quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Agamben e a "Comunidade que vem"



Comunidade que vem: a comunidade como acontecimento.
Entrevista especial com Sabrina Sedlmayer



O comum e a experiência da linguagem (Belo Horizonte: Ed. UFMG) é o mais recente livro organizado por Sabrina Sedlmayer, César Guimaraens e George Otte. Nos ensaios da obra, diversos autores exploram os interessantes conceitos de A comunidade quem vem, de Giorgio Agamben, ou seja, exploram a idéia de como ir além da formação da comunidade, operando, assim, o conceito de comunitário.
Sobre este livro, a IHU On-Line conversou com Sabrina, por e-mail.

Nesta entrevista, Sedlmayer afirma por que acredita que o pensamento de Agamben é tão importante para pensarmos a sociedade contemporânea. Fala também sobre a importância da linguagem na formação das sociedades e da própria obra A comunidade que vem. “A comunidade que vem seria formada pelo qualquer. Singularidade sem identidade, que não almeja a pertença a nenhum grupo, classe. Tais singularidades se apropriariam do seu ser na linguagem. Comunidade como acontecimento”, afirmou.
Sabrina Sedlmayer é graduada em Psicologia, pela Universidade Federal Minas Gerais. Realizou mestrado e doutorado em Estudos Literários, também pela UFMG. É professora na mesma universidade. Escreveu diversas obras, tais como: Pessoa e Borges: quanto a mim, eu (Lisboa: Vendaval, 2004); Lavoura arcaica: um palimpsesto (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1999); e Ao lado esquerdo do pai (Belo Horizonte: UFMG, 1997).


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Por que o pensamento de Agamben é tão importante para pensarmos a sociedade contemporânea?


Sabrina Sedlmayer - Primeiro, pela capacidade aguda de análise do presente. Não apenas da situação jurídica que toca a política atual, mas também pela leitura cerrada que dedica a cada excerto literário, filme ou fotografia que evoca em sua obra. Ao estudar os dispositivos de poder presentes na vida contemporânea, ao descrever os processos governamentais que sistematicamente separam a vida nua da vida citadina e civil, ao demonstrar como a vida se transformou em objeto do poder soberano, ao pontuar problemas éticos e ontológicos que nos envolve no mais pardo cotidiano Agamben se coloca de uma forma lúcida e interpela quem lê. Sujeito, poder, lei, história, experiência, negatividade são categorias e conceitos que Agamben aprofunda. E este é apenas um dos aspectos que o diferencia radicalmente do pensiero debole italiano ou de outros teóricos denominados pós-modernos.
Em segundo lugar, acrescentaria o poder de articulação de temas e teorias diversas. A produção intelectual de Giorgio Agamben oferece ao leitor uma variedade de reflexões que perpassam a literatura, a estética, o direito e a política, entre outros campos da arte e da filosofia. E em grande parte dos seus livros, como em Idea della Prosa (1985), Mezzi senza fine (1996), La comunitá che viene (2001), L’aperto (2002), Profanazioni (2005), encontramos uma forma de escrita muito peculiar: mescla de ensaio crítico e prosa poética, similar em alguns aspectos aos fragmentos benjaminianos (1). E o que o leitor encontra nessa instigante experiência de linguagem quase sempre está presente em outras obras de sua autoria (só que de forma mais analítica e interpretativa) dedicadas a temas propriamente filosóficos ou políticos. No pequeno ensaio “Elogio à profanação”, por exemplo, Agamben discorre sobre essa figura paradigmática para a compreensão de todo o seu pensamento, o homo sacer que, como se sabe, é o protagonista da famosa trilogia sobre o estado de exceção, espécie de work in progress que se iniciou em 1995. No ensaio, de um jeito aparentemente pouco pretensioso, ele trabalha obliquamente este tema lado a lado com exemplos sobre a museificação do mundo, jogos, infância, cinema.
Em terceiro lugar, a erudição. Causa espanto como o pensamento agambeniano migra da poesia medieval ao melancólico flaneur, de uma gravura da Bíblia hebraica do século XIII a Bartleby, o escrivão de Melville na nascente Wall Street no final do século XIX. Eric Méchoulan (2), em um curioso ensaio, coloca Agamben na linhagem de Baudelaire e de Benjamin, a dos colecionadores fetichistas. Eu acrescentaria o adjetivo “saturnino” aí.
A pesquisa etimológica é outra aliada desse pensador italiano. Agamben se coloca, em sua obra, como uma espécie de leitor. Leitor capaz de alterar o que se dava por constituído e organicamente fechado, como o fez com a descoberta de uma desconhecida tese de Benjamin, sendo esta agregada hoje à maioria das edições de “Sobre o conceito de história”. Creio que este lugar, o do estudioso que lê, sempre talmudicamente, tem a ver com o própria etimologia da palavra religião que Agamben escava: religio não estaria ligada a religare (o que une o divino e o humano), mas sim a relegere, a releitura. E Agamben promove releituras, de forma inquieta, vacilante.
Nesse sentido, interessante pensar, com Jeanne Marie Gagnebin (3), quando diz que Benjamin, como Proust, teve a preocupação de salvar o passado no presente graças a uma percepção de semelhança capaz de transformar os dois tempos. E não é isto que Agamben promove quando relê os campos de concentração nazi lado a lado com os atuais campos de concentração do nosso Terceiro Mundo?


IHU On-Line - O que exatamente pretende Agamben com "A comunidade que vem"?


Sabrina Sedlmayer - Não sei se é interessante pensarmos em termos de ações pragmáticas. Não creio que o livro A comunidade que vem ofereça apenas estratégias de ação política. Agamben rejeita e critica a potência empírica que deseja alcançar apenas a atividade. Não é a toa que elege Bartleby, de Melville, como referência crucial para que se entenda a potência passiva. Talvez Agamben tenha escrito A comunidade... para dar prosseguimento a questão ontológica, pois, como se sabe, grande parte do pensamento filosófico do século XX relegou este problema. Ele faz, inclusive, uma advertência ao leitor, na segunda parte deste livro:
“Os fragmentos que se seguem podem ser lidos como um comentário do § 9 de O Ser e o Tempo e da proposição 6.44 do Tractatus de Wittgenstein. Nesses dois textos, o que está em questão é a tentativa de definir um velho problema da metafísica, a relação entre essência e existência, quis est e quod est” (p. 70 da edição portuguesa, publicada pela Editorial Presença).
Ao enlaçar a ontologia à ética/política para tratar da relação entre existência e essência, Agamben constrói, sim, categorias políticas capazes de articular, como ele mesmo afirma, o lugar, o modo e o sentido do presente. E o quodlibet (qualquer) é central para a compreensão deste conceito de comunidade que não se encontra aqui e agora, mas está sempre por chegar, por vir. Trata-se de uma subjetividade ligada a uma lógica de campos de força, e não como substância ou uma coisa que pensa. Para Agamben, o sujeito é o que resulta da relação entre os seres vivos e os dispositivos. O que resta.


IHU On-Line - De que forma a linguagem interfere e influência a construção das sociedades e das comunidades dentro das sociedades?


Sabrina Sedlmayer - Gostaria de responder a esta pergunta enlaçando-a com a idéia da comunidade que vem: é essencial que os homens experimentem a linguagem como forma de recuperarem a sua natureza comunicativa e lingüística. Mas como distinguir, nessa nova humanidade, a “exterioridade singular” da publicidade midiática? Se pensarmos na avalanche de testemunhos, depoimentos e relatos da vida íntima que invadiram a literatura, a mídia impressa e eletrônica (pense nos auto-complascentes blogs) nos últimos anos mais problemático se torna a questão. É difícil inserir a presença desse qualquer, dessa existência comum, como contraponto a esses modos de subjetivação que usam a linguagem apenas como exercício de conquista identitária, afirmação de pertença a um grupo ou a uma classe. Susan Sontag (4) indaga por que, na contemporaneidade, “se atribui valor demais à memória e valor insuficiente ao pensamento”.
Acho que Agamben também aposta na potência do pensamento e em formas de existência que escapam da noção de pertença. Como professora de literatura, gosto particularmente do lugar que Agamben confere à poesia, por exemplo. Ela é estância onde se dá a falta; ao contrário da técnica, que crê é no valor da experiência. Na literatura, seja de Kafka (5), Proust (6), Baudelaire (7) e tantos outros não se usa a linguagem para falar da experiência, mas para falar justamente do que não é experimentável. Daí a defesa de uma negatividade, de uma crítica que, como diz Agamben “não consiste em reencontrar o próprio objeto, mas em garantir sua inacessibilidade”.
Uma autobiografia sem fatos não iria na contramão da sociedade do espetáculo? A experiência da linguagem não é o avesso do politicamente correto? “I would prefere not to” não é capaz de interferir e influenciar modos de subjetivações engessados pelos ditames do mercado financeiro? A literatura como defesa do atrito, como diria a ensaísta portuguesa Silvina Rodrigues Lopes (8), não atropelaria as narrativas de auto-ajuda?


IHU On-Line - As formas que antes garantiam aos homens um contorno comum e asseguravam o laço social perderam sua força de espírito e entraram em colapso?


Sabrina Sedlmayer - Será que alguma vez um “contorno comum” que assegurava o laço social existiu?


IHU On-Line - A comunidade que vem, para você, é como diz Agamben, ou seja, uma comunidade de imigrantes, mestiços, sem-terras?


Sabrina Sedlmayer - É mais complexa. Não se trata de uma comunidade identificável nesses termos. Esta comunidade, lembre-se, é sem pressupostos. Não está ligada a categorias relacionadas a nenhuma identidade nem ao conceito de individualidade e de propriedade (qualidades, atributos). A comunidade que vem seria formada pelo qualquer. Singularidade sem identidade, que não almeja a pertença a nenhum grupo, classe. Tais singularidades se apropriariam do seu ser na linguagem. Comunidade como acontecimento. Gosto muito do que Raul Antelo (9), em um texto intitulado “Ontologia da potência”, diz a propósito dessa comunidade não comunitária desenvolvida também por Jean-Luc Nancy (10): necessidade de se trocar o ego sum pelo ego cum. E, para desenvolver o principium individuationis, Agamben recupera a escolástica, Duns Scot, Spinoza, a doutrina dos filósofos medievais e, principalmente, o problema aristotélico da passagem da potência ao ato (a meu ver o ponto mais importante para o entendimento de como essa forma comum passa a singularidade). Trata-se de um conceito complexo, pois envolve uma ética e uma política, e principalmente, um questionamento ao atual Estado governamental que deseja homogeneizar o mundo.


Notas:


(1) Walter Benedix Schönflies Benjamin foi um crítico literário e ensaísta alemão. Foi refugiado judeu alemão e, diante da perspectiva de ser capturado pelos nazistas, suicidou-se.


(2) Eric Méchoulan é professor do departamento de literatura francesa da Universidade de Montreal, no Canadá. É, também, diretor do programa de filosofia do Collège International de Philosophie, em Paris, na França.

(3) Jeanne Marie Gagnebin é professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp, autora, entre outros, de História e Narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1994) e de Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997).

(4) Susan Sontag foi uma famosa escritora, crítica de arte e ativista estadunidense. Graduou-se em Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles, A vontade radical, Assim vivemos agora, O benfeitor, Contra a Interpretação e Na América, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prêmios do seu país, o National Book Award. Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times. Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib".


(5) Franz Kafka foi um escritor checo de língua alemã. A escrita de Kafka é marcada pelo seu tom despegado, imparcial, atenciosa ao menor detalhe, e que abrange os temas da alienação e perseguição. Os seus trabalhos mais conhecidos são A metamorfose, Um artista da fome, O processo, América e O castelo. Os seus contos são julgados como verdadeiros e realistas, em contato com o homem do século XXI, pois os personagens kafkanianos sofrem de conflitos existenciais, como o homem de hoje. Morreu num sanatório perto de Viena, onde se internara com tuberculose. Desde então, seu legado - resgatado pelo amigo Max Brod - exerce enorme influência na literatura mundial.


(6) Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor francês. Assistiu na École libre des sciences politiques aos cursos de Albert Sorel e Anatole Leroy-Beaulieu; e na Sorbonne aos de Henri Bergson cuja influência sobre a sua obra será essencial. Em 1900, faz uma viagem a Veneza e se dedica a questões de estética. Publica várias traduções do crítico de arte inglesa John Ruskin (1904). Paralelamente a artigos que relatam a vida mundana publicados nos grandes jornais (entre os quais Le Figaro), escreve Jean Santeuil, uma grande novela deixada incompleta e que continuará a ser inédito, e publica Os prazeres e os dias (Les Plaisirs et les Jours), uma reunião de contos e poemas.


(7) Charles-Pierre Baudelaire foi um poeta e teórico da arte francês. É considerado um dos precursores do Simbolismo, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.


(8) Silvina Rodrigues Lopes é professora do Departamento de Estudos Portugueses da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É autora de, entre outras obras, Aprendizagem do incerto e A alegria da comunicação.


(9) Raul Antelo é doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor titular de Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo já sido professor visitante da Duke University, da Yale University e da Tinker Foundation. Possui uma vasta produção como ensaísta. Participou de importantes congressos e seminários internacionais, debatendo com intelectuais e artistas como Jorge Schwartz, Décio Pignatari, Davi Arrigucci Jr., Nicolau Sevcenko e Jorge Luis Borges. É autor de Transgressão e modernidade (2001)e Maria con Marcel Duchamp en los trópicos (2006), entre outros.


(10) Jean-Luc Nancy é um filósofo francês considerado um dos pensadores mais influentes da França contemporânea. É professor emérito de filosofia da Universidade Marc Bloch, de Estrasburgo, na Alemanha, e colaborador das Universidade de Berlin e Berkeley, na Alemanha e nos Estados Unidos, respectivamente. É considerado um pensador original que recorre, por conta própria, os caminhos abertos Heidegger, Bataille ou Derrida, interlocutor de Blanchot. Aborda, em sua obra Sentido, ou o final do sentido como diagnóstico do nosso tempo mais preciso ainda que o fim da história ou das ideologias, a antologia de todos nós. Também tem abordado temas como a globalização.

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