sexta-feira, 27 de junho de 2008

Breve meditação automotiva





Do livro "Eveillez Votre Spiritualité"
de Lama Surya Das



Numerosos são aqueles que passam longas horas em seus carros. Assim, como isso faz parte de nosso cotidiano, podemos integra-lo ao nosso caminho espiritual. Todavia, por razoes evidentes, não será necessário fechar os olhos quando estamos dirigindo ou se estamos presos na complicação do trânsito. Não obstante, é possível usarmos técnicas meditativas e práticas espirituais para melhorar nossa condução, permanecendo calmos e concentrados, ainda que tenhamos a impressão de viver no caos.

No espaço exíguo de nosso automóvel, criemos uma atmosfera que nos seja pessoal. Lembremo-nos do enigma do mestre zen: "Como vemos Budha ao volante de nosso carro?" Elaboremos nossa própria meditação automotiva natural que corresponda melhor ao nosso estado mental de condutor. De minha parte, eis como procedo:

Começamos por três inspirações
Inale profundamente.
Inspirar, expirar.
Ser atento
Inspirar de novo, relaxar.
Relaxar um pouco mais,
Relaxar a tensão,
Tudo o que nos pressiona e oprime.

Nossas mãos estão crispadas ao volante?
Não estamos indo rápido demais?
Nosso rosto está tenso?
Nossas costas estão contraídas?
E o que dizer de nosso pescoço?
O estomago um pouco travado, talvez?
A respiração curta? O peito oprimido?
Respirar, relaxar, sorrir,
Então aproveitemos o passeio.
Recostemo-nos no assento.
Relaxemos,
Experimentemos plenamente a experiência presente

Aqui e agora,
Simplesmente estar sentado e conduzindo nossa viatura.

Seguimos nossa rota
Aquela que nos conduz para nós.
Estejamos presentes
Para nós, com facilidade
Próximo de tudo que nos é familiar.

É possível introduzirmos o sagrado em nossa vida adaptando esta meditação à todas atividades às quais nos entregamos regularmente.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

O vagar voluntário


(OU DESCOBRIR A MEDITAÇÃO NATURAL EM SUA PRÓPRIA VIDA)

Lama Surya Das


Extrato do livro: ÉVEILLEZ VOTRE SPIRITUALITÉ
As sabedorias orientais do cotidiano
[págs 370-373]
Tradução ao português: Karma Tenpa Dhargye




A mente natural ou inteligência primordial instrui-nos nos instantes em que somos sinceros conosco. De tais ocorrências aparecem instantes que chamaremos de "vagar consciente". Esses vagares dão-nos uma percepção de nosso estado idílico natural, estado que existe agora em nós, e não que deva ser insuflado do exterior.

Eis um exemplo de vagar consciente: a contemplação de um lago, do mar, de um rio, de uma floresta, de um jardim ou do oceano. Alguns se dirão surpresos se digo ter um pendor por uma aspiração natural e instintiva à paz, ao espaço, à solidão e à uma forma natural de suavidade contemplativa. Um matemático, amigo de meu irmão, aficionado por passar longas horas, à noite, na sua banheira compulsando folhas cobertas de equações, empilhadas sobre uma estante articulada. Indo ao correio, me acontece freqüentemente aperceber-me de uma mulher passeando um enorme cão. Um e outro parecem igualmente felizes. O vagar consciente não se parece em nada com uma fuga diante de suas responsabilidades ou de suas preocupações. Seria antes o inverso. O símbolo escolhido por Thich Nhat Hanh para sua ermida no sul da França é uma rede, a qual, melhor que qualquer outra coisa, ilustra a palavra "vagar".

Podemos vagar sós ou acompanhados. "Vamos fazer um passeio", dizemos a um amigo. Depois partimos, sem destino preciso. "Creio que há um concerto no parque. Proponho irmos escutar um pouco de música, a menos que prefiras um passeio de bicicleta". Vagar, é deixar-se levar pela corrente dos acontecimentos, é autorizar-se à vagabundagem espiritual, sentar-se numa espreguiçadeira e olhar o desfile das nuvens. O segredo inerente a uma tal prática caracteriza-se por um renunciar, um abandono à sua natureza confiante. Não é uma grande ocupação, pois que tudo irá bem.

Em que o vagar consciente é uma prática espiritual? Perguntariam vocês. Ela é o que favorece o contato com nossa natureza profunda, com o caractere inato de nossa existência. Permanecer um só minuto sem querer fazer o menor gesto, sem ter o menor pensamento, eis o que substitui a disciplina espiritual. Isso nos impregna da mente do momento, expressão espontânea de nossa unicidade. Estamos no lugar certo e no momento certo, sem que nada seja requerido de nossa pessoa.

Para um Ocidental, isso seria um grande salto para frente ao ver em uma tal espontaneidade um instante de espiritualidade, uma união com o sagrado. Sobre a veracidade de que essa mente natural seja a mente búdhica, o mestre Dzogchen Kongtrul Rinpoche declara: "Isso parece muito bom para ser verdadeiro, também recusamos acreditar. O fenômeno parece-nos tão familiar que nós o ignoramos, tão evidente que nem o notamos. Paradoxalmente, não podemos acessá-lo, porque somos aí como estrangeiros".

Esses mestres Dzogchen afirmam também que esse truísmo ilustra a maneira mais pessoal de nos reaproximar de nossa verdadeira natureza e da perfeição. Entretanto, convém para cada um descobrir por nós mesmos os vagares conscientes que nos sejam próprios. É a maneira natural de reencontrar nosso Budha interior.

Ao final de um retiro Dzogchen, em Santa Rosa, uma praticante trouxe um poema sobre a busca de seu modo de meditação natural. Achei que é um eloqüente reflexo da sabedoria inata, quanto à maneira de ser durante as meditações naturais.



eu Nunca não soube

Põe tua mochila às costas.

Alonga-te na relva verde

Puxa para ti a abóbada celeste.

Entrega-te ao repouso.

Tantos anos do dharma a prática,

As costas retas, aplicada, voltada para a iluminação

Hoje, nada além do flanco da colina.

Alonga-te na relva verde,

Deixa a terra te levar,

Pegadas de gamos, bosta de cavalo,

E o olho no interior do olho móvel e luminoso.

Eu nunca não soube.

Não me disseram nunca?

Lembro-me de meu mestre zen, na sala de entrevistas:

"Tenha fé em ti, disse-me. Seja somente você mesma".

Ele queria sem dúvida me dizer:

Põe tua mochila às costas,

Deita-te na relva verde,

Deixa o céu te levar.

Entrega-te ao repouso.

Respira o espaço do espaço no espaço.

Eu jamais conheci tão grande luminosidade.


Extraído de: http://www.nossacasa.net/SHUNYA/default.asp?menu=1167

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Mahamudra


Iluminação da Sabedoria Primordial

Comentário Oral do Venerável

Gyatrul Rinpoche

ao texto raiz de Sua Santidade Dudjom Rinpoche

from “Ancient Wisdom”

Nyingma Teachings on Dream Yoga,

Meditation and Transformation

by Ven. Gyatrul Rinpoche

Tradução por Alan Wallace e Sangye Khandro

Tradução para a língua portuguesa por Padma Samten





INTRODUÇÃO

O tema que estamos começando a discutir concerne a uma combinação de tópicos que é muito rara. Os tópicos são a união de mahamudra e mahasandhi quando aplicadas à prática conhecida como meditação shamatha ou quiescência. Estas instruções piedosas foram condensadas em um manual que foi escrito por S.S. Dudjom Rinpoche, um dos maiores eruditos budistas de todos os tempos. Devido a sua grande erudição, ele teve a habilidade única de condensar este tipo de material em instruções práticas, abrangentes e curtas, que são tão diretas quanto profundas. Parece apropriado oferecer este ensinamento a vocês, neste momento, e, por favor, compreendam de que se trata de algo muito precioso e raro.
Apesar deste tema ser a essência do pináculo do caminho budista, é importante entender que precisa ser precedido por uma base. Você não pode esperar atingir algo tão profundo se não tiver uma base ou uma fundação. É necessário que haja um caminho de entrada antes de você poder penetrar em uma construção; antes de chegar ao ponto mais elevado você terá que pisar sobre os degraus precedentes.

A FUNDAÇÃO

Um dos pontos principais de contemplação ao estabelecer a fundação é a consideração da nossa condição enquanto seres sensoriais existindo em uma roda de nascimento e morte. Este estado de existência cíclica que vocês estão enquanto seres humanos é apenas uma das seis classes de existência. Apesar de serem incapazes de perceber os reinos mais elevados dos deuses, vocês podem ver o reino dos animais como uma parte integrante de nosso próprio reino humano. Vocês podem ver claramente como os animais passam por sofrimentos devido à suas várias limitações e ao tratamento que lhe é imposto pelos seres humanos. Os seres humanos em conjunto têm que suportar os quatro grandes rios de nascimento, doença, envelhecimento e morte. Talvez seja mesmo difícil acreditar em outros âmbitos de existência. Enquanto budistas, devemos confiar nas palavras do Iluminado, o próprio Senhor Buda, que, tendo por base seu próprio despertar, proferiu seu primeiro discurso sobre o tema das quatro nobres verdades baseado em sua própria experiência e sabedoria onisciente. Uma vez que a condição da existência cíclica é por natureza a do sofrimento, em qualquer dos seis reinos em que vocês nasçam, inevitavelmente experimentarão sofrimento em lugar de felicidade.
Os diferentes estados de renascimento e circunstâncias que os seres nas seis classes experimentam são totalmente dependentes das acumulações cármicas, a lei infalível de causa e efeito. As ações do passado produzem como resultado a definição do futuro local de renascimento e as circunstâncias associadas a ele. Falando de modo geral, a causa do renascimento nos dois reinos dos deuses é a acumulação de carma negativo motivado por orgulho, arrogância, inveja, ou agressão. Por causa disso, circunstâncias do renascimento são a guerra constante, competitividade e, no caso dos deuses de longa vida, uma vida cheia de felicidades e prazeres até que o carma seja exaurido. Sete dias antes dos deuses passarem deste âmbito, eles percebem seu futuro local de renascimento, nos reinos inferiores. Neste momento eles já não têm mais poder para reverter seu carma porque o seu tempo como deuses terminou e um novo mérito não foi acumulado. À medida em que tudo a sua volta começa a murchar e morrer, eles sofrem tremendamente porque consumiram todo seu bom carma ao ponto de não terem o suficiente para tal tipo de renascimento novamente. Como seres humanos, vocês sofrem no momento do nascimento, quando estão doentes, quando envelhecem e, é claro, no momento da morte. Os animais sofrem agressões e maus tratos e das necessidades para sua sobrevivência. Os espíritos famintos sofrem intensa sede e fome, os seres dos infernos de intenso calor e frio.
Entre os seres dessas seis classes de renascimento, aqueles no âmbito humano experenciam a menor quantidade de sofrimento. Entretanto, os seres humanos, para realmente serem capazes de praticar o Darma, precisam nascer com liberdades e dotes. Apenas possuir um corpo humano não é suficiente - você precisa de um nascimento humano precioso. Você precisa ter os dotes e liberdades, tais como os seus sentidos intactos e o nascimento em um país onde você possa ouvir o Darma, onde possa realmente praticar, onde possa encontrar com professores espirituais compassivos, e assim por diante. É essencial que você tenha estas liberdades; de outra forma não surgirá a oportunidade para atingir a liberação da existência cíclica.
Com essas liberdades e dotes, vocês estão em uma posição de atingir a liberdade ou a felicidade permanente e derradeira neste mesmo corpo, nesta mesma vida. Por outro lado, se você usar de forma incorreta tal oportunidade, por meio deste mesmo corpo você pode acumular carma que produza o resultado do renascimento inferior.
Como é então que vocês devem seguir o caminho para a liberdade final? Deve ser feito de acordo com o exemplo que o Buda Sakiamuni deu a vocês. Reconhecendo sua preciosa oportunidade, este renascimento humano precioso tão difícil de obter, vocês então seguem o caminho como a primeira prioridade em suas vidas e atingem o resultado que desejam realizar. Desta forma vocês se tornam como os grandes bodisatvas ou mestres realizados, sejam homens ou mulheres, a quem vocês admiram. De fato, eles não são diferentes de você. A oportunidade que vocês têm neste exato momento é a mesma oportunidade que eles tiveram. A diferença é que eles praticaram o pleno potencial de sua oportunidade até atingirem a meta final. Vocês não devem se ver como diferentes dos maiores mestres ou bodisatvas do passado. Não há de fato qualquer diferença. Eles foram seres humanos com um renascimento precioso exatamente como vocês. Contemplar o sofrimento da existência cíclica e o renascimento humano precioso que é tão difícil de obter inspira a vocês para usufruírem esta rara e preciosa oportunidade, ainda que seja a contemplação da impermanência que verdadeiramente os motive para começar imediatamente a praticar.
Uma vez que vocês não podem garantir quão longa será sua vida, vocês não têm ideia de por quanto tempo este nascimento humano precioso será seu. Devido ao fato de que seus nascimentos na existência cíclica resultam de sua acumulação cármica, vocês começam a compreender que realizando este potencial, devem utilizá-lo imediatamente. Vocês também começam a compreender que é extremamente difícil sair de samsara sem alguém que os guie. Até este momento vocês não tiveram sucesso em atingir a liberação sem um guia. É muito importante que encontrem um professor espiritual que seja qualificado e tenha o desejo de ajudá-los a atingir a liberdade.
De acordo com o budismo, o melhor guia espiritual é o Buda como o professor, o Darma como o caminho, e a Sanga como os melhores companheiros espirituais para ajudá-los a percorrer o caminho. Todas as escolas de budismo tomam refúgio na Três Jóias como as fontes externas de refúgio. À medida em que vocês vão mais profundamente no caminho, o refúgio se torna mais interno. De acordo com as escolas Hinaiana e Mahaiana, o refúgio é sempre tomado no Buda, Darma e Sanga. Quando você entra no Vajraiana, ou mantra secreto, ainda que o refúgio seja tomado no Buda, Darma e Sanga, de acordo com o nível de entendimento da prática, o refúgio é também tomado no Lama (professor espiritual), no Yidam (deidade de meditação) e na Dakini (princípio feminino de consciência iluminada).
À medida em que a compreensão desse refúgio interno se aprofunda (de acordo com a prática de Maha Yoga), o refúgio é então tomado em nossos canais, energias vitais e fluídos essenciais (de acordo com o tantra mãe Anu Yoga). Na medida em que este processo se aprofunda e se torna mais interno (de acordo com o Ati Yoga ou o veículo da Grande Perfeição), o refúgio é tomado diretamente em sua essência da mente, que é vazia; em sua natureza que é radiantemente luminosa; e em sua qualidade, que é compassiva sem qualquer obstrução.
Porque estes diferentes aspectos de tomar refúgio são necessários? Porque trata-se de um desenvolvimento que se dá naturalmente. Na medida em que a visão de nossa própria natureza como um buda se aprofunda, nossas qualidades mais internas surgem espontaneamente, como uma criança que cresce. Quando você entra no caminho espiritual, no início seu foco é mais externo. Isto é natural porque enquanto iniciantes vocês devem se relacionar desta forma. Gradualmente, quando começam a aprofundar, o foco torna-se mais interno e menos ênfase é colocada nos objetos que existem fora de nós. Inicialmente, os objetos são nossos guias e então, lentamente, lentamente vocês começam a ver que, de fato, é nossa natureza verdadeira o nosso guia. No início você deseja emular seus guias, mas eventualmente você reconhece que, de fato, é sua própria natureza. Passo a passo seu foco move-se do externo ao interno à medida em que passa a entender que as Três Jóias são os canais, energias e fluídos, e, similarmente, os canais, energias e fluídos são a manifestação da essência, natureza e qualidades da mente.
Muitas vezes a religião budista é vista como um caminho de adoração de ídolos por causa do estilo forte da expressão externa das fontes de refúgio. Tal devoção é necessária enquanto houver a consciência dual. Devido ao nosso hábito de dualidade e apego, é necessário cultuar ou venerar nossos objetos de refúgio como externos a nós mesmos. Particularmente, nas escolas budistas inferiores, é essencial. Por exemplo, enquanto um feto, durante nove meses no ventre, você está totalmente dependente de sua mãe e após nascer está ainda dependente de sua mãe. Quando cresce e começa a amadurecer, você torna-se dependente de seus professores e, eventualmente, de você mesmo. O que você está fazendo é desenvolver estas qualidades dentro de você mesmo. Você não pode esperar que sua mãe ou seu professor cuidem de tudo por você pelo resto de sua vida.
No caminho espiritual - o que se trilha internamente - apesar de parecer inicialmente que há um foco externo, eventualmente você reconhece que todas as qualidades devem surgir e ser desenvolvidas de dentro. Devido à bondade de seus pais e à bondade de seus professores, você é capaz de compreender seu próprio potencial. Quando isto se aplica ao objetivo de liberação ou iluminação, vocês devem reconhecer que a iluminação já é sua própria natureza. É a verdadeira essência de sua própria natureza, como o sol. Similarmente, a experiência da existência cíclica ocorre devido à sua própria percepção confusa e aflições mentais. A mente que atingirá a iluminação é a mesma mente que criou este estado de confusão. Todas as imagens dos budas, tankas de deidades de meditação, todas as mandalas, estátuas, e assim por diante são usadas como suporte através do qual a verdadeira natureza da mente pode ser atingida.
Por exemplo, se você deseja cultivar um jardim de flores ou mesmo uma única flor, você precisa ter água, solo apropriado e fertilizante. Entretanto não é a água e o fertilizante que produzem a flor; é a semente, a essência, que tem o potencial de tornar-se uma flor. Da mesma forma, sua própria mente - a natureza de sua mente - tem o potencial tanto de criar samsara, como fez, ou de estabelecer a liberação, a liberdade total de toda dor e sofrimento. Entretanto, ela precisa apoio. Da mesma forma que uma flor precisa água e fertilizante, a mente necessita o apoio de um professor espiritual e prática no caminho para manter-se em contato e vivenciar sua natureza verdadeira.
Uma vez que a compreensão da liberação tenha sido estabelecida, há dois métodos de aproximar-se dela. Vocês podem aproximar-se de acordo com o caminho Hinaiana, através do qual você deseja atingir a liberdade apenas para você mesmo, ou de acordo com o caminho Mahaiana, no qual você deseja atingir a liberação para propiciar a liberação de todos os outros seres. Este último é, de fato, a melhor abordagem, porque inclui todos os seres vivos. Até este momento seu foco tem estado a desejar atingir apenas os seus próprios fins, sempre fazendo coisas com a motivação de auto-interesse. Devido a isso, vocês estão ainda em samsara, ainda sujeitos ao sofrimento, ainda cheios de descontentamentos. Isto surge devido à preocupação apenas com vocês mesmos. Os budas e bodisatvas abandonaram o conceito de um eu e substituíram o auto-interesse pelo interesse pelos outros; eles sempre focam o que podem fazer pelos outros. Sempre pensam, “o que posso eu fazer pelos outros? O que posso fazer para servi-los?” Tendo isto por força motivadora, a liberação da ligação ao sofrimento é facilmente atingida. Este é um ponto muito importante a considerar. Enquanto vocês discriminam e apegam-se a si mesmos, vocês mantém-se em samsara; mas se puderem reverter este foco e acalentar o trabalho para o benefício dos outros, este é o caminho pelo qual a liberação é atingida.
Desenvolver o desejo de liberar ou iluminar todos os seres vivos é o estágio inicial do desenvolvimento de bodicita, o despertar da mente. Com tal desejo, você necessita desenvolver as qualidades incomensuráveis de imparcialidade, amor, compaixão, e alegria e simpatia por todos os seres e suas ações. Uma vez que estes quatro incomensuráveis foram desenvolvidos, você está pronto para praticar bodicita, engajando-se nas seis perfeições.
Esta foi uma breve abordagem do significado e importância das contemplações preliminares, bem como dos aspectos básicos de tomar refúgio e da geração de bodicita. Estas práticas são pré-requisitos essenciais para a prática de quiescência que é o tema principal de nossa abordagem.

QUIESCÊNCIA OU TRANQÜILIDADE

Qual é o benefício de repousar pacificamente, permitindo que a mente permaneça estável, em um estado natural de imobilidade? Até que você seja capaz de desenvolver a quiescência, não será capaz de controlar ou suprimir os impulsos mentais confusos. Eles continuarão a surgir e controlar a mente. A única forma de lidar com eles e por um fim nisso é atingir a quiescência. Uma vez que seja atingida, todas as outras qualidades espirituais surgirão desta base, tais como conhecimento transcendental, clarividência, a habilidade de ver a mente dos outros, recordar o passado, e assim por diante. Estas são qualidades mundanas que surgem no caminho mas são desenvolvidas apenas após a mente ser capaz de repousar pacificamente. Qualidades tais como consciência aguçada e clarividência precisam ser desenvolvidas, porque é através delas que alguém se torna capaz de compreender e vivenciar a natureza fundamental da mente. Como é dito no Bhodhicaryavatara, um dos mais importantes textos mahaiana, “tendo desenvolvido entusiasmo desta forma, eu concentro a minha mente; pois aquele cuja mente é desatenta, está sujeito às aflições mentais”.
Um indivíduo que seja capaz de praticar quiescência não mais será dominado pelo apego às atividades ordinárias ou contato com pessoas mundanas. A mente automaticamente afasta-se do apego e atração à existência cíclica, porque a quiescência é a experiência de contentamento mental e êxtase que é muito mais sublime do que as atrações ordinárias que surgem da percepção confusa. Quando a mente está em paz, pode ser dirigida para concentrar-se por períodos indefinidos de tempo. A quiescência destroi a delusão porque as aflições mentais não surgem quando alguém esteja vivenciando a equanimidade da concentração unifocada.
As pessoas que atingiram a quiescência naturalmente experimentam compaixão na medida em que se dão conta das condições a que as outras pessoas estão submetidas. A compaixão pura surge quando elas começam a perceber claramente a natureza da vacuidade em todos os aspectos da realidade. Estas são apenas algumas das qualidades ensinadas pelo Buda que resultam diretamente da vivência da quiescência.
A quiescência é a preparação e base da prática principal que é o cultivo da sabedoria primordial da intuição. Estas duas formas de meditação são complementares. O sucesso que uma tem em desenvolver a intuição está em dependência do sucesso que se tenha em desenvolver a quiescência. Se vocês forem capazes de desenvolver a quiescência somente até certo grau, então sua experiência de intuição será limitada. Entretanto, se vocês tiverem um sucesso completo em desenvolver a quiescência, então também serão capazes de desenvolver de forma perfeita a intuição. Isso ocorrendo, é o mesmo que dizer que a iluminação completa será atingida.
Agora, para atingir a quiescência, inicialmente você deveria tentar praticar em um lugar que seja isolado, quieto e confortável. É importante sentir-se confortável e contente no lugar que você escolher para meditar. Após conseguir uma almofada confortável, assuma uma postura bem reta. A postura de sete pontos do Buda Vairocana é ideal. Assegure-se de que a espinha esteja ereta. Se está sentando em uma posição de pernas cruzadas, então a melhor posição é a de lótus completa. Se for incapaz de sentar em lótus completo, então sente em uma posição de pernas cruzadas e eleve seu assento um pouco de tal forma que sua coluna fique ereta. Outra possibilidade é sentar em uma cadeira com a coluna ereta. Mantendo sua coluna reta, incline um pouco a sua cabeça e faça com que sua mirada se dê por cima da ponta de seu nariz. Faça com que a ponta de sua língua toque levemente o céu da boca, de forma natural de tal forma que a boca nem fique fechada nem muito aberta. Os braços e mãos devem cair pelo lado do corpo. Se estiver sentando com as pernas cruzadas, as mãos podem ser colocadas a direita sobre a esquerda em seu colo. Se estiver sobre uma cadeira, deixe-as pender naturalmente.
A posição do corpo ao sentar é muito importante, do mesmo modo a posição da fala. Faça que a fala seja o silêncio - sem falar, nem fazer ruídos, apenas a respiração natural. Nada há a fazer que permanecer calmo e natural.
A posição da mente é evitar buscar eventos do passado, antecipar eventos futuros, e controlar ou compelir o momento presente. Apenas permita-se repousar em um estado natural e descomprimido. O que quer que surja deixa-se aparecer sem quaisquer alterações ou ajustes.

Métodos de prática –

“Permitir que sua mente repouse sobre o estado natural” é mais fácil dito do que feito. A razão principal para isso é porque, desde incontáveis vidas passadas até agora vocês desenvolveram instintos habituais, impressões mentais que tornam suas mentes caóticas e cheias de incontáveis variedades de proliferações conceituais. Para atingir a paz, vocês precisam empregar técnicas. Isto não significa que vocês devam tentar controlar pensamentos por relembrar, antecipar ou alterar a experiência. Mas, em lugar disso, no início vocês deveriam tentar colocar a mente sobre um objeto, de tal forma que a mente ganhe foco e se acalme. O uso de objetos sobre os quais se coloca a mente corresponde aos três kaias. O primeiro passo é o método nirmanakaia e é acompanhado pelo uso de uma imagem do Buda Sakiamuni manifestando-se como o buda nirmanakaia (corporificação de uma manifestação intencional). Uma imagem do Buda Sakiamuni é colocada em frente, de tal forma que sua visão caia naturalmente sobre ela.
O segundo passo é o método sambogakaia, praticado pelo uso de uma imagem de Vajrasatva manifestando-se como o buda sambogakaia (corporificação da completa felicidade). O terceiro passo, o método darmakaia, é atingido visualizando uma imagem de Vajradhara no centro do coração. Uma vez que a quiescência seja atingida nesses três estágios, você está pronto para começar a prática de quiescência sem qualquer elaboração.
Se você não possui qualquer dessas imagens do Buda, a prática ainda assim pode ser feita. Você pode usar uma pedra, um pedaço de pau, uma flor, ou algo natural que seja encontrado no ambiente e não tenha custo. Simplesmente pratique com o objeto colocado diretamente a sua frente, como faria com as imagens. Idealmente o objeto deveria ter em torno de quatro dedos de altura. A mente deve manter-se unifocada sobre ele sem qualquer distração. Uma vez fitando sem distração a estátua ou o objeto, observe o que sua mente faz enquanto você tenta foca-lo. Não deve haver qualquer tentativa de gerar uma visualização como você faria em uma prática do estágio de geração. Você simplesmente olha a imagem com uma concentração unifocada, nada mais.
Quando você pratica por períodos maiores de tempo, pode vir a sentir sonolência e perda de interesse na mente. Quando isso começa a acontecer - e isso é uma reação comum - você deve endireitar seu corpo, rreajustar sua posição, e mover seu olhar para a parte mais alta da imagem que esteja focando. Se, em lugar disso, você perceber que a mente começa ficar mais caótica, com uma abundância de pensamentos, então deveria baixar o olhar para o centro nervoso do umbigo do Buda, ou ao assento, ou à parte inferior do objeto, tentando relaxar. Se a mente se torna caótica, é porque há esforço em demasia. Se não há reações extremas e as coisas vão indo bem, então mantenha sua visão no centro nervoso do coração da imagem.
Este estágio da prática pode ser mantido por um tempo tão longo quanto necessário para que você se torne capaz de manter a concentração por períodos longos sem a distração de pensamentos perturbadores.
Quando estiver cansado de usar objetos ou imagens, então não pense em nada; apenas mantenha-se na natureza da mente, sem qualquer foco ou pensamento de passado, esperança com relação ao futuro ou tensão com o presente. Apenas mantenha-se no estado natural da mente como ele mesmo é. Se for capaz de manter a quiescência quando não há elaboração ou foco, isto é bom. O método ensinado no texto raiz é usar uma sílaba semente. Aqui a sílaba HUM é visualizada no centro do coração e tem o tamanho aproximado da unha do dedo polegar, e é de cor vermelha. Quando você se torna consciente do HUM, não deveria apropriar-se mentalmente dela, especialmente no ponto em que observa seu tamanho, cor e outros detalhes de suas características. Em lugar disso, você deveria simplesmente reconhecer a presença do HUM, deixando-o lá.
Ao final, se você perceber que está um pouco distraído e que necessita de outra técnica, novamente pode focar um objeto no espaço em frente. Permita que seu olhar e sua mente fundam-se com o objeto, seja ele uma pedra, um pedaço de pau, ou uma flor. Seus olhos não devem ficar mudando de um lado para outro - de fato, suas pálpebras nem devem mover-se.
Seja o que for que esteja focando, sua mente deve estar lá, não apenas a percepção visual. Com sua mente você deve reconhecê-lo, e não devem ocorrer outras distrações. Após praticar desta forma mesmo que por um período curto, no início você se distrairá; cansará. Começará a agitar-se, terá sono e perderá o foco. Ambas são distrações. O que fazer? Você deve gritar “Pêh” para cortar as distrações e colocar sua mente e visão de volta ao trilho correto. Você pode endireitar seu corpo novamente e elevar seu olhar. Se tiver muitos pensamentos de distração, pode tomar tais pensamentos de distração e justamente usá-los como objeto de meditação. Neste ponto na prática, você pode de fato tomar o pensamento que você estava contendo e força-lo dentro do objeto que esteja focando no espaço em frente a você, para trazer sua atenção de volta ao objeto.
Da mesma forma que você pode ser distraído por diferentes pensamentos, você pode também ser distraído por outras experiências sensoriais, como o som. Quando ouve um som, se é agradável a você, em lugar de acompanhá-lo devido a sua atração, reconheça que sua natureza é vazia e faça-o dissolver-se na natureza do vazio, mantendo sua meditação. Se é desagradável, não há diferença do agradável. Sua mente pode também ser distraída por um cheiro, por um toque ou por uma sensação. Tão pronto puder, perceba que você se distraiu por esta experiência sensorial. Perceba que esta experiência tem a natureza da vacuidade. Dissolva-a em sua origem de vacuidade e retorne a sua meditação.
Quando for capaz de lidar com algumas destas distrações mais concretas, lentamente, lentamente através de sua prática, você começará a se tornar consciente de pensamentos discursivos que nunca tinha percebido antes. As distrações óbvias terão já aparecido, desde o início; mas então aqueles pensamentos que você nunca havia se dado conta, que você não lembra de jamais ter visto emergir, novas memórias e eventos anteriormente nunca recordados emergirão. De fato, você pode sentir que esteja perdendo sua mente.
Um aspecto importante para lembrar é que estes novos pensamentos discursivos não são novos. São muito velhos. Sua mente é como água turva que estava agitada, de tal forma que o barro e a areia que não se depositam no fundo, afloram à superfície. Quando a mente começa a acalmar-se, como o barro que naturalmente deposita-se sobre o fundo, você se torna capaz de observar o que nunca viu antes. De fato, estas características de sua delusão sempre estiveram lá e devem também ser trabalhadas.
Quando estes pensamentos surgem, não importa se eles pareçam bons ou maus. A este nível de prática não existe diferença entre bons e maus pensamentos. Pensamentos são pensamentos. O que você precisa fazer é reconhecê-los como formações mentais que estão surgindo, e tão pronto você possa identificá-los com indiferença, eles se dissolverão. Após praticar assim algum tempo, certamente começará a experimentar felicidade física e mental ao ponto onde não vai querer mais sair da sua almofada. A meditação será muito mais confortável do que quer que venha a fazer no resto do tempo. Você terá o desejo de ficar praticando indefinidamente.
Neste ponto, há duas experiências que surgem durante a quiescência. A primeira, a de felicidade física e mental junto com o desejo de não mais interromper a meditação. Esta experiência é ainda impura. Aqui, em sua meditação, você pode não mais experenciar os campos sensoriais de forma, som, visão, sabor, e tato. É algo como entrar em um sono profundo. Você realmente não sabe o que se passa ao redor, não ouve, não vê, não sente, não percebe cheiros ou sabores, etc. Quando volta da meditação, é similar ao despertar de um sono muito profundo. Você não sabe o que aconteceu ou como passou o tempo. Esta é a experiência de quiescência impura, porque você é incapaz de relembrar o que acontece durante a experiência. É quase como se a mente entrasse em um estado de ausência. Isto nem é liberação nem o resultado derradeiro. É, no entanto, um estágio na experiência. Porque? Porque é um sinal de que você começou a atingir a quiescência e que a mente é capaz de manter-se imóvel por um certo tempo sem a perturbação das aflições mentais. Se você apegar-se a isso como a experiência final, terá renascimento novamente na existência cíclica. Sem apego você deve ir adiante em sua prática, há muito mais por vir.

Quiescência Pura –

A quiescência pura é o próximo passo na experiência de permanecer em um estado de concentração unifocada por um tempo indefinido. Há aqui uma tremenda claridade. Ainda que a mente esteja imóvel, é lúcida e clara. Há uma lembrança completa da experiência de toda a meditação e do período pós-meditativo.
Durante o estágio inicial da quiescência impura, os oito estados cognitivos estão obstruídos durante a meditação. À medida em que avançamos em direção à experiência de quiescência pura, a claridade se torna desobstruída uma vez que as experiências sensoriais funcionam normalmente ainda que a mente nunca flutue da absorção unifocada.
Durante a meditação há a liberdade de permanecer na experiência de concentração unifocada o tempo todo e em qualquer circunstância. A conclusão da meditação formal não constituiria na finalização da quiescência porque o poder do estado de lucidez permearia a experiência pós-meditativa das atividades diárias.
Quanto tempo leva para chegar-se à pura quiescência? Este tipo de experiência vem como resultado de um tremendo esforço na prática. Não é um resultado que venha facilmente ou rapidamente.
Outros benefícios desta realização incluem relaxamento físico e mental; e, uma vez que não há distração, a prática pode ser sustentada indefinidamente. Agora, quando você pratica, tanto o corpo como a mente se cansam; e, na medida em que você fica desconfortável, você liga algo mais para mudar a experiência de desconforto. Ao chegar ao nível de pura quiescência, o corpo e a mente estão sempre em estado de conforto. Entretanto, se a mente se apega à experiência de sentir bem estar físico e mental, então, tal mente de apego começará a produzir as causas de renascimento no reino do desejo, trazendo-o de volta novamente à existência cíclica. É necessário que nunca haja apego à qualquer experiência.
Geralmente você deveria manter na mente que, quando sua prática de meditação começar a aprofundar-se, há três experiências que ocorrerão. A primeira é bem estar , a segunda é clareza, e a terceira é a experiência de ausência de pensamentos. Quando tiver estas experiências, se você ligar-se à elas pensando que, de algum modo atingiu o resultado derradeiro, então estará novamente produzindo causas para renascimento em samsara. Não confunda estas experiências com o resultado final de iluminação. Se apegar-se ao bem estar, estará estabelecendo as causas para o renascimento no reino do desejo. Se apegar-se à luminosidade ou claridade, isto estabelece as causas para o renascimento no reino da forma. Apego à ausência de pensamentos estabelece as causas para o renascimento no reino dos deuses sem forma. Estes são os três reinos (desejo, forma e não-forma) da existência cíclica dentro do qual as seis classes de seres se debatem. Através da meditação você pode de fato produzir as causas para o renascimento nestes três âmbitos de existência caso não seja cuidadoso.
Esta é uma explicação concisa de como praticar para atingir a quiescência que inclui instruções sobre o que evitar enquanto praticando. Se for capaz de praticar com sucesso, irá atingir a quiescência por períodos prolongados de tempo e meditar com claridade, preparando-se então para a segunda fase, a prática principal de cultivar a sabedoria primordial da intuição.

Sabedoria primordial –

Os ensinamentos e práticas para desenvolver a sabedoria primordial da intuição têm duas abordagens. A primeira abordagem é o treinamento escolástico, para assegurar-se da natureza de vacuidade da mente. Aqui, a vacuidade é divisada através da investigação analítica, eventualmente provando que ela é desprovida de uma existência inerente verdadeira. Esta visão da vacuidade está baseada na compreensão intelectual. A segunda abordagem é chegar à natureza da vacuidade através da profundidade de sua própria prática. Esta visão da vacuidade está baseada na realização interna. Se alguém é capaz de abarcar a vacuidade pela segunda abordagem, então a primeira é desnecessária.
Se você deseja trilhar a primeira abordagem através do treinamento escolástico e então aplicá-lo praticamente à meditação, este é o meio superior e a forma pela qual muitos grandes praticantes enfocaram seu caminho. Entretanto, nos tempos atuais, vocês deveriam considerar que vocês podem não vir a ter muitos anos para praticar, uma vez que o momento da morte é incerto. Além disso, com estilos de vida tão intensos, são poucas as oportunidades para meditar. Pode ser melhor engajar-se diretamente na prática, para atingir os objetivos mais prontamente.
Nos dias atuais parece que quase cada um está mais interessado em técnicas tipo pressionar botões, que trabalham de forma rápida, trazendo resultados instantâneos. Naturalmente todos desejam resultados os mais rápidos. Se você pensar que pode encontrar uma experiência tipo apertar botões no caminho espiritual, isso significa que você deve praticar e meditar, não apenas ouvir os ensinamentos, não apenas pensar sobre eles depois, mas sentar e realmente praticar. Frequentemente as pessoas apenas ouvem o Darma, pensam ocasionalmente no que ouviram, e não praticam. Como podem ocorrer resultados se não há prática?
É através da experiência de intuição que a natureza primordial da mente é atingida. Há quatro estágios para este desenvolvimento. O primeiro é atingir a confiança na visão; o segundo, experimentar a meditação. A meditação precisa ser praticada; não pode ser apenas um tema intelectual. De outra forma seria como um remendo que é colocado sobre um buraco para cobri-lo. Algum tempo depois cairá fora. A compreensão intelectual é impermanente e sujeita a mudança. A realização atingida através da meditação é permanente. O terceiro é manter a continuidade do comportamento nas atividades diárias da vida, e o quarto é chegar ao resultado final.

1. Confiança na visão -


(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, aqui o primeiro)
Primeiro, atingir a confiança na visão, este estágio tem três partes:
a)Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos;
b)localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno;
c)estabelecer a visão da natureza da realidade.
Estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos, envolve a consciência de como a mente vê objetos externos como realmente existentes. Isto refere-se a todas as aparências que são percebidas como separadas do observador. Todas estas aparências são vistas pela mente subjetiva como verdadeiramente existentes. Devido a isto, muitos eruditos reduzirão as aparências à partículas atômicas e após ao nada, assim vindo a crêr que tal natureza carece de uma existência verdadeira. De acordo com este sistema, os fenômenos objetivos surgem da mente e existem na mente de quem os discrimina. Apesar de você pensar que as aparências objetivas realmente existam, o mundo animado e inanimado não existiria se não fosse a mente. Não reconhecendo a natureza da mente e deixando-a na experiência de percepção confusa, você realmente sente que as aparências objetivas são verdadeiras exatamente como são percebidas. Torna-se, então, muito difícil aceitar que as aparências objetivas não têm existência verdadeira, inerente, e são criadas pela mente.
O primeiro problema é que sua mente está na experiência de percepção confusa. O segundo é a verdade da impermanência, na qual nada há que a mente perceba, incluindo a sim mesma, que seja permanente e que possa ser tida como verdadeira e real. Uma vez que tudo está sujeito a mudança, isto implica que não há uma existência inerente verdadeira, uma vez que a natureza dos fenômenos é impermanente. O sonho que você teve na última noite não é mais verdadeiro hoje. No momento em que você sonhava, parecia muito verdadeiro, muito real. Onde está agora? O que aconteceu?
Para dar uma outra analogia, um mágico competente na manipulação das aparências é capaz de criar uma ilusão ótica por meio do uso de substâncias e mantras, tudo isso é feito mesmo que durante o tempo todo ele saiba que as aparências que cria não são reais. Aqueles que vêem a aparência mágica, pensam que é real. Talvez um elefante, um tigre ou um pássaro surjam do chapéu e, sendo percebidos, são vistos como reais; entretanto, o mágico sabe que são mera ilusão.
Similarmente, todas as aparências objetivas nada mais são que rótulos mentais. Você pode dizer, “isto é uma mesa”, aquilo é uma casa”. Cada um desses objetos tem seu nome porque parece a você como sendo tal objeto. Portanto, você tem um rótulo para ele. Em verdade, sua natureza é ilusória e ele realmente não existe mais do que a aparência ilusória que um mágico cria. Portanto, você tem que ter a confiança na consciência - de sabedoria primordial - da natureza ilusória de todas as aparências. Através disso você é capaz de estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos.

2. Experimentar a meditação

(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o segundo)
Isto conduz você ao segundo estágio na prática do desenvolvimento da intuição, que é estabelecer a natureza da mente como o discriminador interno. O criador das aparências objetivas é o sujeito, a própria mente. Se tentar localizar a mente, poderá você encontrar seu lugar? Poderá determinar suas características? Podemos determinar se ela é substancial ou tangível? De acordo com muitos sistemas de pensamento budistas, há técnicas incontáveis que podem ser empregadas para descobrir a origem da mente buscando determinar se verdadeiramente existe ou não.
Para engajar-se na prática formal, primeiro de tudo você deve sentar na correta posição de meditação. Deixe que a fala mantenha-se silenciosa e respire naturalmente. Não force a mente fazendo-a muito tensa ou demasiadamente frouxa, apenas mantenha-se relaxado em sua própria natureza pura da consciência.
Algumas vezes quando você senta, dois processos podem ocorrer a você: o de apreender a mente e o de apreender o discriminador. Se perceber isso, então faça que o discriminador olhe para a mente discriminativa, o que é como olhar a própria face diretamente sem nenhum intermediário. Quando você começa a praticar assim, você começa a dar-se conta de que o discriminador e a mente apreendedora não são separados. Então você compreende que o objeto sendo discriminado pelo discriminador e a mente que o apreende são indivisíveis, correspondem à mesma experiência. Assim, você pode vir a ver que o objeto e o sujeito, o apego e a ligação, não são mais duais. Isto é uma única experiência, a natureza da mente, livre de quaisquer limitações provindas da atividade mental condicionada. O que acontece, então, se nem há objeto e nem sujeito? O que temos então? Tudo o que você tem é a experiência de sua própria natureza búdica inata. Nos estágios iniciais da prática, você experenciará este estado livre de dualidade por um instante fugaz. Em um segundo momento a discriminação dualística e o apego retornam. Atualmente há muitos praticantes que usam uma grande parcela de tempo sentados em meditação silenciosa. Se você sabe como praticar os estágios de desenvolvimento e de fruição e, de fato estabeleceu a confiança na visão, sendo portanto capaz de assegurar-se da natureza da vacuidade, então a prática mais longa de meditação silenciosa pode ser extremamente iluminadora. Entretanto, se você não tem experiência e apenas senta silenciosamente em meio a conceitos turbulentos e distrações mentais, isto é apenas perda de tempo.
Durante a experiência de não-dualidade, permita-se permanecer no frescor da experiência, sem alterações conduzidas. Um praticante com inteligência superior será capaz de permanecer nesta experiência de consciência intrínseca indefinidamente. No início, é difícil permanecer muito tempo. Esta experiência é, entretanto, idêntica à experiência que você tem entre dois pensamentos. Quando o primeiro termina e o segundo começa, o fresco momento entre eles é idêntico à experiência de consciência intrínseca. A razão pela qual não está consciente disso é que você tem tantos pensamentos surgindo tão prontamente que o momento entre eles não é percebido.
Pode que você pense que o momento entre os pensamentos seja um apagamento semelhante à experiência de quiescência impura. Na experiência do momento entre os pensamentos, todos os oito estados cognitivos estão funcionando normalmente. A mente é luminosamente clara e capaz de reconhecer qualquer coisa, ainda assim totalmente livre de dualidade porque não há a presença de formações de pensamento ou atividade mental deludida. Se você entendeu isso, significa que você teve um relance da experiência geral da consciência intrínseca.
Porque, então, vocês enquanto indivíduos comuns têm tanta dificuldade de reconhecer esta experiência geral de sua própria natureza primordial de sabedoria? Isto se dá devido à intensidade dos hábitos com respeito à dualidade e aos pensamentos discursivos. Devido a isto você é derrotado vez após vez, por suas próprias conceitualizações. Adicionalmente, no passado você ouviu instruções sobre a natureza da mente, mas falhou na prática. Então, que método pode você empregar uma vez que você é tão distraído por sua própria mente? O método é tentar encontrar a fonte da mente, o criador dos pensamentos discursivos, a causa raiz de todos os seus problemas.
Você já deu-se conta do fato que os conceitos surgem da mente. Agora, você deve perceber onde a mente se origina, onde ela existe, e onde finalmente cessa. Similarmente, tente entender onde os pensamentos discursivos se originam, onde existem e onde cessam.
Onde a experiência de iluminação se origina, existe, e cessa? Quem sente felicidade e sofrimento? Se chegar à conclusão de que é a mente que usufrui a iluminação e samsara, então, onde a mente se origina, existe e cessa? É tangível ou não? É sem forma?
Se você determinar que a mente tem uma forma, então você deveria tentar determinar qual sua forma e cor. Se é tangível, deve possuir algumas características. Se você pensar que é sem qualquer existência substancial, então deveria tentar examinar que experiência é esta. É essencial ter um professor espiritual que já tenha realizado a natureza da mente para ajudá-lo acuradamente a passar por esta experiência. Um professor espiritual qualificado a este nível de prática é alguém que atingiu a natureza da mente. No Tibete há muitos exemplos onde discípulos foram enganados por professores que não tinham realização. À este nível de prática existem muitos perigos e armadilhas.
Se, por meio de seu processo de exame, você for totalmente incapaz de encontrar a mente e o que você encontrou em lugar dela é como o âmbito do próprio espaço - ainda que seja incapaz de expressar isso, então está na trilha certa. Entretanto, esta experiência de vacuidade não é a negação de tudo, não é cair no niilismo, ou pensar que nada existe. É uma experiência que é muito aberta; e, no interior desta espacialidade, existem muitas, muitas possibilidades. É importante ser muito cuidadoso com respeito à profundidade desses ensinamentos. Se tomá-los literalmente, sem qualquer experiência meditativa, há o perigo de tornar-se confuso com respeito à realidade e perder sua sanidade. Esta é a razão pela qual é importante receber ensinamentos sob a proteção de um professor qualificado de acordo com a tradição. Por esta tradição, a iluminação pode ser atingida em um corpo e em uma vida, porque estes ensinamentos têm o poder de estabelecer os praticantes no estado de liberação onde há uma liberdade perfeita de todos os traços da percepção confusa. Reconhecer a natureza da mente é realmente o ponto de compaixão de todo o caminho; entretanto isto também pode ser perigoso se você não se aproxima de forma cuidadosa e correta.
No que diz respeito ao desenvolvimento da confiança na visão, o terceiro passo é abarcar a visão da natureza da realidade. De acordo com este tesouro redescoberto pela emanação irada de Guru Rinpoche, Dorje Drolö, a luminosidade aberta é a natureza de Dorje Drolö. Isto se refere à natureza da mente de todos os Budas, que é a natureza de todas as deidades de meditação, de todos os lamas, dakinis, e verdadeiros objetos de refúgio. Para realizar tal natureza, você não necessita buscar em qualquer outro lugar especial que não dentro de você mesmo. Tal natureza é a essência de sua mente e é a experiência auto-originada. Realizar isso pervasivamente abarca tudo que constitua samsara e nirvana. A mente de todos os budas, nossa própria natureza inata, é a experiência da sabedoria primordial, livre da dualidade, luminosamente clara, desobstruída em sua compaixão.
Após você ter atingido a confiança na visão, você pode então focar a prática de meditação como aprofundamento da visão. Repousar livre de pensamentos do passado, presente, ou futuro, posicionado na consciência fresca e não intermediada é também chamado de meditação. Esta experiência aberta, luminosa, que é a natureza auto-originadora da mente de cada um, não necessita ser buscada como uma experiência meditativa separada. Você não necessita pensar que está tentando criar uma experiência artificial. É simplesmente reconhecer e manter-se diretamente introduzido em sua própria natureza.
Este é o significado do darmakaia (corporificação da realidade última). Além do mais, nesta experiência darmakaia, as percepções sensuais estão presentes e são simplesmente observadas imparcialmente, sem qualquer discriminação dualística ou apego. Esta abertura é luminosamente clara e abarca a tudo, sem sofrimento, porque não há dualidade. Não podendo beneficiar, não pode prejudicar. Vai além do âmbito do benefício ou prejuízo, aceitação ou rejeição. Você não mais precisa pensar: “Oh, eu não posso fazer isto; eu não devo fazer aquilo.”

3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias da vida


(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o terceiro)
O terceiro passo é manter a continuidade do nosso comportamento. A conduta deve ser semelhante à meditação, e a meditação deve ser como a visão. Cada um contém o outro. Usualmente você considera que conduta é a experiência pós-meditativa, que ocorre após a sessão formal. Sustentar a continuidade é integrar visão, meditação e conduta de modo indivisível.
Uma vez que o equilíbrio meditativo é manter-se simplesmente na consciência intrínseca, aberta, não intermediada, totalmente luminosa e relaxada, quando você chega a esta experiência, deve perceber que todas as aparências e experiências são como uma manifestação ilusória da natureza da consciência intrínseca. Todas as formas são vistas como uma divindade de meditação, manifestação divina. Você pode ouvir a essência de todos os sons como sendo a do mantra. Todos os pensamentos são compreendidos como a atuação da consciência pura. Você pode também considerar que as aparências na vida diária são como um sonho, uma ilusão, sem verdadeira existência inerente.
A este nível de prática, não há distinção entre meditação e conduta. A experiência meditativa pode ser mantida na forma como se percebe as aparências da vida diária e dirige a pessoa. Isto significa que os pensamentos discursivos seriam utilizados como a aparência do caminho, em lugar de um obstáculo. Quando discriminação e apego cessam, os pensamentos surgem como uma ilusão, para adornar o caminho.
Se, talvez, você ainda pensar que um pensamento discursivo está causando dano, trazendo dor ou problema, apenas entre nele e veja que é vazio por natureza, e ele se dissolverá. Se seguir o pensamento e permiti-lo controlar a mente, terá perdido a visão. Por outro lado, se você absorver o pensamento, verá que a natureza dele é vazia e ele se dissolverá, como as ondas que se elevam do oceano e desaparecem de volta no próprio oceano. Nada há de errado com o surgimento de um pensamento discursivo, quando você percebe que ele surge da consciência pura e dissolve-se de volta na consciência pura.
Quando você for hábil para reconhecer que os pensamentos discursivos nada mais são que a manifestação da própria consciência intrínseca, que são vazios e sem existência inerente verdadeira, você os deixará passar e dissolver-se de volta em sua fonte vazia. Em resumo, você precisa ser cuidadoso, nesta prática de conduta como caminho, para não ser perturbado pelas distrações e dominado por seus hábitos; a discriminação e apego. Como praticante, sua prática deveria ser como um rio que flui - incessante e estável.

4. Fruição


(dos quatro estágios, para chegar à natureza primordial, este é o final)
A quarta e última etapa é o modo pelo qual a fruição é atingida. A fruição é o reconhecimento de nossa própria natureza, da consciência intrínseca, originalmente pura, livre de confusão. Esta experiência que é o resultado de visão, meditação, e conduta, é a experiência de iluminação ou liberdade última da confusão da natureza da existência cíclica. Se sua prática é forte, então, mesmo antes de sua morte, ao realizar esta natureza e manifestá-la de acordo com estes quatro estágios, você estará liberado. Não sendo assim, a liberação ocorrerá no momento da sua morte ou no estado do bardo. Por meio das bênçãos da realização desta prática, é certo que a liberação ocorrerá durante um destes períodos.
É imperativo ter uma forte fé em seu professor raiz, aquele que o introduz à natureza da mente, de tal forma que você possa reconhecer a sua própria natureza. Estas são as instruções piedosas para o sucesso nesta prática. O resultado final de quiescência, intuição da sabedoria primordial, mahamudra e mahasandhi, nada mais são do que isto.



Extraído de: http://www.nossacasa.net/SHUNYA/default.asp?menu=996

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Mar esquentou 50% mais que o previsto, diz estudo




CLAUDIO ANGELO
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Os oceanos do planeta estão esquentando 50% mais do que se imaginava até agora, e isso pode fazer com que as previsões sobre o aumento do nível do mar no fim deste século fiquem mais próximas do pior cenário. A estimativa é de um estudo australiano, liderado por uma oceanógrafa paulista.

A pesquisa, publicada na edição de hoje da revista científica "Nature", afirma que os cientistas estavam subestimando a chamada expansão térmica, o aumento do volume do mar em razão do aquecimento da água.
Ela faz, pela primeira vez, um cálculo preciso do quanto da elevação observada no nível global dos oceanos de 1961 a 2003 pode ser atribuído a essa expansão e o quanto é culpa do derretimento das geleiras causado pelo aquecimento global.

Esse balanço mundial do nível do mar vinha tirando o sono dos oceanógrafos. No famoso relatório publicado no ano passado pelo IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, a soma da contribuição do degelo e do aumento de volume eram menores do que a elevação média de fato observada no período.

Isso levou muita gente a desconfiar que os modelos climáticos estivessem errados. Afinal, o que faz a qualidade de um modelo é a precisão com a qual ele consegue reproduzir o clima medido no passado.

Entra em cena Cátia Domingues, da Csiro, organização nacional de pesquisas da Austrália. A cientista e seus colegas John Church e Susan Wijffels descobriram que os modelos estavam certos: erradas estavam as observações.

Os dados de observação usados pelo IPCC se baseavam em estudos do americano Sydney Levitus e do japonês Masayoshi Ishii, que fiaram-se em medições feitas com um aparelho chamado XBT (batitermógrafo descartável, na sigla em inglês).

"O XBT parece um torpedinho que a gente lança ao mar para medir temperatura. O problema é que ele não mede profundidade", diz Carlos Eiras Garcia, da Furg (Fundação Universidade de Rio Grande), ex-orientador de mestrado de Domingues. A relação entre temperatura e profundidade, fundamental para saber o quanto cada camada do oceano aquece, era dada por uma equação matemática. "Essa equação estava errada." diz Garcia. Os XBTs "esconderam" a real taxa de expansão térmica do mar.

E não era só isso: o método usado por Levitus e Ishii para inferir a temperatura da camada mais superficial do oceano (até 700 metros de profundidade) em regiões onde não havia medições feitas, como o hemisfério Sul, também tinha falhas. O grupo australiano descobriu a origem desses dois erros e refez todas as contas.

"Nós já esperávamos alcançar resultados mais precisos, porque fomos os primeiros a corrigir os vieses nas observações de temperatura do oceano", disse à Folha Domingues, 36. "Agora, exatamente qual seria a diferença nós não sabíamos. Quando terminamos os cálculos e comparamos com os resultados de Levitus e Ishii, quase caímos para trás!"

A nova estimativa coloca finalmente os modelos em concordância com as observações, embora a elevação anual do nível do mar estimada por Domingues e colegas (1,6 mm) seja um pouco menor que o estimado pelo IPCC (1,8 mm).

O problema é que, como o mar está esquentando mais rápido do que se pensava, a elevação final em 2100 tende também a ser maior. Os cenários do IPCC indicam uma subida de 18 cm a 59 cm no fim do século. "Este e outros resultados indicam que ela tende ao limite superior", diz a brasileira.


Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ambiente/ult10007u413932.shtml

A casa caiu




Jornalista conta em livro como o aquecimento global já afeta o planeta. A resenha do livro "Planeta Terra em Perigo -O Que Está, de Fato, Acontecendo no Mundo", de Elizabeth Kolbert e pela Editora Globo, é de Cláudio Angelo e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-06-2008.

Eis a resenha.

São muito poucas as pessoas que podem dizer que assistiram ao fim do mundo e voltaram para contar a história. A jornalista americana Elizabeth Kolbert é uma delas. E que história ela conta: quem ainda tem uma pontinha de dúvida sobre a dimensão do estrago que o aquecimento global já está causando deveria imediatamente ler "Planeta Terra em Perigo", livro de Kolbert recém-lançado no Brasil.

Quem acha, por outro lado, que a crise climática pode ou vai ser solucionada antes que seja tarde demais talvez não devesse nem abrir o livro: em vez de se render a uma visão otimista do futuro da humanidade, como faz Al Gore, Kolbert prefere se ater aos fatos.

E os fatos são feios.

A americana, que passou anos cobrindo política antes de se debruçar sobre a questão ambiental, foi destacada pela revista "The New Yorker" para correr o mundo atrás de evidências do aquecimento global. Isso aconteceu em 2004, antes de Gore lançar seu filme, quando a sigla IPCC ainda precisava de explicação.

Kolbert viajou da Groenlândia à Antártida, visitou vilas esquimós que precisaram mudar de lugar devido ao degelo marinho no Ártico, viu casas rachadas pela desintegração do permafrost no Alasca. E falou com cientistas, dezenas de cientistas. O resultado foi a série de três reportagens "The Climate of Man", expandida e editada em 2005 nos EUA na forma do livro "Fieldnotes From a Catastrophe" ("Diário de uma Catástrofe" - título inexplicavelmente alterado, para pior, na edição brasileira).

O que a repórter viu foi o começo do fim do mundo como o conhecemos. Talvez a elevação sem precedentes nos níveis de dióxido de carbono na atmosfera não seja o momento final da civilização ou a extinção da espécie humana. Mas certamente o aquecimento global do Antropoceno (Período geológico marcado pela transformação da Terra pelo homem) mudará a face do planeta com uma velocidade jamais observada.

Mudanças climáticas bruscas, explica a autora, sempre fizeram parte da história da Terra. Mas a civilização humana, iniciada com a invenção da agricultura, há 10 mil anos, coincidiu com um período de estabilidade ímpar do clima, após a última era glacial.

Lições dos acádios

Do clima benigno dependeram os assentamentos humanos permanentes que deram origem às cidades e, com o tempo, à sociedade moderna. Ao lançar gás carbônico no ar para gerar energia e mover carros e fábricas, os seres humanos já estão rompendo essa estabilidade. E clima instável significa fome, guerra e morte.

Que o diga o império acádio, criado há 4.300 anos na Mesopotâmia. Kolbert conta sobre as pesquisas científicas que concluíram que os acádios foram extintos devido a uma mudança climática brusca - natural - por volta de 2.200 a.C.

"Pegos de surpresa, os acádios atribuíram sua sorte à vingança divina", escreve. "Por outro lado, as alterações climáticas previstas para o próximo século podem ser atribuídas a forças cujas causas são conhecidas e cuja magnitude pode ser determinada por nós."

Determinar o tamanho do impacto tem sido muito mais fácil do que convencer os governos a agir a tempo de evitá-lo. Em um dos pontos altos do livro, Kolbert descreve em tom de tragicomédia seu encontro com Paula Dobriansky, funcionária da diplomacia de George W. Bush encarregada durante oito anos de bloquear toda e qualquer tentativa de acordo internacional contra emissões.

Dobriansky responde a todas as questões da repórter com a mesma frase: "Nós agimos, aprendemos e depois agimos novamente". Kolbert não precisa de muitas palavras e não usa sequer um adjetivo para qualificar a posição do governo de seu país sobre o tema.

As críticas, no entanto, não se voltam apenas aos Estados Unidos. A expansão das termelétricas a carvão na China, relata a autora, anula "em menos de duas horas e meia" a economia de energia feita em uma década pela cidade americana de Burlington, no ecologicamente correto Estado de Vermont.

Por sua sobriedade, "Planeta Terra em Perigo" aparentemente funciona como uma espécie de antídoto ao alarmismo escatológico das ONGs. Trata-se, no entanto, de mera aparência. Kolbert expressa suas opiniões pela boca de seus entrevistados. Um deles, Robert Socolow, da Universidade de Princeton, dá o recado: "Já trabalhei em vários setores nos quais havia as opiniões dos leigos e opiniões dos cientistas. Quase sempre os leigos são mais ansiosos (...) No caso do clima, os especialistas são justamente os mais preocupados".


quarta-feira, 18 de junho de 2008

Fascismo social





Entre a repressão do neoliberalismo e a imaginação utópica dos povos.
Entrevista com Boaventura de Sousa Santos


Enquanto os chefes de Estado da Europa e da América Latina se reuniram em Lima, “protegidos” por grades e milhares e milhares de policiais, para a 5ª Cúpula Oficial entre as duas regiões, a Universidade Nacional de Engenharia foi o cenário da Cúpula dos Povos Enlaçando Alternativas 3. Ativistas das duas regiões se reuniram para discutir alternativas ao neoliberalismo, para a criação de um mundo mais justo, democrático e solidário. O ativista-pesquisador português Boaventura de Sousa Santos foi um dos participantes mais conhecidos e queridos.

“A América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global”, diz Sousa, para em seguida completar: “Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque”.

Para Sousa Santos, “o chamado Pós-Consenso de Washington é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global”.

O sociólogo português aposta na radicalização da democracia. “Devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais. Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida”.

Sousa Santos teme que a perversão do processo de reestruturação neoliberal desemboque naquilo que ele chama de “fascismo social”, isto é, “o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas”.

Boaventura de Sousa Santos é Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde também é professor de Sociologia. Trabalha como Distinguished Legal Acholar na Universidade de Wisconsin, Madison, e integra o Conselho Consultivo do Programa Democracia e Transformação Global, em Lima. Além disso, está profundamente envolvido nos processos do Fórum Social Mundial e da Universidade Popular de Movimentos Sociais.

Foi entrevistado por Raphael Hoetmer, do Programa Democracia e Transformação Global. A entrevista encontra-se no sítio ALAI, América Latina en Movimiento, 9-06-2008. A tradução é do Cepat.

Como caracteriza o cenário atual na América Latina?

As mudanças no mundo são rápidas, e mostram muitas contradições devido à associação de eventos políticos que nos impactaram muito nos anos recentes. Exemplos disso são as mudanças no Equador e na Bolívia, e recentemente no Paraguai. Nestes países ganharam um economista progressista, um camponês indígena e um sacerdote da Teologia da Libertação, materializando a resistência contra as políticas neoliberais das últimas décadas.

Por outro lado, a América Latina é uma peça chave nas estratégias econômicas atuais das empresas transnacionais e dos governos do Norte global. É preciso entender que o sistema capitalista sempre necessita de novos espaços para gerar ganhos econômicos. Desta maneira, a expansão do mercado chegou a converter a água, os serviços de saúde, e a educação em mercadoria. Algo que anteriormente era impensável. Neste momento, a mercantilização dos recursos naturais é a estratégia fundamental para a acumulação de capital a médio prazo, pondo a enorme biodiversidade da América Latina no centro das atenções.

Este processo de re-enfocar a América Latina foi acelerado pelo fracasso da guerra do Iraque. Os Estados Unidos viram que durante sua relativa ausência em sua backyard, se haviam produzido mudanças na América Latina, que apresentaram dois problemas para a sua agenda. Em primeiro lugar, os processos sociais haviam avançado fora de seu controle, e para além de seus planos, resultando em governos progressistas, e em movimentos sociais fortes. Em segundo lugar, estes movimentos chegaram ao poder através da democracia, numa época em que os Estados Unidos estão usando o discurso da luta pela democracia para justificar suas intervenções ao redor do mundo.

Neste cenário se desenvolve uma nova estratégia de contra-insurgência, que consiste numa mescla entre as estratégias da Aliança para o Progresso com uma política consciente de divisão dos movimentos, e especificamente do movimento indígena. Por outro lado, se intensificou nos últimos anos, de maneira brutal, a criminalização dos protestos, como também se aprofundou a militarização.

No cenário que você descreveu, permite dar-se conta de algumas mudanças no paradigma neoliberal. Você acredita que podemos falar de uma modificação deste paradigma para um paradigma de segurança?

Sim, me parece que isto é a perversão final do processo de reestruturação neoliberal. Efetivamente, o neoliberalismo tenta substituir todos os conceitos existentes, como os de desenvolvimento e da democracia, pelos conceitos de controle e de segurança, depois de sua incapacidade de gerar um apoio popular sólido.

Isto é conseqüência do aprofundamento da exclusão social, da miséria e da crescente desigualdade sob o capitalismo neoliberal, que implica a emergência de um fenômeno que chamo de “fascismo social”. Este não é um regime político, mas uma forma de sociabilidade de desigualdades tão fortes, que uns têm capacidade de veto sobre a vida de outros. Corremos o risco de viver em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas.

O melhor exemplo desta lógica é o doloroso aumento da fome no mundo, que mostra a contradição entre a vida (a produção de alimentos acessíveis para a população mundial), e os ganhos (a produção dos rentáveis biocombustíveis). A emergência do “fascismo social” mostra que a modernidade como projeto fracassou, porque não cumpriu suas promessas de liberdade, igualdade e solidariedade, e já sabemos que não vai cumpri-las.

Neste cenário, se apresenta então a contradição entre o paradigma da segurança, e da luta contra o território, por um lado, e de outro, os Estados que reivindicam sua soberania, os movimentos sociais, e especificamente as lutas dos povos indígenas. É nos territórios indígenas que se encontra 80% da biodiversidade latino-americana. As organizações, como a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas (CAOI), a Confederação Nacional de Comunidades do Peru Afetadas pelas Empresas de Mineração (Conacami), e a Coordenadoria Nacional de Ayllus e Marqas (Conamaq), são, neste sentido, um perigo para o status quo.

O chamado Pós-Consenso de Washington então é pós, porque os neoliberais já não confiam somente na economia, e, portanto, aplicam a guerra e a luta contra o terrorismo para manter o sistema de desigualdade a nível global. Exemplos claros disto podemos ver em Santa Cruz de la Sierra, onde paramilitares colombianos treinam os grupos privados de segurança da oligarquia cruzenha, que está decidida a defender o status quo.

Nesta reorganização do mapa político continental, que correntes reconhece?

É evidente que emergiram governos com uma lógica diferente ao estado capitalista neoliberal no continente. Em suas gestões econômicas podemos assinalar duas vertentes diferentes. Por um lado, os governos de Lula, Cristina Fernández Kirchner e Michelle Bachelet mantêm a macro-economia neoliberal, mas aprofundam a proteção social nas margens da sociedade. Outros governos, como os de Evo Morales, Rafael Correa e Hugo Chávez, procuram mudar o sistema econômico. A partir de uma lógica de maior soberania, aplicam diferentes estratégias, como a nacionalização, a recontratualização da exploração dos recursos naturais, ou a entrega desta exploração a pequenas empresas nacionais.

Em todos os casos, se vê uma maior sensibilidade em relação à questão social, como também, de maneiras diferentes, um questionamento das empresas transnacionais e suas atividades. A resposta das empresas a isso é a invenção da responsabilidade social. Constroem escolas e hospitais para suas relações públicas para dar a impressão de que elas também estão preocupadas com a desigualdade, em sociedades cada vez mais desiguais. O Tribunal Permanente dos Povos, que aconteceu durante esta Cúpula dos Povos em Lima, evidencia claramente que por trás desta cara humana persistem as violações estruturais dos direitos humanos por parte das transnacionais.

É um processo confuso e contraditório, mas sustento que podemos ver a emergência de uma solidariedade regional, com maior abertura e tolerância para com as diferenças políticas. Não obstante, a maioria destes governos se dirige por conceitos tradicionais do estado e do desenvolvimento, o que efetivamente limita sua capacidade de transformação.

Por outro lado, Peru e Colômbia representam o status quo neoliberal e a agenda dos Estados Unidos na região. Me dá a impressão de que atuam, além disso, desde uma complementaridade. A Colômbia representa a lógica militar, que busca a criação de conflitos e tensões que criam condições para a crescente militarização e intervenção na região. No Peru está se impulsionando uma lógica similar, com a forte criminalização das organizações sociais. Este sempre é o primeiro passo que prepara a militarização posterior. De fato, existem indicações muito claras de que a base de Manta no Equador poderá ser transferida para a Amazônia peruana.

Como já disse, estes processos de criminalização e militarização buscam assegurar o livre acesso e a mercantilização dos recursos naturais. Obviamente, neste modelo econômico, o Peru joga um papel central, devido às suas enormes reservas de hidrocarbonetos, minerais e metais preciosos. E as elites políticas e econômicas do Peru estão muito dispostas a assumir este papel de exportador de recursos naturais na divisão mundial do trabalho, já que eles ganham com isto. Não obstante, a maioria dos peruanos não ganhou nada nos últimos anos de crescimento econômico espetacular, e logicamente buscarão alternativas para o atual governo.

O caso da Bolívia luziu por muito tempo, como o processo mais transformador da região, mas agora entrou em crise. Como você analisa o cenário boliviano e o processo de regionalização subnacional que se está reivindicando no país?

A regionalização subnacional foi promovida pelo Banco Mundial, na forma de descentralização, que apontou para o desmonte do Estado central através da transferência de responsabilidade do Estado central aos níveis locais. Na Bolívia havia uma posição de descentralização dirigida pelas autonomias indignas, desde uma visão política e cultural sólida, que permitiu que os indígenas ganhassem algo com as políticas de descentralização, impulsionadas pelo Banco Mundial.

Mas a bandeira da descentralização foi assumida agora pelas oligarquias, em resposta à sua perda de controle do Estado central. Eles sempre foram centralistas, mas agora tinham que tomar a bandeira da autonomia para defender seus privilégios econômicos. Na minha opinião, a declarada autonomia de Santa Cruz é ilegal, já que não podem fazer isto sob a velha constituição. Na realidade, a decisão das autonomias caberia ao Congresso, depois que se implementasse a nova constituição.

Eu defendi na Bolívia a distinção entre autonomias ancestrais e as da descentralização. Proponho entender as autonomias indígenas como extraterritoriais em relação às autonomias departamentais. Quer dizer, deveriam se basear no controle total de seu território, fora da governabilidade descentralizada, já que são anteriores ao processo de descentralização.

Em todo o caso, o debate atual é sumamente perigoso, já que existem desejos recíprocos de enfrentamento armado. As oligarquias não querem deixar seus privilégios, e os indígenas não vão deixar pacificamente que se divida o país. É muito interessante, já que seriam eles os que defenderiam o país.

Em todo este cenário, qual é o papel da Europa?

Em nível dos contatos entre as organizações sociais das duas regiões há coisas muito positivas. Um processo como o Enlaçando Alternativas mostra a profunda solidariedade que existe entre os povos de ambos os continentes e a vontade das organizações européias de aprender das lutas latino-americanas.

Mas em nível dos governos, vejo algo muito diferente. Crescentemente, a Europa busca seguir as políticas dos Estados Unidos, enfocadas no acesso aos recursos naturais, para manter sua posição competitiva no mundo. Isto me repugna ainda mais, já que a Europa tem uma dívida cultural, social e ecológica histórica muito grande com a América Latina, devido ao saque dos recursos naturais do colonialismo e do genocídio dos indígenas. Portanto, me parece inaceitável implementar na atualidade políticas neocoloniais, que dão continuidade ao mesmo saque. Não obstante, tudo indica que as empresas transnacionais européias atualmente definem a agenda da União Européia, impossibilitando uma posição européia que fortaleceria a democracia, os direitos humanos e a redistribuição social no continente.

Neste mundo tão confuso, no qual parecem se chocar diferentes projetos territoriais, como você vê o futuro?

Está claríssimo que estamos entrando numa fase histórica de polarização. Por um lado, as políticas de mercantilização buscarão o livre acesso aos recursos naturais, e a continuidade dos privilégios econômicos das elites. Por outro lado, existe um imaginário radicalizado nas forças progressistas do continente, que desenvolveram concepções distintas de democracia, de desenvolvimento, dos direitos e de sustentabilidade, que são compartilhadas por cada vez mais pessoas e organizações. Me dá a impressão de que as forças dominantes já não podem cooptar este imaginário radical, com suas propostas de proteção social. E por isto a repressão. Então, vemos a confrontação entre a repressão e a imaginação utópica. É difícil dizer para onde vamos. Como sociólogos prevemos bem o passado, mas não tanto o futuro.

Para mim, o horizonte continua sendo a democracia e o socialismo, mas um socialismo novo. Eu tenho dito, em diferentes ocasiões, que o novo nome do socialismo é democracia sem fim. Minha aposta é na democracia radical, já que ela representa uma alternativa a duas idéias fundamentais. Não creio que se possa mudar o mundo sem tomar o poder, mas tampouco creio que podemos mudar algo com o poder existente. Então, afirmo que devemos mudar as lógicas do poder, e para isso as lutas democráticas são cruciais.

Estas lutas são radicais, porque estão fora das lógicas tradicionais da democracia. Sustento que devemos aprofundar a democracia em todas as dimensões da vida. Da cama até o Estado, como dizem as feministas. Mas também com as gerações futuras e com a natureza, o que nos urge a parar a destruição do planeta que atualmente se está produzindo.

Nosso objetivo é sair de uma democracia tutelada, restringida, de baixa intensidade, para chegar a uma democracia de alta intensidade, que realmente faça com que o mundo seja cada vez menos confortável para o neoliberalismo. Mas a realidade não muda espontaneamente. Em política, para chegar a algo é preciso ter sempre duas condições: é preciso ter razão a tempo, no momento oportuno; e é preciso ter força para poder impor a razão.






terça-feira, 17 de junho de 2008

Sobre sonhos...(9)





Uma pequena experiência que surtiu um efeito interessante.
Como geralmente faço, tento meditar um pouco à noite, antes de pegar no sono, em posição deitada, de olhos fechados.
Minha meditação por vezes é focada na respiração, porém, em geral, procuro estar atento à própria atividade mental, relaxando todos os focos de tensão, mediante um processo de inclusão receptiva, não-crítica, das sensações. Estas duas formas de meditação – focada na respiração e atenta aos estados mentais – não são contraditórias, pelo menos nesse nível mais superficial, como se verá em seguida.
Inicio a meditação relaxando bastante o corpo – a região atrás do pescoço e em volta dos ombros é a mais difícil – e, ao mesmo tempo, procuro me desligar das preocupações mundanas, rotineiras. Essa é a fase “preliminar” da meditação.
Procuro estar atento não mais aos objetos do pensamento, mas à atividade mental em si mesma. Atento à atividade vital, sobretudo, - algo como “estou aqui, vivo, existindo” – tento perceber todas as atividades sutis da mente sem me identificar com elas, sem deixar-me conduzir pelas mesmas (o que aconteceria se focássemos nos objetos dos pensamentos e emoções). O importante, no caso, é manter o foco estável, uma concentração cada vez mais profunda, incluindo parcelas cada vez maiores de atividade mental/instabilidade dentro da concentração e do foco de atenção (aumento da percepção).
Com o aumento da concentração, percebe-se que a atividade mental persiste – embora não mais focada nos objetos mundanos – e, sobretudo, que “se está pensando sobre esse processo”, que há um esforço em abstrair-se dos pensamentos. Identificada essa preocupação – que é também uma atividade mental – procuro relaxá-la, desligar-me disso. Por isso, utilizar a respiração como foco é por vezes útil, facilita o trabalho de relaxamento e “não-identificação” com os pensamentos e vontades (sobretudo com o próprio processo de relaxamento).
Volto para a respiração; direciono a atenção para a mesma, mantendo a concentração estável, no mesmo nível. Assim, toda vez que você identifica uma atividade mental (que está sempre atrelada a um objeto “externo”), você a desliga, desativa essa mesma atividade, relaxando-a, podendo utilizar essa parte de sua atenção na observação da respiração (o objeto externo desaparece da atenção e, assim, a atividade mental é substituída pela concentração no foco, a respiração). Isso significa que a concentração aumenta, num foco cada vez mais vazio, com menos conteúdo, exceto a própria atividade mental cônscia dela própria. Há assim uma substituição do foco ou objeto da atividade mental (que persiste) pela própria respiração. Persistindo nesse jogo “relaxamento-foco na respiração” você irá limpar a atividade mental mais grosseira e, por alguns instantes, é possível que você se depare com algumas situações inusitadas: seus olhos poderão ficar completamente parados (ainda que esteja de olhos fechados) e você parece ficar estático, concentrado num único ponto (no caso a respiração; por vezes, um quase-vazio mental); às vezes surge uma sensação de que você “é a respiração”; às vezes parece que sua atenção fica mais livre e pura, direcionada a coisa específica alguma. E, sobretudo, você poderá experimentar uma situação de presença mais pura, intensa, um viver mais límpido, despreocupado, infantil.
Embora, nesse momento, você possa imaginar, ingenuamente, que sua mente está quase parada, esse momento dará possibilidade de detectar uma fina (porém intensa) atividade mental, mais abstrata, sutil, que dá origem a imagens e, por vezes, memórias, que se sucedem rapidamente, de maneira às vezes quase imperceptível. Uma forma “etérea” de atividade – que dá surgimento a um conceito aqui, uma imagem fugidia ali, uma sensação acolá. Uma percepção de “ponto de vista”, de “eu”, ainda está bem presente e atuante. Por vezes, imagens aparecerão e é possível que você pegue no sono, entrando diretamente em sonho.
Penso que essa atividade mental é a de maior importância, sendo fonte, origem, das demais; se não for, ela própria, a fonte do ego, creio que “estamos quase lá”, talvez navegando em um meio em que o “eu” acaba de se manifestar à consciência por representações.
De fato, é possível que estejamos aqui no limiar entre o consciente/inconsciente, o momento em que vêm a tona as imagens e sensações provenientes “não-se-sabe-de-onde”, pois tais fenômenos parecem vir de uma instância desconhecida, embora vinculadas a uma “identificação”, um “ponto de vista particular”, um “ego”. E, contudo, tais imagens/lembranças/sensações – ou melhor, a atividade que dá origem a elas - determinam decisivamente nosso dia-a-dia, nossas percepções mundanas, nossas preocupações e lembranças. Penso que essa atividade mental é a mesma que dá origem aos sonhos (ou ao menos estamos numa zona bastante próxima ao estado onírico), e, daí, a facilidade com que caímos em sono/sonho durante esse estado meditativo (por vezes, parece que a atenção se perde...).
Se você persistir, poderá “isolar” ou “identificar” essa atividade mental fina, imagética e incluí-la no mesmo processo descrito acima, de “relaxamento-foco na respiração”. Fiquei bastante tempo nessa observação, procurando relaxar dessa atividade e, por apenas um instante, obtive sucesso em direcioná-la para o foco da atenção: a respiração (o que é mais difícil).
É aqui que começa a experiência desta noite: pois ao perceber claramente essa atividade mental sutil e incessante – uma espécie de fluxo – por alguns instantes notei que: (a) essa atividade mental é aquilo que mais se aproximou, até agora, para mim, da identificação com um “eu”; (b) por um breve momento, consegui canalizar esse nível de atividade mental na respiração, e percebi que podia “fundir-me” inteiramente com o foco, a respiração; (c) ao tentar relaxar essa atividade, pareceu-me que deixei de me identificar com ela, que ela deixou de ser “eu” e me conduzir.
E, justamente, ao relaxar também essa atividade “fina”, sutil, imagética, pareceu-me, como disse, que a atenção, minha consciência, não mais “era” essa atividade e, assim, algumas imagens começaram a se suceder em minha mente sem que eu me identificasse com elas.
E, de fato, iniciou-se um processo de “visualização” nítida, sem, contudo, perder a consciência. Tratou-se de um início de um sonho, sendo que eu permanecia lúcido, sabendo que era um sonho. O ego onírico não estava formado, porém eu conseguia direcionar minhas observações das imagens conscientemente. Por exemplo, conseguia prestar a atenção nos detalhes das roupas das pessoas, direcionando meu olhar para essa ou aquela parte da cena (que transcorria, como num sonho, independentemente da minha vontade).
Creio assim que a experiência surtiu um bom efeito, pois me pareceu que a entrada em sonho já lúcido foi um desdobramento da própria meditação.
É também nesse estágio (de grande relaxamento e atividade sutil) que podemos direcionar a experiência para um outro rumo, digamos, menos imagético, voltando a atenção novamente para a pura observação da mente. A experiência pode se revelar surpreendente, pois aqui estamos num estado bem próximo do estado hipnagógico - em que a freqüência cerebral é menor - e a mente torna-se extremamente plástica, flexível, quase como um sonho. Voltando para a meditação-observação da mente (e, portanto, mantendo-se a consciência) podemos experimentar sensações bem curiosas, como, por exemplo, a completa perda de referência corporal (como se nos tornássemos apenas mente), uma sensação de liberdade e leveza e algumas outras sensações de difícil descrição, como, por exemplo, de que nossa mente não se encontra em nós, mas alhures.


***


O texto acima foi redigido há cerca de 2 semanas.
Mais recentemente, há uns 2 dias, tive um sonho lúcido um pouco diferente dos demais.
Após ter acordado, resolvi permanecer na cama, a fim de tentar obter um sonho lúcido naquela manhã.Desse modo, voltei a dormir e acordar várias vezes num curtro espaço de tempo. Após cada um desses breves cochilos, ficava indignado pelo fato de não ter tido nenhum sonho lúcido, pois tinha acabado de pensar nisso e, não obstante, logo em seguida entrava em sonho, novamente caindo sob efeito da hipnose dos pensamentos e imagens produzidas pela mente.
(De fato, creio que não obtemos o sonho lúcido por falta de vontade, por comodismo e preguiça mental ou talvez por medo de quebrarmos uma situação mentalmente confortável – que é uma ilusão, ou uma resposta, proporcionada pelo sonho. A hipótese - que já tive a oportunidade de levantar em outro texto sobre o mesmo asssunto - é de que nossa vontade inconsciente e, talvez, mais ligada à energia feminina, considera que a lucidez onírica redundaria em uma intromissão indevida do racional-masculino, vindo a interromper o processo. O sonho lúcido seria assim uma permissão, uma conciliação, de energias que se posicionam opostamente, em uma mente cindida. Para que a "porta" se abra e o sonho lúcido se torne a regra, faz-se necessário que ambas as instâncias permitam-se mutuamente. Ou seja: o inconsciente-feminino-receptivo considere que não haverá uma interrupção do sonho; e, ao mesmo tempo, há que se permitir que esse mesmo "lado" tenha influência na percepção racional-ordinária durante a vigília. Ambas as percepções, na vigília e no sonho, serão assim transformadas. A "porta" deve ser uma via de mão dupla e jamais interpretada como controle. Esse era meu pensamento, minha interpretação, naquela manhã, entre um cochilo e outro, imediatamente antes de ter tido o sonho lúcido).
No sonho em questão, havia levado um automóvel antigo para o mecânico e este estava me apontando inúmeros defeitos no veículo. Enquanto o mecânico falava, minha irritação aumentava, até que resolvi ir embora. Um tanto quanto nervoso, resolvi agir como se fosse um sonho, embora não estivesse de modo algum consciente de que se tratava de um sonho. Lembro-me de ter pensado ou falado algo como: “Por que estou tão nervoso, pois a vida é mesmo um sonho !” e, então, como demonstração, resolvi esticar um dos dedos da mão e, para minha enorme surpresa, o dedo esticou como se fosse um elástico ou um chiclete ! Fiquei completamente estupefato e, então, resolvi dar um salto e, novamente surpreso, comecei a voar !
O mais curioso aqui é que não me sentia em um sonho que acabava de se tornar lúcido, mas me sentia no mundo real, tendo alucinações. Custava a acreditar que se tratava de um sonho. Era quase como se estivesse apenas racionalmente convencido disso, mas meu sentimento, minha percepção permanecia a de que estava tendo alucinações em um mundo real ! Após algumas peripécias, acabei acordando, dessa vez com a sensação de que a realidade era um sonho. Ou seja: sonho e vigília parecem que começam a se misturar, a percepção de sonho e de vigília vão se encontrando.
Minha interpretação aqui é a seguinte: creio que o estado onírico e o estado de vigília começam a se aproximar à medida em que nos aprofundamos na meditação e na prática de sonhos lúcidos. Inicia-se um lento processo de diminuição das cisões internas. Um tipo de consciência onírica se desenvolve e, ao mesmo tempo, uma parcela do inconsciente parece que começa a se mesclar com o consciente-ordinário, na vigília. Há uma espécie de perda de referências e uma percepção de que esses pseudo referenciais ordinários são projeções de estados mentais.
Há aqui uma espécie de processo de "vai-e-vem", um feedback: por meio da meditação, a consciência da vigília é tranformada de um modo não racional-intelectual e a percepção da realidade parece perder suas "ancoras" naturais , seus referenciais fixos; isso, por sua vez, facilita a lucidez onírica. Aumentando e aprofundando a experiência de sonhos lúcidos, por sua vez, a percepção da vigília também se altera, alimentando novamente o ciclo. Na verdade, é como se a vigília e os sonhos se transformassem em uma experiência unificada, uma espécie de meditação permanente.
É possível que os sonhos ordinários sejam resultado de um desbalanceamento entre energia feminina (atenção pura) e masculina (projetiva). O sonho lúcido seria resultante do controle (ou encontro lúcido) de ambas, porém esse é um tema que desenvolverei melhor oportunamente.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Militantes da civilização


Por: MARINA SILVA


NA SEMANA PASSADA o Congresso brasileiro recebeu dois grandes homens: um bengalês e um indiano, ambos cidadãos do mundo. Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz de 2006, criador do Banco da Aldeia, que deu aos pobres microcrédito e oportunidade de gerar emprego e renda. Rajendra Pachauri, Nobel da Paz em 2007 como chefe do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que demonstrou a gravidade do aquecimento global e a urgência de medidas para controlar seus efeitos.
É paradoxal a singeleza com que trazem uma pororoca de desafios que a humanidade não pode banalizar nem deles fugir. Ao lado de seus temas específicos -pobreza e mudanças climáticas-, Yunus e Pachauri são portadores do grande tema oculto de nosso tempo: a coragem, tanto para mudar quanto para manter o que tem que ser mantido.
A sociedade de consumo, amplamente vitoriosa, nos impõe uma derrota acachapante: o fatalismo, a crença de que o mundo é assim mesmo, atracado a um conceito de civilização assustador, cuja medida de avanço é o aumento da capacidade de consumir. Quanto trabalho humano e quanto em recursos naturais e energia são gastos para multiplicar consumo perdulário?
Não fosse nosso insustentável desejo de ter, essa força monumental poderia ser redirecionada para dar habitação digna, saúde, alimentação, educação e meio ambiente equilibrado para todos.
Fatalismo pode ser explicação plausível para tanta inércia diante do que podemos chamar de Consenso dos Insensatos, o conluio de poderes para colocar interesses pequenos sempre à frente quando se trata de combater os impactos da máquina de produzir "civilização" descartável, risco ambiental e exclusão social.
Yunus e Pachauri são pessoas simples, discretas. Ambos se dedicam a levar o extraordinário para o dia-a-dia. Lembram que há espaço para a contribuição de todos, de onde saem as grandes mudanças.
Mostram a conexão inexorável dessa nossa encruzilhada civilizatória: não há soluções isoladas. Os instrumentos são econômicos, tecnológicos, sociais, mas eles serão inócuos sem um redirecionamento de processos e de demandas. Isso implica decisões pessoais e coletivas, culturais e espirituais, éticas e até estéticas. O caminho que leva ao abismo nos dá sinalizações para a volta. Há que fazer escolhas.
Hoje, para quem quiser se engajar, não é mais possível ser só ambientalista, ou só militante de causas sociais, políticas, culturais. É preciso se engajar em tudo, ser militante da civilização.



Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200806.htm