quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sete Milagres da Plena Atenção


Thich Nhat Hanh


A palavra sânscrita que designa Plena Atenção, smriti, significa "lembrar-se". A Plena Atenção consiste em lembrar-se constantemente de voltar ao momento presente. O ideograma chinês para a Plena Atenção tem duas partes: a parte superior significa "agora" e a parte inferior "mente" ou "coração”.

O Primeiro Milagre da Plena Atenção é estar presente e ser capaz de entrar em contato profundo com o céu azul, a flor ou o sorriso de nosso filho.

O Segundo Milagre da Plena Atenção é fazer com que o outro - o céu, a flor ou nosso filho - também esteja presente. No poema épico vietnamita Conto de Kieu, a heroína volta ao apartamento de seu amado, Kim Trong, e o encontra dormindo em sua escrivaninha, com a cabeça sobre uma pilha de livros. KimTrong ouve os passos de Kieu mas, semi-adormecido, pergunta: "Você está realmente aqui, ou estou sonhando?" Kieu responde: "Agora temos a oportunidade de ver-nos com clareza. Mas se não vivermos este momento profundamente, ele não terá passado de um sonho." Você e seu amado estão aqui juntos. Têm a oportunidade de se olharem profundamente. Mas se não estiverem completamente presentes, tudo não passará de um sonho.

O Terceiro Milagre da Plena Atenção é nutrir o objeto de sua atenção. Quando foi a última vez que olhou nos olhos de sua amada e perguntou: "Quem é você, minha querida?" Não se satisfaça com uma resposta superficial. Pergunte novamente: "Quem é você, que assumiu o meu sofrimento como seu, minha felicidade como sua, minha vida e morte como suas? Meu amor, por que razão você não é uma gota de orvalho, uma borboleta ou um pássaro?" Pergunte com todo o seu ser. Se não prestar a devida atenção à pessoa que ama, estará cometendo uma espécie de assassinato. Quando estiverem juntos fazendo alguma coisa, e se perderem em seus próprios pensamentos, cada um presumindo que sabe tudo sobre o outro, na verdade um estará morrendo lentamente. Mas com Plena Atenção será capaz de fazer renascer uma flor que ia murchar. "Eu sei que você está aqui, ao meu lado, e isso me faz feliz." Através da atenção, você será capaz de descobrir fatos novos e maravilhosos da amada, suas alegrias, seus talentos ocultos, suas aspirações mais profundas. Se você não praticar a atenção apropriada, como pode dizer que a ama?

O Quarto Milagre da Plena Atenção é aliviar o sofrimento de outra pessoa. "Eu sei que você sofre, e é por isso que estou aqui." Pode dizer isso com palavras ou simplesmente pela forma como olha para a pessoa. Se não estiver realmente presente, ou se ficar pensando em outras coisas, o milagre do alívio do sofrimento não se realizará. Em momentos difíceis, se tiver um amigo realmente presente ao seu lado, saberá que é um privilegiado. Amar significa nutrir o outro com atenção. Quando se pratica a Plena Atenção Correta, nós e o outro estamos presentes aqui e agora. "Querida, eu sei que você está aqui. Sua presença é preciosa para mim." Se você não demonstra isto quando estão juntos, no dia em que ela morrer ou sofrer um acidente, você chorará e lamentará o fato de antes do acidente não ter sabido se realmente foi feliz com ela.

Quando alguém está próximo da morte, se nos sentarmos ao seu lado com uma atitude estável e sólida, já será uma enorme ajuda para que esta pessoa possa abandonar esta vida com certa facilidade. Nossa presença será como um mantra, a fala sagrada que tem efeito transformador. Quando seu corpo, sua fala e sua mente estão em perfeita unicidade, o mantra fará efeito antes mesmo que se pronuncie uma única palavra. Os primeiros quatro milagres da Plena Atenção pertencem ao primeiro aspecto da meditação, shamatha - parar, acalmar-se, descansar e curar-se. Depois que você conseguir se acalmar e parar de se dispersar, sua mente ficará autofocalizada e você estará pronto para a contemplação profunda.

O Quinto Milagre da Plena Atenção é a contemplação profunda (vipashyana), que também é o segundo aspecto da meditação. Relaxado e concentrado, você está realmente preparado para olhar em profundidade. Você irradia a luz da Plena Atenção sobre o objeto que observa, e ao mesmo tempo irradia a luz da Plena Atenção para si mesmo. Observa o objeto de sua atenção e ao mesmo tempo enxerga o conteúdo da própria consciência armazenadora que está repleta de jóias preciosas.

O Sexto Milagre da Plena Atenção é a compreensão. Quando entendemos algo, nós dizemos: "Ah, sim, estou vendo." Vemos alguma coisa que não víamos antes. Ver e compreender são processos que surgem dentro de nós. Ao usar a atenção, entramos em contato com o momento presente, profundamente, e podemos ver e ouvir com clareza. Isso gera frutos, que são a compreensão, a aceitação, o amor e o desejo de aliviar a dor e trazer alegria. Quando você entende alguém, não consegue deixar de amar esta pessoa. A compreensão é o verdadeiro alicerce do amor.

O Sétimo Milagre da Plena Atenção é a transformação. Quando praticamos a Plena Atenção Correta, entramos em contato com os elementos curadores e renovadores da vida, e começamos a transformar a nossa dor e o sofrimento do mundo. Passamos a desejar vencer um hábito, como, por exemplo, o hábito de fumar, em prol da saúde de nosso corpo e nossa mente. Quando começamos a praticar, a força de nossos hábitos é mais forte do que a Plena Atenção, por isso não esperamos conseguir parar de fumar de um momento para outro. Mas na verdade só precisamos ter consciência de estar fumando no momento em que fumamos. Ao prosseguir na prática, olhando profundamente e observando os efeitos que o fumo tem sobre a mente, o corpo, a família e a comunidade, adquirimos a determinação de parar. Não é fácil, mas a prática da Plena Atenção nos ajuda a ver com clareza tanto o desejo como seus efeitos, e finalmente encontramos uma forma de parar. Nesse processo, a Sangha é importante. Um homem que visitou Plum Village vinha tentando parar de fumar há vários anos, mas não conseguia. Em Plum Village ele conseguiu parar logo no primeiro dia, porque a energia do grupo é muito forte. "Ninguém está fumando aqui, por que eu iria fumar?" Podemos levar anos para transformar a força de um hábito, mas quando conseguimos, detemos a roda do samsara, o ciclo vicioso do sofrimento e confusão que vem se prolongando há tantas vidas.

Praticar os Sete Milagres da Plena Atenção nos ajuda a levar uma vida mais feliz e saudável, transformando o sofrimento e conquistando paz, alegria e liberdade.



(Texto de Thich Nhat Hanh, do livro "A Essência dos Ensinamentos de Buda")

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A experiência mística, segundo Rudolf Otto


Transcrevo abaixo uma resenha do livro de Rudolf Otto, "O Sagrado", publicada na Revista Theos.


Para mim, o interesse nessa obra de Otto reside na localização do impulso religioso profundo (místico) naquilo que está além da esfera da linguagem: a experiência mística é, por excelência, inexplicável e não-domesticável.

Entretanto, condizente com sua formação cristã, Otto não supera o dualismo entre o "Mistério" e o "sujeito" que o experimenta - isso ficará claro na leitura do texto.

Penso que a experiência mística permanece ameaçadora na obra de Otto (e de resto na interpretação cristã) uma vez que, do ponto de vista da linguagem, isto é, do Ego, essa ameaça é real e não-superável: O Ego a interpreta como uma experiência de morte.


É de se supor, por outro lado, que a visão do Mistério como algo externo àquele que o experimenta abriu as portas para a primazia do materialismo e do pensamento científico, cujos resultados (a cisão natureza/cultura, sujeito/objeto), todos podemos sentir e observar, sobretudo sob a forma de degradação ambiental.

Do ponto de vista teórico, esse desdobramento materialista-individualista é ilustrado na interpretação radicalmente sociologizante da religião proposta por Durkheim - o que redundou numa inevitável tautologia.

Segue a resenha:


O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na idéia do divino e a sua relação com o racional.


Por: Evandro César Cantaria da Silva e

Clademilson Fernandes Paulino da Silva




Breve biografia de Rudolf Otto


Rudolf Otto passou a ser conhecido pela obra Das Heilige, livro escrito em 1917 e que figura entre os clássicos da Filosofia da Religião. Nasceu em Peine, na Alemanha, em 1869 e faleceu em 1937. Era de família protestante, tornando-se pastor, teólogo e filósofo. Foi professor da Universidade de Göttingen de 1897 a 1907. De 1901 a 1907 foi colega de Edmund Husserl, neste período Husserl lança o novo método de investigação filosófica, denominado posteriormente de fenomenologia.


Introdução


A intenção de Otto em seu estudo, como diz o subtítulo do mesmo, é observar as características do elemento não-racional em contraste com as do racional, dentro do universo religioso. Prócoro Velásquez Filho (tradutor do livro), dirá ainda em seu prefácio, da intenção de Otto em comparar o caráter numinoso do cristianismo com a de outras religiões (p.05). Otto quer observar a oposição do racionalismo frente ao puro sentimento e a existência e resistência do não-racional diante do racional: “o sentimento é tudo, o nome é nada” (p.07). Mesmo sabendo que a ortodoxia
racionalista eliminou o caráter não-racional, e tentou construir um sistema compreensivo de religião que se mede pelos ditames da razão, que acarretou na negação do milagre, a sobreposição do racional ao aspecto não-racional. Contudo, é este aspecto não compreensivo da religião que interessa para Otto, é esse caráter de mistério, de terror, de tremendo, esse algo a mais, que interessará a ele, e o levará a fazer uma importante pesquisa sobre aquilo que ele denominou o caráter numinoso. O texto que se segue não tem a pretensão de um resumo, muito menos de um ensaio descrito sobre o livro, o texto atém-se a traçar um diálogo sobre as teses centrais do livro “O Sagrado”, e elaborar uma análise da importância deste para o estudo e compreensão da religião.

1. O numinoso (1)


Convencionou-se entender a categoria de sagrado como algo estrita e estreitamente ligado ao ético, ao moral e à bondade (p.11). Portanto, ser sagrado é o mesmo que ser santo, ou melhor, ser revestido de uma pureza moral e ética inigualável e inacessível, o que confere ao ser que é santo/sagrado uma bondade extraordinária. O sagrado, possui dentro de si elementos morais e éticos, mas não pode ser puro e simplesmente reduzido a estes, o que Otto se propõe a estudar é
uma outra dimensão do sagrado, onde o mesmo não pode ser tão facilmente medido e compreendido, elucidado em conceitos ou mais ainda entendido e definido, pois existe apenas no universo do inefável (p.11). Otto, como já vimos na introdução, pretende trabalhar em seu livro, o sagrado em direção ao aspecto não-racional, sem deixar de lado, claramente, os aspectos do racional, já que sua intenção é fazer, uma interação entre o não-racional e o racional. Para identificar o sagrado no seu aspecto não-racional ele cunha a palavra numinoso2, que também não deixa de possuir aspectos racionais, o numinoso racional na religião, é algo que trataremos
mais adiante.


O numinoso não pode ser entendido, porque não pode ser explicado3, isso parece ser óbvio, e o é, já que seu caráter é de algo inefável – se não se pode dizer, não se pode entender. Porém a simplicidade, como Otto trabalha a questão, transforma-a em algo de reduzida compreensão, já que para ele, somente os que viveram uma experiência religiosa é que podem entender, mas não expressar, o que sentiram e viveram em relação ao sagrado, ao numinoso (pp.12e66). O diálogo entre o religioso e o não-religioso se torna, dessa perspectiva, estritamente difícil, já que o homem natural não compreende nada do sagrado, nada do numinoso e nada da religião: “é impossível conversar sobre religião com tal homem” (p.13). Um caminho para o diálogo poderia ser a experiência estética (4), entretanto, a mesma é apenas algo muito próximo, mas não é o sentimento religioso (5). Esse ou esses sentimentos, na experiência religiosa (cristianismo), sempre são experimentados em maior intensidade que nos outros domínios da vida. A gratidão, a confiança, o amor, a segurança, a submissão, a resignação e a dependência, são na religião, ou melhor, na experiência religiosa, sempre mais intensos (p.13). Schleiermacher, destacando o sentimento da dependência6, enfatiza que o mesmo é diferente de qualquer outro sentimento de dependência encontrado fora da religião (pp.13e14). O por que disso? Não dá para explicar? “Isto acontece exatamente porque se trata de um dado cuja origem e fundamento encontram-se na alma” (p.14). Parafraseando Chicó (personagem do Auto da Compadecida) podemos dizer: “não sei, só sei que foi assim”. Para Otto esse sentimento se explica no “sentimento de ser criatura” (p.14).

Sentimento de que algo está fora de mim e longe do meu alcance, algo que se encontra na divindade para Schleiermacher (p.15), mas que ao mesmo tempo está em mim (fator psíquico – universal?). Relaciona-se ao medo, já que o que está fora de mim é maior do que eu, mas também relaciona-se ao “amor”, já que me sinto atraído para esse que está fora de mim. Certamente o racional e o científico não podem explicar isso (p.15).

2. O tremendum

O mysterium tremendum ou o “mistério que faz tremer” (p.17), expressa-se primeiramente na forma brutal do sinistro, do terrível, o que para Otto é o aspecto mais primitivo ou não evoluído do tremendo. É o medo em seu estágio inferior, é o terror, o panicon, o medo dos demônios, o calafrio que manifesta nosso terror frente ao sinistro da vida. Esse sentimento não é o mesmo sentimento do medo comum do homem (p.19), é o medo do sinistro que só o homus religiosus pode ter e experimentar. Ele emudece a alma e pode “conduzir às estranhas excitações, à alucinações, à transportes e à êxtase. Existem formas selvagens e demoníacas, que podem assumir fórmulas de horror irracional” (p.18), trazendo à memória o constante embate de Lutero com Satanás (p.102).
Na Bíblia esse “grau inferior” é ultrapassado nos profetas e nos salmos. “O daimon não é um Deus, nem um anti-Deus, mas sim um pré-Deus” (p.76), um Deus ainda não desenvolvido. Pois, no desenvolvimento da religião e do aspecto do tremendum, o temor sinistro toma uma outra característica, a característica do temor ao numinoso, que não é o mesmo temor ao demônio. Já que esse medo pode se dar sem que o sinistro esteja presente: “o temor, a angústia, o medo podem encher nossa alma e ultrapassar toda nossa medida sem que se encontre o menor traço do sentimento de sinistro” (p.20). É um sentimento em que o numinoso é tudo e nós somos nada, o mesmo sentimento de ser criatura que já foi citado. Esse medo, terror, temor encontra-se num estágio mais elevado da religião, mais evoluído, onde começa a se confundir com o mirum e com o majestas.

3. O mirum

“O mistério torna-se facilmente terrível” (p.29), pois tudo aquilo que nos é misterioso, que não conhecemos, que está em secreto, é incompreensível ou inexplicável nos causa um profundo terror. No entanto esse terror, ou temor, não é o temor ao demoníaco, ele é diferente e pode acontecer independentemente do outro. Ele não está preso e nem vinculado ao horror, ele nos aterroriza porque está ligado ao que é diferente e não ao sinistro, está ligado ao totalmente outro, ao mirum (7) que nos deixa estupefatos e nos “paralisa” (pp.30,67), nos estatifica.
“Um Deus compreendido não é um Deus” (citando Tersteengen, p.29), por isso nosso faz tremer e ao mesmo tempo o buscar, pois é incompreensível e diferente: “O divino, sob a forma do demoníaco, é para a alma objeto de temor e de horror, ao mesmo tempo que atrai e seduz” (p.35). Agostinho diria: “Que luz é esta que me clareia e que me fere o meu coração sem ofender? Que me faz tremer e abrasar! Tremo, porque sou diferente dela, abraso-me enquanto com ela me pareço” (p.31).

É um negócio que “ao mesmo tempo, alguma coisa exerce uma atração particular, que cativa, fascina e forma com o elemento repulsivo do tremendum, uma estranha harmonia de contrastes”. “Um poeta escreveu: Diante de ti eu tremo, para ti eu sou atraído” (p.45). Em um estágio mais evoluído esse sentimento se exprime, no culto que se expressa a uma divindade, ao reconhecimento da necessidade de prestar homenagens e honras a este Ser que nos ultrapassa. Como exemplo temos o agradecimento ao cristianismo, pelo perdão dos pecados, pela graça, como expressão contrastante do desejo e da repulsa, da perdição à salvação: “Se apenas uma gota do que eu experimento caísse no inferno, o inferno se transformaria em paraíso” (p.41). Como vemos “É o fascinante (aspecto do mirum), que na solenidade, pode encher a alma e dar-lhes uma paz indescritível” (p.39).

4. O majestas

É entendido que o deinos é o numinoso numa forma mais primitiva (p.43). No entanto, esse temor causado pelo deinos, não é o mesmo causado pelo majestas, pois o terror com relação ao demoníaco é tão somente sinistro, mas em relação ao numinoso (divino) o temor é mais profundo e mais complexo. Não se trata apenas de medo, já que ele é majestas, é também reverência e reconhecimento de uma entidade infinitamente superior.
No Antigo Testamento, o zelo e a cólera de Jahveh poderiam e geralmente causavam muita destruição. Sua figura inspirava terror: Ai de mim! (Isaías 06:05) “Deus é ira, é cólera, é zelo, é fogo consumidor...Horrível coisa é cair nas mãos de um Deus vivo...Porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 10:31e12:29 - p.86); “Deus os abandonou às paixões infames” [...] “e os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convém” (Romanos 01:24,26 - p.86). Jó também experimenta deste sentimento de ser nada e o outro tudo (p.81). É
ele quem controla todas as coisas (monismo), é inacessível, é cheio de poder e força, é o Senhor que determina tudo, Ele é tudo e eu não sou nada (pp.23-24): “O homem diminui e se dissolve em seu nada, em sua pequenez. Quando mais a grandeza de Deus se revela, clara e pura, a seus olhos, melhor ele reconhece a sua pequenez” (p.24); Tu és. Meu espírito inclina-se e tudo que há de mais íntimo em mim presta testemunho ao que tu és. Mas quem sou eu? O que são as coisas? Sou realmente, e todas as coisas são realmente? O que é o eu? O que é o tudo? Nós somos algo somente porque tu és e porque tu queres que sejamos” (pp.25-26, citando Terteengen). Ou ainda, segundo Lutero: “Ele vos engole e encontra um tal prazer que seu apetite e a sua cólera o levam a devorar os maus. Uma vez que ele começou, não pode mais parar [...] Sim, ele é mais terrificante e mais horrível do que o diabo, pois ele nos trata com violência, nos atormenta e tortura sem piedade” (p.99).

5. O orgé: início da racionalização

O tremendum e o majestas implicam em um terceiro elemento, o orgé; que é a energia que empurra o ser humano à vida religiosa, ao zelo, à santidade, ao amor pelo sagrado (p.26). Pode-se entender isso como o início da racionalização do divino, a transformação do sagrado/numinoso no sagrado/santidade – moral, ético e dogmatizado. Para Otto, esse é o processo normal da evolução do numinoso dentro da religião: o desenvolvimento da consciência e obrigação moral diante daquele que é digno de receber tal reverência e amor (p.56). Na Bíblia, isso começa com Moisés8, passa pelos profetas e chega até os Evangelhos (p.77), onde a ênfase é o Reino de Deus que é o numinoso racionalizado, que possui participantes que são chamados de santos, uma característica do numinoso (p.83), e tem um mestre que não é menos numinoso que o Reino de sua pregação (p.84), o numinoso fica carregado por “elementos racionais, teológicos, pessoais e morais” (p.121). No Novo Testamento, Deus é Senhor dos céus – numinoso/não-racional, mas também é Pai – numinoso/racional (pp.84-85). Essa questão moral e de expiação, é um outro aspecto do numinoso de difícil compreensão para o homem natural. Esse não entende o que é pecado, consegue apenas compreender o que é um erro moral, mas não consegue saber o que é e qual é o grau de problema que existe num pecado (p.57-58). Ele está ainda na experiência estética e só assim consegue entender, não faz parte do universo religioso, e, portanto, não evoluiu como o cristão, como sujeito religioso. Já no Cristianismo, o numinoso chega a um tal ponto de racionalização e evolução (diálogo entre o racional e o não-racional), que para Otto, ela se estabelece como religião superior a todas as outras. “O mistério da necessidade da expiação não encontra, em nenhuma religião, expressão tão completa como no cristianismo” (p.59).

6. O não-racional do numinoso

“O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais, dão-nos a categoria complexa do sagrado, no sentido pleno da palavra, na totalidade de seu conteúdo” (pp.50-51). O não-racional na religião não diminui a credibilidade da religião, e nem o racional destrói o não-racional para criar assim credibilidade. E, nesse processo evolutivo, não há apropriação de um pelo outro, há sim substituição de um pelo outro ou adequação de um ao outro – num equilíbrio (p.51), ligados, mas não associados. Pois, a religião nunca deixará de ser nãoracional e racional (9): “a linguagem está tão plena e a vida tão rica de coisas que estão tão longe da razão como dos sentidos! Elas pertencem ao domínio do místico. A religião faz parte desse domínio, terra incógnita para a razão” (pp.63-64). Tudo aquilo que não pode ser explicado é divinizado (p.140), um conhecimento nãoracional, que também segundo Schleiermacher, deveria ser considerado como forma de conhecimento (p.142). O que seria bastante difícil no não-racional pré-religioso (p.178): fábulas e mitos (pp.126-127); elementos da natureza (montanha, sol, lua, rio, etc) como seres vivos – não como deuses ainda (p.126); o demonismo – terror, morte, sobrenatural, sinistro, espíritos de almas penadas (pp.127-130); o puro e impuro (fora do aspecto moral que se configurou posteriormente - p.127); a antropofagia e a medicina como magia (p.126); e tantas outras coisas que poderíamos alistar, que são primitivas, mas que também fazem parte da religiosidade moderna, talvez ainda em forma primitiva, talvez em forma mais evoluída: a graça (p.103); o culto e a ceia (magia) (pp.95e98); a predestinação no Cristianismo10 (Paulo) e no Islã11 (pp.87-91). O não-racional é um “sentimento supra-empírico das coisas que penetram no empírico” (p.142). Por essa razão, são de difícil explicação e compreensão: “Os elementos racionais como os não-racionais da categoria do sagrado são elementos a priori. A religião não está nem sob a dependência do telos nem do ethos e não vive de postulados. O que nela há de não racional possui, por sua vez, origem independente e mergulha diretamente as suas raízes nas profundezas ocultas do espírito” (p.115).

Conclusão: o a priori

O sagrado de forma simples é formado pela tensa e contínua relação dos elementos, racional e não-racional. O racional como já observamos constitui a domesticação do numinoso pelo divino e religioso, o sagrado (numinoso) substituído pelo sagrado (moral e ético). O não-racional é a expressão da experiência do religioso com o numinoso, como algo integrante da vida. Para Otto, essa substituição de um pelo outro, constitui uma evolução do numinoso na religião: “todo o nosso conhecimento (razão) inicia com uma experiência (não-razão)” (Kant - p.112).
Lutero entende que esse conhecimento, fruto da experiência, é um “a priori místico no espírito do homem”. Todos os seres humanos possuem uma faculdade pneumática (spiritus sanctus) que os conduzem ao numinoso (p.104), isto pode ser visto por exemplo, em Lutero, quanto ao seu conceito de Graça que se estabelece em Jesus. Esse sentimento, segundo Otto, não é universal no sentido de que todos os que possuem, busquem o divino o necessariamente. Esse sentimento é uma predisposição ao numino (pp.114e163), que se dá no homem natural a partir da estética e no religioso a partir da religião. “Desde os dias da minha infância, minha alma buscou-o, com uma sede ardente” (Suso - p.114). “De onde a conhecem que assim a querem? Onde a viram, que assim a amam? Por certo que a temos, não sei de que modo” (Agostinho - p.114). Esse sentimento não se explica, não se entende, não precisa de justificativa, apela a julgamentos a priori, isto é, da consciência religiosa, as profundezas da alma, dos recônditos do ser.
Essa predisposição ao religioso, além de ser encontrada, em maior grau, nas pessoas mais simples (menos cultas) e em pessoas mais cultas (basta lembrar ou se encontrar com as antigas experiências religiosas); também se encontra, como predisposição, nos seres que além de possuírem uma experiência com o numinoso, são também criaturas numinosas, o que não é para todos (p.144): “o demoníaco é aquilo que a inteligência e a razão não podem descobrir (Goethe)” [...] “Certas criaturas têm um caráter demoníaco, e noutras o demoníaco torna-se sensível apenas parcialmente” (p.145). Esse demoníaco, “energia e superioridade absoluta”, aparecem em alguns homens de forma extraordinária, o que faz deles homens santos, o que na verdade não são, são apenas numinosos (p.146): “o santo não ensina a sua santidade, a torna [sic] visível” (p.150), como Jesus por exemplo (p.148): “e eles se maravilhavam, e seguiam-no atemorizado” - Mateus 10:32 (p.151).

Notas

1 Por numinoso, Otto entende a característica essencial e exclusiva da religião “e sem ele, a religião perderia as suas características”. (p.12).

2 “Se lumen pode servir para formar luminoso, numen pode formar o numinoso” (p.12).

3 “Todo som, todo canto, toda palavra são sem nenhum efeito” (p.66).

4 “Para nós, ocidentais, a arte numinosa é a gótica” (p.71).

5 Isto pode ser visto nas páginas 13,52,70 e71. Otto utiliza-se da música como o grande exemplo.
6 “Ter um Deus não significa nada mais que confiar nele de todo o coração”, citando Lutero, p.98.

7 Em Ezequiel o mirum leva o sentimento religioso ao mistério (p.79), acreditamos que isto também esteja presente em Daniel.

8 No AT o fator não-racional do numinoso está em Jahveh e o fator racional está no Elohim. (p.77).

9 No entanto na racionalização o numinoso recebeu um conteúdo novo que, segundo Otto, fez a religião evoluir (pp.123ss). O numinoso “tornou-se Deus” e foi sistematizado (pp.122e139).

10 “A idéia de predestinação torna-se, numa religião racional como o cristianismo, perniciosa e intolerável, pormais que se tente fazê-la inofensiva através de atenuações múltiplas”.

11 “Assim também se explica o que se acostumou chamar de caráter fanático desta religião. O sentimento do numen, é a essência do fanatismo”.


Fonte: http://www.revistatheos.com.br/Artigos%20Anteriores/Resenha_01_01.pdf

terça-feira, 7 de julho de 2009

O capitalismo tecno-niilista



Uma liberdade ilimitada, absoluta, indiferente a normas e a freios. Uma liberdade muitas vezes aparente, quebrada, que limita os homens, mais do que estimulá-los a se realizar, que os isola, mais do que os ajuda a criar solidariedade. É a liberdade do capitalismo tecno-niilista, o mundo marcado pela racionalidade científica e vontade de poder – econômico, político, existencial – relatado por Mauro Magatti em "Libertà immaginaria. Le illusioni del capitalismo tecno-nichilista" (Editora Feltrinelli, 432 p.).

A reportagem é de Roberto Festa, publicada no jornal La Repubblica, 06-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

"Estamos dentro dessa liberdade há pelo menos 30 anos, mas já estamos no fim do ciclo", explica Magatti, que leciona sociologia na Católica de Milão e que dedicou os últimos dez anos de sua vida ao estudo do capitalismo tecno-niilista. Seu livro publicado é vasto e complexo, que vai de Max Weber a Friedrich Nietzsche, de Pierre Bourdieu a René Girard, enfrenta diversas palavras chaves das nossas vidas – liberdade, e depois justiça, identidade, poder –, busca seguir algumas correntes profundas da modernidade. "Mas só algumas. A vida social é como o mar, mas não se pode estudar o mar. Muito grande. Muito majestoso".

Eis a entrevista.

Mauro Magatti, como o capitalismo tecno-niilista se afirma?

As duas alas desse capitalismo são historicamente o neoliberalismo thatcheriano, reaganiano, que se afirma no início dos anos 80, combinado com a herança dos movimentos juvenis e libertários dos anos 60, marcados por fortes estímulos antiautoritários, pela ideia de que existe um espaço de subjetividade que deve ser protegido e ampliado o máximo possível. Esses mundos criticam o equilíbrio institucional e econômico que havia se imposto no segundo pós-guerra. Afirmam a ideia de que todos são capazes de dar um sentido individual à própria vida, que todos podem ser livres por conta própria.

Por que o capitalismo, que, a partir do segundo pós-guerra havia oferecido uma certa estabilidade de figuras sociais e valores, tem a necessidade de, em um certo ponto, colocar o acento no indivíduo?

Porque é um capitalismo que evade do quadro das fronteiras nacionais, que se dá objetivos de crescimento globais, supranacionais: em termos de descoberta de matérias-primas, de organização da produção, de busca de novos mercados. O capitalismo tecno-niilista leva a uma redução da integração social, em base nacional. Ele acredita que os significados podem ser alocados apenas no plano subjetivo.

O sujeito social que deriva daí é muito mais isolado, fragmentado, descolado do contexto?

Mais do que a imagem da solidão, usaria a da desobediência. As sociedades avançadas criaram um sujeito social que se assemelha sempre mais ao adolescente, que sai de casa e vive a embriaguez de estar longe do olhar opressivo dos pais. Como o adolescente, o cidadão do Ocidente democrático também acredita que liberdade significa fazer aquilo em que se acredita. O problema não é voltar à fase anterior, a da autoridade paterna. Mas conseguir gerir a liberdade sabendo que há limites, sem os quais a liberdade é destrutiva.

Todos nós queremos ser mais livres. Conseguiremos?

Não me parece. A nossa liberdade se tornou abstrata, indiferente ao fato de que a liberdade é sempre historicamente fundada, que a liberdade nunca está separada da oportunidade, da ética da responsabilidade, do respeito às liberdades dos outros. Acreditamos ser mais livres. O título do meu livro, Liberdade imaginária, permite que muitas dúvidas surjam.

Pode dar um exemplo?

O trabalho precário. Há anos, para o meu trabalho de sociólogo, realizei uma pesquisa entre os precaristas italianos. Partes inteiras desse mundo eram subjugadas pela ideia de que o trabalho flexível não era tão mal assim, que aumentava a liberdade individual, a possibilidade de mudar e de escolher. Porém, não acho que a flexibilidade tenha aumentado as oportunidades. O fato é que a liberdade, despojada das suas características individuais, históricas, se tornou o discurso fundador das nossas sociedades. Quem controla esse imaginário vence.

A direita o controla?

Bem, sempre me pareceu muito significativo que Silvio Berlusconi tenha escolhido o termo "liberdade" para marcar o seu povo. Administrar o discurso sobre a liberdade significa gerir a hegemonia.

Quais grupos sociais sentiram mais esse duplo processo: exaltação – e esvaziamento – do conceito de liberdade?

Seguramente, a classe média-baixa. Os recursos subjetivos, culturais, necessários para navegar na época do capitalismo tecno-niilista são enormemente superiores às que devem ser colocadas efetivamente à disposição. Daí surgem os êxitos neomágicos que essa cultura tem sobre a classe média-baixa. A ideia é que a liberdade pode se realizar por meio de eventos extraordinários, fora de todo controle: a vitória em um quis, como no filme "The Millionaire", ou a entrada em um mundo dourado – como o dos condomínios e festas dos poderosos – que te fazem dar um salto imediato, econômico e social.

Que tipo de liberdade é essa que pedem hoje no Irã?

A minha análise, obviamente, se refere ao mundo ocidental. Daquilo que posso ler e ver na televisão, me parece que no Irã também está emergindo um modelo já experimentado. Da mesma forma que as sociedades crescem – sob o perfil institucional, econômico, da educação –, surge também uma instância subjetivista. O indivíduo exige um espaço de liberdade mais amplo, as instituições autoritariamente construídas vão se chocar contra a tomada de consciência do indivíduo.

A crise financeira dos últimos meses é produto dessa cultura da liberdade?

As finanças internacionais, nestes anos, foi guiada sobretudo por um conceito: fazer tudo o que for possível, tecnicamente, sem levar em conta toda consideração de sustentabilidade. Também aqui a vontade de poder, evocada como verdadeira energia que sustenta o crescimento, levou a riscos impressionantes e à subavaliação de regras e limites.

A crise encerra o ciclo do capitalismo tecno-niilista?

Sim, acho que há sinais disso. A eleição de Barack Obama é um deles. Obama faz aos americanos um discurso de crescimento ordenado, de desenvolvimento duradouro e sustentável. Ele imagina poder unir a ideia da produção, do desenvolvimento, a objetivos dotados de sentido. A pergunta é: somos capazes de colocar sob controle a nossa vontade de poder, técnica e existencial, orientando-a a alguns grandes objetivos coletivos?

O senhor tem uma resposta?

As democracias têm grandes recursos. Mas é um processo longo e complicado.

Há alternativas?

Bem, há quem defenda que a crise destes meses não se assemelham à de 1929, mas sim à de 1907, que desembocou na Primeira Guerra Mundial. A desembocadura do capitalismo tecno-niilista poderia ser um grande conflito internacional. A vontade de poder, o mito da liberdade absoluta, criou opiniões públicas famélicas, incapazes de qualquer tipo de autolimitação. Muitas vezes, quando você não consegue mais sustentar o crescimento interno, você se une a alguém no exterior.

A Simplicidade Voluntária


Por: Serge Mongeau

(extraído do Blog Pimenta Negra)

Vivemos numa sociedade de consumo em que as pessoas acreditam que comprando, acumulando bens e objectos, possuindo cada vez mais…se tornam mais felizes. Quem realmente se aproveita deste excesso consumista ( as grandes empresas multi e transnacionanais) manipulam-nos através de artifícios como a moda, a publicidade e os meios de comunicação; criam constantemente novas necessidades e distribuem ilusões a torto e a direito. Este modo de proceder é apoiado pelos governos que sempre defendem um crescimento a qualquer preço. E a verdade é que têm tido sucesso,uma vez que o consumo e a presença da técnica nas nossas vidas não cessam de aumentar.

Um consumo deste tipo tem, todavia, inúmeras consequências. Primeiro sobre o meio ambiente: os recursos escassos diminuem a olhos vistos. Mais graves são, porém, o lixo e os resíduos que são assim gerados e cujos efeitos provocam as alterações climáticas e a contaminação do ar e da água. Actualmente consumimos para além das capacidades do planeta, o que significa simplesmente que estamos a pôr em causa o futuro das gerações vindouras. E a responsabilidade por este estado de coisas é nossa, os residentes dos países industrializados. É que não se podem imputar as culpas a 80% da população da Terra que, as mais das vezes, não têm sequer o necessário para sobreviver. Se todos os habitantes do planeta consumissem tanto como nós, seriam precisos 5 planetas Terra para satisfazer esse caudal de consumo. Não tenhamos a ilusão: todo o mundo aspira a viver como nós, depois de nós mesmos termos generalizado a ilusão que essa é a melhor maneira para se viver.

Libertar-se do consumo

O consumo excessivo tem efeitos sobre as nossas próprias vidas. Para consumir tal como fazemos precisamos de dinheiro; logo, em consequência, a maioria das pessoas trabalham desalmadamente. No Canadá, por exemplo, cerca de 20% da população activa trabalha mais de 50 horas por semana. Esgotamo-nos a trabalhar, dando o melhor do nosso tempo e das nossas vidas para o trabalho; enquanto isso, outras vertentes da nossa existência ( a família, a vida amorosa, a participação cívica e a vida comunitária, a saúde,…) sofrem com essa quase exclusividade que o trabalho exige. Acaba-se de chegar a um paradoxo: quanto mais satisfeito formos na vida material, menos felizes sentimos. E há cada vez mais pessoas que acham que isso não tem sentido, e que há que fazer algo para mudar esta situação. Mas o quê? Os governos e os partidos não dão respostas alternativas, empenham-se antes em seguir a mesma direcção tal como têm feito até agora. Ora há que ultrapassar este bloqueio E é isso justamente o que propõe a Simplicidade Voluntária: empreender as mudanças necessárias nas nossas vidas.

Não confundir a Simplicidade Voluntária com a pobreza; esta é imposta por força de circunstâncias penosas. Mas quando se opta voluntariamente por viver sobriamente,tudo funciona de modo diferente. É que não nos sentimos frustrados porque nos privamos de um bem, mas antes sentimos que vale a pena substitui-lo por algo que tenha mais sentido. Este desprendimento alarga o espaço para a nossa consciência operar de outra forma: trata-se de um estado de espírito que nos convida a apreciar, a saborear e procurar o elemento qualitativo da vida. No fundo, renunciamos aos objectos que estorvam, travam e impedem irmos até ao fim das nossas possibilidades.” Não é a riqueza, mas o apego à riqueza que é um obstáculo à emancipação; e não é o prazer da busca por coisas agradáveis que está em causa, mas sim o desejo ardente de as adquirir”, escreve Schumcher (1911-1997), autor do livro Small is Beautiful.
A Simplicidade Voluntária leva-nos ao não-uso e à não-posse de algo, implica uma escolha: não comprar certo objecto ou não seguir determinado procedimento implica uma escolha por um outro motivo de satisfação, nem que seja ser fiel aos nossos princípios ou aos nossos compromissos sociais.

Escolher não utilizar certo bem ou serviço, não seguir a moda, consumir de outra maneira, tudo isso releva de actos de consciência e de lucidez, e não de fatalidade. Na verdade, quem faça voluntariamente este tipo de opções sabe que podia não o fazer, e acaba por ser o próprio a dominar a situação em vez de se um ser dominado por esta. Claro está que não se trata de decisões irrevogáveis que arrastam consigo um radicalismo sem concessões, nem sequer de uma regra de aço que dificilmente poderíamos desvincularmo-nos. A Simplicidade Voluntária é uma opção que é tomada mediante pequenos passos, uma via que se segue por decisão própria e porque nos sentimos satisfeitos por seguir.

A sobriedade

Simplicidade Voluntária não se confunde com ascetismo; é, até mesmo, a sua antíteses. O asceta priva-se voluntariamente dos prazeres da vida materiais em busca de um ávida espiritual mais intensa; ora o adepto da Simplicidade Voluntária não foge do prazer nem das satisfações. Muito pelo contrário. Ele procura-os, mas entende que os não alcançar com os meios que lhe dá a sociedade de consumo.

O medo constitui o obstáculo mais sério para uma opção destas, a favor da Simplicidade Voluntária. Receio do que os outros vão pensar, quando nos afastarmos do seu estilo de vida; receio de sermos marginalizados, e de sentirmos inseguros face ao futuro, pois nos tempos que correm de um individualismo feroz, estamos habituados a pensar por si mesmos, a contar só connosco perante as contrariedades da vida. Quem quererá ajudar-me se não tenho dinheiro, quem me ajudará quando for velho? Protegemo-nos então com seguros, planos de reforma, depósitos bancários, etc.E quando tivermos o futuro assegurado podemo-nos dar ao luxo de viver mais livres, não sendo necessário trabalhar tanto. Acontece, porém, que cada ano que passo damo-nos conta que o dinheiro acumulado não é suficiente…

Evidentemente que, se um destes dias, alguém deixar o emprego, vender o seu carro, e começar a consumir só o que produz, a catástrofe não tardará a chegar. Mas a verdade é que a Simplicidade Voluntária é um processo gradual; e não é um fim mas antes um meio para chegar uma melhor bem estar. Com o passar do tempo cada qual poderá aprofundar mais o seu compromisso graças aos momentos de liberdade que vai conquistando e aos laços de solidariedade que vais desenvolvendo para a indispensável segurança afectiva.

Não é fácil abandonarmos o universo do consumismo. Hoje em dia, tudo nos empurra a encontrar em alguma forma de consumo a solução dos nossos problemas, e a satisfação dos nossos desejos. Não é por acaso que as lotarias passam mensagens do tipo “ganhando o primeiro prémio tem os seus problemas resolvidos”. Mas tal não passa de uma ilusão: aquilo a que tão ardentemente aspirávamos, acaba rapidamente de perder interesse logo que o obtivermos, não constituindo os bens materiais formas seguras de satisfazer as nossas mais profundas necessidades.

A Simplicidade Voluntária constitui actualmente o movimento social que ganha cada vez mais força. Não cessam de aparecer livros, contactos e interessados. Existe já vários sites directa ou indirectamente relacionados. Há que fazer o possível para dar a conhecer a Simplicidade Voluntária como meio de controlarmos as nossas vidas


Serge Mongeau é autor do livro La Simplicité Voluntaire
(este texto apareceu na revista The Ecologist)


http://www.simplicitévoluntaire.org/




segunda-feira, 6 de julho de 2009

Peter Sloterdijk: devemos mudar a nós mesmos


Os imperativos do filósofo alemão Peter Sloterdijk


Viver implica transformar-se para aceder ao estatuto do sábio. É necessário um novo movimento reformador em escala global, o qual apresente uma dimensão ecológica e ética a serviço da visibilidade do planeta. Encontro-me na Milanesiana com o filósofo alemão. O humanismo confiado às “letras” – diz – está definitivamente morto. A componente “bestial” do homem está sendo domesticada usando outros meios.

A reportagem é de Marco Dotti, publicada no jornal Il Manifesto, 28-06-2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Os livros, observa o poeta Jean Paulo, “são longas cartas que enviamos aos amigos”. Em 1999, na abertura de Regras para um parco humano, ensaio extraído de uma conferência sobre Heidegger e destinado a provocar não poucas polêmicas no contexto das reflexões sobre a bioética e a natureza humana, Peter Sloterdijk não parava de citar um dos autores que, em seu dizer, melhor encarnariam o espírito e os limites do humanismo moderno e contemporâneo, aquele humanismo baseado numa “ética do alfabeto” e um absoluto primado do livro como objeto de mediação entre o homem e sua, talvez insuprimível, “animalidade”. O que Cícero chamava de humanitas – observa o filósofo alemão – em sua essência mais não é do que uma complexa estratégia de “telecomunicação”, ou seja, a capacidade de criar “amizades à distância”, de atar e “domesticar” a espécie por intermédio da escritura.

Crítico ante este modelo de “domesticação intelectual”, estruturado sobre as noções de alfabetização, instrução, educação e escola, Peter Sloterdijk engajou uma verdadeira e própria batalha contra as escórias de um humanismo incapaz não só de coordenar-se na pós-modernidade, mas até de ler retrospectivamente as coordenadas do próprio mundo, que já se desfez irremediavelmente em frangalhos. O humanismo confiado às “letras”, glosa ainda hoje Sloterdijk, está definitivamente morto. A componente “bestial” do homem é domesticada, se não precisamente por outros fins, muito menos com outros meios. A dez anos de distância da polêmica que induziu Habermas a considerá-lo um “sujeito extremamente perigoso”, lançando-o impropriamente no banco dos imputados com a acusação de ser o fautor particularmente refinado e capcioso de um novo eugenismo – tese quando muito tola e em seu tempo argutamente desmistificada – Peter Sloterdijk retorna à questão, para ele central, da antropologia e da busca de uma dimensão não literária ou iluminista do contexto de vida. Ele o faz com um livro, publicado nas últimas semanas pela editora Surkhamp, explícito desde o título, ‘Du musst dein Leben ändern – Über Anthropotechnik’ [Tu deves mudar tua vida – sobre antropotécnica] (700 pp., 25,50 euros). Hóspede da décima edição da Milanesiana, a resenha de arte, música e ciência ideada e dirigida por Elisabetta Sgarbi, que nessa noite, às 21 horas (no Spazio Oberdan de Milão) o verá empenhado num reading junto ao regista Raúl Ruiz e a Hannhah Schygulla, Peter Sloterdijk aceitou repercorrer conosco algumas etapas do seu pensamento.

Eis a entrevista.

Em seu último livro você avança a hipótese da autoconstrução do humano, na qual as diversas atividades – sentimentos, trabalho, comunicação, mas, sobretudo ritualidade e repetições – retroagem sobre o próprio homem, modificam-no, digamos assim, e criam-no. Através de uma forma aparente de humanismo e de busca da transcendência – a religião – assistimos na realidade a uma nova prática da construção de si, que você chama de antropotécnica.

No início do meu livro falei principalmente de repetições. O ponto crítico, na história da civilização, é a meu ver representado pelo emergir de exercícios explícitos: o ser humano vive, enquanto tal, na repetição e dá forma e conteúdo à própria vida através de um ritualismo mais ou menos consciente, feito de exercícios repetitivos. A definição do ser humano, na minha acepção, não é dada pela “criatividade”, mas pela “repetitividade na criatividade”. A criatividade tomada em si mesma é uma ideologia pobre, já que o homem deve se tornar o que é, encarnando o que pode. Mas, a encarnação passa através da repetição. A palavra francesa “répétition” exprime ao mesmo tempo a repetição, o repor em cena ações que já produzimos, e o exercício que prepara uma performance, um desempenho. Pensemos numa repetição musical ou artística, fazer e repetir são termos que em francês – diversamente do que ocorre em alemão – convergem. E é exatamente sobre esta convergência que se concentra o trabalho da antropotécnica.

A antropotécnica parece, além disso, ser uma possível solução ao impasse do biopoder. Como resposta a este impasse, Michel Foucault, simplificando, retornou ao sujeito. A referência é principalmente ao segundo e terceiro volume de sua história da sexualidade, o “Uso dos prazeres” e “O cuidado de si”. Você, ao invés, escolhe “retornar ao homem”.

Biopoder é um conceito interessante, mas, no contexto em que é usado no debate atual diz bem pouco. Em sua concepção mais dura, o biopoder é o “populacionismo” e se apóia na idéia de população, própria do regime absolutista. Este aspecto escapou em grande parte a Michel Foucault e, com maior razão, escapa aos seus intérpretes tardios. Foucault se concentrou principalmente nos fenômenos da disciplina e da biopolítica da idade clássica. A meu ver, seria preciso dirigir a atenção à volta do Renascimento e do Estado moderno. É neste preciso momento que todos os grupos na posse dos “saberes” se interrogam sobre como se poderiam produzir, anular, suprimir os futuros sujeitos do Estado. A preocupação é, no entanto, a de garantir um número de sujeitos suficiente para o funcionamento da máquina. O sujeito moderno é, antes de tudo, o sujeito da superprodução “populacionista”. Ser sujeito significa, portanto, ser esperado sobre a terra por um estado que quer consumir-te em sua nova política da força.

Eu creio que este fenômeno confira um conteúdo bem mais robusto ao próprio conceito de biopolítica ou de biopoder do que todos os exemplos adotados por Foucault ou por seus sucessores. Deste ponto de vista, é considerada a diferença entre o estado que faz morrer e o estado que impõe nascer, entre a política da morte e a indiferença pela vida ou da vida e da (relativa) indiferença pela morte, entre o estado clássico que faz morrer e o moderno que “impõe” viver. Já o estado clássico “impõe”, no entanto, a vida de maneira muito mais ampla com respeito ao estado moderno que, de sua parte, tem não poucos problemas com a natalidade em constante taxa de decrescimento. No século dezenove a França é o primeiro entre os países modernos que, com o crescimento negativo da população, causou não poucas vertigens aos seus politiqueiros. Nos jornais europeus se ironizava, entre outras coisas, sobre os costumes sexuais dos franceses. No plano político isto significava sobretudo: não há mais crianças, por isso não podemos mais fazer a guerra, não há mais jovens para queimar. Este é o problema. Após o fim da Primeira guerra, ficou claro para todos que a França não tinha mais jovens para imolar em suas guerras imperialistas.

Também se impõe, na lógica da guerra, uma idéia anti-maltusiana de população...

Exatamente, mesmo que seja uma idéia que se afirma por si, nas coisas ela não é explicitada. Mas, a maior preocupação dos jovens é sempre pelas guerras por vir. Maltus não foi refutado nem no plano lógico, nem no ideológico, ele simplesmente se tornou automaticamente obsoleto. A mesma coisa sucede hoje na Itália, com uma das taxas de natalidade mais baixas do mundo, embora seja um país católico. Em breve teremos, em todo o caso, os filhos dos imigrantes ou dos sem documento que se tornarão os verdadeiros paladinos da cultura italiana. E por certo serão “bons italianos”. Mas, ainda não se desenvolveu uma política sobre a “biomassa” estrangeira. Seria uma política dos “bárbaros”, a mesma praticada pelos romanos a partir do III ou do IV século da nossa era, quando queriam implantar o programa cultural da civilização romana na biomassa bárbara composta pelas pessoas que provinham do norte ou do sul. Mas, o Império seguia uma dupla estratégia, de grande civilização no interior e de grande barbárie no exterior.

Voltando a Foucault, nos seus últimos livros você propõe uma ética fundada na transformação de si, que, em certa medida o induz a considerar um aspecto diverso da política da vida em geral...

E é neste ponto que eu me reconecto com as suas pesquisas e também com os estudos de Pierre Hadot sobre os exercícios e a prática de si, e também ao pensamento do pedagogo e filósofo Paulo Rabbow, que havia estudado o mesmo fenômeno. São autores que estudei muito de perto para escrever o meu novo livro sobre antropotécnicas, no qual demonstro como os homens já são o resultado de exercícios que praticam sem sabê-lo. “No início”, como dizia Henri Michaux, “era a repetição”.

A estas técnicas de transformação do sujeito, postas em jogo pelo próprio sujeito, se pode associar uma preocupação de tipo ético?

Há aproximadamente três mil anos, as civilizações mais avançadas viviam numa espécie de stress moral de ordem completamente nova. Houve um tempo em que era possível observar novas epifanias, de cunho ético. Creio que a filosofia como disciplina da velha Europa, ou como era concebida na Ásia Menor, em Atenas e nas costas da futura Turquia, foi uma nova epifania do logos. E o logos não é somente uma instância epistêmica, mas antes de tudo ética. Precisamente Pierre Hadot, por exemplo, cujo pensamento influenciou muito Foucault, nos pôs em guarda contra conceber a filosofia em sua acepção cognitivista. A filosofia antiga não colocava o acento na racionalidade do mundo, mas na necessidade de conduzir uma vida regulada segundo prescrições cósmicas do ser: sua preocupação era acima de tudo ética. Na China, como na Índia, no antigo pensamento persa ou entre os profetas de Israel, bem como na Grécia, a grande preocupação ética, o cuidado, convulsionou a vida dos homens.

Para designar este grupo de epifanias éticas, escolhi reformular um imperativo absoluto, a partir deste título e máxima: tu deves mudar tua vida, ‘Du musst dein Leben ändern’. Não é o imperativo categórico de Kant que entra por um ouvido e sai pelo outro, sem deixar sinais na personalidade de quem o escutou. O imperativo que eu proponho é, ao contrário, um imperativo transformador: os seres humanos sensíveis ao seu apelo deveriam começar a trabalhar sobre si mesmos. Viver é preparar-se, transformar-se, aceder ao estatuto do sábio, responder à tensão vertical que impõe modificar a própria existência. Também em resposta a esta tensão vertical, o meu trabalho se sintetiza na reformulação do imperativo numa forma consoante aos nossos tempos. Um imperativo que incita a fazer que o princípio que “move as tuas ações e o resultado das tuas ações” sejam ambos compatíveis com as exigências do nosso saber ecológico e cosmopolita. O último horizonte, no qual se inscreve este projeto, é o de um novo movimento reformador em escala global, que apresente uma nova dimensão ecológica e ética a serviço da viabilidade de vida do planeta. É esta a perspectiva que considero necessária.

Passagens de vida e principais obras

Peter Sloterdijk nasceu em 1947 em Karlsruhe, cidade na qual ainda reside e onde ensina filosofia e técnica da mídia e dirige na qualidade de Reitor a Staatliche Hochschule für Gestaltung [Escola Estatal Superior para Formação]. Sua “Crítica da razão cínica”, publicada em 1980 e parcialmente traduzida ao italiano para as edições Garzanti, o assinalou subitamente como um dos mais interessados autores da geração formada na teoria crítica, mas destinados, de certo modo, a superá-la. É ambicioso o projeto de ‘Sphären’ [Esferas], uma trilogia que reflete sobre a forma e a estrutura do mundo. O primeiro volume foi recentemente traduzido por Meltemi (“Sfere I, Bolle”, 575 pp., 34 euros).

Sempre em Meltemi, há um catálogo: “Terror no ar”, “O mundo dentro do capital” e “Ira e tempo”, enquanto em Bompiani saiu a coletânea de ensaios “Ainda não fomos salvos” [Non siamo ancora stati salvati] (2004) e Cortina publicou há pouco “O furor de Deus” [Il furore di Dio] (162 pp. 18,50 euros). De notável interesse são, no entanto, também três livros-entrevista, ainda não traduzidos ao italiano: “Les battements du monde” [Os batimentos do mundo] (Fayard, 2003), com Alain Filkielkraut, e “Die Sonne und der Tod” [O sol e a morte] (Surkhamp, 2001), com Hans-Jürgen Heinrich.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Arte cínica ou vida cínica ?


Transcrevo um artigo de Foucault acerca do cinismo, ceticismo, niilismo.

Ao contrário de Foucault, penso que o papel desempenhado pela arte (exercer uma crítica ao sistema), transferiu-se para o próprio sistema, fazendo com que aquilo que antes pareceia ser "contracultural" se tornasse "sistema ideológico hegemônico".

Ou seja, ao contrário de Foucault, penso que o prórpio sistema ideológico tornou-se "neo-Dadá" e a crítica fragmentadora perdeu todo sentido que pretendia exercer (ingenuamente) até o início do século XX.

As razões para que esse movimento de reabsorção pudesse ocorrer, em minha opinião, não são acidentais , mas antes, se devem à própria natureza pseudo-crítica dos movimentos artísticos.

(Como diria André Breton, tratar-se-ia (hoje) de realizarmos uma crítica ao "sistema" de outra natureza, pois o que se afiguraria contracultural é um movimento de reagrupamento holístico do homem e da natureza)

Cinismo na arte, segundo Michel Foucault


O jornal La Repubblica, 01-07-2009, publicou um texto do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que se debate a relação do cinismo, do ceticismo e do niilismo, a partir da arte. Segundo Foucault, "em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade". A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Há uma razão que levou a arte moderna a se tornar o veículo do cinismo: falo da ideia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vá além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Não há dúvida de que essa visão da arte foi se firmando de modo sempre mais marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (com Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu como lugar de irrupção daquilo que está embaixo, do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.

Com relação a isso, pode-se falar de um antiplatonismo da arte moderna. Se vocês viram a mostra sobre Manet neste inverno, entenderão o que eu quero dizer: o antiplatonismo, encarnado de maneira escandalosa por Manet, representa, a meu ver, uma das tendências de fundo da arte moderna, de Manet até Francis Bacon, de Baudelaire até Samuel Beckett ou Burroughs, mesmo que não se identifique atualmente como elemento caracterizador de toda a arte possível. Antiplatonismo: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência.

Em consequencia, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. É esse o elemento que faz da arte moderna, a partir do século XIX, o movimento incessante por meio do qual toda regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada pelo ato sucessivo. Em toda forma de arte, pode-se encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: é o que podemos chamar de antiaristotelismo da arte moderna.

A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada. Esses dois aspectos conferem à arte moderna uma função que, substancialmente, poderia ser definida como anticultural. É preciso opor a coragem da arte, na sua verdade bárbara, ao conformismo da cultura. A arte moderna é o cinismo da cultura, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é sobretudo na arte, mesmo que não só nela, que se concentram, no mundo moderno, no nosso mundo, as formas mais intensas daquela vontade de dizer a verdade que não tem medo de ferir os seus interlocutores.

Naturalmente, ainda ficam muitos aspectos a ser aprofundados, particularmente o da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura. Pode-se ver os primeiros sinais desse processo, destinado a se manifestar de modo clamoroso nos séculos XIX e XX, em "O sobrinho", de Rameau e no escândalo provocado por Baudelaire, Manet, (Flaubert?).

Michel Foucault


Depois, existem as relações entre cinismo da arte e vida revolucionária: afinidade, fascinação recíproca (perpétua tentativa de unir a coragem revolucionária de dizer a verdade à violência da arte como irrupção selvagem do verdadeiro); mas também o fato de não serem substancialmente sobreponíveis, devido, talvez, ao fato de que, se essa função cínica está no coração da arte moderna, o seu papel no movimento revolucionário é só marginal, pelo menos desde que este último foi dominado por formas de organização, desde quando os movimentos revolucionários se organizam em partidos, e os partidos definem a "verdadeira vida" como total conformidade às normas, conformidade social e cultural. É evidente que o cinismo, longe de constituir uma ligação, é um motivo de incompatibilidade entre o ethos da arte moderna e o da prática política, seja ela também revolucionária.

Poder-se-ia formular o mesmo problema em termos diferentes: por que o cinismo, que no mundo antigo assumiu as dimensões de um movimento popular, tornou-se, nos séculos XIX e XX, uma atitude elitista e marginal, mesmo que importante para a nossa história, e por que o termo cinismo é utilizado quase sempre em referência a valores negativos?

Poder-se-ia acrescentar que o cinismo tem muitos pontos de contato com uma outra escola de pensamento: o ceticismo – também neste caso, um estilo de vida, mais do que uma doutrina, um modo de ser, de fazer, de dizer, uma disposição a ser, a fazer e a dizer, uma atitude a colocar à prova, a examinar, a colocar em dúvida. Mas com uma diferença extremamente grande: enquanto o ceticismo aplica sistematicamente essa atitude ao campo científico, quase sempre ignorando o exame dos aspectos práticos, o cinismo parece centrado em uma atitude prática, que se articula em uma falta de curiosidade ou em uma indiferença teórica e na aceitação de alguns princípios fundamentais.

Isso não exclui que, no século XIX, a combinação entre cinismo e ceticismo tenha estado na origem do "niilismo", entendido como modo de viver baseado em uma preciosa atitude com relação à verdade. Devemos deixar de considerar o niilismo sob um único aspecto, como destino inelutável da metafísica ocidental, à qual se poderia escapar apenas fazendo um retorno àquilo cujo esquecimento essa própria metafísica tornou possível; ou como uma vertigem de decadência típica de um mundo ocidental que já se tornou incapaz de crer em seus próprios valores.

O niilismo deve ser considerado, em primeiro lugar, como uma figura histórica particular pertencente aos séculos XIX e XX, mas deve também ser inscrito na longa história que o precedeu e preparou, a do ceticismo e do cinismo. Em outras palavras, deve ser visto como um episódio, ou melhor, como uma forma, historicamente bem definida, de um problema que a cultura ocidental começou a se colocar já há muito tempo: o da relação entre vontade de verdade e estilo de existência.

O cinismo e o ceticismo foram dois modos de se colocar o problema da ética da verdade. A sua fusão no niilismo ilumina uma questão essencial para a cultura ocidental, que pode ser formulada deste modo: quando a verdade é colocada continuamente em discussão pelo próprio amor pela verdade, qual é a forma de existência que melhor combina com esse contínuo interrogar-se? Qual é a vida necessária quando a verdade não é mais necessária? O verdadeiro princípio do niilismo não é: Deus não existe, tudo é permitido. A sua fórmula é, pelo contrário, uma pergunta: se devo me colocar diante do pensamento que "nada é verdadeiro", como devo viver?

A dificuldade de se definir a ligação entre o amor da verdade e a estética da existência está no centro da cultura ocidental. Mas não me preocupa tanto definir a história da doutrina cínica, quanto a da arte de existir. Em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade.


Por uma mudança de paradigmas


Modelo de desenvolvimento atual não pode dar certo


Aplicar no Brasil um modelo de desenvolvimento baseado no esgotamento de recursos naturais é mesquinho e inviável a longo prazo, afirma o sociólogo francês Alfredo Pena-Vega. Segundo ele, é preciso quebrar a visão simplista que permeia a política e a economia para buscar as soluções para a crise atual. "Os países do Sul têm a oportunidade de repensar nosso destino." Pena-Vega participou, na semana passada, de um seminário na na Universidade Federal do Tocantins, que fez parte do Ano da França no Brasil.

Pena-Vega é pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, colabora com o filósofo francês Edgar Morin há 20 anos.

A entrevista é de Cristina Amorim e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02-07-2009.

Eis a entrevista.

Em seu livro O despertar ecológico, o sr. fala que há um confronto entre as ciências humanas e as da vida. Ele persiste?

Esse livro foi feito nos anos 90. Daquela época para cá, as ciências ambientais passaram a não só observar os fenômenos naturais, mas também a incorporar as ciências humanas. Porém, não há uma ruptura pragmática das ciências sociais para considerar que o homem está no centro, e não na periferia, dos problemas que enfrentamos. Existe ainda o que eu chamo de interdisciplinaridade convencional: cada disciplina identifica o objetivo da pesquisa, mas cada um trata o problema só sob sua lógica.

Essa divisão permeia a política, por exemplo?

Temos um pensamento parcelar, que se estende a todas as esferas da vida e, evidentemente, à esfera política. A dificuldade é essa, fazer com que as coisas interajam. Quando se fala hoje da questão econômica, por exemplo, é uma visão simplista, porque se fosse uma crise econômica sistêmica ela já teria integrado o problema social, o ecológico, o ético.

É por causa dessa segmentação que decisões políticas ambientais estão distantes da recomendação científica e social?

Sabemos perfeitamente que o modelo atual de desenvolvimento tecnológico, econômico e social não pode mais dar certo por causa da situação planetária. Todos os diagnósticos que são feitos mostram o problema. E aí há uma cegueira dos políticos de continuar a imaginar que o modelo é viável. Esse modelo é inviável.

Se é inviável, o que fazer?

Temos de pensar além dele, achar várias alternativas e não uma só. Temos de pensar que há uma crise generalizada - de conhecimento, de ensino, social, política, ecológica - e identificar as dificuldades de se chegar a essas vias. Existe consciência ecológica em diferentes locais da sociedade. A solução não deve ser elaborada só por intelectuais, mas incorporar a sociedade civil.

É possível abandonar o modelo de desenvolvimento de esgotamento dos recursos, que o sr. diz inviável, porém tão replicado?

Para quebrar esse ciclo, é importante alertar a sociedade e principalmente os políticos de que estamos falando de uma situação real, não uma especulação. Ninguém do grupo que faço parte tem uma visão catastrófica da situação, porém todo mundo aponta que não é possível continuar nessa via. Quem decide é quem está no poder, que está por vontade democrática. Então temos de sensibilizar a opinião pública.

Os eleitores mantêm no poder políticos que insistem no mesmo modelo de desenvolvimento. É o caso da Amazônia, onde se repetem erros cometidos em outros países e no Sul do Brasil.

Como cidadão do mundo, acho que o Brasil tem todo o direito à soberania na Amazônia, mas ele não tem o direito de fazer o que quiser. A Amazônia é parte do território brasileiro, mas é parte do patrimônio da humanidade. Não é o caso de dizer "nós temos o direito de destruir porque nós somos soberanos". Essa é uma lógica - e me desculpe falar assim - muito mesquinha, de curto prazo, porque coloca em perigo a existência da humanidade. As decisões tomadas pelos políticos hoje colocam em jogo as gerações futuras.

Mas o Brasil tem direito de se desenvolver como os países ricos.

Não é porque os países do Hemisfério Norte são responsáveis pelo o que está acontecendo hoje que os países do Sul têm de ter a mesma atitude. Os países do Sul têm a oportunidade de repensar nosso destino. Aqui há muitas qualidades que o Norte não tem, muitas experiências que são interessantes. É possível ter uma saída para o problema e ela tem de ser por meio de um pensamento do Sul.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Lévi-Strauss e o Budismo


"Na verdade, que mais aprendi com os mestres que escutei, com os filósofos que li, com as sociedades que visitei e com essa própria ciência da qual o Ocidente se orgulha, senão fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio ao pé da árvore? Todo esforço para compreender destrói o objeto a que estávamos ligados, em benefício de um esforço que o suprime em benefício de um terceiro, e assim por diante, até chegarmos à única presença durável, que é esta em que desaparece a distinção entre o sentido e a ausência de sentido: a mesma de onde partíramos. Já se vão 2500 anos que os homens descobriram e formularam essas verdades. Desde então, nada descobrimos, a não ser - experimentando, após outros, todas as portas de saída - outras tantas demonstrações suplementares da conclusão de que gostaríamos de escapar."


Claude Lévi-Strauss - Tristes Trópicos (pg. 389, Cia. das Letras, 1996)


Extraído do Blog Epifenomenologia

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Festa, revolução e contracultura



O Maio de 68 é uma manifestação da crise de civilização', diz Edgar Morin

“Ali onde reinava um bem-estar, também havia uma insatisfação profunda”, afirma Edgar Morin, filósofo francês, que analisa as mudanças nas últimas quatro décadas.

Morin também analisa a visão da esquerda em relação aos acontecimentos de Maio de 68 na França. “Do ponto de vista político, produziu-se um fenômeno muito interessante; apesar de que os grupinhos presentes eram marxistas, houve uma diminuição da influência do partido comunista sobre a população e especialmente sobre os jovens. Os comunistas nunca estiveram presentes no movimento de 68 e inclusive o condenaram”.

Por isso, diz Morin, “em nenhum momento pensei que os trotskistas nem os maoístas pudessem tomar as rédeas desse processo; pelo contrário, considerava-os retrógrados”. Ele acredita que a esquerda tradicional da época não entendeu o que se passava.

Segue a íntegra da entrevista que Morin concedeu ao jornalista espanhol J. M. Martí Font e que está publicada no El País, 19-04-2008. A tradução é do Cepat.

Em maio de 1968, Edgar Morin (Paris, 1921) se havia comprometido a substituir um professor e dar algumas aulas na Universidade de Nanterre, então um lugar inóspito da periferia parisiense, em meio a uma paisagem industrial e vizinha a um povoado de barracos. Não podia imaginar que, quando chegou, já havia saltado a faísca. “Quando cheguei havia um caos absoluto; os carros da polícia soavam suas sirenes e um jovem ruivo gesticulava sobre as tarimbas: era Daniel Cohn-Bendit”, explica.

Morin se dispôs a dar sua aula. “Era um anfiteatro que não tinha janelas”, lembra, “e alguns estudantes se aproximaram de mim gritando: ‘Greve, greve!’. Disse-lhe que se queriam fazer greve teriam que submeter o assunto a uma votação. Houve votação e a maioria optou pela aula, assim que comecei. Então, alguns alunos se puseram a gritar: ‘Morin, flic (polícia)!’, cortaram a energia, o microfone e a luz. E não pude dar aula”.

Você não esperava por isso? O que estava acontecendo?

Creio que foi em fevereiro ou em março daquele ano quando dei uma conferência na Itália, em Milão, sobre a internacionalidade das revoltas estudantis, porque o Maio de 468 francês não foi a primeira, pelo contrário, foi a culminação. A questão era a seguinte: como é que em toda uma série de países com sistemas sociais e regimes políticos completamente diferentes estavam se produzindo revoltas de estudantes ao mesmo tempo? Elas aconteciam no mundo ocidental, mas também no Egito, na Polônia, na Checoeslováquia... Evidentemente, o denominador comum era uma revolta contra a autoridade que tinha características diferentes. No leste europeu era contra a ditadura do partido; nos países ocidentais era, ao mesmo tempo contra a ditadura da família, isto é, a autoridade paternal, dos professores da Universidade e do Estado.

E a repressão sexual?

Pode-se dizer que foi um elemento desencadeante de Maio de 68, já que em Nanterre a faísca partiu da proibição de que os rapazes entrassem nos dormitórios das moças. Mas deve-se dizer que não houve reivindicações sexuais. As grandes reivindicações relacionadas ao sexo, o movimento de libertação da mulher ou o movimento de autonomia dos homossexuais, apareceram depois de Maio de 68, como conseqüência. O Maio de 68 francês tem sua origem no movimento de 20 de março em Nanterre, que era um movimento de raízes libertárias. É preciso colocá-lo em relação com o que acontecia na Califórnia desde alguns anos antes, onde a juventude do país mais rico do mundo, os filhos de famílias extremamente prósperas abandonavam a casa paterna para levar uma vida comunitária, mas com uma aspiração ao mesmo tempo para o comunitário e a liberdade. Enfim, duas aspirações que parecem antagônicas, mas que eram vividas conjuntamente.

Naqueles anos eu já havia estudado os fenômenos relacionados com a adolescência, e descoberto que os jovens, através do rock, através de uma série de coisas, manifestavam uma vontade de autonomia na sociedade através de uma cultura própria. Com esta revolta, a adolescência, que se encontra entre a borbulha da infância e a integração, via-se a domesticação no mundo adulto, expressavam uma aspiração profunda em evidente contradição com o processo de integração na sociedade que lhes era proposta, que consistia na especialização, no ofício, no cronômetro, etc.

Como se viveu esta dialética entre o libertário e o comunitarista?

Há uma aspiração que de fato perpassa toda a história humana, que se expressou na idéia tanto libertária como comunista ou socialista. As primeiras semanas de Maio de 68 são de caráter verdadeiramente espontâneo, porque a ocupação de Censier, de Nanterre e finalmente a Sorbonne, foi uma explosão ao mesmo tempo estudiosa e exaltada, que tinha um componente muito, muito poético. Mas é preciso dizer que progressivamente os pequenos grupos políticos trotskistas, maoístas e outros, não somente quiseram se apropriar do movimento, mas que o parasitaram.

Numa entrevista de 1976, na Magazine Littéraire, você utiliza a expressão: “Os insetos necrófagos devoraram o cadáver”.

Sim, de fato, diziam aos estudantes: seremos nós que realizaremos as aspirações de vocês por meio da revolução proletária. Parasitavam e pensavam responder a estas aspirações por meio do comunismo. Na minha opinião, o Maio de 68 na França teve duas fases: um primeiro momento de espontaneidade, um impulso, que toda a população parisiense viu com simpatia. É preciso dizer também que a total inibição do poder do Estado liberou muita gente de suas doenças psicossomáticas, de suas neuroses. Os consultórios dos psicanalistas e dos psiquiatras se esvaziaram. Mas logo, quando começou a faltar gasolina e se apresentaram os problemas de abastecimento, apareceu a angústia entre a população e rapidamente as pessoas deram as costas ao movimento estudantil.







Que efeitos imediatos teve o Maio de 68?

Depois de Maio, os grupinhos, especialmente os maoístas, acreditaram que se tratava do ensaio geral da revolução. O movimento teve vários efeitos imediatos; por um lado, um relançamento do marxismo como a explicação geral de tudo; por outro, um certo movimento de pessoas jovens que partia para o campo para mudar radicalmente de vida. Mas este segundo movimento se dissolveu rapidamente porque em 1973 estalou uma crise econômica. Até aquele momento os jovens podiam trocar a cidade pelo campo e sabiam que, se voltassem, encontrariam novamente um trabalho. A partir de 1973, já não foi assim.

O outro aspecto, ao meu parecer, é que a civilização ocidental ou burguesa estava muito segura de si mesma até 1968. A tese sociológico-histórica era que a sociedade industrial desenvolvida diminuiria ao máximo as desigualdades, resolveria o problema da pobreza e conseqüentemente generalizaria a boa vida. Era a menos má ou a melhor sociedade possível. Evidentemente, no Leste Europeu se dizia que era o sistema comunista que iria criar um futuro mais radiante.

Havia duas visões radiantes do mundo, ainda que no que concerne ao Leste muito pouca gente acreditava nisso. Mas no Ocidente também começou a ser evidente que ali onde reinava o bem-estar, também havia uma insatisfação profunda. Eu tinha comprovado isso na Califórnia. Me marcou muito o filme No down payment (A mulher do próximo, 1957), de Martin Ritt, que mostrava a profunda infelicidade produzida pela prosperidade econômica.

Maio de 68 marca o fim do sonho da felicidade?

Sim. O mundo maravilhoso das estrelas de Hollywood, que deviam ser felizes, também não era real, como pudemos ver depois do suicídio de Marilyn Monroe e outros. A mitologia da felicidade desta sociedade se dissipava. Fiz uma pesquisa sobre a evolução da imprensa feminina depois do 68 e descobri que as mesmas revistas que até então diziam às mulheres que sendo belas e cozinhando bem podiam ser felizes e conservar os seus maridinhos, mudaram a mensagem para lembrar-lhes que envelheciam, que seus filhos saíam de casa e seus maridos as traíam. Minha tese é que os adolescentes, enquanto elo mais fraca da sociedade ainda não integrada, sentem de forma mais intensa as tragédias e as carências da sociedade. O Maio de 68 foi uma revolta que ia além do simples protesto. Malraux a chamou, acertadamente, crise de civilização.

Há um antes e um depois do 68?

Creio que depois de 68 o prestígio do modelo da sociedade industrial desenvolvida diminui, e mais ainda quando, pela primeira vez, aparece uma crise que põe em dúvida sua viabilidade, a crise do petróleo de 1973, que supõe que o desemprego se instale de forma permanente em nossas sociedades. Para não falar das poluições de todo tipo, do estresse das grandes cidades, da pressão da produtividade, da cronometrização e da deteriorização das condições de trabalho.



E as mudanças nos costumes e na moral social?

O que mudou nos costumes? As relações no interior das famílias. Houve uma evolução, através do movimento feminista, que estava na vanguarda. Não é por acaso que, pouco depois, inclusive sob um Governo de direita, Simone Veil conseguisse levar adiante a lei sobre a interrupção da gravidez, uma lei clássica da reivindicação feminista. Houve também a aceitação da diversidade, das diferentes minorias, sexuais, por exemplo. É certo que houve uma certa liberalização dos costumes e este é um dos aspectos mais interessantes de Maio de 68. Por esta razão o chamamos de brecha, como uma via de água na linha de flutuação do grande navio. Eu diria, além disso, que era o que assinalava a via das revoluções futuras, porque em nenhum momento pensei que os trotskistas nem os maoístas pudessem tomar as rédeas desse processo; pelo contrário, considerava-os retrógrados.

Que leitura política faz agora?

Do ponto de vista político, produziu-se um fenômeno muito interessante; apesar de que os grupinhos presentes eram marxistas, houve uma diminuição da influência do partido comunista sobre a população e especialmente sobre os jovens. Os comunistas nunca estiveram presentes no movimento de 68 e inclusive o condenaram. O próprio George Marchais [secretário-geral do PCF] condenou explicitamente Cohn-Bendit, de quem disse que era “um judeu alemão”. Condenaram o aspecto libertário e também, evidentemente, o fato de que se declararam trotskistas e maoístas. Foi o começo da queda da influência comunista.

Olhando de hoje, qual foi o impacto de Maio de 68?

O Maio de 68 deve ser relativizado até certo ponto, mas continua sendo um eletrochoque. Primeiramente, porque foi uma enorme surpresa, e, além disso, porque converteu a França no único país em que o movimento estudantil foi capaz de desencadear uma gigantesca greve operária. Certamente, houve um grande mal-entendido. Na realidade, o movimento estudantil estava se apropriando do papel revolucionário que se atribuía à classe operária, mas foi a classe operária que se aproveitou da situação para conseguir uma série de importantes aumentos de salário e direitos sindicais.

E depois a direita ganhou as eleições.

Voila. A saturação do Maio de 68, o medo...

O que resta do Maio de 68?

Para começar, o acontecimento foi totalmente esquecido, escondido, por várias gerações. É agora, com esta enorme comemoração midiática, que a história ressurge. Não sei o que a juventude pensa sobre o que aconteceu, mas há um fenômeno francês muito particular que os políticos não conseguem entender. A juventude passa de fases estudiosas, aparentemente despolitizadas, nas quais se diria que se ocupam exclusivamente de si mesmos, de seus estudos, ao despertar bruscamente com uma explosão, muitas vezes provocada por um projeto de reformas, de fato, de mini-reformas secundárias e estúpidas, que serve de detonador a uma revolta estudantil.

O que é interessante é que uma vez que a revolta está iniciada, ela proporciona um prazer maravilhoso aos seus protagonistas, porque lhes permite desafiar a autoridade e a polícia. Então, as autoridades lhes fazem caso, recebem-nos nos palácios, e quando o ministro cede e lhes diz: de acordo, vamos atender às reivindicações de vocês, então contestam: não, não. Queremos mais. E tomam a rua e desafiam o mundo adulto e ficam bêbados de felicidade.

Em seguida, a revolta se decompõe porque, por um lado, um certo número de elementos ativistas tenta controlar o movimento e brigam entre si, e o tempo passa e o movimento se desfaz. Mas o importante é que cada um destes episódios consegue que os jovens se politizem, entrem na polis, na sociedade política, no jogo da coisa pública. Um processo muito saudável para a sociedade francesa.

O presidente Nicolas Sarkozy quer acabar com a herança de Maio de 68, mas se apropria de teses como a que você enunciou sobre a política de civilização.

Não, na realidade só se apropriou do termo. Só disse que é preciso mudar da hegemonia do quantitativo para o qualitativo. Mas não abandonou a idéia de que é preciso manter o crescimento econômico acima de tudo, com o que se afasta muito da minha tese. Por outro lado, há uma crise desta idéia universalista em favor dos particularismos. Eu sou um dos últimos dinossauros, neste sentido.



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Você viu Woodstock?

Para o jornalista, escritor e político italiano Furio Colombo, terminada a política com o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a música de Woodstock "era o território amplo, vivo, bem presidido, o mais jovem do mundo, daquilo que restava de esperança".

O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 28-06-2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.





À pergunta que me é frequentemente dirigida: estiveste em Woodstock?, respondo não. Mas, se a pergunta é reformulada de outro modo (“viste Woodstock?”), respondo sim. E esclareço: naquele dia e lugar. Mas então – insistem os interlocutores que sabem de minha longa travessia da América de um lado ao outro e com muitos personagens e intérpretes da época por três décadas – estiveste ou não estiveste? Estive, e vi; mas de outro modo. E, do ponto em que me encontrava pareceu-me ser testemunha de um momento no qual algo muda para sempre. Vi as últimas horas da música dos jovens filhos rebeldes dos EUA. Vi acabar a música dos jovens e nascer o grande business. Vi o povo jovem que impelira aquela música no nascimento a transformar-se – num mágico instante – de povo a público, de protagonista a consumidor, de proprietário a usuário da nova música. Naquele momento, terminada a política com o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, a música era o território amplo, vivo, bem presidido, o mais jovem do mundo, daquilo que restava de esperança.



Woodstock é o dia – e a noite e o dia, e o sol e o lodo e a chuva, e os jovens corpos envencilhados e sem defesa – nos quais tudo termina. Acabou a tal ponto que naquelas horas começou a perecer a música. E por décadas (podemos dizer até Obama?) se apagou a política, transferida, entrementes, nas enquetes jornalísticas e nos tribunais de Watergate. Eis o meu testemunho: vi Woodstock de um helicóptero, quando me levaram à festa recém estourada com um repique de guitarras na vasta pradaria povoada por uma multidão que ninguém esperava, um imenso permanecer no nada de garotos e garotas jovens e nus, precipitados em dezenas de milhares, depois em centenas de milhares dentro de seu sonho obstinado no qual música, vida e política (e portanto paz no Vietnã, paz por toda parte) eram a mesma coisa. Quando Joan Baez decidiu estar ali, não era mais possível chegar de auto ao fundo do palco. Não era possível atravessar a pé a multidão dos jovens zumbi, imersa no doce frenesi – mas também impossível interromper – do sonho-alucinação. Ver do helicóptero que saudavam como náufragos aquele vôo (aqueles vôos) que carregavam as suas vozes, os seus amigos, quase sempre coetâneos, com quem – até aquele instante – haviam convivido, era o sinal da grande transformação.



Estava de fato mudando para sempre aquela vida jovem, das margens do Alabama ao enfileirar-se diante dos soldados com baioneta calada, no ano anterior, agosto de 1968, nos meses dias de agosto, nas ruas de Chicago, enquanto a Convenção Democrática, protegida pelo fio calado e pelas tropas, escolhia a guerra e perdia os seus jovens. Eram tantos em Chicago a guiar o grande canto de protesto que nenhuma baioneta tivera a força de extinguir. Aquela multidão de corpos era a própria Woodstock? Jamais o saberemos. Mas, o ir e vir dos helicópteros no céu, que talvez a alguém terá recordado as imagens do Vietnã, assinalaram a separação. Aqui os star, ali o público. Aqui as grandes casas que produzirão os discos com esplêndidas capas; ali os jovens que acreditavam estarem todos juntos, serem todos artistas, todos star, porque igualmente belos e jovens. Mas foram separados e declarados para sempre “consumidores”.



Do palco – que era inacessível e, por força, muito alto acima da multidão, e depois, após o furacão, quando a partida se tornou possível – eu os vi no lodo. Permaneciam exaustos e abraçados, após uma longa marcha cheia de sonhos (ilusões?), de esperas insensatas, de canções que durarão trinta anos, tão belas eram (são) e plenas de um estranho fervor e uma sonoridade que permanece para sempre. Mas, estavam lá, como uma ilustração de Gustave Doré para uma Divina Comédia, porém em cores. A cor dos seus corpos, dos seus jeans, dos seus cabelos, das camisas perdidas longe nas poças, era tudo o que restava daquela década inesquecível de vida, de morte, de espera do grande Messias coletivo que é a vida dos jovens. Por um instante haviam possuído a História. Haviam freado o mundo de negócios e de armas. Todos, por um instante – também em guerra – tiveram que escuta sua música. Depois, basta. O helicóptero, a casa discográfica, a grande distribuição, os registros, os criativos, os “packaging people”, vão se embora nas nuvens.





Fonte: http://unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=13828