

B.: No yoga o termo é usado para indicar um certo tipo de transe (ou absorção meditativa), e há vários tipos de samadhi. Mas o samadhi sobre o qual estou falando é diferente; é sahaja samadhi. Nesse estado você permanece calmo e sereno durante a atividade. Você percebe que é movido pelo Eu Real dentro de você, e permanece não afetado por qualquer coisa que você faça, diga, ou pense.(74)

B.: Tanto o homem Realizado quanto o não Realizado tem sensações. A diferença é que o não realizado se identifica com o corpo que tem sensações, enquanto que o Iluminado sabe que tudo isso é o Eu Real, que tudo é Brahman (O Absoluto). Se há dor deixe-a ser; ela também faz parte do Eu, e o Eu é perfeito.(75)

D.: Podemos pensar sem a mente?

B.: Os pensamentos podem continuar, assim como as outras atividades. Eles não perturbam a Consciência Suprema.(76)

B.: Se você agarrar-se ao Eu Real, o surgimento das imagens não irá enganá-lo. Também não vai mais importar se as imagens aparecem ou desaparecem.(77)

Notas:


1 T., 446

2 S.I., Capítulo II, § 5

3 Exodus III, 14

4 T., 196

5 T., 20

6 T., 573

7 T., 276

8 M.G., pp 38-39

9 T., 80

10 T., 252

11 T., 451

12 S.E., § 11

13 T., 28

14T., 273

15T., 63

16 M.G., pp.42-43

17 T., 43

18 T., 594

19 D.D., p. 266-267

20 T., 164

21 T., 479

22 D.D., pp. 288-289

23 D.D., p. 245

24 D.D., pp. 91-92

25 T., 467

26 T., 398

27 T., 78

28 D.D., p. 16

29 T., 354

30 D.D., p. 232

31 S.I., Capítulo II, § 23-25

32 D.D., p. 1

33 T., 634

34 T., 634

35 T., 251

36 S.D.B., p. XXVI e XXVII

37 R.M., p. 184-185

38T., 502

39 T., 20

40 R.M., p. 169-170

41 S.I., capítulo I, § 1-4

42 M.G., pp. 26-27

43T., 398

44 R.M., pp. 167-168

45 R.M., p. 222

46 D.D., p. 37

47S.D.B., p. IV

48 D.D., p. 80

49 T., 197

50 S.I., capítulo IV, § 15

51 D.D., pp. 268-269

52 D.D., p. 332

53 D.D., p. 298

54 T., 398

55 T., 28

56 D.D., pp. 279-280

57 D.D., p. 224

58 D.D., pp. 277-279

59 T., 61.

60 D.D., p. 276

61 T., 202

62 T., 371

63 T., 28

64 D.D., p. 49

65 D.D., pp. 162-163

66 M.G., p. 17-18

67 T., 173

68 T., 27

69 T., 578

70 T., 141

71 T., 146

72 M.G., p. 30

73 T., 503

74 S.D.B., p. X

75 T., 383

76 T., 43

77 M.G., p., 47.





Fonte: http://www.advaita.com.br/Ramana/Textos%20em%20Portugu%C3%AAs/Os%20Ensinamentos%20de%20Ramana%20Maharshi%20-%20resumo.pdf

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A Consciência é livre




Pergunta: Acabo de chegar do Sri Ramanashram. Passei ali sete meses.




Maharaj: Que práticas você esteve seguindo no Ashram?



P: Concentrei-me tudo o que pude no ‘Quem sou eu?’.



M: De que modo o fazia? Verbalmente?



P: Em meus momentos livres ao longo do dia. Algumas vezes murmurava para mim mesmo ‘Quem sou eu?’ ‘Eu sou, mas quem sou eu?’ Ou eu o fazia mentalmente. Em algumas ocasiões, tinha alguns sentimentos agradáveis ou entrava em estados de tranquila felicidade. Em geral, eu tentava estar quieto e receptivo em vez de esforçar-me em ter experiências.



M: O que experimentava realmente quando estava no humor adequado?



P: Um sentimento de quietude interior, paz e silêncio.



M: Observou-se ao se tornar inconsciente?



P: Sim, ocasionalmente, e por pouco tempo. De outro modo, estava simplesmente tranquilo, interna e externamente.



M: Que tipo de tranquilidade era? Algo parecido ao sono profundo, mas consciente ao mesmo tempo? Uma espécie de sono acordado?



P: Sim. Alertamente adormecido (jagrit-sushupti).



M: O principal é libertar-se das emoções negativas – desejo, medo, etc., os ‘seis inimigos’ da mente (ignorância, medo, desejo (apego ao), aversão, inveja e orgulho). Uma vez que a mente esteja livre deles, o resto virá facilmente. Assim como o tecido, mantido em água com sabão, ficará limpo, a mente se purificará na corrente do sentimento puro.



Quando você senta tranquilamente e observa a si mesmo, todos os tipos de coisas podem vir à superfície. Não faça nada a respeito, não reaja a elas; do mesmo modo que vieram, irão embora por si mesmas. Tudo o que importa é a atenção, a total Consciência de si mesmo, ou melhor, da própria mente.



P: Por ‘si mesmo’ você quer dizer o ser de todos os dias?



M: Sim, a pessoa, a única que é objetivamente observável. O observador está além da observação. O que pode ser observado não é o ser real.



P: Sempre posso observar o observador, em infindável recessão.



M: Você pode observar a observação, não o observador. Você sabe que é o observador final por percepção direta, não por um processo lógico baseado na observação. Você é o que é, mas conhece o que você não é. O ser é conhecido como existência, o não-ser é conhecido como transitório. Mas, na realidade, tudo está na mente. Observado, observação e observador são construções mentais. Só o ser é.



P: Por que a mente cria todas estas divisões?



M: A própria natureza da mente é dividir e particularizar. Não há dano em dividir. Mas a separação vai contra a realidade. As coisas e as pessoas são diferentes, mas não estão separadas. A natureza é uma, a realidade é uma. Existem opostos, mas não oposição.



P: Percebo que sou muito ativo por natureza. Aqui, sou aconselhado a evitar a atividade. Quanto mais tento permanecer inativo, maior é o impulso para fazer algo. Isto não só me torna ativo exteriormente, mas me faz lutar interiormente para ser o que não sou por natureza. Há algum remédio contra a ânsia de agir?



M: Há uma diferença entre o trabalho e a mera atividade. Toda a natureza trabalha. O trabalho é natureza, a natureza é trabalho. Por outro lado, a atividade está baseada no desejo e no medo, na ânsia de possuir e apreciar, no medo da dor e da aniquilação. O trabalho é do todo para o todo; a atividade, de si mesmo para si mesmo.



P: Há algum remédio contra a atividade?



M: Observe-a, e ela deverá cessar. Utilize toda a oportunidade para recordar-se que está aprisionado, que tudo o que acontece a você se deve ao fato de sua existência corporal. O desejo, o medo, os problemas, o gozo, não poderão aparecer a menos que você exista para que lhe apareçam. Mesmo assim, tudo o que acontece aponta para sua existência como centro de percepção. Seja indiferente aos indicadores e consciente do que apontam. É muito simples, mas deve ser feito. O que importa é a persistência com que você continua voltando para si mesmo.



P: Entro em um peculiar estado de profunda absorção em mim mesmo, mas de modo imprevisível e momentâneo. Não me sinto no controle de tais estados.



M: O corpo é algo material e necessita tempo para mudar. A mente é apenas um conjunto de hábitos mentais, de modos de pensar e sentir e, para mudar, devem ser trazidos para a superfície e examinados. Isto também leva tempo. Simplesmente, decida-se e persevere, o resto cuidará de si mesmo.



P: Parece-me que tenho uma ideia clara do que fazer, mas me percebo ficando cansado e deprimido, e buscando companhia humana, perdendo assim o tempo que deveria ser dado para a solidão e a meditação.



M: Faça o que quiser fazer. Não se intimide. A violência o tornará duro e rígido. Não lute contra os obstáculos que vê no seu caminho. Interesse-se por eles, veja-os, observe, investigue. Deixe que as coisas aconteçam – boas ou más. Mas não se deixe afundar pelo que acontece.



P: Qual o propósito de lembrar-se todo o tempo que se é o observador?



M: A mente deve aprender que, além da mente móvel, existe a base da Consciência, a qual não muda. A mente deve conhecer o verdadeiro ser e respeitá-lo, e deixar de encobri-lo, como a lua que obscurece o sol em um eclipse. Compreenda que nada observável, ou que possa ser experimentado, é você, ou o limita. Não tome conhecimento do que não é você mesmo.



P: Devo ser incessantemente consciente para fazer o que você me diz.



M: Ser consciente é estar desperto. Inconsciente significa adormecido. De qualquer modo você é consciente, não necessita tentar sê-lo. O que necessita é ser consciente de ser consciente. Seja consciente deliberada e conscientemente; amplie e aprofunde o campo da Consciência. Você sempre é consciente da mente, mas não é consciente de si mesmo como ser consciente.



P: Como posso entender, você dá distintos significados para as palavras ‘mente’, ‘consciência’ (consciousness) e ‘Consciência’ (awareness).



M: Veja deste modo. A mente produz pensamentos incessantemente, mesmo quando você não os observa. Quando sabe o que está acontecendo em sua mente, você a chama consciência (consciousness). Este é o seu estado de vigília – sua consciência se move de sensação em sensação, de percepção em percepção, de ideia em ideia, em uma sucessão sem fim. Logo vem a ‘Consciência’ (awareness), a percepção direta dentro do todo da consciência, a totalidade da mente. A mente é como um rio, fluindo sem cessar no leito do corpo; por um momento você se identifica com alguma onda em particular e a chama ‘meu pensamento". Tudo de que você está consciente é sua própria mente; a Consciência é o conhecimento da consciência como um todo.



P: Todos estão conscientes, mas nem todos são Consciência.



M: Não diga: ‘Todos estão conscientes’. Diga: ‘Há consciência’ na qual tudo aparece e desaparece. Nossas mentes são apenas ondas no oceano da consciência. Como ondas, vêm e vão. Como oceano, são infinitas e eternas. Conheça a si mesmo como o oceano do ser, o útero de toda existência. Certamente, tudo isto são metáforas; a realidade está além da descrição. Só sendo a realidade você pode conhecê-la.



P: Vale a pena buscá-la?



M: Sem ela tudo é problema. Se quiser viver uma vida sadia, criativa e feliz, tendo infinitas riquezas a compartilhar, busque o que você é. Enquanto a mente estiver centrada no corpo e a consciência na mente, a Consciência é livre. O corpo tem seus impulsos e a mente, suas dores e prazeres. A Consciência é desapegada e inabalável. É lúcida, silenciosa, pacífica, alerta e despreocupada, sem desejo nem temor. Medite nela como seu verdadeiro ser e tente sê-la em sua vida diária, e você deverá compreendê-la em sua plenitude. A mente está interessada no que acontece, enquanto a Consciência se interessa na própria mente. A criança vai atrás do brinquedo, mas a mãe observa a criança, não o brinquedo.



Observando incessantemente, esvaziei-me por completo e com esse vazio tudo regressou a mim, exceto a mente. Descobri que havia perdido a mente irreparavelmente.




P: Você está inconsciente enquanto nos está falando?




M: Não estou nem consciente nem inconsciente, estou além da mente e de seus vários estados e condições. As distinções são criadas pela mente e se aplicam apenas a ela. Sou a própria pura consciência, a Consciência íntegra de tudo que é. Estou em um estado mais real que o de vocês. As distinções e separações que constituem uma pessoa não me distraem. Enquanto o corpo durar, ele terá suas necessidades como qualquer outro, mas o processo mental terminou.



P: Você se comporta como uma pessoa que pensa.



M: Por que não? Mas meu pensamento, como minha digestão, é inconsciente e propositado.



P: Se seu pensamento é inconsciente, como você sabe que ele está correto?



M: Não há nenhum desejo nem temor que o impeça. O que pode fazê-lo incorreto? Uma vez que me conheça e ao que represento, não necessito verificar-me todo o tempo. Quando você sabe que seu relógio marca a hora certa, você não duvida cada vez que o consulta.



P: Quem fala neste próprio momento senão a mente?



M: Este que ouve a pergunta a responde.



P: Mas quem é?



M: Não quem, mas o quê. Eu não sou uma pessoa no seu sentido da palavra, embora eu possa parecer uma pessoa para você. Sou o infinito oceano de consciência no qual tudo acontece. Estou também além de toda existência e conhecimento, pura bem-aventurança de ser. Nada existe que eu sinta como separado de mim, portanto sou tudo. Nada sou eu, assim eu sou nada.



O mesmo poder que faz arder o fogo e fluir a água, que faz a semente brotar e a árvore crescer, faz com que responda suas perguntas. Não há nada pessoal sobre mim, embora a linguagem e o estilo possam parecer pessoais. Uma pessoa é um conjunto de padrões de desejos e pensamentos, e ações resultantes; no meu caso não existem tais padrões. Não há nada que eu deseje ou tema – como pode existir um padrão?



P: Seguramente, você morrerá.



M: A vida escapará, o corpo morrerá, mas isto não me afetará o mínimo. Além do espaço e do tempo eu sou, sem causa, causa de nada, e ainda assim a própria matriz da existência.



P: Permita-me perguntar como você chegou à sua presente condição?



M: Meu mestre falou-me para agarrar-me tenazmente ao sentido de ‘Eu sou’ e que não me desviasse dele nem por um momento. Segui seu conselho e, em um tempo comparativamente curto, compreendi, dentro de mim mesmo, a verdade de seu ensinamento. Tudo o que fiz foi lembrar constantemente seu ensinamento, seu rosto, suas palavras. Isto acabou com a mente; na quietude da mente, vi a mim mesmo como sou – ilimitado.



P: Sua realização foi repentina ou gradual?



M: Nem uma nem outra. É-se o que se é atemporalmente. É a mente que compreende como e quando ela fica livre de desejos e temores.



P: Mesmo o desejo de realização?



M: O desejo de colocar um fim a todos os desejos é o mais peculiar, da mesma forma que ter medo de estar amedrontado é um temor muito peculiar. Um o impede de agarrar e o outro o impede de escapar. Você pode usar as mesmas palavras, mas os estados não são o mesmo. O homem que busca a realização não está viciado em desejos; ele é um buscador que vai contra o desejo, não com ele. O anseio geral por libertação é apenas o começo; encontrar os meios adequados e usá-los é o próximo passo. O buscador tem apenas uma meta: encontrar seu próprio ser verdadeiro. De todos os desejos, este é o mais ambicioso, pois nada nem ninguém poderá satisfazê-lo; o buscador e o buscado são um, e só a busca interessa.



P: A busca acabará. O buscador permanecerá.



M: Não, o buscador se dissolverá, a busca continuará. A busca é a última e atemporal realidade.



P: Busca significa carência, desejo, incompletude e imperfeição.



M: Não, ela significa recusa e rejeição do incompleto e do imperfeito. A busca da realidade é o próprio movimento da realidade. De um certo modo, toda busca é pela bem-aventurança real, ou a bem-aventurança do real. Mas aqui, por busca queremos dizer a busca de si mesmo como a raiz do ser consciente, como a luz além da mente. Esta busca nunca terminará, enquanto a ânsia incessante por tudo mais deve terminar para que o progresso real aconteça.



Deve-se entender que a busca da realidade, de Deus, ou do Guru, e a busca do ser são a mesma; quando um é encontrado, todos são encontrados. Quando ‘Eu sou’ e ‘Deus é’ tornam-se indistinguíveis em sua mente, então algo acontecerá e você conhecerá, sem sombra de dúvida, que Deus é porque você é e você é porque Deus é. Os dois são um.



P: Desde que tudo é predestinado, está predestinada nossa autorrealização? Ou somos livres ao menos nisto?



M: O destino se refere apenas ao nome e à forma. Desde que você não é nem o corpo nem a mente, o destino não tem nenhum controle sobre você. Você é completamente livre. A taça é condicionada por sua forma, material, uso e assim por diante. Mas o espaço no interior da taça é livre. Ele está na taça apenas quando visto em conexão com ela. De outra forma é apenas espaço. Enquanto há corpo, você aparenta estar encarnado. Sem o corpo, você não está desencarnado – você simplesmente é.



Mesmo o destino é apenas uma ideia. As palavras podem estar juntas de muitas maneiras! As frases podem diferir, mas mudam algo no real? Há muitas teorias inventadas para explicar as coisas – todas são plausíveis, nenhuma é verdadeira. Quando você dirigir um carro, você estará sujeito às leis da mecânica e da química: saia do carro e você estará sob as leis da fisiologia e da bioquímica.



P: O que é meditação e para que serve?



M: Enquanto você for um principiante, certas meditações formais, ou orações, poderão ser boas para você. Mas, para o buscador da realidade, existe apenas uma meditação – a recusa rigorosa a acolher pensamentos. Estar livre de pensamentos é a própria meditação.



P: Como isto é feito?



M: Você começa por permitir que os pensamentos fluam, e os observa. A própria observação aquieta a mente até que ela para totalmente. Uma vez quieta a mente, mantenha-a quieta. Não fique entediado com a paz, esteja nela, vá profundamente para dentro dela.



P: Ouvi acerca de agarrar-se a um pensamento para manter todos os outros afastados. Mas como afastar todos os pensamentos? A própria ideia é também um pensamento.



M: Experimente novamente, não se guie por experiências passadas. Observe seus pensamentos e observe a si mesmo observando os pensamentos. O estado de liberdade de todos os pensamentos acontecerá repentinamente, e você o reconhecerá pela sua bem-aventurança.



P: Você não está de forma alguma interessado sobre o estado do mundo? Olhe para todos os horrores do leste paquistanês. Eles não o afetam em nada?



M: Leio jornais, sei o que está acontecendo! Mas minha reação não é como a sua. Você está buscando uma medida saneadora, enquanto eu estou interessado na prevenção. Enquanto houver causas, deverá haver resultados. Enquanto as pessoas estiverem propensas a dividir e separar, enquanto elas forem egoístas e agressivas, tais coisas acontecerão. Se você quer paz e harmonia no mundo, você deve ter paz e harmonia em seu coração e em sua mente. Tais mudanças não podem ser impostas; devem vir de dentro. Aqueles que abominam a guerra devem expulsá-la de seu sistema. Sem pessoas pacíficas, como você pode ter paz no mundo? Enquanto as pessoas forem como são, o mundo deverá ser como é. Eu estou fazendo a minha parte ao tentar ajudar as pessoas a conhecer a si mesmas como a única causa de suas próprias misérias. Neste sentido, sou um homem útil. Mas o que sou em mim mesmo, o que é meu estado normal, não pode ser expresso em termos de consciência social e utilidade.



Posso falar sobre isso utilizando metáforas ou parábolas, mas sou agudamente consciente que isto não é exatamente assim. Não que não possa ser experimentado.



É a própria experimentação! Mas não pode ser descrito em termos de uma mente que deva separar e opor para conhecer. O mundo é como uma folha de papel sobre a qual alguma coisa é datilografada. A leitura e o significado variarão com o leitor, mas o papel é o fator comum, sempre presente, raramente percebido. Quando a fita é removida, a impressão não deixa nenhum traço sobre o papel. Assim é minha mente – as impressões continuam chegando, mas nenhum traço é deixado.



P: Por que você se senta aqui e fala para as pessoas? Qual seu motivo real?



M: Nenhum. Você diz que devo ter um motivo. Eu não estou sentado aqui, nem estou falando; não é necessário procurar motivos. Não me confunda com o corpo. Não tenho nenhum trabalho para fazer, nem deveres a realizar. Esta minha parte, a qual você pode chamar Deus, cuidará do mundo. Este seu mundo, que tantos cuidados necessita, vive e se move em sua mente. Investigue profundamente nele, você encontrará suas respostas ali e somente ali. De que outra parte você espera que elas venham? Existe algo fora de sua consciência?



P: Pode existir sem que eu nunca saiba.



M: Que tipo de existência seria? Pode o ser estar divorciado do conhecer? Todo ser, como todo conhecer, relaciona-se a você. Uma coisa é porque você sabe que é, ou em sua experiência ou em seu ser. Seu corpo e sua mente existem enquanto você assim acreditar. Cesse de pensar que eles são seus e eles se dissolverão. Sem dúvida, deixe seu corpo e sua mente funcionar, mas não os deixe limitá-lo. Se você observar imperfeições, siga observando; a própria atenção que você lhes dá colocará seu coração, sua mente e seu corpo em ordem.



P: Posso curar-me de uma grave enfermidade pelo mero fato de conhecê-la?



M: Conheça a enfermidade como um todo, não apenas através dos sintomas externos. Toda doença começa na mente. Cuide da mente em primeiro lugar, achando e eliminando todas as ideias e emoções incorretas. Então viva e trabalhe sem dar atenção à enfermidade e sem pensar mais nela. Com a remoção das causas, o efeito é obrigado a partir. O homem se transforma no que ele acredita ser. Abandone todas as ideias sobre você mesmo e você descobrirá ser a pura testemunha, além de tudo que possa acontecer para o corpo ou para a mente.



P: Se eu me transformar em qualquer coisa que pensar, e começo a pensar que sou a Realidade Suprema, não será minha Realidade Suprema uma mera ideia?



M: Primeiro alcance este estado e então faça a pergunta.





Trecho extraído do livro "Eu Sou Aquilo - Conversações com Sri Nisargadatta Maharaj" - Editora Advaita.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Ideias de Heidegger sob novo ataque



Por décadas, o filósofo alemão Martin Heidegger foi tema de debates acalorados. Sua crítica do pensamento e da tecnologia ocidentais penetrou profundamente na arquitetura, na psicologia e na teoria literária e inspirou alguns dos mais importantes movimentos intelectuais do século XX. Mas Heidegger foi também um nazista fanático.


A reportagem é de Patricia Cohen, do jornal New York Times, e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-11-2009.


Agora, um livro a ser lançado brevemente em inglês, retoma o debate quanto a se o homem pode ser separado da sua filosofia. Baseado em novas evidências, o autor, Emmanuel Faye, afirma que as ideias racistas e fascistas estão tão entremeadas nas teorias de Heidegger que não merecem mais ser chamadas de filosofia. Assim, as obras e as muitas áreas criadas a partir dessas teorias têm que ser reexaminadas, diz o autor, de modo a não disseminarem ideias sinistras e perigosas para o pensamento moderno quanto foi sinistro e perigoso o "movimento nazista para os povos exterminados".


Publicado pela primeira vez na França em 2005, o livro, Heidegger: Introdução do Nazismo na Filosofia, exorta professores de filosofia a tratarem a obra de Heidegger como discurso odioso. E também as livrarias deveriam abandonar a classificação dos trabalhos do filósofo (que foram saneados e condensados pela família) como filosofia para incluí-los dentro da história do nazismo. Essas medidas funcionariam como sinal de advertência, do mesmo modo que a caveira na etiqueta de uma garrafa de veneno, para impedir a difusão descuidada das suas mais odiosas ideias, que Faye cataloga como a exaltação do Estado em relação ao indivíduo, a impossibilidade da moralidade, o anti-humanismo e a pureza racial.


O livro é o mais violento ataque feito até hoje a Heidegger (1889-1976) e invalidaria o tratamento pela área filosófica da sua obra nos EUA, e ainda mais na França, onde sua leitura é exigida em graus de estudo mais avançados. Faye, professor da Universidade de Paris, em Nanterre, não só deseja tirar Heidegger da classe dos filósofos, como desafia seus colegas a repensar o real objetivo da filosofia e sua relação com a ética. Ao mesmo tempo, estudiosos de disciplinas tão distintas da filosofia, como a poesia e a psicanálise, se obrigariam a reconsiderar o uso das ideias de Heidegger. Embora Faye se refira à estreita correlação entre Heidegger e a atual política de extrema direita, os intelectuais da esquerda quase sempre foram inspirados pelas ideias dele. O existencialis mo e o pós-modernismo, como também os ataques concomitantes ao colonialismo, bombas atômicas, ruína ecológica e noções universais de moralidade, tudo isso está baseado na sua crítica da razão e da tradição culturais ocidentais.


Richard Wolin, autor de diversos livros sobre Heidegger e leitor atento do livro de Faye, diz não estar convencido de que o pensamento do filósofo alemão esteja inteiramente contaminado pelo nazismo, como afirma Faye. Mas reconhece quão longe as ideias de Heidegger se espalharam para a cultura mais geral. "Não estou, absolutamente, subestimando qualquer dessas áreas por causa da influência de Heidegger", ele escreveu num e-mail, referindo-se à influência do pós-modernismo sobre o mundo acadêmico. "Estou simplesmente afirmando que devemos saber mais a respeito dos resíduos e conotações ideológicas de um pensador como Heidegger antes de aceitarmos seu discurso pronto ingenuamente."


Apesar de o texto em inglês editado pela editora da Universidade Yale só estar à venda nos EUA dentro de algumas semanas, ele já está chamando atenção, como foi assinalado por um ensaio na The Chronicle Review, revista de ideias e opinião do The Chronicle of Higher Education. No texto, intitulado Heil Heidegger! , o crítico Carlin Romano qualifica Heidegger como um "falastrão da Floresta Negra" e uma fraude que foi "supervalorizado no seu apogeu" e "bizarramente venerado pelos acólitos ainda hoje". Poucas pessoas leram o livro, mas o artigo gerou mais de 150 comentários online de defensores e detratores ferozes, mais do que qualquer outro trabalho publicado pela The Review este ano, segundo a editora Liz McMille.


Outros entraram na briga. Ron Rosenbaum, autor de Explaining Hitler (Explicando Hitler), chega até a estender o argumento à filósofa judia alemã Hannah Arendt, ex-aluna e amante de Heidegger. Citando ensaio recente do historiador Bernard Wasserstein, Rosenbaum escreveu no website Slate.com. que a ideia de Hannah sobre o Holocausto e a sua famosa formulação da "banalidade do mal" foi corrompida por Heidegger e por outros escritores antissemitas. Comentaristas rejeitam veementemente a noção de que ideias importantes não podem ser extraídas de ideias infames. Escrevendo para o website do The New Republic, o tnr.com, Damon Linker declarou ser "absurdo implicar toda a bibliografia filosófica de Heidegger". Ele e outros repercutiram a opinião do importante filósofo americano Richard Rorty, que, num artigo no The New York Times, escreveu: "Você não pode ler a maioria dos grandes filósofos mais recentes sem levar o pensamento de Heidegger em conta." Rorty acrescentou, contudo, que "o cheiro da fumaça dos crematórios sobreviverá nas suas páginas".


Aos olhos de Faye, a filosofia de Heidegger não pode ser separada da sua política da maneira, digamos, que a verve poética de T.S. Elliot ou a técnica cinematográfica de D.W. Griffith podem ser apreciadas independentemente das suas próprias crenças. Embora não discuta o lugar de Heidegger no panteão intelectual, Faye revisa suas conferências não publicadas e conclui que a filosofia de Heidegger baseava-se nas mesmas ideias do Nacional Socialismo. Sem compreenderem o solo em que a filosofia heideggeriana tem raízes, afirmou, as pessoas não podem entender que suas ideias possam avançar em direções preocupantes. O ditame de Heidegger para ser autêntico e livre das limitações convencionais, por exemplo, pode levar a uma rejeição da moralidade. A denúncia da razão e do modernismo sem alma pode levar a um anti-intelectuali smo grosseiro.


Heidegger juntou-se ao partido nazista em 1933, ao se tornar reitor da Universidade de Freiburg e supervisionou a demissão de professores judeus. Após a guerra, foi proibido de lecionar por um tribunal. Nos anos 50, Hannah Arendt reatou o relacionamento com ele e se empenhou para refazer sua reputação. Heidegger foi um grande crítico da sociedade tecnológica moderna e da tradição filosófica ocidental que propiciou a ascensão dessa sociedade. Segundo ele, nós temos que vencer essa tradição e repensar a real natureza da existência ou do ser humano. Sua prosa é tão densa que, para alguns estudiosos, ela pode ser interpretada para significar qualquer coisa, enquanto outros a rechaçam completamente como sandices. No entanto, ele é considerado um dos maiores e mais influentes pensadores do século.


Teólogos usaram sua crítica da razão para explicar o ato de fé; arquitetos foram inspirados pela sua rejeição das regras convencionais para introduzir uma série de novos estilos, materiais e formas nos projetos de construção. Sua crítica da tecnologia mecanicista atraiu ambientalistas e urbanistas. Mas uma disputa verbal sobre as teorias de Heidegger não deve causar surpresa. Afinal, a posição americana clássica sobre como as sociedades liberais devem tratar ideias perigosas vale a pena ser discutida também. E é isso que Faye diz pretender. Na sua opinião, ensinar as ideias de Heidegger sem revelar suas profundas simpatias pelo nazismo é como levar uma criança a um espetáculo de fogos de artifício sem alertá-la de que um rojão também pode explodir no rosto de alguém.