quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A Lua não pode ser roubada


Ryokan, um mestre Zen, vivia a mais simples e frugal das vidas em uma pequena cabana aos pés de uma montanha. Uma noite um ladrão entrou na cabana apenas para descobrir que nada havia para ser roubado.

Ryokan retornou e o surpreendeu lá.

"Você fez uma longa viagem para me visitar," ele disse ao gatuno, "e você não deveria retornar de mãos vazias. Por favor tome minhas roupas como um presente."

O ladrão ficou perplexo. Rindo de troça, ele tomou as roupas e esgueirou-se para fora.

Ryokan sentou-se nu, olhando a lua.

"Pobre coitado," ele murmurou. "Gostaria de poder dar-lhe esta bela lua."




Fontes:

A massa



Por: Luiz Felipe Pondé

"Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?", escreve Luiz Felipe Pondé, professor da PUC-SP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2008. E continua perguntando: "Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto".

Eis o artigo.

Leitores apressados identificam em mim um culto da escuridão. Pensam que me faltaria luz. Daí meu "pessimismo". Não, isso é um engano. Suspeito, sim, que levar as "luzes" a sério demais é sinal de pouca luz.

Confesso, não sou muito moderno. "Seria este colunista um retrógrado?", indaga-se o leitor apressado. Respondo: não se deve ter medo de ser anacrônico. Muitas vezes ser extemporâneo pode ser uma forma de consciência. Hoje, em meio à pressa do cotidiano, gostaria de partilhar com o leitor um desconforto. Há uma relação perigosa entre políticas de saúde e a estupidez das massas: chantagem emocional, humilhação moral, procedimento estatístico, opressão burocrática, constrangimento legal. O leitor apressado, movido por seus vícios, pensará que sou "contra" a saúde, mas não se pode fazer muito contra os vícios. Sei disso porque os tenho aos montes.

Enfrentaremos nos próximos anos novas formas de eugenia que a saúde de massa assumirá ao atingir o formato legal. A violência é invisível quando é legal. Recentemente li nesta Folha uma pequena nota que falava de um projeto da Organização Mundial da Saúde propondo políticas mais agressivas contra a Aids. Ironicamente diria que aí está um alerta para jantares inteligentes: jamais questione políticas como essa; melhor contar, entre dois goles de vinho, sua vida sexual com um pastor alemão.

Cientistas cogitam uma lei que obrigaria toda pessoa acima de 15 anos a fazer todo ano exame de HIV. Já vejo o documento do "HIV zero" com validade de um ano sem o qual você não tira passaporte, não saca dinheiro, não faz seguro de saúde, não casa, não herda. Por que não fazer o mesmo com doenças genéticas e diabetes? As empresas adorariam "administrar" a qualidade da saúde de seus funcionários.

Como nos diz Zygmunt Bauman em seu livro "Modernidade e Holocausto", o mal-estar é um traço da consciência moral moderna. Diante do constrangimento causado pela burocracia da saúde de massa, seriam os incompetentes uma esperança? Sabemos que, num campo de concentração, um soldado bêbado ou corrupto salvaria vidas. Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?

Nunca foi possível abortar e depois ir ao cinema. O avanço da ciência nos impõe impasses éticos antes impensáveis. Avanços dramáticos são aqueles que demandam definições do tipo "o que é o humano?". Novas formas de barbárie invisível podem surgir da relação entre avanços científicos e definições jurídicas. Chama-me a atenção a fúria como as campanhas pró-aborto repetem o movimento de desumanização, agora, do feto: "Feto não é gente, pode jogá-lo fora". Campanhas assim (de definição do "humano") já foram realizadas em outros momentos da história e aplicadas com sucesso a outras vítimas.

Só tolos crêem que juízes possam evitar essa forma de violência invisível. Ao contrário, eles podem ser os agentes dela porque são submetidos ao próprio processo de acomodação que o imaginário cultural produz ao longo do tempo. Um juiz não tem autonomia em relação ao seu momento histórico.

Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto.

Antes de tudo, é necessário desumanizar o feto para atingir o afeto vazio que caracteriza o aborto sem culpa. Sem a agonia moral não existe moral. O leitor apressado, agora também irritado, suporá que nego a possibilidade de uma pessoa ter vida moral sem sofrimento. Confesso, nisso ele está certíssimo. O coração da vida moral é o sentimento de culpa.

Temo que dentro de cem anos essa discussão se acabe. A própria identificação entre sexualidade e reprodução estará extinta. A reprodução será, como tudo mais, mediada pelo mercado, aquele das tecnologias da reprodução. A sexualidade será, por sua vez, algo assim como ir ao cinema.




segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A tradição vence o deserto



Burkina Fasso combate a desertificação e a mudança climática com técnicas tradicionais

Por: Gaëlle Dupont
Enviada especial a Gourcy, Burkina Fasso


Fonte: Le Monde Diplomatique

Um cavalo está amarrado na entrada do quintal de Ali Ouedraogo, no povoado de Gourcy, a 150 km ao norte de Ouagadougou, a capital de Burkina Fasso, em pleno Sael [faixa de campos áridos ao sul do deserto do Saara]. Não é uma coisa banal: um animal é um sinal de sucesso, a prova de que aos 78 anos Ali Ouedraogo vive melhor que seus vizinhos, agricultores como ele. No meio de seu quintal, três paióis circulares estão cheios de sorgo até o topo. Eles contêm o suficiente para alimentar toda a família até a próxima colheita, em setembro, talvez até mais. Quarenta pessoas, entre elas uma fieira de crianças, vivem disso, enquanto outras famílias já enfrentam escassez. Elas terão de sobreviver com babenda, um mingau com gosto de espinafre velho, feito de um punhado de cereais e muitas folhas.

Os campos de Ouedraogo não se parecem com os de seus vizinhos. Aqui o hábito é desmatar, plantar e colher até esgotar o solo, depois recomeçar um pouco mais longe. Os agricultores deixam para trás uma terra estéril, nua como um piso de cerâmica. Com o aumento da população cresce a necessidade de terras e mais se esgota o solo. É a engrenagem da desertificação, agravada pelos fatores climáticos.

Para Ali Ouedraogo tudo mudou em 1983. "Naquele momento a situação era muito dura", ele conta. "Não havia chuva, as colheitas eram ruins, eu pensava em deixar a região." Muitos emigraram. Ele decidiu ficar e cuidar das terras degradadas, que ninguém queria na época. Com a ajuda de uma organização não-governamental dedicada ao combate à desertificação, ele pouco a pouco bateu recordes de produtividade. Hoje colhe em média 1.500 quilos de sorgo por hectare, contra 800 quilos nas melhores terras das redondezas.

Para isso não houve necessidade de máquinas agrícolas, adubos químicos ou sementes milagrosas. Os agricultores não poderiam pagá-los. Nem de represas, pois o relevo não se presta. São necessárias pedras, picaretas, pás, um nível para calcular o sentido do escoamento da água e muita mão-de-obra. O objetivo é impedir a erosão e reter o máximo de água no solo.

"Trata-se de técnicas rurais tradicionais, aperfeiçoadas por agrônomos", explica Matthieu Ouedraogo, que forma os agricultores. Nos campos, fileiras de pedras, batizadas de cordões pedregosos, são feitas ao longo das curvas de nível, desenhando pequenos terraços. Árvores são plantadas aí. Barreiras em forma de meia-lua retêm a água em microbacias. Os "zai", buracos com 20 cm de profundidade onde as sementes são plantadas em esterco, permitem uma infiltração mais profunda da água.

"Todas essas técnicas contêm o escoamento da água", continua Matthieu Ouedraogo. "Pouco a pouco a terra se regenera." E as árvores que crescem nos terrenos fornecerão lenha que não será mais retirada da mata...

"Com essas técnicas podemos deixar o Sael verde de novo", afirma Souleymane Ouedraogo, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente e Pesquisas Agrícolas (Inera). "Contivemos a desertificação, aumentou a fertilidade das terras, e, portanto a produção de cereais e de ração para os animais, a biodiversidade se recupera." Bastam quatro ou cinco anos para obter bons resultados nas terras degradadas.



Por que então todo o Sael não é transformado? Em Burkina Fasso, cerca de 300 mil hectares estariam preparados, ou seja, menos de 9% da superfície cultivável do país. "Essas técnicas não são muito caras, mas é preciso um investimento inicial", explica Bertrand Reysset, engenheiro agrônomo do Comitê Inter-Estados de Combate à Seca no Sael (Cilss), que reúne nove países da região.

O investimento chega em média a 130 euros por hectare. É preciso alugar um caminhão e pagar o combustível para buscar as pedras, comprar um mínimo de material, pagar a mão-de-obra durante os trabalhos. Uma formação e um acompanhamento são necessários. Tudo isso está fora do alcance dos agricultores que trabalham com foice, dobrados em dois nos campos. Os bancos não lhes dão crédito. Os projetos implementados tiveram o financiamento de ONGs.

Essas técnicas, experimentadas desde os anos 1980 no âmbito do combate à desertificação, seriam muito úteis para adaptar-se à mudança climática. "Os modelos climáticos prevêem um aumento da freqüência de acontecimentos extremos, um prolongamento da estação seca, precipitações mais concentradas e torrenciais", explica Edwige Botoni, especialista em gestão de recursos naturais do Cilss. "Isso terá um impacto negativo na produtividade do solo."

A estação de chuvas de 2007 foi um exemplo perfeito disso. Ela começou atrasada e toda a água caiu ao mesmo tempo, em agosto, provocando inundações. "A luta contra a desertificação e a adaptação à mudança climática coincidem em 90%", afirma Reysset.

Todos esperam que a crise alimentar mundial faça mudar as coisas. Eles ouviram o discurso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que apelou para "aplicar esforços na agricultura de sobrevivência subsaariana" em 3 de junho em Roma, durante a cúpula sobre a alimentação. A agricultura é um parente pobre há 30 anos. Ela representa apenas 5% da ajuda pública ao desenvolvimento, e são raros os países que lhe dão prioridade. Ela vem depois dos ambulatórios, escolas, estradas...

Na aldeia de Guiè, ainda no norte de Burkina, a ONG Terra Verde obteve resultados especialmente espetaculares, criando um "bosque saeliano", segundo a expressão de seu fundador, Henri Girard, um engenheiro agrônomo francês. Cercas vivas protegem o solo da erosão. Com uma mecanização mínima, uma pequena dose de fertilizantes químicos, variedades selecionadas e rotações culturais bem escolhidas, a região reverdeceu e a produção é quatro vezes superior à média.

"É a prova de que não há fatalidade, que mesmo com nossos solos e nossos climas tudo é possível", comenta Hamado Sawadogo, agrônomo do Inera. O investimento inicial foi de 400 euros por hectare. Mas a evolução das práticas também exige uma mudança de mentalidade. "As pessoas aqui são fatalistas: se eu sou pobre, se perdi minha colheita, foi Deus quem quis", explica Girard. "Mas alguns se levantam. A cada 50 km há alguém disposto a se mexer."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Fonte: Le Monde Diplomatique

domingo, 28 de dezembro de 2008

O RITUAL DO CORPO ENTRE OS NACIREMA (1)



Por: Horace Minner (2)

O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos pelos quais diferentes povos reagem diante de situações similares, que não consegue se surpreender mesmo com os costumes mais exóticos. Com efeito, se todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presente em alguma tribo ainda não estudada. Essa observação já foi, de fato, feita com respeito à organização clânica por Murdock (1949:71). Nesse sentido, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece desejável descrevê-las como exemplo dos extremos a que o comportamento humano pode chegar.
O Prof. Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Nacirema, há vinte anos (1936:326), mas a cultura desse povo é ainda muito pouco compreendida.
Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po-To-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade.



A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são dispensados em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de preocupação não seja incomum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia associada são únicos.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é se prevenir dessas características, através do uso de poderosas influências rituais e cerimoniais. Todo grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos dessa sociedade têm vários santuários em suas casas e, de fato, a opulência de uma casa é freqüentemente aferida em termos da quantidade que possui desses centros rituais. A maioria das casas é de taipa, mas os santuários dos mais ricos têm as paredes cobertas de pedra. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas de cerâmica nas paredes dos seus santuários.
Embora cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isso apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nesses mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar esses santuários e ouvir descrições desses rituais.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nessa arca são guardados os muitos feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados são obtidos de vários profissionais especializados. Entre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços precisam ser recompensados por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para os seus clientes, decidindo apenas quais devem ser seus ingredientes e escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrita só pode ser compreendida pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço solicitado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, e sim colocado na caixa de mágicas do santuário doméstico. Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e as doenças reais ou imaginárias desse povo são muitas, a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado muito vagos a esse respeito, podemos apenas concluir que a idéia subjacente ao costume de se guardar todos esses velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágicas, diante da qual os ritos do corpo são encenados, protegerá de alguma forma o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa d'água, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte, e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiros em termos de prestígio, estão especialistas cuja designação é melhor traduzida por "homens-da-boca-sagrada". Os Nacirema têm um horror e uma fascinação pela boca que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possua uma influência sobrenatural em todas as relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Nacirema acreditam que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, e seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca das crianças que se supõe desenvolver sua fibra moral.



O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar do fato de essas pessoas serem tão meticulosas no que diz respeito ao cuidado da boca, esse rito envolve uma prática que o estrangeiro não-iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme foi-me descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós mágicos, seguida da movimentação desse feixes segundo uma série de gestos altamente formalizados.
Além desse rito bucal privado, as pessoas procuram um "homem-da-boca-sagrada" uma ou duas vezes por ano. Esses profissionais possuem uma impressionante parafernália, que consiste em uma variedade de perfuratrizes,
furadores, sondas e agulhas. O uso desses objetos no exorcismo dos perigos da boca envolve uma tortura ritual do cliente quase inacreditável. O "homem-da-boca-sagrada" abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nesses buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são cerradas, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na visão do cliente, o objetivo dessas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito fica evidente no fato de que os nativos retomam todo ano ao "homem-da-boca-sagrada", apesar do fato de que seus dentes continuam a se deteriorar.
Deve-se esperar que, quando um estudo abrangente dos Nacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura da personalidade desses nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um "homem-da-boca-sagrada", quando ele enfia uma agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que uma certa dose de sadismo está presente. Se isso puder ser verificado, um padrão muito interessante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas bem definidas. Era a tais tendências que o Prof. Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do corpo que é realizada apenas pelos homens. Essa parte do rito envolve uma lanhadura e laceração da superfície do rosto por meio de instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que lhes falta em freqüência sobra em barbárie. Como parte dessa cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo que parece ser predominantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.
Os curandeiros possuem um templo imponente, ou latpso, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas nesse templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais, que se movimentam calmamente pelas câmaras do templo com uma indumentária e um penteado distintivos.
As cerimônias latpso são tão rudes que é impressionante o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-las ao templo, alegando que "é aonde você vai para morrer". Apesar disso, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se eles possuem meios para tanto. Os guardiões dos muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência, não admitem o cliente se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que conseguiu a admissão e sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.



O(a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Nacirema evitam a exposição de seus corpos e de suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, onde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. Choques psicológicos resultam da súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latpso. Um homem, cuja própria mulher jamais o viu enquanto realizava um ato excretório, subitamente encontra-se nu, assistido por uma vestal, enquanto executa suas funções naturais dentro de um vaso sagrado. Esse tipo de tratamento cerimonial é necessário porque os excrementos são usados por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, vêem seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e cutucadas dos curandeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficarem deitados em suas camas duras. As cerimônias diárias, como os ritos do "homem-da-boca-sagrada", envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm a seus pacientes e introduzem agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que essas cerimônias do templo possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como "escutador". Esse feiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos. As mães são particularmente suspeitas de amaldiçoarem suas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contra-magia do feiticeiro "escutador" é singular por sua ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "escutador" todos seus problemas e medos, começando com as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Nacirema nessas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam mesmo a localizar seus problemas retrocedendo aos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.



Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às suas funções naturais. Há jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres, se eles são pequenos, e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas, que podem viver muito bem simplesmente indo de aldeia a aldeia, e permitindo aos nativos admirá-las mediante um pagamento.
Já fizemos referência ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto. As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, e programado enquanto ato. Esforços são feitos para evitar a gravidez por meio do uso de materiais mágicos, ou pela limitação do intercurso a certas fases da lua. A concepção é realmente muito pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto ocorre em segredo, sem amigos ou parentes para assistir, e a maioria das mulheres não amamenta seus bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Nacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas mesmo costumes tão exóticos quanto esses ganham seu verdadeiro sentido quando vistos a partir da perspectiva dada por Malinowski, quando escreveu (1948:70):
"Olhando de cima de longe, de nossos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e irrelevancia da magia. Mas sem seu poder e sua orientação, o homem primitivo não poderia ter superado suas dificuldades práticas como o fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização."

REFERÊNCIAS CITADAS

LINTON, RALPH 1936 The Study of Man. NewYork, D. Appleton-Century Co.

MALINOWSKI, BRONISLAW 1948 Magic, Science, and Religion. Glencoe, The Free Press

MURDOCK, GEORGE P. 1949 Social Structure. New Y ork, The Macmillan Co.

1 Publicação original: “Body ritual among the Nacirema”, American Anthropologist, Vol. 58, n° 3
(1956). p. 503-507.
2 University of Michigan, professor.




Extraído de: Blog Epifenomenologia

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O filósofo das HQs




Edgar Franco

Entrevista com Edgar Franco


Prolífico colaborador de fanzines e alternativos, Edgar Franco é o artista de quadrinhos herméticos, prenhos de reflexoes filosóficas, numa linguagem poética bem particular, mas que se destaca também por desenhos bem caracteristicos, humanóides de ambos os sexos e/ou hermafroditas, seres mitológicos, paisagens oníricas biomecanóides, que lembram a arte de Moebius, Caza, Bilal, Giger e outros mais.

- Idade, onde nasceu e cresceu, estado civil, filhos, formação acadêmica e profissional.

Estou atualmente com 31 anos, nasci na cidade de Ituiutaba no Triângulo Mineiro (sou extremamente telúrico, tenho que ir para minha cidade natal pelo menos duas vezes ao ano para repor minha energias...), sou casado com Rose já há 4 anos e estamos juntos a 12 (ela é minha conterrânea-alma gêmea), ainda não temos filhos. Sou graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília(UnB), em 2001 conclui o mestrado em multimeios na Unicamp , onde estudei a linguagem das HQs na Internet, o que resultou na dissertação "HQtrônicas (Histórias em Quadrinhos Eletrônicas) – Do Suporte Papel à Rede Internet,- ver artigo - e atualmente faço doutorado em artes na Escola de Comunicações e Artes da USP. Além de criar HQs para revistas & zines, trabalho com ilustração (capas de CDs & Livros), web arte e sou professor dos cursos de arquitetura e urbanismo & ciência da computação da PUC - MG, na unidade de Poços de Caldas, cidade onde resido atualmente.



-O quê e quando iniciou seu interesse pela Literatura, Quadrinhos e Cultura Pop em geral? Na infância você lia muito, tanto HQ quanto Literatura mainstream? Pode citar autores e obras que o influenciou?

Meu pai é um leitor inveterado, tem atualmente uma biblioteca com mais de 5.000 volumes, envolvendo todos os gêneros e assuntos, desde tenra idade eu cresci no meio dos livros, e foi muito natural o meu descobrimento do universo das letras. Meu pai sempre me deixou livre para escolher o que ler e inicialmente tive o meu interesse despertado por contistas como Edgar Allan Poe (meu nome é uma homenagem de meu pai a Poe e Edgar Wallace, dois autores que admirava na época), Guy de Maupassant, O. Henry, Ray Bradbury, isto por volta dos 10-11 anos. Mas desde tenra idade meu pai já comprava gibis pra eu ler, Disney, Brotoeja, Mortadelo e Salaminho, Mônica, durante uma fase li poucos gibis e me concentrei mais na literatura, foi por volta dos 13 anos que comecei a retomar gradativamente o interesse por quadrinhos, isso veio junto com a paixão pelo desenho, e na época um certo apreço pelas temáticas mórbidas, pelo horror. Eu assisti meu primeiro filme de horror aos 4 anos de idade, foi a versão clássica (p&b) de "O Fantasma da Ópera" que passou numa sessão noturna de TV em 1976, meu pai iria assistir ao filme, eu pedi a ele se podia ver também e ele deixou, até hoje ele se lembra bem de meu interesse e atenção, assisti tudo até o fim e nem precisei dormir na cama dos meus pais, he,he. Eu não gostava de super-heróis, não lia mesmo, achava um saco principalmente porque quando tentei ler parece que o gênero vivia uma fase horrível, só tinha herói dando porrada em herói, fui ter interesse novamente em super-heróis na década de oitenta, quando surgiram as obras clássicas de Frank Miller, Alan Moore, Grant Morisson; a única exceção foi o Conan, eu gostava de muitas HQs, principalmente as arte finalizadas pelo Alfredo Alcala. Mas o que eu lia mesmo era terror nacional, colecionava as revistas da D-Arte (que traziam trabalhos maravilhosos de Mozart Couto, Rodval Matias, Colin, Cortez, Ofeliano) e também garimpava nos sebos as antigas Kripta (com quadrinhistas clássicos dos EUA) e as Spektro & Pesadelo da Editora Vecchi. Foi também na década de 80 que vim a tomar contato com a HQ européia, conheci através da revista Animal e me deslumbrei, a partir dali vi que o que eu começava a criar tinha mais semelhanças com aquelas propostas do que com tudo que eu já tinha visto de quadrinhos. Só mais tarde fui conhecer autores como CAZA e DRUILLET dos quais sou grande admirador, mas considero que eles me influenciaram pouco, o meu trabalho já seguia o caminho atual quando me deparei com as obras deles, foi mais um lance de identificação do que uma influência propriamente dita. Eu sou mais influenciado pela literatura, artes plásticas e música do que pelos quadrinhos, gosto de citar como influência sempre o que estou lendo/vivenciando no momento, por isso agora estou sobre a influência do pensamento de Ken Wilber (Escritor e ensaísta americano, um dos criadores da psicologia transpessoal autor de " O Espectro da Consciência"), Rupert Sheldrake (polêmico biólogo que concebeu a "Teoria dos Campos Morfogenéticos"-veja Entrevista), Peter G. Bentley (autor de "Biologia Digital", livro onde eles questiona as noções vigentes do que é real e o que é virtual), Hans Moravec (cientista norte americano, estudioso de robótica e I.A. e autor de "Robot – Mere Machines to Transcendent Mind"), Stelarc (artista australiano que defende a tese de que "O Corpo Humano Está Obsoleto"), Eduardo Kac (que faz experimentos com "arte transgênica") e Stanislav Grof (criador da teoria da "mente holotrópica").



Ken Wilber



Na música tenho experimentado as vibraçoes de bandas como Negura Bunget (da Transilvânia), Rakoth (da Russia), Thee Maldoror Kollective, Napalmed, Recalcitrant, Dismal, Brighter Death Now, Daniele Brusaschetto, entre outros, inclusive tenho um site chamado KREPUSKULUM, onde faço resenhas e entrevistas com bandas underground do mundo inteiro, já está na décima edição, com mais de 700 resenhas de CDs e 90 entrevistas, quem quiser conhecer visite: http://www.geocities.com/krepuskulum/ .

-Como se iniciou profissionalmente no gênero e qual foi sua primeira atividade?

Bem, eu já publiquei HQs esporadicamente em diversas revistas, algumas que tiveram distribuição nacional, como a Metal Pesado e a Quark, mas também tive HQs publicadas em revistas como Quadreca (Eca/USP), Fêmea Feroz, Ervilha e no álbum Brazilian Heavy Metal, além de outras diversas HQs publicadas em revistas underground e alternativas do Brasil e Europa (Alemanha, Romênia, Portugal, Espanha, França e Inglaterra). Mas minha maior produção está concentrada nos fanzines, já publiquei em mais de 400 títulos, incluindo várias edições solo, e já ultrapassei a marca das mil páginas. Comecei a publicar em zines com 13-14 anos, quando criei minha primeira HQ, o nome do zine era Odisséia; o trabalho trazia um horror meio visceral, tinha o título de "O Filho de Lúcifer", mas já dava pra perceber a veia poética contaminando a narrativa.
Falar em "profissionalmente" para artistas dos quadrinhos no Brasil é piada, praticamente ninguém trabalha "profissionalmente" na atualidade...é complicado. Mas meu trabalho também sempre foi motivo de resistência por parte dos editores, é tido como hermético, pretencioso, ou não é considerado como quadrinhos por alguns, ou é tachado de setentista, hippie, ultrapassado, pornográfico, ou vanguardista demais...tenho colecionado dezenas de adjetivos que tentam denegrir minha proposta artística, mas apesar deles vou dando continuidade à obra, pois faço por prazer, por paixão. Se o Brazil tivesse um mercado de quadrinhos, artistas como eu, Gazy Andraus & Antônio Amaral seríamos os últimos da fila a sermos procurados pelos editores, já que não temos esse mercado, temos que nos contentar com a auto-publicação e com as oportunidades esporádicas e com o maravilhoso universo dos zines.




-Quando foi seu primeiro contato com o trabalho de Alan Moore e qual obra lhe causou algum impacto especial?

Comecei com "A Piada Mortal" e depois li o "Monstro do Pântano", fiquei fascinado com a densidade do texto, com as sutilezas do roteiro e a forte veia literária de Moore, são dois trabalhos impactantes, assim como a clássica "Watchmen", que desconstrói os famigerados Super-heróis e trabalha com propriedade os conceitos definidos pela Teoria do Caos (Gian Danton fez sua dissertação de mestrado analisando este aspecto da obra!). Tem um álbum que me foi emprestado pelo amigo Gazy Andraus, "A Small Killing", que é muito pungente, poderoso, um dos mergulhos de Moore na psicanálise Freudiana, implodindo-a em certos aspectos, é um trabalho que me impressionou muito, ainda mais depois que li um artigo de Andraus que desvela todo o subtexto desta obra.

-Preciso ver isto com o Gazy, urgente. Qual trabalho do mago bardo de Northampton que você considera sua obra-prima e porquê?

Como disse, gosto de diversos trabalhos e de maneiras diferentes, "V de Vingança", por exemplo, é muito interessante, mas muito diferente de "A Piada Mortal", ou de "Watchmen", não tenho predileção, são todos obras de uma mente genial, obrigatórios para aqueles que querem conhecer a fundo a importância das HQs enquanto gênero narrativo e artístico.

-Ao seu ver, quais foram as inovações mais importantes do autor? Especificamente sobre Watchmen e sua instigante forma narrativa – já apelidada de O Cidadaõ Kane da Nona Arte – o que tem a nos dizer?

O que mais me impressiona é que Moore parece não ter essa pretensão de ser genial, ele quer só escrever boas histórias, eu não me considero em nada inspirado pelo seu trabalho (pois como disse, ele esbarra muitas vezes no literário, eu gosto disso, mas minha proposta artística caminha em outra direção) que encontra eco no Brasil principalmente na obra de Gian Danton,- veja Entrevista - um fã confesso de Moore. Moore é sempre genial, mas esbarra no problema dos desenhistas, nem sempre eles são tão capazes quanto ele, Dave Gibbons é uma exceção maravilhosa!

-Voce acha que ainda existe espaço para seres musculosos e com super-poderes, metidos em colantes, na verdadeira Cultura Pop, mais madura? Pergunto porque muitos fãs dos super-heróis, ao mesmo tempo que admiram Alan Moore, o detestam por considerar que ele praticamente destruiu o gênero com Watchmen. E você?

Como já disse, nunca gostei do gênero Super-Heróis, se ele acabasse, para mim a cultura humana perderia muito pouco, a cultura pop talvez sofresse um abalo momentâneo...Os Super-Heróis são um produto Norte Americano, é claro que foram influenciados pelos herós clássicos gregos, mas eles são produtos do narcisismo e nacionalismo dos EUA, a megalomania de Tio Sam está refletida nestes tais seres de colante, eles são sua principal metáfora, seu arquétipo pós-moderno, o nacionalismo é um dos últimos bastiões dos idiotas, dos alienados. Mas eles já se infiltraram no inconsciente coletivo do ocidente, são onipresentes, mesmo que as novas gerações não estejam lendo quadrinhos como as anteriores, eles estão renascendo nos blockbusters de Hollywood, nos games para computador, veja estes novos produtos cinematográficos: Hulk, Demolidor, Homem Aranha, X-Men, etc.
Mas como um defensor da pluralidade, não faço uma cruzada contra os super-heróis, quem gosta e quer gastar seu dinheiro com eles, eu respeito, sem neurose nenhuma, só fico preocupado quando vejo os moleques idolatrando esses serviçais que trabalham como operários do traço para os americanos como se fossem "Deuses"...os caras nem sequer podem assinar o próprio nome, isso é se vender sim, não é só se adaptar, é cooptar com a condição de alienado, de operário nos moldes da revolução Industrial...Se fosse assim, uma adaptação apenas, os americanos iriam mudar também o nome dos diretores de cinema estrangeiro que fazem sucesso por lá, assim o Pedro Almodóvar poderia virar "Peter All Mod Over", o que você acha!!!
Mas agora tem também a proliferação virótica dos tais mangás, e dá-lhe lixo descartável no mundo da cultura Pop, é claro que existem bons trabalhos, mas no geral é tudo muito ruim, um negócio de misturar mitologia grega de boutique, com moleques dando voadora & karatê em todo mundo, virando robôs transformers e soltando raio (urghhhhh!), nem os super-herós conseguiram a façanha de serem tão ruins, e têm também aquelas centenas de milhares de páginas que não dizem porra nenhuma, umas sagas que possuem dez mil páginas, para contar histórias que dá pra narrar em 40 (um dos novos álbuns do mestre Shimamoto, conta em 48 páginas a saga de um dos míticos samurais do Japão, já uma série japonesa leva dezenas e dezenas de números de 100 páginas para contar a mesma história...revistas mensais que custam mais de 5 reais cada!!!!). Eu desenvolvi meu processo narrativo sempre em espaços exiguos (os fanzines), normalmente você tem de 3 a 5 páginas para contar uma história, tem que ser breve, ter poder de síntese, o exemplo mais radical desse narrativa enxuta é uma saga chamada Elegia que editei há alguns anos, são 3 volumes de 6 páginas cada, e contam a tragetória de vida de um personagem (vou relançá-la em volume único em breve).

-Tambem tenho o album do mestre Shima sobre o lendario Musashi. E a "vagabond" ja´ parei de comprar,por falta de grana tambem...E From Hell, você acha que Moore conseguiu atingir plenamente seu intento de forjar em uma HQ o caldeirão que nos preparou o Século XX, com toda sua paranóia, conspirações, contradições, horror e beleza?

Eu não li From Hell, ainda não tive grana pra comprar a série, está muito cara, dei uma olhada nos volumes e li muitos bons comentários a respeito, preciso guardar uma grana e comprar essa série, pois sei de sua importância e pungência...

-E a versão para o cinema agradou? Porque? O que espera da de Liga dos Cavalheiros Extraordinários?

Eu vi o filme e gostei sim, sei que ele não tem praticamente nada a ver com os quadrinhos, mas é um bom filme, tem clima, boa narrativa e personagens bem construidos (nesse sentido ele lembra a proposta de Moore, talvez seja por esse motivo que ele manteve seu nome nos créditos!).
Também não li "A Liga dos Cavaleiros Extraordinários"...

-Sei que você tem uma formação eclética, se podemos definir assim.O que pensa da Magia?

Eu penso que a magia permeia tudo, a vida é uma forma de magia, o estudo dos processos físicos e químicos que ocorrem em nosso corpo material não é suficiente para explicar o milagre da consciência; a ciência acadêmica, racional, é realmente digna de pena quando tenta explicar fenômenos naturais como os processos da vida e da consciência, o surgimento do Universo, a Eternidade, o Nada. Eu acredito que de certa forma somos imagens holográficas do Universo, nós contemos o todo e o todo nos contém (teoria holográfica de Stanislav Grof), dessa forma temos uma conexão muito profunda com todas as forças que regem a natureza (o Universo), estamos conectados a tudo e a todos, muitos estudiosos de "magia" e pesquisa da consciência, estudam na verdade canais que nos permitem uma conexão direta com essas forças da natureza, intrínsecas & extrínsecas à existência. Eu me interesso por esses estudos, pela manifestação dessas forças e pelas metáforas que elas envolvem.

-Outra obra interessante sobre isto e´”O Paradigma Holográfico” (Pensamento).E da obra Big Numbers a inacabada magnus-opus de Alan Moore, que através da Teoria do Caos e seus Fractais, a vida de uma comunidade representando o macrocosmo, tentaria explicar o próprio Universo?

Eu me interesso muito pela teoria do caos, e por todas essas novas teorias científicas que abalam a estrutura da física Newtoniana, mostrando que o fluxo dos acontecimentos não pode ser contabilizado em termos de ações e reações de intensidade semelhante, elas exemplificam bem a falência completa da ciência (até o momento) em tentar explicar os fenômenos...O princípio da causa e efeito adquire outras proporções, um simples piscar de olhos pode provocar um deslocamento de elétrons que desencadeará um processo que finalmente culminará em um maremoto na outra extremidade da Terra, ou porque não irmos mais longe, esse piscar de olhos pode provocar o surgimento de uma nova estrela daqui a milhões de anos, nenhum ato, por insubstancial que pareça pode ser desconsiderado. No início dos anos oitenta li uma HQ de Steve Ditko (acho que foi na Kripta), que era pura teoria do Caos, narrava a história de um cientista que desenvolve uma máquina do tempo e vai para o passado, para a pré-história, antes do surgimento do homem, ele desce da máquina para ver melhor o ambiente e sem que perceba pisa em um pequeno lagarto, quando ele retorna para o tempo presente fica assustado, todos os seres humanos tem feições e corpo de lagarto!!!! É simples e muito impactante, a morte de um único lagarto desviou todo o processo de evolução da espécie humana, antes de Moore, Ditko já falava de Teoria do Caos (antes mesmo das bases da teoria terem se solidificado). Mas eu gostaria imensamente de conhecer os volumes publicados de Big Numbers!!! Por acaso você têm??? Se tiver gostaria de piratear uma cópia....

- Eu conheço essa estoria, que e´ um conto clássico da Ficção Cientifica escrita por nada mais nada menos que Ray Bradbury, o poeta do gênero. E se nao me falha a memória, o desenhista (dessa versao da saudosa Kripta) foi o filipino Alex Nino, compatriota do Alfredo Alcala. Você acha que uma HQ tem a capacidade de abarcar tamanha complexidade e ser compreendida?

Eu acredito que as HQs como qualquer outra forma de linguagem têm um potencial ilimitado, elas se prestam a qualquer assunto, gênero, tendência, têm as particularidades que a tornam um meio de expressão único, tão poderoso quanto qualquer outro. O hermetismo de uma obra depende muito do referencial do leitor, acho que o autor deve ter consciência do público com o qual ele quer dialogar, deve ter consciência das pessoas que quer alcançar, se eu faço HQ infantil, tenho que ter em mente o público para o qual o trabalho se destina. No caso específico dos meus quadrinhos, eu tenho consciência de que o meu público leitor será sempre pequeno, eu faço HQs poéticas e filosóficas que exigem uma certa espontaneidade, disposição para o novo, interesse por assuntos que vão da metafísica à biotecnologia, para aqueles que são abertos à trabalhos menos literários e mais poéticos, menos literais e mais sutis, é claro que a compreensão da mensagem dependerá do discernimento desse leitor, de seu referencial, assim existem infinitos níveis de interpretação, mas quando faço uma HQ tenho uma idéia em mente, uma mensagem, uma reflexão a passar, a compreensão ou não dessa mensagem dependerá do leitor, mas eu não acho que o artista deva "esquartejar" o seu ideário ou mastigar a mensagem para que ela fique insonsa e fácil, a não ser que esse seja o seu desejo (normalmente é o desejo dos editores, he, he!). Eu não faço HQ pra vender, eu não me vendo, sou autêntico, tenho consciência do preço a pagar por fazer essa opção. Penso que autores como Moore também têm plena consciência disso e quando criam obras como BIG NUMBERS sabem que o público para elas será exiguo, seleto (é por isso que a série parou de ser publicada...não vendeu, os editores cortam mesmo, se eu fosse o Mooore publicava esse negócio em Fanzine, he,he!!!).

- Mais um esclarecimento: BN nao parou por falta de venda e a editora era do proprio Moore, a Mad Love. Parou porque ele se desentendeu com o artista Bill Sienkiewicz (Bill achou na época o roteiro de Moore muito ditatorial, nao dando margem para o artista fazer nada que o autor não quisesse), seu sucessor Al Columbia simplesmente “endoidou” ao fazer o 4ª numero, tanto que destruiu os originais e desapareceu) e, finalmente, mais por boicote das grandes editoras e distribuidores, o famigerado establishment, a Mad Love quebrou. Mas, ainda nesta direção metafísica, qual é a sua concepção do Tempo? Considera-o a Quarta Dimensão do Espaço, como teorizou Einstein ou tem outra visão?

Uma das últimas concepções sobre o tempo que mais me fascinaram foi a de Ken Wilber, na verdade o tempo não existe, não é outra dimensão, o que existe é um eterno agora, infinito, e nossa existência é infinita pois estamos sempre nesse eterno agora, gravado na essência do Universo, o passado/presente e futuro são prognósticos falsos criados por uma das válvulas de nossa percepção para que possamos compreender o mundo; veja como os nossos processos de pensamento não são lineares (são hipertextuais, damos saltos quânticos a todo momento), mas a nossa concepção de nossa existência é linear, pois ela é baseada nessa noção de tempo linear que corre do passado para o futuro. Eu tenho uma HQ chamada ATEMPORAL (publicado no fanzine Bifa de Marcelo Garcia) que metaforiza isso, o ser coexiste em todos os seus pseudo tempos : infância –maturidade e velhice, mas não existe linearidade/processo, é tudo coexistente, um eterno agora, como no Retroagir da cultura Indu, dos Vedas





-Realmente.Também tenho algumas obras do Wilber,”o careca”, alem de muitos ensaios e lectures baixados da web. E veja você que ate´ a Ciência parece abraçar também essa teoria: o físico britânico Stephen Hawking também considera o tempo como um sólido, onde tudo esta´se passando simultaneamente, portanto, se pudéssemos “se examinados” por um ser “fora do tempo”, ele nos veria como uma gigantesca centopéia, com milhares de pernas e braços e cabeças, se esticando desde de um bebe ate´ um velhinho, por todos os lugares – e tempos – por onde já passamos – mais ou menos como Kubrik tentou visualizar no antológico final de seu “2001”.Como você imagina um ser ou objeto (como o Tesserato) da Quarta Dimensão? (se pudesse aparecer a nos, pobres materializações tridimensionais que somos ?

Este é um grande paradoxo, o paradoxo de nossa limitação perceptiva, é impossível para nós concebermos algo que foge de nosso paradigma perceptivo, H. P. Lovrecaft tinha uma palavra muito certeira e poderosa para descrever as criaturas de seus mitos terroríficos, ele dizia "o inominável", "o indizível", é brilhante. Stanislaw Lem faz a mesma coisa em Solaris, para mim um dos maiores livros de "filosofia" (embalada num pacote de FC)de todos os tempos, ele nos mostra que sempre que falamos em outras vidas, extra terrestres, estamos falando sobre o nosso paradigma, estamos procurando espelhos, será que se essa outra forma de vida aparecesse teriamos percepção para compreendê-la? Será que ela já não existe??...veja a teoria de Gaia (a Terra é um organismo vivo, um ovo em gestação) de Lovelock, é muito interessante, mas para a ciência e para a maioria das pessoas é inconcebível!!! Esses dias vi um filme B que trata dessa questão da quarta dimensão, chama-se "O Cubo 2", vale a pena ser visto, pois apresenta uma visão curiosa para o conceito da quadridimensionalidade.


Ken Wilber




-Me interessei muito! Sou apaixonado por esse instigante tema. Inclusive, num nº de sua “1963”, Alan Moore tenta mostrar justamente como seria essa quarta dimensão se a pudéssemos “exergar”, e e´ muito interessante.Ele brinca inclusive visualmente, com o “mundo bidimensional” que e´ a pagina dos Quadrinhos, mostrando figuras geométricas impossíveis, ilusões de ótica,etc.Já li em algum lugar que você se interessa pela imberbe Teoria do Caos, com seus Fractais e o popular "efeito borboleta". Quais suas considerações a respeito e como acha que esta teoria pode ser aproveitada por exemplo em algum enredo – HQ ou literário?

Tenho pelo menos uma meia dúzia de HQs curtas que tratam da Teoria do Caos, tenho muitas idéias envolvendo esse tópico...

-Dos meus entrevistados ate´ agora, você e´ um dos poucos que leu as obras do matemático-filósofo soviético P.D. Ouspenski, do qual sou estudioso. Qual o seu entendimento para as teorias dele sobre o Tempo e a 4ª Dimensão – ver final do meu artigo Holismo e Caos em Big Numbers – em suas obras – ao meu ver – mais expressivas, Tertium Organum e Um Novo Modelo de Universo (Editora Pensamento)?

Eu li alguns trabalhos de Ouspenski, gosto da forma densa com que desenvolve suas teorias, partindo de uma certa aura acadêmica proveniente de sua formação racionalista de matemático, acho que ele é brilhante em algumas de suas visões, mas peca em outras, discordo em partes em seu entendimento das dimensões, sobretudo pela classificação evolutiva que dá a elas, colocando alguns animais em segundo plano, como menos perceptivos (só com percepção bidimensional), acho que é meio reducionista (ranço racionalista), mas é brilhante na concepção dessa quarta dimensão, e tem solidez matemática para criar a conceituação. O seu mestre Gurdjieff é mais leve, brincalhão, jocoso, vivo, é um verdadeiro mago, no sentido mais profundo que essa palavra engendra, por isso sempre foi tido como charlatão, mas é mais profundo e contundente. Uma das teorias que Ouspenski resgata, a da Lua como organismo que apreende energia da Terra, é assustadora e muito intrigante.

-E a teoria dele de que a reencarnaçao seria na verdade um circulo vicioso, como a serpente mordendo a cauda – ou seja, que na verdade nos sempre nos reencarnaríamos em nos proprios, vivendo a mesma vida eternamente e somente pequeninas modificações e´que, aos poucos, iria nos libertando desta vida material compulsória? (em Tertium Organum).

Pois é, de certa forma essa teoria é muito semelhante à da inexistência do tempo de Ken Wilber, ao "eterno agora", mas o equívoco de Ouspenski está nessa necessidade de acreditar que há uma "evolução", mais uma vez é um ranço da racionalidade cartesiana, onde tudo tem que ter um motivo, um resultado, neste ponto prefiro a visão de Wilber: o "Ouroboros Eterno", pura e simplesmente...

-Alan Moore e´adepto fervoroso da Cabala – inclusive toda a serie Promethea gira em torno dessa “escola”. Como você encara a Cabala? Vê utilização pratica de seus conceitos?

Como muitos outros tratados herméticos de evolução e transcendência a Cabala é um instrumento legítimo para a busca dessa quintessência transcendente, mas existem infinitos caminhos para essa elevação, alguns são pré-estabelecidos, outros são criados pelo navegante, William Blake fez de sua arte o seu "processo alquímico", eu tenho trabalhado neste sentido!

-Verdade? Precismaos falar sobre isto mais.Voltando aos seus escritos, o que você fez que considera o melhor até agora?

O melhor sempre é o que está sendo feito, eu valorizo muito a fluência do momento em que estou concebendo, criando, esse ato criativo (taoísta) é mais importante que o produto acabado, por isso sempre prefiro os trabalhos que estão em gestação. Mas se você me perguntar dos meus trabalhos quais mais gosto, eu destacaria o álbum AGARTHA (que está na sua segunda edição pela editora "Marca de Fantasia"), e as HQtrônicas "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano" (ainda Inédita) e "NeoMaso Prometeu" (Menção honrosa no 13º VIDEOBRASIL –Festival Internacional de Arte Eletrônica) , tem também algumas HQs curtas que selecionei para o meu novo álbum que será publicado pela Marca de Fantasia, e algumas capas de CD que curto bastante, como as do Medicine Death e do projeto Noise for Deaf.

-Por ter se interessado por Historias em Quadrinhos em nível profissional e ser um acadêmico, você sofreu – ou sofre ate´ hoje – alguma especie de preconceito ou discriminação? Como lida com isto?

Faço a minha parte, tenho trabalhado para desmistificar as HQs como coisa de criança, apresentando artigos em congressos, ministrando palestras em Universidades e cursos de HQ de Autor. Mas o preconceito é forte, apesar de que nos últimos anos ele está diminuindo, o número de dissertações e teses sobre quadrinhos defendidas em Universidades do mundo todo é impressionante, talvez esse seja um sintoma do amadurecimento completo da linguagem.

-E atualmente, o que tem escrito?

Tenho diversos projetos em andamento, um álbum só com HQs inéditas & coloridas, uma HQ de 28 páginas para um número especial da coleção Corisco da Marca de Fantasia, um projeto artístico envolvendo Vida Artificial, e uma nova narrativa hipermidiática nos moldes de "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano", além de alguns roteiros para outros artistas...

-Alguma produção em Quadrinhos?

Estou com alguns trabalhos no prelo, o álbum "Transessência" (60 páginas de HQs curtas) que está para ser lançado pela Marca de Fantasia, o álbum "Biocyberdrama" (64 pgs) – parceria com o lendário Mozart Couto (que quadrinizou meu roteiro de forma belíssima) já concluido e que será lançado pela Opera Graphica, além do álbum "Duetos Essenciais" que também já está pronto mais ainda demorará um pouco para ser editado.

-Voce sempre batalhou arduamente por um autêntico Quadrinho nacional. Ele existe?

Acho que o Brasil tem muitos talentos individuais, e chego a acreditar que temos um gênero de HQs que frutificou no Brasil de uma forma muito autêntica e contundente, o gênero que foi batizado pelo crítico espanhol Henrique Torrero de "Fantasia Filosófica" e que inclui artistas como eu, Gazy Andraus, Flávio Calazans(Entrevista) Antônio Amaral, Henry Jaepelt, Al Greco, entre outros, eu estou preparando um artigo sobre esse gênero que praticamente passou despercebido pela HQ maistream pois quase toda a produção desses autores foi publicada nos fanzines, a exceção é a revista MANDALA da editora Marca de Fantasia que é dedicada a esse gênero de HQs e publicou mais de 10 números com trabalhos dos autores referidos. Também gosto muito do ciclo de HQs das revistas de terror da Vechi que abriu espaço para que artistas como Mano (ele era autêntico, divertido, despretensioso), Shimamoto & Colin falassem de elementos e assuntos de nossa cultura.
Mas não sou apegado a esse discurso de que HQ nacional deve falar de assuntos da cultura brasileira, isso é pseudo-culturalismo xiita, eu estou de saco cheio de ler/ouvir/ver histórias sobre o regime militar (parece que existe um saudosismo desse período, todo mundo quer posar de coitadinho - reprimido pelo regime militar), também ficar plagiando os romances de Guimarães Rosa & congêneres e achar que está escrevendo grandes roteiros é babaquice, isso é pastiche, tem muita gente por aí plagiando e dizendo que é homenagem... isso vem acontecendo no cinema, nas artes visuais em geral e também nos quadrinhos.
O bom quadrinho deve ser regional & universal ao mesmo tempo, dialogar com todos os povos e eras.

-Voce citou o Mano (o cariocaElmano), do qual tambem sou fan e procuro ha algm tempo contata-lo. O que você acha que dificulta para o quadrinista brasileiro sobreviver de sua arte? Falta de talento ou de mercado?

Como acontece com o cinema nacional, nos não temos mercado, o produto importado já vem com o marketing incorporado e custa mais barato, por isso há um desinteresse completo de editores pela HQ feita no Brasil, isso é ruim pois a HQ acaba tornando-se um trabalho residual dos artistas, eles têm que conseguir outros meios pra sobreviver e a HQ vira um hobby, o tempo dedicado a ela é menor, o processo de evolução mais lento. Penso também que nós praticamente não temos editores de quadrinhos no Brasil, dá pra contar nos dedos de uma mão os verdadeiros editores, o resto é oportunista, crápula e safado...

-Como nacionalista ferrenho que é , também considera que o nosso artista “se vende” quando passa a publicar no Exterior, nos EUA principalmente, adequando-se ao estilo e mudando até mesmo de nome?

Ops!!! Não sou nacionalista ferrenho de forma alguma, sou cidadão do mundo, holista, esse negócio de pátria e fronteira é coisa de políticos e suas linhas imaginárias, sou sim, telúrico, tenho respeito e amor pela terra onde fui gerado. Como diz minha esposa "cada um, cada um", os caras conseguiram uma forma de ganhar dinheiro desenhando, uma forma de sustento, mas achar que são quadrinistas, isso é hilário, são operários do traço, mão de obra barata do terceiro mundo que não tem nem o parco direito de assinar o nome verdadeiro, se isso é o modelo de "quadrinista" que todos devemos seguir eu passarei longe por toda a vida, isso não me interessa, os trabalhos que vi não valem nada, são muito ruins, cópias de cópias, padronizações industriais, produto descartável para pré-adolescentes ...é realmente lastimável.

-Sobre Telematica e extrapolação cientifica, tenho lido muito dos seus artigos nestas areas, abordando tantas teorias que chega a fervilhar-nos o pensamento – biomidiologia, efeitos subliminares da propaganda e outras mídias, psicologia, psiquiatria, enfim, você demonstra um vasto conhecimento que precisa ser mais explorado, em nosso – seus leitores – beneficio – ver artigo “Quadrinhos e as Novas Tecnologias” Quais autores e obras recomenda para nos dar uma visão mais abrangentes destas areas?

Não tenho um vasto conhecimento, ainda estou engatinhando nesses tópicos e assuntos, mas sou muito interessado e empolgado sempre buscando novas informações, para aquele que está iniciando nessas áreas indico alguns trabalhos que considero seminais (em língua portuguesa):

- "A Mente Holotrópica" de Stanislav Grof (Editora Rocco).

- "A Consciência sem Fronteiras" de Ken Wilber (Editora Cultrix)

- "O Renascimento da Natureza" de Rupert Sheldrake (Editora Cultrix)

- "Criação e Interatividade na Ciberarte" de Diana Domingues (Editora Experimento)

- "Cibercultura – Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea" de André Lemos (Editora Sulina).

- "Teleantropos – A desmaterialização da cultura material, arquitectura enquanto inteligência, a metamorfose planetária" de Emanuel Dimas de Melo Pimenta (Lisboa – editorial Estampa).

- "Biologia Digital" de Peter G. Bentley (Editora Berkeley Brasil).
A relação é enorme, e muitos livros ainda não tem edição em português, mas acho que estes 7 que indiquei são um bom começo.

- E especificamente a Literatura de FC tupiniquim, atualmente capengando sem um “mercado “mas por outro lado bem mais amadurecida, a julgar por recentes contos publicados pelos fanzines, o que você acha que “está faltando “?

É o mesmo problema das HQs, mas nesse caso a coisa é mais grave pois a literatura não tem nem o apelo visual, as novas gerações não conseguem ler, seu processo perceptivo não condiz mais com os procedimentos necessários para a leitura que exige muito tempo de concentração sobre um mesmo assunto/tópico, as mídias interativas têm contribuido gradativamente para essa mudança de perfil cognitivo, a literatura, a longo prazo necessitará cada vez mais da imagem para sustentá-la. Por isso temos escritores de talento que não têm quem os lê. Me diz se o adolescente prefere ir para a Lan House e jogar um game realista 3D de Guerra nas Estrelas, ou ler um livro com a história da saga? O apelo da hipermídia é muito grande, os autores têm que começar a usar dessas mídias para difundir os seus trabalhos, tornarem-se escritores multimídia, ou estarão cada vez mais fadados ao ostracismo. E olha que eu sou apaixonado por literatura de FC, inclusive leio alguns brasileiros, entre os quais destaco o brilhante André Carneiro (Entrevista) com um dos trabalhos mais pessoais e interessantes da FC mundial, uma densidade pouco vista, se escrevesse em inglês já teria pelo menos meia dúzia de filmes baseados em seus escritos. Há anos recebo o zine "Notícias do Fim do Nada" com o qual tenho colaborado periodicamente com ilustrações, gosto muito to trabalho cuidadoso e apaixonado de Ruby Felisbino Medeiros, uma verdadeira enciclopédia humana da FC mundial!!! Também colaboro esporadicamente com capas e ilustrações para o ótimo Megalon, e colaborei com a extinta Quark, tenho lido excelentes contos e novelas de autores nacionais nessas publicações...

-Quais dos nossos autores você julga mais em condições de produzir uma obra de fôlego?

Temos dezenas e dezenas de autores de talento, só faltam as chances para que eles brilhem!!!

-Especificamente sobre desenho Edgar, como começou o seu interesse, quais as influências do início e os artistas que admira atualmente? E nos Quadrinhos?

Quando comecei a desenhar tinha uma aversão à copiar desenhos, nunca copiava nada, sempre tentava desenhar de memória ou recorria a fotos e modelos do real, devido a isso a evolução de meu desenho foi lenta, mas ao mesmo tempo já muito cedo já me "acusavam" de ter um estilo, este estilo frutificou-se mais rapidamente devido à minha insistência em não copiar, eu gosto do meu desenho, apesar de conhecer suas limitações, sempre trabalhei com fantasia e metáforas, por isso não me interesso por criar trabalhos "realistas", minhas referências visuais são sempre simbólicas e fantásticas, ao contrário de muitos desenhistas que com o tempo conseguem ser mais sintéticos no traço, meu desenho fica cada vez mais rebuscado (enquanto o argumento cada vez está mais enxuto), é uma tendência natural que não consigo evitar, com o passar do tempo ao inves de gastar menos tempo em uma página tenho gastado cada vez mais. Sobre influencias, posso dizer que gosto de Bosch & Bruegel, de Doré e Goya, de Giger & Caza, e dos brasileiros Jaime Cortez, Shimamoto, Gazy Andraus, Antônio Amaral e Mozart Couto, considero o Mozart um dos desenhistas mais completos do mundo, é impressionante a capacidade cênica deste artista, o domínio da sombra e da luz, da anatomia, da perspectiva e do movimento, Mozart é um gênio do traço, um monstro sagrado do desenho, tenho certeza que será motivo de estudo por gerações e gerações, mas apesar dessa grande admiração não posso dizer que meu desenho é influenciado pelo dele.

Desenho de Mozart


-Endoso em gênero, numero e grau: Mozart e´ o melhor desenhista do Brasil, o nosso Michelangelo das HQs.E´´ meu amigo de longa-data e sua entrevista uma das mais aguardadas aqui. Como o leitor interessado pode adquirir seus Quadrinhos e livros, quais os que estão disponíveis?

Recentemente foi feita uma segunta tiragem do meu álbum AGARTHA, que pode ser adquirido diretamente com a editora Marca de Fantasia (site: http://www.mdefantasia.hpg.com.br/), também existem vários números disponíveis da revista Mandala (todos contém algum trabalho meu) que podem ser encomendados através do site da Marca de Fantasia, assim como o meu novo álbum TRANSESSÊNCIA que deve estar sendo lançado em breve. Tenho alguns fanzines solo que distribuo, principalmente os da minha série de HQs baseadas no I-Ching, basta que me mandem 2 selos de segundo porte que remeterei dois números para os interessados, meu endereço postal é: Av. Melvin Jones, 265 – Bairro Santa Ângela, Poços de Caldas – MG – 37701-274. Tem HQs minhas em dois números da revista on-line Pixel (que podem ser baixados gratuitamente no site da editora Nona Arte- www.nonaarte.com.br ) , além disso o leitor poderá encontrar HQs, ilustrações e poemas no meu site pessoal (que em breve será totalmente reformulado) Ritualart: http://www.geocities.com/ritualart.geo/, e finalizando o trabalho de História em Quadrinho Eletrônica (HQtrônica) "NeoMaso Prometeu" que pode ser baixado no url: http://wawrwt.iar.unicamp.br/HQtronicas/index.html

-Voce acha que a “sede” do nosso “espírito” – ou essência, ou anima, o nome que se dê - se encontra na mente? Ou tudo não passa de um aperfeiçoamento fantástico de uma verdadeira “maquina orgânica” com seus ilimitados neurônios e suas ligações sinápticas?

Eu tenho dúvidas sobre tudo, não cheguei a uma conclusão sobre esses tópicos, gosto da teoria dos campos morfogenéticos de Sheldrake que propõe que nosso cérebro nada mais é do que um instrumento de captação, uma antena que capta de um outro "logos" nossa consciência, tanto a individual quanto a coletiva, céticos defendem que o humano é só uma máquina natural...eu discuto isso no meu álbum Biocyberdrama (em parceria com Mozart Couto), no fundo a questão central da história é essa, espero que ele seja lançado em breve, e que pessoas que têm esse questionamento legítimo e importante (como você) possam lê-lo para continuarmos o papo...

-O que você acha que é a consciência em si?

É a morada do mistério, a esfinge mais cruel e maravilhosa que emudece a ciência e turva a religião. É nossa condição "Luciferiana", de questionarmos o poder e a razão daquilo que nos gerou!

-Com esta você fechou com chave de ouro, amigo! Militando há tanto tempo “no ramo” você pode dizer que valeu – ou vale – a pena?

Viver vale a pena, é maravilhoso poder ter a percepção do mundo e das coisas, sentir. Eu aconselho a todas as pessoas a tentarem fazer de sua vida um passeio, leve e gracioso, como o vôo da borboleta, levar tudo menos a sério, sorrir muito e principalmente criar. Se eu tivesse somente aberto os olhos, visto o sol e desfalecesse já teria valido a pena, o que dizer então de tantas dádivas que tenho tido nestes anos? Viva a vida!

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Processo Criativo da HQ "Lord Unikorn".


Por: Edgar Franco


A idéia de falar sobre o processo de criação dessa HQ surgiu devido à série de procedimentos intuitivos, aleatórios e racionais que envolveram o seu desenvolvimento, mesmo para mim que há muito venho tentando trabalhar com novas formas para o já desgastado conceito tradicional de histórias quadrinhos, ela funcionou como quebra de alguns paradigmas. Meu processo usual é partir de um argumento inicial, o conteúdo chave da história, e deixar as imagens fluírem a partir desse argumento, assim ele acaba sendo modificado e acrescido, mas sempre será de certa forma uma chave para desvendar o "Big Bang" deflagrador do processo.
Em LORD UNIKORN as coisas foram bem diferentes, para início de conversa, não existia uma intenção inicial de criar uma HQ. Fui convidado por uma amiga artista plástica para participar de uma exposição de "Livros de Autor", um conceito muito amplo envolve essa tal categoria artística (mais uma dentre tantas criadas pelo racionalismo acadêmico), no final das contas optei por uma espécie de caderno de rascunhos como sendo meu "Livro de Autor", comprei um livro de notas daqueles antigos, com 500folhas brancas e capa dura e resolvi tratá-lo como um "Grimoire Intuitivo de Autor", passei então a criar imagens livres para preencher as páginas desse álbum e adotei total liberdade para desenvolvê-las, usei para a confecção das mesmas um pincel japonês muito macio deixando o traço inicial direcionar a imagem sem censurá-la, muitas delas foram sendo feitas diretamente a tinta, outras tiveram um rascunho feito com lápis 6B, mas sem nunca usar borracha, pois o ato de apagar acaba tirando a espontaneidade cósmica-arquetípica da imagem e trazendo-a para os processamentos racionais do lado esquerdo do cérebro. Para desenhar sempre colocava um fundo musical que podia variar muito dependendo do meu estado de espírito do momento, podendo ir do rock progressivo ao doom metal . Em pouco tempo tinha já prontas cerca de 50 imagens, mas devido aos compromissos da vida "mundana" tive que parar. Como tinha como meta conseguir fechar o livro, isto é, completá-lo com imagens, decidi não apresentá-lo na primeira exposição de minha amiga, e prometi incluí-lo numa próxima.
Guardei o "Grimoire" e fiquei sem olhar para suas imagens por quase 3 meses, voltando a ele, descobri imagens realmente muito fortes de sentido, um certo lirismo que transcende em força boa parte da minha produção de HQs, resolvi então fotocopiá-las para utilizá-las como capas ou contracapas de fanzines de amigos, selecionei dentre todas umas 20 que me pareceram mais simbólicas, considero essa seleção uma ação mútua entre o lado direito (intuitivo) e o esquerdo (racional) do cérebro. Depois disso aconteceu um fato interessante, fui convidado por um editor de zines para fazer a capa de sua nova produção, quando vi a proposta de seu zine decidi enviar uma das imagens que tinha fotocopiado para a capa e aconteceu um fato raro de se ver no universo zinístico, tive o desenho censurado pelo editor, que de forma amena tentou me dizer que aquela imagem era "um pouco agressiva demais" para figurar na capa de seu zine. Já estou calejado de receber recusas de editores de revistas que usam milhões de argumentos e subterfúgios para não publicar o meu trabalho ("é datado", "é setentista", "é meio Metal Hurlant, né?", "mas isso não é HQ!", "até que é bonito, mas é poesia ilustrada", "mas cadê os quadrinhos e os balões?", "tem muita mulher pelada!" etcetera e tal), mas no meio zineiro foi uma novidade ser censurado, ainda mais sendo o editor em questão um cara de mente aberta com quem
já tinha feito várias parcerias, detalhe importante: a imagem censurada é aquela que posteriormente tornou-se a página sete da HQ estudada neste artigo.
Esse acontecimento fez-me reavaliar o valor dessas imagens e passei a mostrá-las para alguns amigos que sempre se assustavam ou gargalhavam com algumas. Arrisco dizer então que algumas delas funcionam como Koans, para usar um conceito detalhado na dissertação de mestrado "Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos?(ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas)",
desenvolvida pelo quadrinhista e pesquisador Gazy Andraus, onde ele esclarece-nos o que é um Koan: "O koan, é uma forma de pergunta, em forma de enigma indecifrável pelos padrões lógicos racionais vigentes. Uma forma de pergunta, para a qual não possui resposta imediata racional, que busca derrubar toda a estrutura condicionada da mente racional. Na verdade o koan seria apenas um desafio aos arraigados hábitos de nossa mente, ao seu modo de pensar e então agir.(1)" Na dissertação Gazy demonstra-nos que os Koans podem surgir na forma de questionamentos filosóficos, poemas, problemas da física quântica e é claro em HQs. Na minha opinião algumas dessas imagens criadas para o meu "Livro de Autor" têm esse potencial de provocar certos deslocamentos em nossa lógica
racional.
Diante dessa conclusão decidi fazer mais uma seleção escolhendo as imagens que ao meu ver fossem mais "Koânicas"(2), para a partir delas criar uma HQ, chegando finalmente a 9 imagens, entretanto uma delas já havia sido utilizada para outro fim, como capa para a demo-tape de uma banda de Death Metal de uns amigos meus, o mais interessante desse fato é que além de ser convidado para desenvolver o desenho da capa, também fui incumbido de escolher um nome para a banda, chegando a LORD UNIKORN quando lia alguns verbetes de um dicionário de ciências ocultas, o nome me chamou a atenção por sua sonoridade e curiosamente por remeter-me a uma das imagens de meu "Grimoire" (e menos por seu significado: trata-se de um demônio que chefia 29 legiões), imediatamente procurei a minha imagem e desenhei o logotipo que criei para a banda sobre ela, o trabalho agradou muito aos músicos. Como a capa da demo-tape fazia parte das 9 imagens selecionadas, optei por usá-la como primeira página da HQ, adotando como título para a mesma o nome LORD UNIKORN (com a concessão de meus amigos da banda homônima). Para impedir que o lado racional criasse critérios para ordenação lógica das demais páginas, entreguei-as a minha esposa e pedi para que as embaralhasse e me devolvesse, essa "ordem aleatória" foi a utilizada na HQ. E ela veio repleta de
sincronicidades, uma ordem gerada no caos do processo criativo.
O texto/roteiro da HQ surgiu em poucos minutos e foi escrito diretamente sobre as páginas, na primeira ele é apenas uma frase descritiva, mas nas seguintes ele fluiu liricamente fundindo-se às imagens e redobrando seus significados, tendo como foco central questionamentos sobre eternidade, ego e vazio e certas alusões aos Koans, ao Taoísmo, ao Zen e ao oráculo milenar chinês I-Ching. Aquilo que parecia não deflagrar uma seqüência de ligações lógicas, acabou gerando seqüências aleatórias interessantes, reparem nas 3 primeiras páginas, os personagens estão de perfil e olhando para o lado direito da folha, além disso todos têm um objeto nas mãos (crânio, relógio e espada), já a penúltima e a última página apresentam relações simbólicas com a sexualidade e os genitais.
Todas essas sincronicidades, coincidências e convergências intuitivas levam-me a refletir sobre o conceito do artista como veículo de forças transcendentais, o artista talvez seja o pincel do Universo e a arte a forma mais profunda de ciência, envolvendo a inexpugnável e maravilhosa intuição. O ato criativo um orgasmo cósmico puro e eterno!


Notas:

(1) In ANDRAUS, Gazy - Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos? (ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas), Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 1999 no Instituto de Artes da UNESP- Universidade Estadual Paulista, São Paulo.
(2) Koânico - Neologismo criado pelo pesquisador Gazy Andraus para designar os gêneros narrativos e obras de arte que contém Koans.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Budismo, Vedanta e Neo-platonismo


O Budismo é Realmente Não-Teísta?


Por B. Alan Wallace, Universidade da Califórnia, Santa Barbara

[Devido a ausência de marcas diacríticas no modo de texto simples, as palavras em sânscrito foram simplificadas em um formato informal e não padronizado. N. do T.]

O Budismo é geralmente distinguido das religiões monoteístas e politeístas com base em suas doutrinas que refutam um Criador divino, e realmente há ampla evidência textual nos tratados do Budismo mais antigo, do Mahayana e do Vajrayana que confirmam essa afirmação [1]. Apesar disto, uma análise cuidadosa da cosmogonia do Budismo Vajrayana, especificamente como apresentada na tradição Atiyoga do Budismo Indo-Tibetano, que apresenta a si mesma como o ápice de todos os ensinamentos Budistas, revela a teoria de uma base transcendente do ser e um processo de criação que carrega incrível semelhança com as visões apresentadas no Vedanta e nas teorias ocidentais Cristãs Neoplatônicas de criação. Neste artigo apresentarei esta teoria do Budismo Vajrayana em termos de suas imagens de espaço e luz na criação do universo, e concluirei com uma reafirmação do status não-teísta do Budismo como um todo.

Os Antecedentes do Budismo Sutrayana

Nos primeiros suttas Budistas, o termo Pali geralmente traduzido como "mundo" (loka) refere-se não a algum universo puramente objetivo que existe independentemente da experiência, mas a um mundo como experimentado por seres sencientes. O mundo que experimentamos como humanos, porém, não é o único mundo, pois há outros mundos além do nosso [2]; mas todos os mundos são considerados "irreais"" e insubstanciais como uma bolha e uma miragem. [3] Com relação a origem dos seis tipos de consciência pelos quais os seres humanos percebem nosso mundo, o Buda comparou tal surgimento à produção de fogo ao esfregar-se um graveto. Como Peter Harvey assinala, esta teoria Budista, como a dos Upanishads, toma como garantida a existência de um elemento inflamável que está presente no combustível, que se torna manifesto quando o combustível é posto a queimar.[4] Isto implicaria que as formas específicas de consciência surgem de um modo latente de consciência quando se encontram condições apropriadas, e que a consciência subjacente é indicada em Pali com o termo "bhavanga", que pode ser traduzido como "a base do vir a ser".[5]

Na literatura budista mais antiga este estado-base de consciência é apresentado como sendo primordialmente puro e radiante, mesmo que seja obscurecido por máculas adventícias [6], e é deste estado que todos os processos mentais ativos ("javana"), surgem, incluindo a volição, e portanto, o carma. Assim, já que os múltiplos mundos experimentados pelos seres sencientes são considerados pelo Budismo como sendo produzidos pelo carma dos seres sencientes, conclui-se que o bhavanga deve ser a base de onde surge todo o carma, e todos os estados de consciência pelos quais estes mundos são conhecidos. Além disso, a natureza dessa base do vir a ser é equiparada com a bondade, e é a fonte do incentivo ao seres sencientes desenvolverem meditativamente suas mentes na busca do nirvana. [7] Quando a liberação definitiva é atingida, experimentamos a natureza do bhavanga, que então retém sua integridade e não mais é levado a obscurecer-se por máculas. [8]

Enquanto a tradição Theravada geralmente tem marginalizado o bhavanga tanto em teoria quanto na prática, o Budismo Mahayana atribuía importância central ao "tathagatagarbha", que é muito semelhante ao bhavanga. o "Lankavatara Sutra" (p. 77) diz que o tathagatagarbha é a atenção naturalmente radiante e primordialmente pura em cada ser senciente, que é obscurecida por máculas adventícias tais como apego, agressão, ilusão, e ideação compulsiva. Complementa dizendo que esta atenção radiante é a base da qual surgem tanto o bem quanto o mal, e que produz todas as formas da existência, como um ator que incorpora muitas aparências (p. 220). O "Srimala-devi Simhanada Sutra" afirma que ela é aquilo que inspira os seres sencientes a buscar o nirvana [9], e o "Ratnagotravibhaga" (vv. 51,84) leva essa afirmação ainda adiante dizendo que essa atenção, que é naturalmente presente desde o tempo sem início, e está implicitamente repleta de todas as qualidades da natureza de Buda, deve ser separada das máculas, tal como o ouro deve ser refinado de forma a mostrar sua pureza intrínseca. Assim, mesmo nestes escritos anteriores ao Vajrayana, há inequívocas e elaboradas teorias a respeito de um estado de base de atenção além do tempo, que foi a fonte de todos os outros estados de consciência, o mundo dos fenômenos, e de todos os seres ali contidos.

A Cosmogonia Vajrayana

Da mesma forma que a teoria "bhavanga" do Budismo primitivo desenvolveu-se na teoria Mahayana do "tathagatagarbha", a realização da qual tornou-se de muita importância na prática meditativa, a maneira precisa pela qual a natureza do Buda fez surgir o mundo dos fenômenos foi ainda mais desenvolvida na tradição vajrayana. Minha fonte primária para a seguinte descrição da cosmogonia Vajrayana é o "Tantra do Coração Vajra" [10] um "tesouro de mente" (dgongs ter) de Dudjom Lingpa (1835-1904), um mestre de Atiyoga do séc. XIX da ordem Nyingma do Budismo Tibetano. Apesar desse tratado ser de origem relativamente recente, sua bem desenvolvida teoria cosmogônica é uma acurada apresentação da visão Atiyoga, que é em grande parte compatível com a teoria Vajrayana em geral. De acordo com Dudjom Lingpa, a fonte dos ensinamentos no "Tantra do Coração Vajra" é o buda primordial Samantabhadra, que, como o tathagatagarbha, é da natureza da atenção plena radiante sem princípio, naturalmente pura e repleta de todas as qualidades da Buditude.

Enquanto a metáfora mais comum para o bhavanga e o tathagatagarbha é a de uma luz radiante, o "Tantra do Coração Vajra" adiciona a esta a metáfora central do espaço. De acordo com esta cosmogonia, a natureza essencial do todo composto pelo samsara e nirvana é o espaço absoluto do tathagatagarbha, mas este espaço não deve ser confundido com uma mera ausência de matéria. Pelo contrário, este espaço absoluto (dhatu) é dotado de todo o infinito conhecimento, compaixão, poder, e atividades iluminadas do Buda. Além disso, este espaço luminoso é o que causa a aparição do mundo dos fenômenos, e não é nada além da própria natureza de nossa própria mente, que por natureza é clara luz (p. 133). Samantabhadra distingue cinco tipos de sabedorias primordiais implícitas ao buda natural da atenção (p 120):

"Sua natureza essencial é a grande vacuidade primordial, o espaço absoluto da totalidade de tanto samsara quanto nirvana, a sabedoria primordial do espaço absoluto da realidade. A sabedoria primordial como a de um espelho é de uma natureza límpida, cristalina e livre de contaminações, que permite a incessante aparência de todos os tipos de objetos. A sabedoria primordial da equanimidade é assim chamada pois igualmente permeia a vacuidade não-objetiva da totalidade de samsara e nirvana. A sabedoria primordial do discernimento é assim chamada porque é uma incessante avenida de iluminação das qualidades da sabedoria primordial. A sabedoria primordial do realizar é assim chamada pois todos os atos e atividades puros, livres e simultaneamente perfeitos são realizados naturalmente, em harmonia entre si mesmos. Quando o brilho natural da atenção está presente como a base — o dharmakaya no qual as cinco sabedorias primordiais são perfeitas — e dissolve-se em sua luminosidade interior, é classificado como sabedoria primordial inobscurecida" [11].

Já que a natureza essencial de cada ser senciente e o universo como um todo é este do espaço infinito e luminoso, dotado de todas as qualidades de perfeita iluminação, porque isto não é percebido? Samantabhadra explica que a realidade de todos os fenômenos que surgem como manifestações da atenção-base toda penetrante é obscurecida pela ignorância. Consequentemente, o tathagatagarbha, que completamente transcende todas as palavras e conceitos — incluindo as próprias noções de existência e não-existência, um e muitos, e sujeito e objeto — parece ser um vazio impensável que é conhecido como base universal (alaya) (p. 120). A experiência desse vazio é comparável a entrar em coma ou cair num sono profundo e sem sonhos. Deste estado surgem consciências límpidas e claras como as bases das quais todos os fenômenos surgem; e esta é a consciência base universal (alayavijnana). Nenhum objeto é estabelecido como separado de dessa luminosidade, e enquanto ela produz todos os tipos de aparências, ela não entra em nenhum objeto. Assim como reflexos dos planetas e estrelas parecem em água límpida e cristalina, e o inteiro mundo animado e inanimado surge num espaço límpido e cristalino, assim todas as aparências surgem na consciência base universal vazia e cristalina.

Desse estado surge a consciência da mera aparência do eu. O eu é apreendido como estando aqui, e da mesma forma o mundo objetivo parece estar ali, assim estabelecendo a aparência do espaço imaterial. Para relacionarmos essa evolução do universo ao obscurecimento dos cinco tipos de sabedoria primordial mencionados, diz-se que a ignorância a princípio obscurece o brilho intrínseco de nossa própria sabedoria espontânea do espaço absoluto da realidade (p. 122), o que causa uma transferência externa de sua luminosidade. Enquanto esse processo evolucionário segue, aqueles cinco tipos de sabedoria primordial transformam-se nos cinco grande elementos (vis. as cinco cores primárias) e os cinco elementos derivativos da seguinte forma:

1. No espaço que tudo permeia do dharmakaya, ou mente do Buda, brilho intrínseco da sabedoria primordial do realizar é obscurecida, e devido à ativação das energias cármicas, a quintessência do elemento ar surge internamente e transforma-se em luz verde. Devido ao poder da ilusão, esta luz verde é tida como concreta e devido a isso surge externamente como o elemento derivativo ou residual "ar".

2. Com o obscurecimento causado pela ignorância da sabedoria primordial do espaço básico da realidade, sua luminosidade surge como o grande elemento de luz cor azul-marinho. Como conseqüência de ter esta luz azul como algo concreto, o elemento derivativo "espaço" surge.

3. Com o obscurecimento da sabedoria primordial "como a de um espelho", sua luminosidade surge como o grande elemento de luz branca, que, quando solidificado, surge como o elemento derivativo "água".

4. Com o obscurecimento da sabedoria primordial da equanimidade, sua luminosidade surge como o grande elemento de luz amarela, que, quando solidificado, surge como o elemento derivativo "terra".

5. Finalmente, com o obscurecimento da sabedoria primordial do discernimento, sua luminosidade surge como o grande elemento de luz vermelha, que, quando solidificado, manifesta-se como o elemento derivativo "fogo". Desta forma, todos os elementos do mundo físico são vistos como expressões simbólicas do tathagatagarbha, e diz-se que todos os cinco elementos estão presentes em cada um deles, assim como as cinco sabedorias primordiais estão todas presentes em cada uma delas.

Os cinco tipos de sabedoria primordial se manifestam não somente como os cinco elementos que montam o universo objetivo, mas suas naturezas essenciais também se manifestam como os cinco agregados psico-físicos que constituem um ser humano no samsara. Especificamente, assim que a aparência da dualidade surge dentro do domínio da sabedoria primordial do espaço absoluto, esta sabedoria surge como o agregado da forma; quando aparências dualistas e solidificações desse tipo surgem ocorrem no domínio do sabedoria primordial "como a de um espelho", ela manifesta-se como o agregado da consciência; quando a sabedoria primordial da equanimidade é obscurecida dessa forma, ela manifesta-se como o agregado da sensação; quando a sabedoria primordial do discernimento é velada através da solidificação, ela surge como o agregado da percepção (ou cognição); e a sabedoria primordial do realizar assim obscurecida, surge como o agregado dos fatores compostos (formação).

Como um desenvolvimento da tese proposta no "Lankavatara Sutra", de que o tathagatagarbha é fonte tanto do bem quanto do mal, o "Tantra do Coração Vajra" afirma que ele é a base não somente de todas as qualidades da iluminação, mas de todas as aflições mentais primárias, ilusão, raiva, orgulho, apego e inveja. Especificamente, pensamentos de ilusão surgem devidos ao obscurecimento da sabedoria primordial da natureza absoluta da realidade; pensamentos de raiva surgem do obscurecimento da sabedoria primordial "como a de um espelho"; pensamentos de orgulho surgem do obscurecimento da sabedoria primordial da equanimidade; pensamentos de apego surgem do obscurecimento da sabedoria primordial do discernimento; e pensamentos de inveja surgem do obscurecimento da sabedoria primordial do realizar, de forma constante. Uma afirmação que é crucial para a teoria e prática do Vajrayana como um todo é a de que todas as aflições mentais são na verdade da mesma exata natureza dos tipos de sabedoria primordial dos quais elas surgem (p. 125).

Em resumo, as cinco cores primárias, os cinco elementos, os cinco agregados, e as cinco aflições mentais todas originam-se do obscurecimento das cinco sabedorias primordiais. Em termos da teoria geral do Budismo a cerca dos três reinos da existência — o reino sensorial, o reino da forma, e o reino da não-forma — diz-se que cada nascimento no reino da não-forma é devido a uma solidificação da base universal; o nascimento no reino da forma é devido a uma solidificação da consciência da base universal; e um nascimento como um deus do reino do desejo é devido à conquista de estabilidade no reino da mente (citta) dualista. Dessa forma, Samantabhadra, o Buda Primordial cuja natureza é idêntica ao tathagatagarbha dentro de cada ser senciente, é a base última tanto de samsara quanto de nirvana; e o universo inteiro consiste de nada além de manifestações dessa atenção vazia infinita e luminosa. Assim, em vista dos desenvolvimentos teóricos do bhavanga ao tathagatagarbha até a sabedoria primordial do espaço absoluto da realidade, o Budismo não é tão simplesmente não-teísta quanto pode parecer a primeira vista.

Paralelos com Cosmogonias Politeístas e Monoteístas

Enquanto o não-teísmo do Budismo é muitas vezes visto em contraste absoluto com o politeísmo dos Vedas, a tradição do Vedanta, o "ápice dos Vedas", apresenta uma cosmologia bem similar ao relato Atiyoga apresentado. De acordo com a teoria Vedanta, o universo é criado através de uma série de manifestações ilusórias de Brahman, sendo somente ele real de fato, e idêntico com a natureza real (atman) de cada ser senciente [12]. A natureza de Brahman é consciência pura, além de todas as distinções conceituais tais como sujeito e objeto, e sua diferenciação em seres individuais animados e inanimados é somente devido às aparências. Traçando uma analogia que é compartilhada com a tradição Atiyoga quando esta ilustra a relação entre o dharmakaya e as mentes dos seres sencientes individuais, o filósofo Sankara do Vedanta compara Brahman ao espaço, que é único e contínuo, enquanto cada indivíduo (jiva) é comparado ao espaço contido dentro de um pote. Nesta metáfora, o "espaço" de Brahman pode aparentemente ser fechado dentro do "pote" de cada indivíduo sem afetar a transcendente unidade de Brahman. Mas tal diferenciação, ele complementa, é somente o resultado de nossa falha ao discriminar o atman de seus adereços, tais como o corpo, os sentidos, etc. Cada indivíduo é uma mera aparência ou reflexo do Eu transcendente, ou atman, como o reflexo do sol na água ondulante. Apesar da unidade de Brahman e do atman nunca ter sido diferente do universo, os defeitos são percebidos no mundo dos fenômenos devido às máculas nas mentes dos indivíduos. Assim, de forma a ver a realidade como ela é, a mente, com todas suas aflições, construções conceituais, e tendências de solidificação, deve ser transcendida.

Apesar das várias diferenças significativas entre as doutrinas Budista e Cristã, o Cristianismo medieval foi profundamente influenciado pelas idéias Neoplatônicas a respeito da criação, que também são profundamente semelhantes àquelas do Budismo Vajrayana e do Vedanta. De acordo com o filósofo John Scotus Eriugena (815?-877?), antes da auto-aparição criativa de Deus na geração do mundo natural, Ele mantinha-se numa unidade e completude primordial da qual, da limitada perspectiva dos intelectos e da linguagem criados, pode melhor ser descrita como "nihil", ou "nada" [13]. John caracteriza este nada não como uma ausência, mas como uma realidade transcendental além da afirmação e da negação. Ela é, ele escreve:

"a indizível, incompreensível, e inacessível luminosidade da bondade divina, que é desconhecida de todos os intelectos, humanos ou angelicais, porque é supraessencial e supranatural. Eu acredito que esta designação ["nihil"] se aplica porque, quando ela é pensada através de si própria, ela nem é nem não será. Pois em nenhuma coisa existente é compreendida, já que está além de todas as coisas... Quando é compreendida como incompreensível devido a sua excelência, não é erroneamente denominada 'nada' " [14]

Quando o nada divino, que é ontologicamente anterior a própria categorização de existência e não-existência, manifesta-se no mundo dos fenômenos, Deus vêm a reconhecer a si mesmo como a essência de todas as coisas. Desta forma, o todo da criação pode ser uma teofania, ou manifestação divina, e nada poderia existir separadamente dessa natureza divina, pois ela seria a essência de tudo que há. Seguindo a afirmação bíblica de que o homem é criado à imagem de Deus, João declara que a mente do homem, como a natureza divina, retém sua unidade simples, como algo que não pode ser conhecido objetivamente, em relação a suas manifestações múltiplas [15]. Assim como Deus vem a conhecer-se a Si mesmo completamente somente através de Sua auto-expressão como o mundo dos fenômenos, a mente humana só é completamente compreendida através de suas manifestações externas, mesmo que mantenha-se sempre invisível internamente. Dessa forma, cada ser humano recapitula dentro de si mesmo a inteira dialética do nada e da auto-criação. Assim João argumenta que a inabilidade do homem em conhecer objetivamente a natureza de sua própria mente faz dele uma imagem de Deus, pois assim como a mente de Deus não vê a si mesma objetivamente, da mesma forma a consciência humana jamais é percebida enquanto objeto do intelecto. [16]

Conclusão

Enquanto o Budismo é considerado não-teísta, os Vedas são vistos como politeístas, e a Biblia é monoteísta, percebemos que as cosmogonias do Budismo Vajrayana, do Vedanta e do Cristianismo Neoplatônico têm tanto em comum que poderiam ser vistos como interpretações diversas de uma só teoria. Além disso, a similaridade não acaba aí, pois no Oriente Médio os escritos de Plotinus (205-270) também influenciaram as teorias Islâmicas e Judaicas da criação. Esta unidade aparente por ser considerada mera coincidência, ou à propagação histórica de uma única especulação metafísica através do sul da Ásia e Oriente Médio. Por exemplo, os Upanishads podem muito bem ter influenciado os primeiros pensadores Mahayana na Índia, e eles também poderiam ter se infiltrado no Oriente Médio, onde poderiam ter inspirado os escritos de Plotinus. Por outro lado, Plotinus declarou que suas teorias eram baseadas em suas próprias experiências, e reivindicações similares foram feitas por muitos contempladores do Budismo e do Vedanta. Se estas cosmogonias são realmente baseadas sob um conhecimento introspectivo válido, então pode ser plausíveis as declarações de muitos contemplativos ao redor do mundo de que a busca introspectiva pode levar ao conhecimento, não somente da base fundamental do ser, mas igualmente das leis fundamentais da natureza. [17]



[traduzido por Eduardo Padma Dorje em 2002]

(1) Para uma refutação de um Criador pelo próprio Buda como registrado no cânone Pali, ver o "Patika Sutta" 2.14-17 no "Digha-Nikaya"; Shantideva apresenta uma clássica refutação Mahayana de um Criador em seu
"Bodhicaryavatara" IX: 118-125; e uma refutação semelhante na literatura Vajrayana pode ser encontrada no "Kalachakratantra" e em seu principal comentário, o "Vimalaprabha" II: 168-170.

(2) Cf. "Majjhima Nikaya" 1.402.

(3) Cf. "Sutta-Nipata" 9; "Dhammapada" 170.

(4) Peter Harvey. (1995) "The Selfless Mind: Personality, Consciousness and Nirvana in Early Buddhism". Surrey: Curzon Press, pp 177-157. Cf. "Majjhima Nikaya" I.259-60, "Anguttara Nikaya" III.340-41, Milindapanha 73; R.H. Robinson, (1970) "The Buddhist Religion". Belmont, Calif, Dickenson, 1st. ed., pp. 38-39.

(5) Peter Harvey, p.160.

(6) Cf "Milindapanha" (pp. 299-300), "Anguttara Nikaya"A.I.9-10 & A. I.61.

(7) "Anguttara Nikaya" A.I.10-11.

(8) Peter Harvey, p. 174.

(9) D.M. Paul (1980) "The Buddhist Feminine Ideal - Queen Srimala e o Tathagata-garbha". Missoula, Montana, Scholar's Press, ch. 13.

(10) "Tantra do Coração Vajra: Um Tantra Naturalmente Surgido da Natureza da Existência a Partir da Matrix da Atenção Primordial da Pura Percepção" (Tib. Dag snang ye shes drva pa las gnas lugs rang byung gi rgyud rdo rje'i snying po). Collected Works of H.H. Dudjom Rinpoche.

(11) Todas as traduções do tibetano são minhas.

(12) Karl H. Potter (ed.) (1981) "Encyclopedia of Indian Philosophies: Advaita Vedanta up to Samkara and His Pupils. Delhi: Montilal Banarsidass, p. 81.

(13) Donald F. Duclow (1977) "Divine Nothingness and Self-Creation in John Scotus Eriugena." The Journal of Religion, Vol. 57, No. 2, April 1977, p. 110.

(14) John Scotus Eriugena, "Periphyseon (De divisione naturae)" ed. H.J. Floss, Migne "Patrologia latina" 122, 680D-81A, trans. by Donald F. Duclow, op. cit. p. 110. Cf. Bodhicaryavatara IX:2. "Esta verdade é reconhecida como sendo de dois tipos: convencional e definitivo. A realidade definitiva está além do escopo do intelecto. O intelecto é chamado de realidade convencional".

(15) Cf. "Kalachakratantra" V:65: "Não há Buda grandioso além dos seres sencientes".

(16) Cf. "Ratnachudasutra": "A mente, Kashyapa, é sem forma, imperceptível, intangível, incogniscível, instável, sem base. A mente, Kashyapa, nunca foi vista por nenhum dos Budas. Eles não a vêem, eles não a verão... a mente, Kashyapa, sendo procurada por todas as partes não é encontrada: o que é encontrado não é estável; o que não é estável não é passado, presente ou futuro..." [Citado em Shantideva. (1981) "Shiksa-samuccaya", trans. Cecil Bendall & W. H. D. Rouse. Delhi: Motilal Barnasidass, pp. 220-221] Tradução minha. Cf. Thomas Tomasic, "Negative Theology and Subjectivity: An Approach to the Tradition of the Pseudo-Dionysius," International Philosophical Quarterly 9 (1969).

(17) Cf. Dom Cuthbert Butler. "Western Mysticism: The Teaching of Augustine, Gregory and Bernard on Contemplation and the Contemplative Life". 3rd ed., com "reflexões" pelo Prof. David Knowles. London: Constable & Co., 1967, p. 419


Fonte: Revista Bodisatva