segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Cibercultura conservadora



Prazerosa confusão de fronteiras: sobre o imaginário do excesso e da transgressão


Por: Erick Felinto

Fonte: Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 24 • julho 2004 • quadrimestral

RESUMO

Este artigo examina as noções de excesso e transgressão nos discursos da cibercultura. Defende-se a hipótese de que a retórica libertária e revolucionária dos ciberutopismos oculta, na realidade, uma cosmovisão essencialmente conservadora e marcada pelos mitos da modernização progressiva.

ABSTRACT

This paper discusses the notions of excess and trans-gression propagated by cyberculture’s discourses and find them to be very conservative and modernist.

There is pleasure sure, in being mad, which none but madmen know

John Dryden, The Spanish Friar


When reality just isn’t good enough, pleasure must be synthesized

Iara Lee, Synthetic Pleasures

A FRASE QUE anuncia o excelente documentário de Iara Lee, Synthetic Pleasures, é sintomática de uma situação cultural dominada pelo tema do excesso. É preciso ir além, ultrapassar todos os limites, viver todas as experiências e criar ainda outras novas. Como diz Omar Calabrese, nossa era neobarroca tem como um de seus traços identificadores básicos o desejo do rompimento dos limites, do atravessamento das fronteiras.


“Desmesura e excedência estão entre as principais constantes formais dos contentores neobarrocos, sobretudo no âmbito da civilização de massas” (1988: 77).


A noção de excesso aparece, de fato, em todos os campos da vida cultural, mas com força redobrada no horizonte dos meios de comunicação massivos.
O cinema hollywoodiano é, talvez, a maior demonstração desse prazer excêntrico.
Filmes como Matrix (1999) ou Star Wars: Attack of the Clones (2002), com suas explosões monumentais e incríveis efeitos especiais, representam com perfeição essa categoria estética que poderíamos denominar como um gosto pelo excessivo.
O prazer pela ruptura, que se desdobra em diversas formas, manifesta-se também nitidamente no campo daquilo que se convencionou chamar cibercultura. Os discursos sobre as novas tecnologias de informação e comunicação, como indica o bordão de Synthetic Pleasures, repetem incessantemente a idéia de que é preciso avançar todos os sinais, derrubar todas as barreiras, inclusive aquelas que tradicionalmente definiam categorias ontológicas, como a separação humano-inumano. Retomando a reflexão de Bataille sobre a noção de despesa, André Lemos detecta, com perspicácia, esse traço fundamental da cibercultura:


A cibercultura fornece vários exemplos de uma despesa excessiva, não acumulativa e irracional de bits. Dançar por horas em festas tecno, viajar por vínculos banais e efêmeros do ciberespaço, produzir vírus, penetrar sistemas de computador, trocar informação frívola em bate-papos e grupos temáticos, etc. (2002: 264)


Mas o que uma abordagem crítica pode nos revelar a respeito desse tropo? Onde poderíamos encontrar suas origens? Qual é a extensão integral das idéias envolvidas nesse tema e de que visão de mundo ela constitui uma expressão? Este artigo é uma tentativa de formular algumas respostas iniciais. Para tanto, convém tecer algumas considerações sobre as noções de equilíbrio e excesso, pois compreender o papel que desempenham no horizonte da tecnocultura contemporânea exige antes a obtenção de uma clareza mínima a respeito dos sentidos que podemos atribuir-lhes. Pretendo abordar essas noções a partir de perspectivas físicas (ou “físico-filosóficas”) e antropológicas, já que é nos âmbitos da ciência, da filosofia e da cultura que se desenham (e por vezes se cruzam) os temas do equilíbrio e do excesso.


Do ponto de vista da física clássica, a tendência natural do universo pode ser caracterizada como um processo de entropia. Dado um sistema fechado (que é provavelmente o caso do universo), a energia inicialmente ali manifestada tende a se dissipar com o tempo. Sabemos que o que permite a manutenção de qualquer sistema é um estado de heterogeneidade, no qual as várias forças envolvidas se diferenciam continuamente. Em qualquer sistema fechado, parte-se de um estado inicial de diferenciação onde a energia sofre diversas transformações e vai se degradando progressivamente. Com o passar do tempo, a energia se perde em formas não aproveitáveis, como, por exemplo, calor. Pode-se dizer, portanto, que a morte de todo sistema é representada pela passagem da heterogeneidade à homogeneidade.
Essa situação, contudo, se complexifica no âmbito da física contemporânea. A percepção de que determinados fenômenos microfísicos podem ser entendidos como energia ou matéria (caso dos fótons, por exemplo) oferece novas perspectivas para pensar as questões do equilíbrio, da heterogeneização e da homogeneização.
Stéphane Lupasco, por exemplo, argumenta que ambos os processos são necessários para o funcionamento dos sistemas microfísicos. Nessa relação entre diferença e indiferenciação, na qual operaria uma lógica paradoxal, homogeneização e heterogeneização estão presentes simultaneamente, em estados diferenciados de virtualidade ou atualidade. Em outras palavras, para que um sistema se homogeneíze, é necessário que as formas de homogeneização estejam presentes desde sempre, em estado de virtualidade ou potência, para então progressivamente se atualizarem dentro do sistema. Da mesma maneira, para que possa haver heterogeneização no sistema, as forças de heterogeneidade devem estar continuamente presentes, ainda que na forma de potencialidade.
Como diz Lupasco, “cada evento energético, cada processo dinâmico passa de um certo estado de potencialidade a um certo estado de atualização. Mas ele pode apenas fazê-lo potencializando o evento energético antagonista que o mantém como tal através de seu estado de atualização” (1970: 36).
Lupasco observa, assim, que é possível falar em dois tipos de matéria: a macrofísica – mundo das nossas experiências cotidianas –, na qual os processos de homogeneização são dominantes e a levam a um estado de não-contradição e estabilidade máximas, e a microfísica, na qual se manifesta uma orientação inversa, em direção ao antagonismo simétrico e contraditório. Mas é possível falar ainda em um terceiro tipo de matéria, segundo Lupasco, a matéria viva. O interessante na organização dos sistemas vivos é que eles se constituem numa forma de matéria que luta constantemente contra o segundo princípio da termodinâmica (a entropia, a morte). Trata-se de um sistema voltado especificamente para os dinamismos heterogeneizantes. Ainda que submetida às leis do mundo macrofísico, à tendência ao equilíbrio e estabilidade, a matéria viva resiste, se diversifica e se desdobra em sistemas de complexidade crescente.
Todo esse belo (e em grande parte incompreensível para a maioria de nós, simples mortais) edifício científico não seria de grande ajuda se não fossem os postulados filosóficos derivados da argumentação. É possível sintetizar esses postulados em duas idéias fundamentais, importantes para o desenvolvimento da minha argumentação:


1) o universo tende à entropia; não há excesso de energia que possa ser desperdiçado. O que permite resistir à entropia, segundo Lupasco, são os mecanismos de equilíbrio dinâmico da matéria microfísica,


2) o verdadeiro equilíbrio, no plano do mundo microfísico (e da vida psíquica), consiste num regime de convivência antagonista entre forças de homogeneização e heterogeneização. A contradição absoluta ou a ausência total de contradição trariam a destruição do sistema (o excesso).


Do ponto de vista cultural, o tema da “despesa excessiva” é objeto de uma larga tradição de estudos antropológicos. O fenômeno do potlach, cuja descrição mais exaustiva encontra-se no célebre Essai sur le Don, de Marcel Mauss, consiste em uma cerimônia na qual o chefe de uma tribo oferece a um rival um presente, com vistas a humilhá-lo ou desafiá-lo. O rival deve, então, responder ao desafio, oferecendo, mais tarde, um novo potlach mais suntuoso e dispendioso que o primeiro. Mas observou-se também que a dádiva não era a única forma de manifestação do potlach. Por ocasiões, consistia na simples e espetacular destruição de imensas riquezas. Há casos em que o potlach envolve o assassínio de escravos, a queima de alimentos vitais ou até mesmo a destruição da própria aldeia.


Bataille irá retomar as reflexões da antropologia e desenvolver, sobre a noção do potlach, toda uma filosofia da despesa. Para Bataille, o fenômeno da dádiva remete ao desenvolvimento de uma economia geral, preocupada com o todo – ou seja, não apenas com a vida social, mas também com os fenômenos naturais. É na própria natureza – portanto, curiosamente, no horizonte de uma perspectiva física – que se funda o ato da dádiva. A natureza demonstra um excesso de energia, de vida (cujo maior exemplo é o sol). Esse excesso significa que a tendência da vida é expandir-se continuamente, e essa expansão é limitada apenas pelas dimensões da biosfera (Bataille, 1975: 67). As limitações imediatas do crescimento são dadas imediatamente, para cada indivíduo, através dos outros indivíduos. Daí a origem de fenômenos como o potlach: a energia em excesso precisa ser desperdiçada, sob pena de chegar a nos destruir. Nas sociedades capitalistas modernas, corre-se esse risco, já que seu princípio básico de funcionamento é a acumulação.
Nesta equação estão presentes dois componentes diversos que, porém, tendemos a confundir e tomar como um só: excesso e despesa (ou dispêndio). Na verdade, na tradição antropológica o tema do excesso não chega a se tornar o tópico central da discussão. Mauss e a tradição antropológica em geral encaravam a questão do potlach como uma expressão de poder por parte dos chefes tribais (o poder de dar e destruir), ou como um processo primitivo de troca sob forma ritual. É Bataille quem introduz decisivamente o tema do excesso, mas apenas para justificar sua teoria da dádiva.
O excesso seria um fenômeno da natureza que se reflete no campo da vida cultural.
O dispêndio inútil poderia, assim, ser encarado como um princípio de oposição ao conceito de utilidade do mundo capitalista.
Na verdade, quando falamos no tema sob uma perspectiva culturalista, pode-se entender que, na forma de acúmulo, o excesso chegue a ser considerado como essencialmente nefasto (Bataille). Por outro lado, se adotarmos a posição de Calabrese – que entende excesso como a ultrapassagem dos limites e formas tradicionalmente impostos por uma cultura – não existe propriamente um julgamento de valor. Na definição de Calabrese, “o excesso manifesta a ultrapassagem de um limite visto como caminho de saída de um sistema fechado” (1988: 63). Toda cultura se caracteriza por determinados limiares, confins, a partir dos quais qualquer fenômeno é considerado como rompimento de normas, como ação revolucionária.
Mas Calabrese estabelece uma distinção importante entre limite e excesso. O limite significa operar nas fronteiras do sistema cultural sem de fato chegar a rompê-las, ao passo que o excesso implicaria a crise do sistema, exigindo uma total reformulação do mesmo. No caso da cultura contemporânea, Calabrese identifica um movimento complexo, entre limite e excesso, o que não permitiria classificar o neobarroco como época propriamente dinâmica ou “revolucionária”.
“O gosto neobarroco”, afirma, “configura-se como perenemente em suspensão, excitado mas nem sempre disposto à subversão de categorias e valores” (1988: 80).
No domínio da cibercultura parece que lidamos precisamente com esse tipo de situação. Por um lado, encontramos discursos de entonação revolucionária que pregam a transgressão de normas e a ultrapassagem de todas as limitações políticas e sociais (ou mesmo biológicas); por outro, temos também os discursos que adotam uma posição conservadora, preocupada com os perigos do excesso, especialmente do excesso de informação. É relativamente fácil, porém, encontrar exemplos que oscilam entre esses dois pólos. No mission statement do Instituto Extropiano, dedicado ao desenvolvimento integral do homem em sua relação com a tecnologia, lemos que ‘’Avanços na tecnologia (incluindo as ‘tecnologias sociais’ da administração do conhecimento, aprendizagem e tomada de decisões) começam a nos capacitar para alterar a própria natureza humana nos seus aspectos físicos, emocionais e intelectuais. As possibilidades radicais que agora emergem podem causar enormes problemas, assim como aperfeiçoar enormemente a condição humana/transhumana. Com melhores conhecimentos e processos de tomada de decisões, os humanos podem viver muito mais longamente numa saúde “mais que perfeita”; aprimorar seu autoconhecimento e consciência da dinâmica interpessoal; superar preconceitos culturais, psicológicos e meméticos na forma de pensar; aperfeiçoar a inteligência em todas as suas formas e aprender a desenvolver-se na mudança e evolução2’’.
Essa passagem nos oferece alguns elementos interessantes de análise. Em primeiro lugar, registre-se a presença da ambigüidade em relação à superação de limites possibilitada pela tecnologia. Esta pode “causar enormes problemas” ou promover extraordinários avanços. Trata-se de “possibilidades radicais”, capazes, portanto, de conduzir a extremos opostos: a felicidade absoluta ou a desgraça total. Em segundo lugar, vemos o tema da saúde perfeita, ao qual Lucien Sfez dedica todo um livro. Sfez vê na idéia de saúde perfeita ou “grande saúde” a última grande ideologia possível da pós-modernidade. Mais que isso, afirma ele, trata-se de uma bio-eco-religião visando ao desenvolvimento de um super-homem que “liberto do dilaceramento vida/morte, dilaceramento constitutivo de nossa infeliz existência humana, atingiria a imortalidade e, desse modo, não precisaria mais de Deus, da moral e da metafísica” (1996: 21). Em terceiro lugar, intimamente vinculada ao tema da saúde total, evoca-se a mitologia do transhumanismo.
O transhumano é um ser que transcende as fronteiras da espécie, do gênero e até mesmo de seu reino, já que, de certo modo, pode resultar da combinação entre o animal e o mineral – por exemplo, das pastilhas de silício que, implantadas em seu corpo, ampliaram suas capacidades físicas e mentais.
O tema do transhumano, assim como do pós-humano ou do ciborgue, repousa na idéia da superação dos limites impostos pelo estado natural. Como enuncia a já célebre frase cunhada por Donna Haraway em seu Manifesto Ciborgue, aqui lidamos com “o prazer da confusão de fronteiras” (2000: 42). Para Haraway, o ciborgue é criatura tanto do nosso imaginário como da nossa realidade cotidiana, que simboliza o rompimento, já em curso, das fronteiras tradicionalmente estabelecidas na cultura ocidental, como as de gênero (homem/mulher) ou natureza (orgânico/inorgânico).
Tiziana Terranova encara a filosofia do pós-humanismo como uma reelaboração contemporânea de um tema que já aparecia, ao menos embrionariamente, nos futuristas italianos ou em Nietzsche (com o que parece concordar Sfez). Todo o discurso transhumanista pode ser articulado em duas alternativas básicas: a extensão das capacidades do corpo ou a simples e pura ultrapassagem das limitações corporais (nas fantasias de digitalização da consciência). Terranova observa inteligentemente que as utopias transhumanistas são essencialmente individualistas e anti-sociais. No triunfo dessa vontade tecnológica, “a sociedade é apagada e o universo social emerge como um agregado fragmentário de indivíduos num vazio sem restrições históricas e materiais” (2002: 275). A idéia merece maior desenvolvimento. Os filosofemas trans-humanistas, mesmo quando pregam utopias coletivas, são essencialmente avessos à idéia de uma organização social, já que esta implica, de certo modo, uma limitação das possibilidades máximas de cada indivíduo.
Para ser inteiramente coerente com suas premissas, o transhumanismo deve constituir-se numa afirmação do indivíduo como artista de si mesmo; como ser que, insurgindo-se contra os tradicionais padrões culturais, sociais e cognitivos (“memes”), rompe todas as fronteiras e produz uma transvaloração de todos os valores. Mas os discursos da ciberutopia raramente buscam a coerência. São sistemas de valor que hesitam entre o excesso e a contenção, entre o revolucionário e o convencional. Desse modo, no site da Associação Mundial Transhumanista, prega-se a necessidade de se criar fóruns “onde as pessoas possam debater racionalmente sobre o que precisa ser feito, e uma ordem social na qual decisões responsáveis possam ser implementadas”3. Curiosamente, também se afirma que o movimento transhumanista “abarca muitos princípios do humanismo moderno”4.
Calabrese fala no excesso contemporâneo como um princípio endógeno. Em outras palavras, trata-se de um excesso que trabalha do interior do próprio sistema, estendendo seus limites em lugar de rompê-los. Na verdade, uma característica tradicional dos sistemas sociais é a capacidade de integrar o excesso, “tornando substancialmente normal uma aparência excessiva” (Calabrese, 1988: 79). No âmbito da cultura contemporânea, os discursos da ciberutopia podem parecer transgressores e libertários, mas trata-se de uma subversão domesticada, controlada. Como explica Terranova, o entusiasmo utópico da filosofia pós-humanista é contrabalançado por temores distópicos5 e, poderíamos acrescentar, valores conservadores. Como demonstra Terranova em sua análise dos discursos ciberutopistas, a associação entre idéias como televisão-feminilidade-estupidez é “parte de uma significante estratégia de oposições e analogias definindo a identidade tanto das novas tecnologias ‘interativas’ (como opostas à televisão) quanto de seus usuários ‘ativos’ (como opostos à passividade feminina)” (2002: 272).
Além dos procedimentos propriamente retóricos, é interessante também falar no modo de apresentação dos discursos da cibercultura.

Muitos se apresentam na forma de manifestos. É o caso do célebre texto de Haraway, por exemplo. O manifesto constituía a forma discursiva por excelência das vanguardas. Futurismo, dadaísmo, cubismo, surrealismo: todos tiveram seus manifestos expressando o desejo do rompimento absoluto com o passado; o estabelecimento de uma nova hybris em busca de realizações espetaculares e inéditas. Em tempos pós-modernistas, porém, essa retomada da forma-manifesto se esvazia de sentido. Como diz Eduardo Subirats, em relação ao esgotamento das vanguardas, “suas atitudes converteram-se há muito em espetáculo ritualizado, em gesto representativo e narcisista, em afirmação vazia de poder” (1986: 11). Os manifestos da cibercultura são sintoma dessa derrocada das utopias modernistas, que agora reeditam antigos sonhos tecnológicos sob roupagens aparentemente novas. A retórica do manifesto do movimento FutureCulture é semelhante à de seus correligionários:

‘’Assim como uma tecnocracia é um governo dirigido por cientistas ou aqueles que criam a tecnologia, a tecnocultura é uma cultura alimentada pela tecnologia. A América é tecnocultura. Nós estaríamos perdidos sem nossas televisões ou carros, nossos computadores ou telefones. FutureCulture é, portanto, uma forma de decifrar como o amanhã irá parecer em uma tecnocultura6’’.
A tecnocultura se apresenta como uma forma híbrida, um cenário cultural no qual a tecnologia está tão inextricavelmente ligada à vida cotidiana que é dela inseparável. É preciso assinalar, porém, que toda cultura já é desde sempre tecnológica. Como diz Erik Davis, “a cultura é tecnocultura” (1998: 10). Podemos, contudo, admitir o uso do conceito para expressar a individualidade do momento histórico que agora se apresenta.
Se a cultura sempre foi tecnológica, é apenas no contexto da “tecnocultura” que ela passa a se pensar explicitamente como tal e tomar como objeto de reflexão toda a extensão dos problemas implicados na conjunção homem-máquina. Para Geoff Waite, que, como Sfez e Terranova, crê na antecipação nietzschiana do tema do pós-humano, a tecnocultura se caracteriza pela constituição de um self ciborgue, habitante de uma paisagem cultural híbrida, resultado da mescla de elementos da cultura popular (“junk culture”), de fragmentos filosóficos (especialmente dos filosofemas nietzschianos) e do culto ao tecnológico. E nessa paisagem filosófica passeiam ainda os tradicionais mitos de modernização das primeiras utopias tecnológicas. Em última instância, como afirma Jonathan Crary, nos encontramos em “mais um daqueles momentos recorrentes no século XX em que uma das máscaras do fracasso e da paralisia do político é a entusiasmada afirmação da força transformadora e da centralidade cultural da inovação tecnológica” (apud Waite, 1996: 16). Uma forma não de pensamento revolucionário, portanto, mas de conformismo infantil que oculta a derrocada do projeto moderno.
Aliás, é interessante observar a série de metáforas infantis com que se inicia o manifesto FutureCulture. Em uma paisagem bucólica, uma criança sopra bolhas de sabão e, de repente, pára para observar a beleza de uma bolha em particular. Nessa observação descobre todo um mundo novo e fascinante. As bolhas se combinam, estouram, adquirem formas exóticas, se aproximam e se afastam. Tudo para metaforizar o processo do diálogo e intercâmbio entre as várias facções e elementos de uma cultura. As bolhas são “subculturas” (como, por exemplo, a cultura cyberpunk), que nascem, se desenvolvem, morrem, se afastam e se reaproximam no horizonte mais amplo desse grande environment que é a Cultura. A metáfora nos transporta para um paraíso originário, para um estado de inocência e pureza fora do tempo e do espaço. Um mundo adâmico das conciliações, anterior à ruptura da Queda, e ao qual a tecnologia agora poderia nos devolver. Vale a pena reproduzir um trecho da passagem:
‘’Desse modo, como se pode ver, as subculturas se combinam em culturas ou subculturas mais amplas (é tudo relativo), as subculturas podem se autodestruir, podem evoluir ou meta-morfosear-se, podem divergir para diferentes direções. Mas em qualquer dos casos, sempre há bolhas, pois nós, como aldeia global, somos como o menino de cinco anos – entrincheirado no mundo das bolhas, olhando-as com um olhar de admiração7’’.
O imaginário de excesso e transgressão da cibercultura revela-se, assim, como conservadorismo político e mitologia religiosa. Esse imaginário envolve, como tenho procurado demonstrar8, uma deificação da tecnologia como forma de obtenção da transcendência humana. Misticismo e ciência são termos intercambiáveis nessa equação, segundo um dos princípios do Manifesto Pós-Humanista: “O pós-humano está inteiramente aberto a idéias de ‘paranormalidade’, ‘imaterialidade’, ‘sobrenatural’ e ‘oculto’. O pós-humano não aceita que a fé em métodos científicos seja superior à fé em outros sistemas de crença”9. Temos, assim, efetivamente, mais um exemplo da transgressão de limites tão própria do gosto contemporâneo. Contudo, mais que atitude inovadora ou revolucionária, essa aproximação entre tecnologia e religiosidade representa um retorno a paradigmas anteriores, a uma visão de mundo pré-moderna, na qual os dois domínios apresentavam-se intimamente conectados10.
Há um outro aspecto do tema do excesso na cibercultura que, por sua centralidade, merece nossa atenção. Falo do tema da informação, da idéia de information overload ou data smog, como o qualifica David Shenk (1997); o excesso de informação. Diz-se que não é possível ter-se algo bom em demasia. Informação, aparentemente, é algo desejável e tradicionalmente implica as idéias de transformação, desenvolvimento e crescimento. Mais que em qualquer outra época da história, na cultura contemporânea a informação passou a ser encarada como o bem fundamental. Contudo, o tema do excesso de informação, que de fato não cessa de multiplicar-se no âmbito das redes digitais, constitui uma das principais fontes de distopia no imaginário cibercultural. Shenk afirma que o fenômeno da “névoa de dados” (data smog) nos atinge constantemente em nosso cotidiano na tecnocultura:

‘’Ele agita os momentos silenciosos e obstrui os tão necessários instantes de contemplação. Ele arruína a conversação, a literatura e mesmo o entretenimento. Ele inviabiliza o ceticismo, tornando-nos menos sofisticados como consumidores e cidadãos. Ele nos estressa (1997: 31)’’.
O grande pesadelo do excesso de informação é a impossibilidade de escapar dela, de encontrar um “local” da cultura que não esteja sobrecarregado de estímulos informacionais. Em Minority Report (2002), encontramos uma representação desse pesadelo na idéia de uma sociedade inteiramente controlada pela informação. Sensores eletrônicos escaneiam a retina das pessoas, submetendo-as a um constante bombardeio de propaganda dirigida em qualquer lugar por onde passem.
Katherine Hayles aponta, inteligentemente, as conexões que existem entre os temas da informação e do pós-humano. Um dos filosofemas do pós-humanismo repousa na noção da consciência como fluxo de processos informacionais. Se somos, essencialmente, padrões de informação (inclusive geneticamente falando) e se a informação se apresenta como bem imaterial, nada mais natural que desejar a eliminação dessa materialidade incômoda do corpo. Sem descartar o tema do pós-humanismo, Hayles contudo imagina a possibilidade de uma perspectiva alternativa, menos contaminada pelo mito e pelo desejo do excesso:
Meu sonho é uma versão do pós-humano que abrace as possibilidades das tecnologias da informação sem ser seduzida por fantasias de poder ilimitado e imortalidade descorporificada; que reconheça e celebre a finitude como uma condição do ser humano, e que entenda a vida humana como embebida em um mundo material de grande complexidade, mundo do qual dependemos para continuar sobrevivendo (1999: 5).
Mas não parece ser fácil separar a imaginação pós-humanista de seus mitos de transgressão, excesso e superação da finitude humana. A visão informacional da cultura desmaterializa a realidade e assim facilita a propagação dos mitos da digitalização corporal. Paulo Vaz observa que enquanto um dos problemas centrais da modernidade era a falta (falta de informação, de acesso à verdade), na cultura contemporânea revertemos ao problema do excesso e da rapidez (1999: 117). São esses dois elementos que situam os sujeitos contemporâneos em um ambiente destemporalizado e desmemoriado. Oferecida de forma descontextualizada, fragmentária, rápida e excessiva, a informação acaba constituindo-se em não-informação.


Chegando a este ponto, já é possível fazer uma síntese do percurso até aqui traçado e propor algumas hipóteses:


1) O excesso não é um traço constitutivo da natureza física; na realidade, o universo se caracteriza pela tendência à entropia típica de todo sistema fechado. O que o mantém em funcionamento são os processos de diferenciação e antagonismo da matéria microfísica;


2) Nada indica que qualquer forma de excesso seja positiva. Pelo contrário, a noção de excesso implica a presença de uma quantidade exagerada, em um sistema, de um determinado elemento e, portanto, uma situação de desequilíbrio. O excesso implica homogeneização e assim impede a manifestação de uma diferença criadora;


3) A antropologia clássica prega que a despesa excessiva pode ser entendida como um ritual de poder. Dessa forma, desperdiçar bens materiais, energia ou informação pode ser entendido não como uma forma de resistência aos processos de acumulação do capitalismo selvagem, mas como a expressão de um desejo de poder totalitário;


4) A cultura contemporânea apresenta um gosto pelo excesso e pelo limite, mas esse gosto raramente se manifesta como forma revolucionária e transformadora do sistema. Pelo contrário, em muitas ocasiões, tal gosto se constitui em mais um mecanismo de controle e manutenção do sistema;


5) Os discursos do excesso e da transgressão na cibercultura estão carregados de mitos utópicos e fantasias distópicas, revelando as contradições internas dessa Weltanschauung. Na maioria das vezes, podem ser criticamente percebidos como expressão de uma ingenuidade infantil, que busca recuperar o vigor transgressor da modernidade, mas acaba por recair em um imaginário pré-moderno e numa visão religiosa e reconciliadora dos conflitos sociais.


É possível que o quadro aqui pintado seja considerado excessivamente sombrio. Talvez o seja, de fato, mas não tanto devido a alguma forma de pessimismo de matriz frankfurtiana. Ocorre que a prevalência dos discursos afirmativos no horizonte da cibercultura é tão grande que qualquer forma de perspectiva alternativa deve ser formulada com a máxima acidez da visão crítica. O entusiasmo pelas novas tecnologias, do qual muitos de nós – inclusive aquele que escreve estas linhas – compartilhamos, talvez represente, num obscuro recôndito de nosso inconsciente cultural, a expressão de um desejo de salvação tecnológica. Em um mundo onde o sentido se evaporou, onde a sensação se anestesiou, onde o percurso histórico estacionou, nada mais natural que almejar o prazer ciborgue da dissolução de fronteiras. Mas é a fronteira última da nossa finitude que pode também nos resguardar contra as formas mais agudas da insanidade.

Notas


1 Este trabalho foi originalmente apresentado no XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em Belo Horizonte, em setembro de 2003.


2 Disponível em http://www.extropy.orgaboutindex.html/. Memético (memetic) é um termo cunhado pelo biólogo Richard Dawkins e que fez fortuna no universo da cibercultura. Um meme indica aquela espécie de comportamento ou hábito cognitivo que segue padrões fortemente estabelecidos e que se repetem, de modo similar ao que sucede nos processos de replicação genética.


3 Disponível em http://www.transhumanism.org/ decla-ration.htm



4 Idem.


5 Como no caso do manifesto extropiano, os princípios da Associação Mundial Transhumanista também apresentam os possíveis perigos do desenvolvimento tecnológico: “Por outro lado, também seria trágico se a vida inteligente fosse extinta por causa de algum desastre ou guerra envolvendo tecnologias avançadas” – também em http://www.transhumanism.org/declaration.htm. O imaginário da literatura cyberpunk e da ficção científica é pródigo em fantasias apocalípticas e distópicas.


6 Disponível em http:project.cyberpunk.ruidbfuture_cultu-re_manifesto.html.


7 Disponível em http://project.cyberpunk.ru/idb/future_culture_ manifesto.html.


8 Ver, por exemplo, meu artigo “Tecnognose: Tecnologias do Virtual, Identidade e Imaginação Espiritual”, in Revista Famecos nº 18. Porto Alegre: Famecos/PUCRS (agosto 2002).



10 A esse respeito, ver Noble, David. The Religion of Technology: the Divinity of Man and the Spirit of Invention. London: Penguin, 1999.


Referências


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HARAWAY, Donna. “Manifesto Ciborgue”, in DA SILVA, Tomaz Tadeo (org.). Antropologia do Ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.


HAYLES, Katherine. How we Became Post-Human: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature and Informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.


LEMOS, André. Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2002.


LUPASCO, Stéphane. La Tragédie de l’Énergie. Paris: Casterman, 1970.


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SHENK, David. Data Smog: Surviving the Information Glut. New York: Harper Edge, 1997.


SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo: Nobel, 1986.


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VAZ, Paulo. “Agentes na Rede”, in Lugar Comum, nº 7. Rio de Janeiro: Nepcom/UFRJ (janeiro-abril 1999).


WAITE, Geoff. Nietzsche’s Corps/e: Aesthetics, Politics, Prophecy, or, the Spectacular Technoculture of Everyday Life. Durham: Duke University Press, 1996.


(Fonte: http://www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/24/Erick_Felinto.pdf)

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A bolha assassina


Clique aqui para ver a animação.

Sim, a Bolha Assassina existe. Muito pior que aquela mostrada em filmes "B", trata-se de uma gigantesca bolha de plástico flutuante, uma espécie de gel vivo cobrindo o Oceano Pacífico, engolindo e matando tudo que se encontra em seu caminho.
Uma enorme camada flutuante de plástico que já é considerada a maior concentração de lixo do mundo, com cerca de 1.000 km de extensão. Vai da costa da Califórnia a meio caminho do Japão, com uma profundidade de mais ou menos 10 metros .

Acredita-se que haja neste "vórtex de lixo" cerca de 100 milhões de toneladas de plástico de todos os tipos.

Pedaços de redes, garrafas, tampas, bolas , bonecas, patos de borracha, tênis, isqueiros, sacolas plásticas, caiaques, malas e todo tipo de plástico. Segundo seus descobridores, a mancha de lixo - ou sopa plástica - tem quase duas vezes o tamanho dos Estados Unidos.

O oceanógrafo Curtis Ebbesmeyer, que pesquisa esta mancha há 15 anos, compara o vórtex a uma entidade viva, um grande animal se movimentando livremente pelo Pacífico. Quando passa perto do continente a mancha causa praias cobertas de lixo plástico de ponta a ponta.

A bolha plástica atualmente está em duas grandes áreas ligadas por uma faixa estreita. Referem-se a elas como bolha oriental e bolha ocidental. Um marinheiro que navegou pela região no final dos anos 90 disse que ficou atordoado com a visão do oceano de lixo plástico à sua frente. 'Como foi possível fazermos isso?' - 'Naveguei por mais de uma semana sobre todo esse lixo'.

Pesquisadores alertam para o fato de que toda peça plástica que foi manufaturada desde que descobrimos este material e que não foi reciclada ainda está em algum lugar do planeta. Acrescente a isso o problema das partículas decompostas de plástico. Segundo dados de Curtis Ebbesmeyer em algumas áreas do oceano Pacífico pode se encontrar uma concentração de polímeros até seis vezes maior que a de fitoplâncton, base da cadeia alimentar marinha.



Segundo o PNUMA, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, este plástico é responsável pela morte de mais de um milhão de aves marinhas todos os anos. Sem contar toda a fauna que vive nesta área, como tartarugas marinhas, tubarões e centenas de espécies de peixes.

Essa sopa plástica pode funcionar como uma esponja que concentra poluentes persistentes. Ou seja, qualquer animal que se alimenta nestas regiões pode ingerir altos índices de venenos que acabam introduzidos, através da pesca, na cadeia alimentar humana, tornando verdadeira a afirmação de que o que fazemos à Terra acaba tendo impacto sobre nós, seres humanos.

O navio do Greenpeace Esperanza recentemente cruzou uma das maiores áreas da bolha, cujo centro encontra-se a cerca de 900 KM a nordeste do Hawaí. Esse é o epicentro de um "sistema" que cobre boa parte do Oceano Pacifico. Somente esta área tem aproximadamente o tamanho do Estado do Texas, girando em sentido horário. Estima-se que haja na área cerca de 6 Kg de plástico para cada Kg de plancton.

***

O que fazer ?

Todos nós sabemos, no íntimo, o que fazer.

Se você é publicitário, jornalista ou outro tipo de formador de opinião, voce pode e deve mudar sua conduta, com vistas a ajudar na imprescindível mudança de mentalidades. Seus filhos e netos agradecem. A natureza agradece.

Se voce é professor, universitário ou não, páre de dar aulas burocráticas e promova discussões pertinentes e atinentes ao cotidiano de seus alunos. Traga a Filosofia, a Matemática, a Geografia ou qualquer outra disciplina para os problemas urgentes que nos defrontamos, promova uma "massa crítica".

Seus alunos não se interessam pelas aulas ? Eles têm razão ! Saia do cinismo burocrático.

Se você é somente um consumidor, pelo menos consuma conscientemente.

Penso ser nefasta a cultura do denuncismo que se limita a ouvir e ver passivamente.

Podemos e devemos fazer algo agora, neste momento, mudando nossas próprias rotinas.

A solução de nossos problemas não se encontra fora de nós, mas na integridade e na lucidez cotidianas.

Não siga cartilhas ou preceitos morais: seja simplesmente honesto e íntegro com você mesmo !




(Fontes das matérias: The Independent, Greenpeace e Mindfully)

(Extraído de:

http://www.viomundo.com.br/bizarro/no-oceano-pacifico-bolha-de-plastico-e-marca-do-homem/

e

http://images.google.com/imgres?imgurl=http://kauaian.net/blog/wp-content/themes/default/images/sushi/trashvortex.jpg&imgrefurl=http://kauaian.net/blog/%3Fp%3D381&h=101&w=160&sz=17&hl=pt-BR&start=19&usg=__FC38G3XvqGqAlDodA_PBhwPHSS0=&tbnid=StKtVSQMSWyL5M:&tbnh=62&tbnw=98&prev=/images%3Fq%3D%2522pacific%2Btrash%2Bvortex%2522%26gbv%3D2%26hl%3Dpt-BR





quarta-feira, 24 de setembro de 2008

KRISHNAMURTI : Meditação e outros textos




Meditação é a atenção em que existe um estado de consciência, sem escolha, do movimento de todas as coisas – o grasnido dos corvos, o serrote elétrico, cortando a madeira, a agitação das folhas, o riacho barulhento, o menino gritando, os sentimentos, os motivos, os contraditórios pensamentos, e, indo mais para o fundo, a percepção da consciência total. Nesta atenção deixa de existir o tempo, como o dia de ontem, que tem continuidade no dia de amanhã, as distorções e movimentos da consciência aquietam-se e silenciam. Neste silêncio, há um imenso e incomparável movimento; movimento imperceptível, que constitui a essência do sagrado, da morte e da vida. Impossível é segui-lo, pois não deixa vestígio algum e é estático e silencioso, ele é a essência de todo movimento.

***

O fluxo exterior e interior da existência forma um único movimento. Com a compreensão do mundo exterior inicia-se o movimento interior, mas não em oposição ou em contradição entre si. Cessando o conflito, o cérebro, ainda que altamente sensível e alerta, aquieta-se. Somente então torna-se válido o movimento interior.

Deste movimento surge uma generosidade e uma compaixão que não resultam da razão ou do auto-sacrifício intencional.

A força e a beleza da flor estão em sua total vulnerabilidade.

Os ambiciosos desconhecem o belo. A beleza está na percepção da essência de todas as coisas.

***

O pensamento é matéria e pode ser transformado em qualquer coisa, bla ou feia.

Existe, porém, o sagrado que não vem do pensamento, nem de um sentimento por ele reavivado. Não é reconhecível pelo pensar nem pode ser por ele utilizado ou concebido. A palavra ou o símbolo não podem definir o sagrado. Ele é incomunicável. É um fato.

Um fato é para se ver, mas o ato de ver não se processa através da palavra. Quando se interpreta um fato, ele deixa de ser um fato.; torna-se algo inteiramente diferente. O “ver” é da mais alta importância. Encontra-se fora do tempo-espaço, é imediato, instantâneo. E o que se vê é sempre novo. Não existe a repetição nem o processo gradual do tempo.


***


Não existe lógica na verdade. A verdade não pode ser medida, avaliada. Só se pode medir e dimensionar aquilo que não é vivo.


(Extraído do Blog Holosgaia)

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Sobre sonhos...(10) - "Apagão Consciencial"


O texto que se segue foi escrito há algumas semanas. Após muitas reticências de minha parte, decidi publicá-lo neste Blog, inspirado pelo texto de nosso amigo e colaborador, o escritor Otávio Aquino.

Surpreendi-me (positivamente) ao ver que Otávio Aquino tenha mencionado, com muita propriedade, à fase denominada por ele de "apagão consciencial". Se estamos falando da mesma coisa, creio que o "apagão consciencial" constitui um "estado intermediário", localizado, se assim podemos dizer, entre dois momentos : entre o momento em que a mente perde todos os seus referenciais (sentidos, racionalidade, percepção) e aquele em que as imagens oníricas começam a se formar. Ocorre uma espécie de vácuo da consciência, porém, embora esteja próximo de um desmaio, o sonhador atento percebe o que ocorreu e mantém sua lucidez. É como se tudo o que pensamos, sentimos e percebemos fosse um "filme" e esse "apagão" constituisse o momento em que "o filme" acaba, as luzes do "cinema" conservam-se apagadas e o novo "filme" ainda não começou.

Penso que tal momento, muitíssimo fugaz e de difícilima percepção, é muito importante e pode nos revelar insights, sendo ele próprio, talvez, mais importante que o próprio sonho.

Em postagem mais antiga (vide "Sobre sonhos...(7)"), já havia mencionado esse estado, porém, até então, não me havia dado realmente conta de sua importância. Ou melhor, já havia percebido, porém não experimentado com tanta nitidez. O texto que se segue trata exatamente desse processo, relatando a experiência mais prolongada que vivi nesse "estado". Posteriormente, em outras ocasiões, e mesmo recentemente, tive a oportunidade de vivenciar tal experiência, geralmente durante a meditação estabilizadora ou logo após esta, quando procuro prolongar a lucidez no estado hipnagógico.

O final do texto foi suprimido por razões pessoais, pois esse teve como propósito buscar aconselhamento junto a alguns mestres.


Apagão Consciencial


No último sábado, 21/06/08, acordei muito cedo, por volta das 05:00 hs um pouco perturbado e estressado por problemas mundanos. Resolvi então tentar dormir mais um pouco, procurando relaxar ao máximo minha mente, entrando em um processo de meditação, em que tentava me desapegar dos pensamentos ao mesmo tempo em que buscava um grau máximo de relaxamento. Trata-se de uma prática de meditação na qual procuro associar uma clara atenção – livre ao máximo de pensamentos ou outras perturbações que possam desviar a própria atenção, levando-me quase a uma "atenção pura" a um "puro estar" – com um relaxamento cada vez mais profundo. A atenção parece que vai aumentando à medida em que me aproximo de um estado intermediário entre sono e vigília.
Nesse instante aconteceu algo muito intenso e instigante.
Repentinamente, uma escuridão desabou e todas as sensações, pensamentos, percepções e emoções subitamente sumiram, atingindo inclusive o propósito ou o esforço meditativo – como se a própria meditação desabasse. Ao mesmo tempo, uma espécie de onda de choque atravessou-me de ponta a ponta. Essa experiência – que nem posso afirmar se foi boa ou ruim naquele instante, pois parecia que eu mesmo havia desaparecido – assemelhou-se a um desmaio, com a diferença de que permaneci lúcido, sabendo o que havia ocorrido. Durou talvez dois segundos, se bem que é difícil mensurar o tempo nessas situações.
Um pouco assustado, virei-me de lado, e entrei novamente em meditação, dessa vez buscando repetir a experiência. E, novamente, quando me aproximava de um relaxamento bem profundo – aproximando-me do estado intermediário entre vigília e sono, porém sem perder a atenção clara -, senti uma espécie de vertigem e a sensação de que todo meu corpo e mente caíam de um trampolim. Novamente, por apenas um instante e muito repentinamente, a vista escureceu e essa sensação de “nada” me atingiu, como uma bomba atômica eliminando tudo. Dessa vez, entretanto, não senti choque algum, creio que essa segunda vez foi um pouco menos intensa ou prolongada que a primeira.
Depois disso, finalmente consegui dormir, bastante relaxado. Depois de cerca de 2 horas de sono, levantei-me e passei todo o dia completamente livre do stress, com a cabeça meio “flutuante”, leve, uma sensação quase física. E até o dia de hoje, parece que preocupação alguma me abate. A sensação que se seguiu, portanto, é de um profundo relaxamento, tal como aquela que sentimos após uma prática de exercícios físicos ou mesmo de um orgasmo.
Devo dizer que é a quarta vez que isso acontece – a primeira, há algumas semanas -, porém, nas outras ocasiões, a sensação não foi tão intensa, nítida, prolongada e jamais havia sentido ondas de choque em meu corpo, nem, ao que me lembro, a sensação de “leveza” havia perdurado por tantos dias.
Talvez seja interessante observar que venho praticando meditação com regularidade, o que acabou redundando também em uma prática de sonhos lúcidos.


(...)





(...)




OBS: esta postagem também foi publicada no Blog Sonhos Lucidos

A Sobrevivência Depois da Morte: Observações a Partir de Modernas Pesquisas sobre a Consciência


Por: STANISLAV GROF


Stnnislav Grof, M.D., é um psiquiatra de renome mundial, especializado em estados alterados de consciência e em emergência de estados espirituais. É autor de Realms of the Human Unconscious: Observations from LSD Research, Beyond the Brain: Birth, Death, and Transcendente in Psychotherapy, e The Adventure of Sélf-Discovery.


Este ensaio baseia-se em observações colhidas ao longo de mais de três décadas de exploração sistemática do potencial heurístico e terapêutico de estados não-habituais de consciência induzidos por substâncias psicodélicas e por várias técnicas não-farmacológicas.(1) Os primeiros vinte anos envolveram trabalhos clínicos com drogas psicodélicas em pesquisas patrocinadas pelo governo. Os quatorze anos seguintes envolveram experimentações com várias e poderosas técnicas alternativas às substâncias psicodélicas, mas sem o uso de drogas, particularmente com uma técnica psicoterapêutica desenvolvida por minha mulher, Christina, e por mim, e que denominamos terapia holotrópica.
A terapia holotrópica associa respiração controlada, música evocativa e outras formas de tecnologia sonora, o trabalho focalizado no corpo e o desenho de mandalas. Utilizando essa abordagem sem drogas, pudemos induzir todo o espectro de experiências características das sessões psicodélicas e das clássicas viagens xamânicas (2).
As experiências assim induzidas não podem ser explicadas no âmbito do modelo tradicional de psique utilizado em psicanálise; foi, por conseguinte, necessário criar um novo modelo, mais extensivo e abrangente, das regiões da consciência a humana. Além do tradicional nível biográfico das lembranças e do inconsciente individual freudiano, a cartografia desse novo modelo inclui aquilo a que dei o nome de regiões perinatal e transpessoal da psique. As experiências características dos domínios perinatal e transpessoal apresentam particular interesse para a questão: "A consciência sobrevive à morte ?", pois essas experiências incluem os importantes fenômenos visionários presentes mitologias escatológicas, nos antigos "livros dos mortos", e em outros contextos nos quais a experiência da morte (e do renascimento) desempenha um papel significativo.
A crença de que a consciência, ou a existência, sob alguma forma, continua depois da morte é encontrada em todas as antigas culturas não-ocidentais, em seus sistemas religiosos e filosóficos, em suas cosmologias e práticas rituais, e em vários elementos de suas organizações sociais. Embora diferindo em seus conceitos específicos a respeito de um após-vida, todas essas culturas estão unidas numa crença de que a morte é tão-somente uma transição ou transfiguração, e não uma aniquilação final do indivíduo. Algumas tradições espiritualistas ensinam que a consciência do indivíduo é submetida a uma complexa jornada depois da morte, passando por estágios, provações e estadias específicas; outras ensinam que, depois da morte de um corpo, a consciência reencarna, sobre a terra, num outro corpo. Em algumas tradições, a morte é encarada como uma oportunidade para a libertação final e a fusão com o Absoluto.
Em contraposição a isso, as culturas ocidentais adotam uma visão radicalmente diferente da morte e do morrer. Em maior ou menor grau, a maioria dos ocidentais instruídos está sob a influência da ciência mecanicista e da sua suposição de que a consciência é um produto do funcionamento fisiológico do cérebro. Evidentemente, a implicação lógica dessa suposição é a de que a consciência deve deixar de existir quando o cérebro morrer. De acordo com a visão de mundo mecanicista, a crença numa forma qualquer de vida depois da morte e o conceito de "jornadas póstumas da alma" são manifestações de medos primitivos, de pensamento mágico e de superstição. Dessa maneira, a sociedade moderna isola as pessoas idosas, doentes e moribundas em casas de saúde e hospitais, cuidam dos que estão à morte distanciando-os de todo apoio humano significativo, limitando-se a prolongar suas vidas com recursos tecnológicos. De maneira semelhante, a psicologia e a psiquiatria modernas exibiam, até recentemente, a mesma atitude negativa generalizada com relação à morte, característica da civilização ocidental em geral, mostrando pouco interesse pela experiência da morte e não proporcionando nenhum apoio psicológico aos moribundos.
As modernas pesquisas sobre a consciência lançam uma luz inteiramente nova sobre a questão da sobrevivência da consciência depois da morte. Se quisermos aumentar nossa compreensão do universo e da natureza humana, será necessário levarmos a sério os dados fornecidos por esse novo campo de pesquisas e rever a atitude atual da maioria dos cientistas, que não estão familiarizados com essas evidências, ou então, que preferem ignorá-las. As sessões psicodélicas, a psicoterapia experimental, as diversas formas de meditação, e os estados de consciência não-habituais espontâneos fornecem uma experiência direta de muitos dos fenômenos descritos em visões de mundo místico-religiosas (filosofia perene) e em mitologias escatológicas — fenômenos que dão apoio a uma visão de mundo que reconhece a realidade da sobrevivência post-mortem da consciência.
Neste capítulo, focalizarei observações colhidas em minha própria pesquisa, particularmente em experiências transpessoais que aparecem no decorrer da terapia holotrópica. Depois de tê-las discutido, examinarei os tipos diretamente relacionados com a questão da sobrevivência da consciência à morte, sobretudo as experiências de comunicação ostensiva com entidades desencarnadas, experiências fora-do-corpo, visões de domínios astrais e lembranças de encarnações passadas.

O Domínio Transpessoal

Num certo sentido, a consciência caracteriza-se por seus limites: em nosso estado normal de vigília, experimentamos a nós mesmos como existindo dentro de certas fronteiras físicas, circunscritas pela imagem de nosso corpo; nossa percepção do ambiente externo está restrita ao âmbito do alcance de nossos órgãos sensoriais; e nossas ações estão subordinadas às habituais limitações espaciais e temporais. Em situações comuns, só conseguimos vivenciar os acontecimentos no momento presente e em nosso ambiente imediato. Podemos nos lembrar do passado, e podemos antecipar ou fantasiar a respeito de acontecimentos futuros; mas o passado e o futuro não estão ao alcance de nossa experiência direta.
Em contraposição, nas experiências transpessoais, quer ocorram em sessões psicodélicas, na terapia holotrópica, ou espontaneamente, transcende-se, ao que parece, uma ou mais de uma das habituais limitações da consciência. Essas experiências distribuem-se em três categorias gerais. A primeira envolve experiências nas quais há evidências de que o tempo linear é transcendido — tais experiências são interpretadas por aqueles que passaram por elas como sendo uma regressão histórica e uma exploração de seu passado biológico, cultural e espiritual, ou então como uma progressão histórica para dentro do futuro. A segunda categoria envolve experiências caracterizadas sobretudo por uma aparente transcendência dos limites espaciais ordinários. A terceira categoria caracteriza-se pela exploração vivencial de domínios que, na cultura ocidental, não são considerados como fazendo parte da realidade objetiva.
Para muitas pessoas, os estados não-habituais de consciência caracterizam-se por episódios muito concretos e realistas, que elas identificam como memórias fetais ou embrionárias. Sob tais circunstâncias, não é raro vivenciar-se, no nível da consciência celular, uma identificação total com o esperma e o óvulo no momento da concepção. Por vezes, a regressão histórica pode ir ainda mais longe, tendo a pessoa a impressão de reviver lembranças das vidas de seus antepassados, ou até mesmo de coletar lembranças nos bancos de memória do inconsciente racial ou coletivo. Há, ocasionalmente, até mesmo pessoas que relatam ter-se identificado com vários antepassados animais de sua linhagem evolutiva, ou uma nítida impressão de estar revivendo episódios dramáticos de uma encarnação anterior.
As experiências transpessoais envolvendo a transcendência de barreiras espaciais sugerem que os limites entre o indivíduo e o restante do universo não são fixos nem absolutos. Em circunstâncias especiais, uma pessoa pode identifícar-se vivencialmente com qualquer coisa no universo, inclusive com a própria totalidade do cosmos. A este grupo pertencem as experiências de fusão com outra pessoa num estado de unidade dual, de apropriação da identidade de uma outra pessoa, de sintonização com a consciência de um grupo específico de pessoas, ou de expansão da consciência pessoal em tal medida que ela pareça abrangertoda a humanidade. De maneira semelhante, há indivíduos que relatam, por vezes, haver transcendido os limites de nossa experiência especificamente humana, identificando-se com a consciência de animais, de plantas, ou de objetos ou processos inorgânicos. É até mesmo possível vivenciar a consciência de toda a biosfera, do planeta como um todo, ou da totalidade do universo material.
Muitas experiências transpessoais envolvem uma aparente extensão da consciência para além do mundo fenomênico e do continuum do espaço-tempo como normalmente o percebemos. Nesta categoria, encontramos numerosas visões de temas e de personagens arquetípicos, de divindades e de demônios de várias culturas, de complexas seqüências mitológicas e de espíritos de pessoas mortas, de entidades sobre-humanas e de habitantes de outros universos.
Exemplos adicionais desta última categoria de fenômenos incluem visões de padrões arquetípicos abstratos, compreensão intuitiva de símbolos universais (cruz, cruz ansada, yin-yang, suástica, pentáculo, estrela de seis pontas), experiências envolvendo os meridianos e o fluxo da energia ch'i, tais como são descritas na filosofia e na medicina chinesas, e o despertar da "energia da serpente" (kundalini), bem como a ativação de diversos centros de energia psíquica, ou chakras, tais como os descreve a ioga tântrica. Em alguns casos, a consciência individual pode identificar-se com a consciência cósmica, ou Mente Universal, ou ainda — em suas mais remotas extensões — com o Vazio Supracósmico e Metacósmico, a misteriosa vacuidade, ou nada, primordial, consciente de si mesma e que contém toda a existência numa forma germinal e potencial.
Como as experiências transpessoais podem transmitir informações intuitivas e imediatas a respeito de qualquer aspecto do universo no presente, no passado e no futuro, elas parecem violar algumas das suposições mais fundamentais da ciência mecanicista, pressupondo que, de uma maneira ainda inexplicada, cada ser humano contém informações sobre todo o universo, possui, potencialmente falando, acesso vivencial a todas as partes do universo e, num certo sentido, é ele mesmo a totalidade da rede cósmica.

Experiências Fora-do-Corpo

De acordo com a visão de mundo ocidental mecanicista, uma vez que a consciência é um produto do corpo (isto é, do cérebro), é absurdo pensar que ela poderia desligar-se dele e existir independentemente. Não obstante, é precisamente isto o que parece ocorrer em muitos casos bem documentados das assim chamadas experiências fora-do-corpo (EFCs). Essas experiências podem se apresentar sob diversas formas e em diversos graus. EFCs podem ser episódios isolados, ou podem ocorrer repetidas vezes como parte de uma abertura psíquica ou de algum outro tipo de crise transpessoal.
Circunstâncias particularmente propícias à emergência de EFCs são as situações vitais críticas, as situações de quase-morte, as experiências de morte clínica, as sessões de psicoterapia experimental profunda e a ingestão de substâncias psicodélicas, particularmente o anestésico dissociativo cloridrato de cetamina (Ketalar). Descrições clássicas de EFCs podem ser encontradas na literatura espiritualista e em textos filosóficos de todas as épocas, em particular no Livro Tibetano dos Mortos e em outros textos semelhantes.
As pesquisas de Raymond. Moody,(3) de Kenneth Ring,(4) de Michael Sabom (5) e de Elisabeth Kübler-Ross,(6) assim como meus próprios estudos e o trabalho de muitos outros têm, reiteradamente, confirmado que pessoas consideradas clinicamente mortas podem vivenciar EFCs durante as quais testernunham com precisão os procedimentos feitos para ressuscitá-las a partir de uma posição nas proximidades do teto, ou então observam fatos que estão ocorrendo em lugares distantes. A moderna pesquisa tanatológica confirma, desse modo, as descrições contidas no Livro T1betano dos Mortos, segundo as quais depois da morte a pessoa assume um "corpo de bardo" que transcende as limitações de tempo e de espaço e que pode viajar livremente por todos os lugares da terra.
As pesquisas psicodélicas, a terapia holotrópica e outros tipos de psicoterapia experiencial fornecem, igualmente, observações que confirmam a possibilidade de autênticas EFCs no decorrer de estados visionários dos tipos relatados em diversas fontes místicas e na literatura antropológica. A autenticidade das EFCs foi demonstrada em experimentos clínicos controlados, realizados pelo reputado psicólogo e parapsicólogo Charles Tart, na Universidade da Califórnia, em Davis.(8)
Um exemplo notável e ilustrativo de experiência fora-do-corpo, incluindo a percepção detalhada e precisa de um lugar remoto, foi relatada por Kimberly Clark, uma assistente social em Seattle, que considerou tão extraordinárias e convincentes as circunstâncias envolvidas nesse caso que passou a desenvolver um interesse permanente pelas EFCs:

"Meu primeiro contato com uma pessoa que passara por uma experiência de quase-morte foi com uma paciente chamada Maria, uma operária emigrante que estava visitando amigos em Seattle e teve um grave ataque cardíaco. Foi levada à noite ao hospital pela equipe de atendimento de emergência e internada numa unidade cardiológica. Meu envolvimento no caso se deu em conseqüência de seus problemas sociais e financeiros. Alguns dias depois da internação, ela teve uma parada cardíaca. Como estava sendo rigorosamente monitorada e, sob outros aspectos, gozava de boa saúde, foi rapidamente trazida de volta à vida, ficou entubada durante algumas horas para ter garantida uma oxigenação adequada, sendo, em seguida, extubada.
"Mais tarde, naquele mesmo dia, fui visitá-la julgando que pudesse estar aflita pelo fato de seu coração ter parado. Estava realmente aflita, porém não por esse motivo. Seu estado de relativa agitação contrastava com sua calma habitual. Queria conversar comigo sobre alguma coisa. E contou: 'Aconteceu algo muito estranho quando os médicos e as enfermeiras estavam lidando comigo: eu estava olhando para baixo, lá do teto, e os via trabalhar sobre meu corpo.'
"A princípio, isso não me impressionou. Julguei que ela poderia saber o que estava se passando na sala, as roupas que as pessoas estavam usando, e os médicos e enfermeiras que estavam ali, pois tinha visto a todos eles antes da parada cardíaca. Naqueles instantes, ela já estava com toda a certeza familiarizada com o equipamento. E como a audição é o último sentido que desaparece, raciocinei que ela poderia ouvir tudo o que se passava, e, embora eu não pensasse que ela estava, conscientemente, inventando tudo aquilo, imaginei que poderia ter ocorrido algum tipo de confabulação.
"Então ela me contou que sua atenção fora atraída por alguma coisa que estava acontecendo na via de acesso à sala de pronto-socorro, e que, tão logo voltou para lá sua atenção, ela se viu lá fora, como se, ao 'pensar em si mesma' pairando sobre aquela via de acesso, no mesmo instante ela de fato lá estivesse. Nessa altura, eu fiquei um pouco mais impressionada, pois como ela chegara à noite, dentro de uma ambulância, não lhe seria possível saber que aspecto tinha a área onde ficava o pronto-socorro. Raciocinei, entretanto, que em algum momento sua maca poderia ter ficado junto à janela, e que ela poderia ter olhado para fora, e que isso teria se incorporado à confabulação.
"Mas então Maria passou a relatar que sua atenção havia sido novamente atraída, desta vez por um objeto colocado sobre a sacada do terceiro andar na extremidade norte do edifício. Ela 'imaginara a si mesma indo' até lá. Percebeu, então, que 'seus olhos fixavam um cordão de tênis' junto a um tênis. Pediu-me que tentasse encontrá-lo. Ela queria que alguém mais soubesse que aquele tênis estava realmente lá, para confirmar sua experiência fora-do-corpo.
"Tomada de emoções confusas, saí do prédio e olhei para cima, examinando as sacadas, mas de qualquer maneira não poderia ver grande coisa. Então, subi até o terceiro andar e comecei a entrar e sair dos quartos dos pacientes, e a olhar pelas suas janelas, que eram tão estreitas que eu tinha de colar o rosto na vidraça para conseguir ver a sacada. Finalmente, encontrei um quarto onde, ao comprimir o rosto contra a vidraça e olhar para baixo, vi o tênis!
"Meu ângulo de visão era muito diferente daquele sob o qual Maria devia estar olhando para conseguir perceber que o dedinho havia desgastado o lugar onde ficava em contato com o tênis, e que o laço fora dado por trás do calcanhar, assim como outros detalhes a respeito do lado do calçado que não estava visível para mim. Ela só conseguiria observar todos esses detalhes do tênis se estivesse flutuando do lado de fora do prédio e muito perto do tênis. Eu o peguei e o levei para Maria. Foi, para mim, uma evidência muito concreta."




Fenômenos Espiritas ou "Astrais"

Nesta categoria de àperiências, encontramos fenômenos que têm constituído o principal foco do interesse de participantes em sessões espíritas, de parapsicólogos que investigam possíveis casos de sobrevivência após a morte, e de escritores da literatura ocultista. Essas experiências envolvem encontros e comunicação telepática com pessoas mortas, geralmente parentes e amigos,contatos com entidades desencarnadas em geral e experiências de um campo a que a literatura ocultista se refere como sendo o domínio astral.
As experiências desse tipo apresentam, às vezes, certos aspectos extraordinários que não são facilmente explicáveis, como indicam os dois exemplos seguintes. O primeiro ocorreu durante o tratamento psicodélico de um jovem paciente homossexual deprimido, a quem chamarei de Richard. (9)
Numa de suas sessões com LSD, Richard passou por uma experiência extraordinária envolvendo um domínio astral de natureza estranha e fantástica. Havia uma luminescência misteriosa envolvendo-o, cheia de seres desencarnados que tentavam comunicar-se com ele de uma maneira muito premente e suplicante. Ele não podia vê-los nem ouvi-los: sentia, entretanto, sua presença de maneira quase tangível e estava recebendo mensagens telepáticas enviarias por eles. Escrevi uma dessas mensagens, que era muito específica e poderia ser submetida a uma verificação subseqüente.
Era uma solicitação para que Richard entrasse em contato com um casal numa cidade da Morávia, Kromeriz, na Checoslováquia, e lhes comunicasse que seu filho Ladislav passava bem e estava sendo bem cuidado. A mensagem incluía o nome do casal, seu endereço e número do telefone. Tanto eu como meu paciente ignorávamos por completo esses dados. Foi uma experiência extremamente embaraçosa; parecia um enclave de algo alheio à experiência de Richard, sem nenhuma relação com seus problemas nem com o restante de seu tratamento.
Depois de alguma hesitação e cheio de sentimentos confusos, acabei decidindo fazer o que certamente me transformaria em alvo das zombarias de meus colegas, se viessem a saber da história. Dirigi-me ao telefone, disquei o número em Kromeriz e pedi para falar com Ladislav. Atônito, ouvia mulher que me atendeu começar a chorar. Quando se acalmou, ela me disse com uma voz entrecortada: "Nosso filho não está mais conosco; ele morreu, nós o perdemos há três semanas."
O segundo exemplo envolve meu grande amigo e ex-colega Walter N. Pahnke, que fazia parte de nossa equipe de pesquisas psicodélicas no Maryland Psychiatrie Research Center (Centro de Pesquisas Psiquiátricas de Maryland), em Baltimore. Seu profundo interesse pela parapsicologia, sobretudo pela questão da vida depois da morte, o levou a trabalhar com muitos médiuns e sensitivos famosos, inclusive com sua amiga Eileen Garrett, presidente da American Parapsychological Association (Associação Norte-americana de Pa¬rapsicologia). Foi ele também quem iniciou uma programação de uso de LSD em casos de pacientes terminais de câncer.
Durante o verão de 1971, Walter foi passar férias com sua mulher, Eva, e os filhos numa cabana no Maine, situada junto ao mar. Certo dia, munido de equipamento adequado, foi mergulhar sozinho e não voltou. Uma busca extensa e bem-organizada não foi capaz de encontrar seu corpo ou uma parte qualquer de seu equipamento de mergulho. Nessas circunstâncias, Eva teve muita dificuldade para admitir e aceitar sua morte. Sua última lembrança de Walter o mostrava saindo da cabana cheio de energia e em perfeita saúde. Era-lhe difícil acreditar que ele não fazia mais parte de sua vida, como também o era iniciar um novo capítulo de sua existência com a sensação de não ter ainda encerrado o anterior.
Sendo também psicóloga, ela se preparou para uma sessão de treinamento com LSD para profissionais de saúde mental, proporcionado por um programa especial em nosso instituto. Resolveu submeter-se a uma experiência psicodélica com a esperança de obter uma compreensão mais profunda, e solicitou minha presença ao seu lado, como assistente. Durante a segunda metade da sessão, ela teve uma visão muito intensa de Walter, e manteve com ele um longo e significativo diálogo. Ele lhe deu instruções específicas com relação aos três filhos do casal, e liberou-a para que desse início a uma nova vida, sem nenhum constrangimento ou limitação decorrente de um sentimento de compromisso para com sua memória. Foi uma experiência muito profunda e libertadora.
Enquanto Eva estava perguntando a si mesma se o episódio todo não seria apenas uma criação surgida de um desejo de sua própria mente, Walter apareceu, de súbito, mais uma vez, fazendo o seguinte pedido: "Ah! sim, eu me esqueci de uma coisa. Quer me fazer o favor de devolver para um amigo um livro que ele me emprestou? Está em meu escritório, no sótão." Forneceu a seguir o nome do amigo, o título do livro, a prateleira e a ordem seqüencial do livro nessa prateleira. Obedecendo às instruções, Eva pôde de fato encontrar e devolver o livro, a respeito do qual não tinha nenhum conhecimento anterior.
Enquanto vivo, Walter fizera um acordo com Eilceri Garrett: depois que ela morresse, tentaria dar a ele uma prova inquestionável da existência do além. Desse modo, acrescentar, à sua interação post-mortem com Eva, um elemento comprobatório concreto e susceptível de ser testado de maneira a desfazer suas dúvidas é algo que, com certeza, estaria perfeitamente de acordo com a busca de uma prova científica para os fenômenos paranormais a que Walter consagrara sua vida.

Lembranças de Encarnações Passadas

Esta categoria de experiências transpessoais é provavelmente a mais fascinante e controvertida de todas. Lembranças ostensivas de encarnações passadas assemelham-se, em muitos aspectos, a experiências ancestrais, raciais e coletivas. No entanto, são em geral muito dramáticas e estão associadas a uma intensa carga emocional. Sua característica vivencial essencial é uma convincente sensação de se lembrar de algo que aconteceu tempos atrás. Os sujeitos submetidos a essas dramáticas experiências mantêm uma sensação de individualidade e de identidade pessoal; percebem-se, porém, sob uma outra forma, em outro lugar e em outra época, e num outro contexto.
Há duas categorias distintas de experiências ostensivas de vida passada, caracterizando-se cada uma delas pela qualidade das emoções envolvidas. A primeira categoria reflete conexões altamente positivas com outras pessoas — amizade profunda, amor apaixonado, companheirismo espiritual, tual, relação entre mestre e discípulo, laços sanguíneos, compromisso de vida e morte, extraordinária compreensão mútua, ou intercâmbio de apoio espiritual e emocional. A segunda categoria, a mais freqüente, envolve dramáticas emoções negativas. A experiências pertencentes a essa categoria projetam os indivíduos em diversa situações destrutivas de uma vida passada, caracterizadas por angustiante sofrimento físico, agressão assassina, terror inumano, angústia prolongada, amargura e ódio, ciúme insano, sede insaciável de vingança, lascívia incontrolável ou mórbida avidez.
Alguns aspectos específicos das experiências de vida passada são extremamente interessantes e merecem a séria atenção de pesquisadores da consciência e da psique humana. As pessoas que experimentam fenômenos cármicos adquirem com freqüência espantosos insights a respeito do tempo e da cultura envolvidos, e chegam ocasionalmente até mesmo a tomar conhecimento de acontecimentos históricos específicos. Em alguns casos, é absolutamente indiscutível que elas não poderiam ter adquirido essa informação de uma maneira convencional, através dos canais sensórios habituais. Neste sentido, as lembran¬ças de uma vida passada são experiências transpessoais que compartilham com outros fenômenos transpessoais a capacidade de proporcionar um acesso extra-sensorial imediato e direto a informações sobre o mundo.
Em casos pouco freqüentes, as experiências transpessoais que parecem dar apoio à realidade da reencarnação podem ser muito específicas. Uma pequena fração das lembranças transpessoais de uma vida passada envolvem informações destituídas de qualquer ambigüidade e referentes à personalidade e à vida do indivíduo com o qual o sujeito se sente carmicamente ligado. Essas informações podem consistir em nomes de pessoas e de lugares, datas, descrições de objetos com formas pouco usuais, e em muitos outros fatos. Ocasionalmente, a natureza desse material permite uma comprovação independente. Nesses casos, a investigação histórica proporciona, com freqüência, surpresas extraordinárias em termos da verificação dessas experiências até mesmo ne nível dos detalhes muito pequenos.
Ilustrarei, a seguir, alguns aspectos importantes das experiências de vida passada narrando um caso interessante. Karl, o protagonista desta história começou sua auto-exploração num grupo de terapia primal. Participou, mais tarde, durante um mês, de um de nossos seminários no Esalen Instituto [Instituto Esalen], em Big Sur, Califórnia, onde aplicávamos a técnica da respiração holotrópica.
Enquanto estava se submetendo à terapia primal, e revivia diversos aspectos do seu trauma de nascimento, Karl começou a vivenciar fragmentos de cenas dramáticas que pareciam estar ocorrendo num outro século e num país estrangeiro. Envolviam intensas emoções e sentimentos físicos, e davam a impressão de ter alguma conexão profunda e íntima com sua vida; nenhuma delas, no entanto, tinha o menor sentido em termos de sua biografia atual.
Tinha visões de túneis, de espaços subterrâneos de armazenamento, de barracas militares, de espessas muralhas e fortificações que pareciam fazer parte de uma fortaleza situada no alto de um rochedo e dominando a orla marítima. Entre essas imagens, intercalavam-se as de soldados em situações diversas.
Sentiu-se perplexo, pois os soldados pareciam espanhóis ao passo que o cenário lembrava a Escócia ou a Irlanda.
À medida que o processo visionário prosseguia, as cenas iam se tornando mais dramáticas e emaranhadas, representando muitas delas ferozes combates e sangrentas matanças. Embora cercado de soldados, Karl sentia-se como se fosse um sacerdote e, a certa altura, teve uma comovente visão que envolvia uma Bíblia e uma cruz. Foi então que ele viu um anel sinete em sua mão e reconheceu com nitidez as iniciais nele gravadas. Enquanto ia assim reconstituindo a sua história pedaço por pedaço, Karl ia também encontrando ligações cada vez mais significativas com sua vida presente. Estava descobrindo que muitas sensações emocionais e psicossomáticas, assim como problemas com que se defrontava nos relacionamentos interpessoais em sua vida cotidiana naquela época estavam claramente associados ao seu processo interior, que envolvia aquele misterioso acontecimento do passado.
O momento crítico surgiu de repente, quando Karl, num gesto impulsivo, decidiu passar um feriado na Irlanda. Quando voltou, mostrava pela primeira vez as fotografias que tirara na costa ocidental da Irlanda. Percebeu então que o lugar que atraíra sua atencão era a ruína de uma antiga fortaleza denominada Dunanoir, ou Forte de Oro [Fortaleza de Ouro].
Suspeitando que houvesse nisso uma conexão com suas experiências de terapia primal, Karl decidiu estudar a história de Dunanoir. Com enorme surpresa, descobriu que na época de Walter Raleigh a fortaleza fora tomada pelos espanhóis e depois sitiada pelos ingleses. Raleigh negociou com os espanhóis e prometeu que os deixaria sair livremente da fortaleza se abrissem o portão e se rendessem aos ingleses. Os espanhóis aceitaram essas condições, mas os ingleses não cumpriram sua promessa. Ao penetrarem na fortaleza, massacraram impiedosamente todos os espanhóis, e os atiraram do alto das muralhas para que morressem na praia.
A despeito dessa confirmação absolutamente espantosa da história que, laboriosamente, ele reconstruíra em sua exploração interior, Karl não estava satisfeito. Continuou a pesquisar em bibliotecas até descobrir um documento que se referia especialmente à batalha de Dunanoir. Nele, verificou que um padre havia acompanhado os soldados espanhóis e fora assassinado com eles. As iniciais do nome desse sacerdote eram idênticas às que Karl reconheceu quando teve a visão do anel sinete e reproduzido em um de seus desenhos.

As observações aqui examinadas, provenientes da terapia holotrópica, merecem uma investigação sistemática e cuidadosa com evidências que se relacionam coma questão da sobrevivência post-mortem da consciência. Embora não possam ser interpretadas como prova inequívoca da continuidade da consciência individual após a morte, dificilmente um cientista imparcial e bem-informado poderia descartar essa possibilidade fundamentando-se numa adesão metafísica a uma visão de mundo mecanicista. Embora a suposição da sobrevivência post-mortem não seja a única interpretação imaginável para os dados em questão, é certamente importante reexaminar criteriosamente esses dados, em benefício da objetividade, da honestidade e do progresso científicos.
Além do mais, esse empreendimento poderia ter importantes implicacões sociais e políticas. O status da consciência na visão de mundo científica e a questão de sua sobrevivência depois da morte física estão incluídos entre os temas mais cruciais que influenciam a hierarquia dos valores, padrões éticos, códigos morais e comportamento dos seres humanos. Tendo em vista a presente crise global e o iminente perigo de um suicídio coletivo, este fator não deveria ser subestimado.


(Extraído do livro: "Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte" - Organizado por Gary Doore, PhD. - Ed. Cultrix - S.Paulo.)

domingo, 21 de setembro de 2008

Sociologia do cotidiano de Patópolis


Tio Patinhas no centro do universo (*) (**)

Por: JOSÉ DE SOUZA MARTINS



"Bem, é que no nosso país", disse Alice, ainda um pouco ofegante, "o mais certo seria chegar a outro lugar — depois de correr tanto como nós fizemos".
"Um país muito lento", retorquiu a Rainha. "Não, aqui, como vês, é preciso correr o mais que se pode para ficar no mesmo lugar. Se quiseres ir para outro lugar tens de correr, pelo menos, duas vezes mais depressal
"

(Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho)



(...)



Neste trabalho registro uma leitura sociológica das histórias cujos personagens são os habitantes de Patópolis, figuras criadas pela empresa de Walt Disney. Procuro descrever as relações sociais que vinculam os vários personagens e, através do seu conteúdo, mostrar que elas hierarquizam os patopolitanos por meio de uma escala implícita de valores fundada na figura do capitalista clássico. Essa escala de valores é que se pretende educativa, por meio da definição do gosto do leitor, procurando incutir nele as noções morais de bom, ridículo, delinqüente e louco, entre outras. Tal leitura seria impossível sem a constatação preliminar de que cada personagem é, antes de tudo, mercadoria, que se vende e se compra. Daí resulta o imobilismo que explica os vários tipos e a posição passiva do leitor "educando". Torna-se possível, desse modo, a leitura sociológica das historietas, uma vez que a substância das relações sociais não está primeiro nos vínculos entre os personagens, mas sim na relação da empresa que produz e vende a história e o consumidor que a compra. A historieta sistematiza o universo simbólico que suporta e explica a relação entre produtor-vendedor e o comprador de história em quadrinhos, projetando-o, no entanto, para todas as outras relações, como se substantivamente fossem uma única relação e, em decorrência, os personagens se reduzissem a um.




***

Tio Patinhas, além das suas excentricidades de rico, tem parentes, amigos e inimigos. Cada um possuído por suas próprias características, só consegue definir-se, no entanto, contraponteando com ele. Patinhas é o único personagem que serve de referência na definição e constituição de todos os outros.
Donald, seu sobrinho, vem primeiro na lista dos circunstantes. Um dos herdeiros da fortuna de Patinhas, persegue dolorosamente a existência anômala de rico potencial, cuja vida oscila entre o desemprego e, os empregos que o Tio lhe oferece. Quando empregado pelo Tio vive, entre irado e apavorado, as humilhações que aquele o faz sofrer, desde o salário miserável até as artimanhas e engenhos utilizados para mantê-lo desperto e ativo conforme as expectativas do patrão. Sua humilhação é maior porque o delírio acumulativista de dinheiro do Tio transforma-o numa das peças de um sistema de produzir riquezas, cujo caráter espoliativo consegue perceber, mas ao qual se conforma para não ser deserdado. Excluído dos benefícios da riqueza que ajuda a crescer, com ela se compromete, como se por antecipação fosse sua. Vive o sonho de desfrutar a riqueza que na realidade lhe é vedado.
Seu drama é imenso. É pai sem, ter filhos. Huguinho, Zezinho e Luizinho, os três sobrinhos, representam para ele um encargo paterno e um pesadelo. Podem acompanhar, de modo adulto, toda a incompetência de Donald para o desempenho da maior parte das atividades a que o obrigam as circunstâncias, no emprego ou em casa. Sua determinação de vencer, a desesperada necessidade de ser capaz a que as expectativas inflexíveis de Patinhas o submetem, impedem-no de reconhecer-se incapacitado, bem como o impedem de aceitar sugestões e auxílios dos três sobrinhos. É na interferência dos três que se apóia a maior parte das vitórias de Donald. São eles que, depreciando-o ainda mais, de fato se realizam segundo as regras de Patinhas.
Embora os três correspondam melhor às esperanças de Patinhas do que Donald, eles não repetem o modo de ser, as táticas, as intenções, os recursos do tio senil. São de uma geração de tecnocratas, para os quais não é viável o projeto do enriquecimento pessoal pelo trabalho, pela sorte e pela astúcia. Por isso, agem coordenadamente. Nunca cada, um deles é senhor de um pensamento completo. No mais das vezes cada um se limita a emitir uma única palavra que se junta à palavra do outro e à do outro para que surja uma sentença e uma idéia. Estão articulados entre si como peças ajustadas de um mecanismo rigoroso. Eles têm o que falta a Donald — apenas os pedaços das idéias — enquanto Donald tem o que já é obsoleto — as idéias por inteiro. Isso seria paradoxal, em se tratando de idéias, se para eles o pensamento e a inspiração não fossem objetivamente determinados. Para toda nova situação não há uma idéia nova: há o "Manual do escoteiro% fonte inesgotável de informações que cobre todo o saber possível e do qual se pode receber qualquer resposta ou dado com rapidez, como se viesse de um computador. Para eles a situação é clara: não existem para repetir individualizadamente as mesmas palavras, os mesmos gestos e os mesmos atos que criaram o universo de Patinhas. Não nasceram para produzir o universo, mas para reproduzi-lo.
É aí que representam um pesadelo para Donald, pois este é compelido a repetir sozinho palavras, gestos e atos do criador — Patinhas — sem efeito algum. Seus ataques de ira são indicativos de uma incapacidade fundamental para entender porque à sua atividade é estéril. É que sua condição de herdeiro obscurece a sua condição de trabalhador. Não está entre os deserdados da terra. Não pode ver na riqueza o produto do trabalho, inclusive do seu trabalho, porque ela constitui a massa de bens que -espera receber e que é totalmente desproporcional à sua pequena participação na tarefa de produzi-la. Não pode ver-se na condição de explorado porque se vê na de beneficiário da exploração. Por isso, a sua indignação é sempre e justificadamente uma indignação pessoal, escoada para o nível da irritação descontrolada. Essa é a articulação adequada para transformar o pesadelo de Donald-trabalhador e Donald-desempregado em irritação cômica, em atividade comicamente desastrada. O drama do trabalhador é obscurecido pela comicidade do herdeiro.
Donald é também marido sem ter mulher. Sua namorada Margarida o submete ao regime duro do parceiro de cama e mesa, sem as vantagens do cargo, transformado no perene carregador de pacotes e fazedor de serviços. Margarida não lhe oferece as penas cálidas e macias para que recoste a cabeça atormentada. Ela também o submete ao duro regime da exploração doméstica. De Margarida não se ouve ou vê uma palavra ou atitude de amor, de afeto desinteressado. Para ela, pata venal, a relação entre os sexos é assexuada e utilitária. Nesse plano, ela estabelece com Donald uma relação que amplia a sua esterilidade: não se acasalam nem procriam. Margarida é a fêmea fútil à espera da doação e da rendição incondicional e material dos patos. Não trabalha. Afora o trato das três sobrinhas (Lalá, Lelé e Lili), resumido no adestramento que, por contraposição aos sobrinhos de Donald, as transformará em novas Margaridas, esgota o seu tempo, acompanhada da galinha Clara, nas festinhas da sociedade, vivendo vicariamente a condição de consumidora, não se sabe a partir de que. Para ela Donald é importante apenas enquanto é servil.


Para manter Donald subjugado aos seus caprichos, não hesita em aceitar a corte de outros patos, enciumando-o. O primo de Donald, Gastão, pato de vida fácil, de características mais próximas às de Margarida, sistematicamente empenhado em cortejá-la, pode satisfazê-la em seu afã de consumo, representando sempre um desafio a mais para que Donald se empenhe na luta para preservar ou ganhar aquilo que deseja e nunca alcança: dinheiro ou companhia feminina. Só Margarida não perde — com Donald ou Gastão ela é herdeira virtual de uma parcela da fortuna de Patinhas.
Mas, Gastão é dotado de um dom: ele tem sorte, que lhe é dada por um infalível pé-de-coelho, desde que o tenha sempre consigo. Para ele, tudo se resolve graças aos eflúvios desse talismã, suporte externo que legitima seu modo de ganhar a vida e até a futura herança de parte da riqueza de Patinhas. O talismã tem aí uma importância muito grande, pois Patinhas também tem o seu — a moedinha n.1. A presença desse componente mágico no universo de Patinhas constitui como que a fonte de um direito natural, o direito de enriquecer. Já que todos trabalham — Donald trabalha, Huguinho, Zezinho e Luizinho trabalham e vários outros membros do universo trabalham — é preciso explicar porque uns têm a riqueza e outros não a têm. Esse componente mágico institui uma diferenciação interna fundamental no universo de Patinhas: há os predestinados e escolhidos, cujos talentos se multiplicam (estou aqui trocadilhando com a palavra bíblica "talento", usando-a ao mesmo tempo no sentido de moeda e de dom) e há os demais que não são servos nem bons nem fiéis, de tal modo que misteriosa entidade sobrenatural neles não confia. A sorte representa, portanto, um chamamento mágico, apoiado em símbolos externos. Com isso, nem Gastão nem Patinhas parecem senhores de si mesmos, pois ambos estão subjugados pelos objetos mágicos que lhes garantem a sorte e a riqueza. Dessa maneira, a excepcional riqueza de Patinhas torna-se legítima em face, por exemplo, da modesta existência de Donald. O componente mágico instaura a ordem do universo, pois, do contrário, o Pato Donald subversivamente declararia guerra a seu Tio, dando estrutura e direção à sua irritação perene, efetivando, pois, a profecia de que no fim dos tempos filhos lutariam contra pais, irmãos contra irmãos.
Aparentemente, -a sorte de Gastão é destinada a contrabalançar as adversidades de Donald, através de um contraste que torna a este último mais uma vez cômico. Quase sempre, no entanto, a ajuda tecnocrática e secularizada dos sobrinhos de Donald, senhores de um "talismã" moderno, o já referido "Manual do escoteiro", mediante recursos que separam o pé-de-coelho de seu dono, atenua, desvia ou inverte a privilegiada sorte de Gastão. Esse personagem serve, a um só tempo, para reforçar os fundamentos mágicos da existência de Patinhas e a sua negação, que é o recurso tecnocrático ao "Manual". O "Manual" é a esperança dos desesperançados. Num mundo crescentemente secularizado, o reinado absoluto dos talismãs na distribuição dos bens produzidos pelo trabalho comum poderia fazer com que o Donald irascível se transformasse no Donald consciente, descobrindo que a mágica supremacia dos talismãs poderia ser questionada e até destruída. O "Manual" "democratiza" mais do que o acesso à riqueza, a convivência com a distribuição desigual da riqueza, pois restaura, no plano secular, o princípio ordenados da vida social que encontrara sua primeira eficácia na sorte justificada pelos talismãs.
O Pato Donald não cumpre sozinho as adversidades do universo de Patinhas. Seu primo Peninha acompanha-o, de modo diverso, na trajetória desfavorável. Enquanto Donald é essencialmente um cumpridor de ordens, um pato no trabalho ou em busca de trabalho, Peninha é um pato cheio de imaginação e iniciativa. Sua imensa submissão e boa vontade no atendimento das ordens do Tio leva-o à constante tentativa de inovar. Entretanto, cada iniciativa e cada inovação revelam-se sempre desastrosas. Ao contrário de Donald, não amarga a impossibilidade do cumprimento formal do que lhe é determinado. Não consegue entender por que suas intenções nunca se realizam, por que levam sempre a atos que produzem resultados opostos aos desejados. Peninha não consegue entender nunca o que faz, pois entre a intenção, o ato e o resultado intrometem-se outros componentes da situação que não estão sob seu controle, desvirtuando os seus objetivos. Por isso, não pode decifrar o sentido do que faz. Em termos mannheimianos, Peninha está mergulhado na racionalidade funcional de um universo instituído que "dispensa" os patos e os homens, absorvendo-os apenas no cumprimento do ritual dos papéis sociais rigidamente demarcados.
Peninha e Patinhas estão contrapostos, pois, no plano da criatividade. Enquanto o segundo é criador e criatura na gênese do universo, é senhor das ações e das conseqüências das ações, tem o domínio do que faz, com Peninha se dá o contrário. É que a criatividade de Patinhas se torna impessoal na medida em que ele se submete ao querer objetivo representado pela "moeda n.° 1. Nesse processo, submetido ao reinado das coisas, ele se torna agente e não sujeito da reprodução das coisas e do universo coisificado. Patinhas não é senhor do dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem —diz" ao dinheiro o que deve ser feito, mas é o dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a sua lei natural que é a reprodução crescente, incessante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois está irremediável e totalmente identificado com ele. Peninha inverte a imagem de Patinhas. Tomado de iniciativas é vitimado por elas constantemente. É que essas iniciativas não são canalizadas para o leito natural do que nesse universo é concebido como criação. Peninha quer criar soluções. Patinhas quer criar dinheiro. Peninha não sucumbiu ainda à desumanização que a posse impessoal do sujeito pela riqueza impõe. É que as possibilidades de criar de novo o mesmo universo já estão esgotadas. A fase da acumulação originária encerra-se com Patinhas.
Donald, Gastão e Peninha nascem num mundo constituído e integrado. Nenhum pato pode possuir mais a envergadura heróica do civilizador Patinhas porque no momento histórico por este vivido os dons podiam ser encontrados no mesmo pato. Já seus sobrinhos receberam fatias de um mundo especializado: o trabalho para Donald, a sorte para Gastão, a iniciativa para Peninha. A associação entre eles, porém, não reconstitui o pato heróico: já estão confrontados e em conflito, à espera da herança que virá com a morte do Tio sovina e obsoleto, com suas suíças e polainas à antiga. Os pedaços não podem ser juntados para começar de novo porque cada um deles ainda está tomado pelo mito do capitalista-herói e considera, pois, que o seu próprio dom é o dom essencial. Desse modo, as freqüentes associações entre Donald e Peninha resultam em fracasso, pois cada um tenta a seu modo assumir individualmente a totalidade do mundo. Os pedaços podem ser juntados apenas para reproduzir o já produzido, como fazem Zezinho, Huguinho e Luizinho. Não pode criar de novo quem não tem acesso à moeda n.° 1 e à sua "vontade" impessoal. Os sujeitos misturam-se aos objetos, sem distinção entre uns e outros. Os sujeitos estão sobrecarregados de exigências e significações que não decorrem deles mesmos, tornando-se, portanto, estranhos em relação a si próprios. A natureza humana é subvertida pela mediação dos objetos criados pela atividade humana.
Somente quando essa família volta à natureza é que pode encontrar a sua paz. É na fazenda da Vovó Donalda, no retorno ao mundo natural, que Patinhas aparentemente deixa de reinar. Vovó Donalda o substitui. Aí ela é a senhora do mundo. A natureza dadivosa atenua a exploração dos patos pelos patos. Gansolino, o empregado da fazenda, pode tranqüilamente tirar as suas sonecas nos montos de feno sem que por isso a vida animal e vegetal do estabelecimento rural sofra grandes conseqüências. Nem por isso Vovó Donalda deixará de fazer as suas tortas, sempre disponíveis para todos, inclusive para o próprio Gansolino. Por essas razões, as únicas reuniões familiares, em que todos confraternizam, são presididas por Vovó Donalda, apesar da completa anomalia na estrutura familiar: ela é avó sem ter tido filhos; Patinhas é tio sem, ter tido irmãos e o mesmo se dá com Donald; os três sobrinhos não conhecem pai e mãe. A trágica esterilidade biológica de todos os membros da família só é possível porque na verdade estão em diferentes graus destituídos de humanidade. Vovó Donalda simboliza apenas a recomposição artificiosa do mundo natural. Ainda aí, por trás das aparências, é Patinhas quem reina. A unidade familiar em face da natureza é apenas utopia que ocasionalmente se concretiza para logo mais ser desfeita em resultado de processos substantivos que separam ao invés de unir, que conflitam, ao invés de harmonizar.


É que a unidade do universo de Tio Patinhas não é garantida pela apropriação comum das condições de existência. Por isso, os parentes não formam uma comunidade, nem mesmo uma comunidade familiar e por isso não formam uma família. Os vínculos familiares mais constantemente presentes não são de parentesco por consangüinidade ou afinidade, mas são vínculos dominados pela linha de herança das riquezas. Entre um parente e outro interpõem-se os bens tidos ou esperados. Estão juntos porque a riqueza foi acumulada, foi juntada.
Em conseqüência, as relações sociais que produzem outros personagens do universo, não. parentes — amigos e inimigos — em nada diferem das relações aparentemente familiares.
Maga Patalójika, auxiliada por Madame Min, está obcecadamente voltada para a captura da moeda n.° 1. Deseja para si a fonte mágica da riqueza e supõe que a posse do talismã fará com que ela, que já dispõe de tantos e variados poderes, possa reproduzir em seu benefício a riqueza de Patinhas. Nesse plano, ela e Patinhas são iguais. Ambos acreditam na importância transcendental do talismã como produtor e reprodutor de riquezas. O talismã representa aí, para Patinhas e Maga, os riscos imponderáveis do capitalismo: a sorte de um é a desgraça do outro. Preservar a dimensão mágica da reprodução da riqueza não é apenas um elemento de coerência interna na ditadura dos quadrinhos, mas é também a tentativa de mostrar que o talismã, embora necessário, não é exclusivo. Maga tem poderes excepcionais, pode fazer e desfazer, mas pião pode criar e recriar o capital, pois os outros dois componentes presentes na consciência burguesa de Patinhas — a iniciativa e o trabalho — não podem ser substituídos por bruxaria. Com Maga reforça-se o princípio do direito natural à riqueza, ao talento. No fundo, Maga serve para situar nos limites da ordem o pretenso caráter mágico da acumulação (Ia riqueza. Não é o pato que escolhe o talismã, mas o talismã que escolhe o pato.
Enquanto Maga deseja apossar-se do que ela supõe ser a fonte da riqueza, os irmãos Metralha buscam apossar-se diretamente da riqueza já acumulada. No universo de Patinhas eles representam a conduta anômica dos que aceitam os fins do sistema, mas não os meios institucionais. para alcançá-los. Tanto quanto Patinhas, estão sedentos de riqueza. Mas repudiam os caminhos institucionais para obtê-la. Na verdade, as experiências de cada um dos outros membros do universo, parentes, amigos e inimigos de Patinhas, constituem a reiterada demonstração de que os Metralha têm razão.

Acontece, porém, que a mesma riqueza gerada para as mãos de Patinhas cria os outros componentes do mundo, inclusive os recursos de defesa dá apropriação privada da riqueza. A diferença entre Patinhas e os Metralha é que Patinhas chegou primeiro. A institucionalização dos canais de acesso à riqueza legitimou essa primazia, transformando em ilícitas todas as outras formas de apropriação dos bens. Daí que a vida livre dos Metralha seja sempre apenas curta temporada fora da cadeia. Estão sempre retornando à prisão. Basicamente são iguais a Patinhas, concordam quanto à acumulação da riqueza, discordando apenas quanto aos detalhes na forma de fazê-lo. Estão certos de que a melhor coisa do capitalismo é ser capitalista. O grau de organização dos Metralha para obtenção da riqueza chega a ser empresarial. Os ardis que são interpostos por Patinhas mostram que entre este e aqueles o que há é uma verdadeira competição, freqüentemente decidida através da polícia que responde pela observância da conduta institucionalizada, que, garantindo a igualdade jurídica, garante ao mesmo tempo a desigualdade econômica (Dahrendorf, 1966:29). Em suma, os amigos de Patinhas são amigos do capital. Os seus inimigos são inimigos das formas institucionais e dos mitos de sustentação do capital, embora na verdade sejam amigos do capitalismo.

As histórias se tornam atraentes e engraçadas na medida em que os seus vários cômicos, como Donald e Peninha, retiram a sua comicidade das discrepâncias que há entre suas condutas e o personagem-padrão: Patinhas. A trama das historinhas é una e sólida, amarrada pela valorização do capitalista-herói chamado Patinhas. Ora, Patinhas, sabemos, personifica o capital, assumindo a vida da coisa, vivificando o que é morto, o que é trabalho morto, social, acumulando em suas mãos particulares. Portanto, cada um é ridículo, delinqüente, ingênuo ou louco na medida em que a sua razão particular não é a razão pela qual o capital se institucionalizou socialmente.
É nesse tipo de contraste que o cientista também tem a sua parte na degradação moral que vincula cada um ao Tio Patinhas. O prof. Pardal, inventor desastrado, desespera-se na tentativa de solucionar com a sua inteligência, as suas pesquisas e a sua incansável dedicação à invenção e à descoberta os grandes e pequenos problemas de Patópolis. Seu desligamento do mundo é proverbial nos quadrinhos, em que o cientista é freqüentemente apresentado como louco, ingênuo, alienado, sonhador, perigoso enfim. Por isso, Pardal não pode ter no universo de Patinhas senão a tolerância que piedosamente a nossa hipocrisia burguesa dedica aos alienados mentais. Ele se preocupa 'com pequenas coisas (e nisso é quase infantil), como a invenção de um pula-pula que facilite o transporte das pessoas, ou de um combustível que torne mais rápido, os meios de transporte, ou de uma banheira voadora. Vive, enfim, na esperança de resolver aflitivos problemas do dia-a-dia dos patopolitanos ou na esperança de antecipar e solucionar os problemas que os patopolitanos provavelmente enfrentarão no futuro. Só que Pardal esquece freqüentemente de uma coisa muito importante no universo de Patinhas: é que aí não há lugar para a primazia da utilidade dos objetos. Cada objeto tem que ser, antes de mais nada, uma mercadoria. Por isso, as loucuras de Pardal só desaparecem quando são absorvidas pelo delírio acumulativista de Patinhas. Quando este faz uma encomenda ou solicita uma invenção que resolva um problema crucial para o capital, como unia defesa contra os Metralha ou um equipamento que o torne mais rico. O cientista só deixa de ser doido quando trabalha para o capital, quando perde de vista a perspectiva tola e infantil da condição humana dos patos para atender a demanda da reprodução do dinheiro pelo dinheiro. Aí ele se torna racional, porque a racionalidade é a dos objetos e a do enriquecimento que propiciam quando são comprados e vendidos.
Entre Pardal e Peninha há semelhanças e diferenças. As semelhanças dizem respeito à crença ineficaz na atividade criadora. As diferenças dizem respeito a que um se apóia no pensamento científico e o outro no senso comum para pôr em prática o impulso criador. Ambos são iguais, porém, quando ignoram que tudo 'Já está criado" se se leva em conta que a dinâmica do universo é regida pela riqueza acumulada que insaciavelmente precisa crescer.
De fato, o universo de Patinhas é educativo se tomamos a educação como veículo impositivo de valores. Diante dele as crianças e os adultos podem descobrir como são estúpidos, como são ridículos e alienados quando toleram que na sua personalidade se manifestem grotescos traços humanos. Patinhas constitui um chamado à razão: a razão que faz com que as coisas se relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que faz com que as relações entre os homens pareçam relações entre coisas, conforme já observou um sábio alemão.

REFERENCIAS

1. Dahrendorf; Ralf, 1966. Sociedad y líbertad. Editorial Tecnos S.A., Madrid.


2. Dorfman, Ariel e Mattelart, Armand, 1972. Para leer al Pato Donald — Comunicación de masa y. colônialismo, segunda edición, Siglo XXI Argentina Editores S.A., Buenos Aires.


3. Goldmann, Lucien, 1967. Dialética e cultura. Paz e Terra, trad. de Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinbo e Ciseh Vianna Konder, Rio de Janeiro.


4. Mannbeim, Karl, 1946. Libertad y planificación social. Fondo de Cultura Ecorromica, trad. Rubén Landa, México.


5. Merton, Robert K., 1964. Teoria y estnictura sociales, trad. de Florentino Torner, Fondo de Cultura Económica, México — Buenos Aires.


6. Martins, José de Souza, 1974. Conde Matarazzo, o empresário e a empresa — Estudo de sociologia do desenvolvimento, 2.a edição, 1.a reimpressão. HucitecEditora de Humanismo, Ciência e Tecnologia, São Paulo.


(*)Publicado originalmente em Ciência e Cultura, volume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzido no Caderno de Sábado (suplemento literário do Correio do Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.



(**)Com este artigo não tenho a descabida pretensão de parafrasear o surpreendente e ótimo estudo de Ariel Dorfman e Armand Mattelart (Dorfman e Mattelart, 1972) sobre o conjunto dos personagens das historietas industrializadas de Walt Disney. Apenas retomo uma análise que fiz em 1970, como recurso didático, em cursos de Sociologia para alunos de currículos diferentes do de Ciências Sociais. Recebi de diversas pessoas, especialmente ex-alunos, a sugestão para sistematizar e publicar as minhas formulações de então. Depois de resistir por algum tempo, arrisco-me a fazê-lo agora por várias razões, a principal das quais é a de que, fundando-se o trabalho na mesma perspectiva que orientou aqueles autores —decorrendo daí vários pontos de contato —. guarda, no entanto, uma identidade própria que sugere a exploração de outros aspectos do mesmo tema, como notará o leitor.







(Extraído do livro de José de Souza Martins, "Sobre o Modo Capitalista de Pensar" - 3 Ed. - Coleção Ciências Sociais - Ed. Hucitec - 1982)