terça-feira, 29 de março de 2011

O budismo radical e o paradoxo da aceitação


O budismo radical e o paradoxo da aceitação

"Apesar de sua crítica ao budismo ser um pouco desinformada, Slavoj Zizek oferece uma boa visão sobre o perigo de interpretar mal toda a prática e as técnicas de conscientização budistas."

A opinião é do escritor norte-americano e professor budista Ethan Nichtern, em artigo para o sítio The Huffington Post, 20-08-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O crítico teórico Slavoj Zizek tem uma crítica dura e interessante do budismo ocidental e das ferramentas de meditação que ele utiliza. Enquadrando sua crítica em termos marxistas, ele argumenta que o budismo é a tradição espiritual perfeita para ser cooptada pela nossa sociedade autoabsorvida, destrutiva e consumista.

Para ele, o budismo representa a ideologia perfeita para a aquiescência passiva ao mundo como ele é, uma panaceia de paz interior que se encaixa perfeitamente em uma cultura da publicidade, na qual, até agora, "esteja presente" poderia muito bem ser o slogan de uma empresa de cartões de crédito quanto uma instrução de um professor de meditação.

Zizek escreve que "[o budismo ocidental nos permite] participar plenamente do ritmo frenético do jogo capitalista e, ao mesmo tempo, manter a percepção de que você não está realmente nele, de que você está bem consciente de como o espetáculo é inútil – o que realmente importa para você é a paz do seu eu interior, da qual você sabe que sempre pode se afastar".

Em outras palavras, para Zizek, o budismo, no contexto de uma cultura consumista ocidental, permite que o indivíduo acredite estar transformando sua mente sem, na verdade, alterar as condições de sofrimento que moldam a sociedade individualista. Isso representa um tipo perigoso de paz interior – uma paz não baseada em um insight verdadeiro sobre a natureza interdependente da realidade, mas, ao contrário, baseada no afastamento a um casulo mental, a um oásis pessoal isolado da agitação do mundo lá fora.

Nesse casulo, o mundo inteiro pode ir para o inferno, e o meditador pode – dito de forma simples – ficar de bem com isso. De fato, o meditador pode até ser um ator disposto em um sistema que ajuda nas grandes opressões e mesmo assim pode viver comodamente, porque "tudo está bem", afinal. Pela prática da "aceitação", simplesmente nos tornamos confortáveis com o status quo.






Claro, assim como para a grande maioria das coisas ditas pelos teóricos críticos contemporâneos, o melhor ponto de Zizek é dito de forma mais convincente e artística por outra pessoa, neste caso,
Stevie Wonder: "Tenha certeza de que, quando você diz que está nele mas não é dele, você não está ajudando a transformar este lugar naqui lo que às vezes se chama de inferno".

Apesar de sua crítica ao budismo ser um pouco desinformada, Zizek oferece, de seu próprio jeito, uma boa visão sobre o perigo de mal interpretar toda a prática e as técnicas de conscientização budistas.




O que me fascina é que a sua crítica é semelhante – na linguagem da teoria cultural – à cautela pessoal que a maioria dos meditadores iniciantes têm sobre a prática da meditação, especialmente com relação a 1) como a conscientização realmente funciona, 2) ao que a aceitação realmente significa, e 3 ) a quão genuína é a transformação que acontece.

O primeiro palpite que devemos ter de que a meditação não é um afastamento passivo para um escudo mental é este: meditar é realmente muito difícil! As coisas que são passivas tendem a ser fáceis, certo? Assistir "Project Runway" [reality show norte-americano] por meia hora é muito fácil. Assistir sua mente por meia hora, nem tanto.

A verdade é que a conscientização – prestar muita atenção naquilo que os nossos pensamentos fazem no momento presente – não é totalmente pacífica, pelo menos não no sentido "fácil" da palavra. Qualquer pessoa que tenha tentado meditar regularmente sabe disso.

Por que é difícil? Porque voltar ao momento uma vez e outra é uma verdadeira revolução contra o hábito, uma rebelião contra a nossa tendência cultural de sempre evitar o que estamos sentindo e experimentando. É essa fuga crônica de nós mesmos (e não a prática rigorosa da autoconscientização que fazemos sobre uma almofada) que está no cerne da cultura consumista inconsciente. Sem ter uma prática real, no entanto, não há forma pela qual Slavoj Zizek ou qualquer um de nós possa realmente ver a ironia dessa realização.

Claro, para pessoas que não praticam, a meditação pode aparentar e realmente aparenta ser um clichê perfeito de passividade perante o status quo. Quando você olha para alguém sentado lá, você pode pensar: "Sério, o que aquilo faz para eles? O que isso realmente muda com relação à sua situação? Como isso melhora o mundo?".

Fazemos essas perguntas céticas porque o que queremos merecidamente não é apenas a habilidade de prestar atenção, mas também a habilidade de transformar as nossas circunstâncias. Queremos mudanças nas quais possamos acreditar, tanto interna quanto externamente. Essa é a recompensa que estamos procurando. Sem a recompensa da transformação que vem em algum ponto do caminho, a meditação é inútil. Os professores budistas podem pregar que "não há nenhum objetivo" tanto quanto quiserem, mas a maioria dos alunos também não vai ficar esperando muito tempo para ouvir as sutilezas do que isso realmente significa. E há objetivos na meditação, a propósito, só que não o tipo que pode ser alcançado em "30 minutos ou seu dinheiro de volta".

Transformação prática é o que a prática budista é. Também é uma questão de mudar o mundo. Praticar meditação consistentemente serve para ir fortemente contra a onda de materialismo que está quase literalmente matando o planeta. Mas a transformação é, na verdade, o passo três em um processo de três passos.

O primeiro passo é a prática muito menos sexy da conscientização. A conscientização é o método científico natural da mente. Um cientista usa um microscópio, um meditador usa a conscientização. Precisamos nos dar conta de que vivemos em um estado de profunda suposição sobre como a mente funciona, o que depois se estende para a nossa compreensão do mundo. Raramente experimentamos alguma coisa diretamente, sem primeiro acalmar e prestar atenção.

Um cientista não deveria fazer afirmações com base em alegações infundadas, e um meditador não deveria tentar mudar qualquer coisa até que a conscientização esteja decentemente estabelecida. Sempre que tentamos mudar alguma coisa antes de a entendermos, nossa tentativa de transformação, na verdade, vem do hábito e da suposição, não da sabedoria. As soluções que vêm do hábito, como indicou Albert Einstein, apenas acabam reforçando o problema. Isso se chama samsara, devido à estrutura sempre circular da lógica habitual.

O segundo passo é o trabalho de aceitação, e acho que é o verdadeiro sentido da aceitação em sentido budista que Zizek e outros fundamentalmente interpretam mal. Quando nos tornamos conscientes, percebemos o quanto de nós mesmos nós realmente não gostamos. Esse é o motivo pelo qual a meditação é três milhões de vezes mais difícil do que assistir um "reality show" na TV. A questão é que a nossa autoaversão corre muito mais profundamente do que nossos impulsos voyeuristas.

Para que a transformação aconteça, na verdade, temos que ser amigos da nossa mente. Temos que aprender a gostar de nós mesmos. Isso é o oposto de um esquema "fique rico rapidamente". Não existe nenhum produto que possamos comprar para ajudar nesse trabalho. Ele só vem com a disposição de estar consigo mesmos, nua, aberta e amorosamente, uma e outra vez, durante um longo período de tempo. O que significa que temos que passar um tempo conosco mesmos. Muito tempo. E o tempo que gastamos conosco mesmos sobre a almofada é o oposto de passivo. Muitas vezes é difícil, geralmente é intenso e leva a uma vitória árdua, lenta e revolucionária sobre o ódio por si mesmo. Na verdade, podemos chegar a gostar de nós mesmos. Gostar de si mesmo é o resul tado da aceitação. Chamar a aceitação de "radical" – como faz Tara Brach – é, na verdade, um eufemismo grave.

Pessoalmente, não conheço muitas pessoas que dizem ter se dado conta do estado radical da autoaceitação. Aqueles que se deram conta são poderosos agentes da mudança global. Será que o tipo de autoaceitação que as técnicas de meditação budista sistematicamente cultivam no indivíduo realmente mudam o mundo? Bem, não, não sozinhas. Zizek está certo sobre isso, assim como com o perigo de pensar que a aceitação é o fim da viagem e de acreditar que, de alguma forma, estamos "nela, mas não somos dela".

Finalmente, você tem que se levantar e fazer alguma coisa. Mas tentar mudar a sua vida ou o mundo sem um método real para mudar a sua própria mente é algo inerentemente fadado ao fracasso, porque a sociedade é apenas uma matriz de corações e de mentes daqueles que nele habitam. Construída sobre os fundamentos da conscientização e da aceitação, a transformação radical, para além do hábito e da suposição, pode ter início.

domingo, 6 de março de 2011

sábado, 5 de março de 2011

Auto-inquirição



Ramana Maharshi

Discípulo – Como uma pessoa realiza o Eu superior?

Maharshi – O Eu superior de quem? Descubra.

D – O meu, mas quem sou eu?

M – Descubra você mesmo.

D – Não sei como.

M – Pense a respeito. Quem é que diz “Não sei”? Quem é o “eu” na sua afirmação? O que não é sabido?

D – Alguém ou algo em mim.

M – Quem é esse alguém? Em quem?

D – Talvez alguma força.

M – Descubra.

D – Por que eu nasci?

M – Quem nasceu? A resposta é a mesma para todas as suas perguntas.

D – Então, quem sou eu?

M – (Sorrindo) Você veio para me interrogar? Você é que tem de dizer quem é você.

D – Não importa o quanto tente, sinto que não capto quem é o “eu”. Ele nem sequer é perceptível.

M – Quem é que afirma que o “Eu” não é perceptível? Existem dois “eus” em você, sendo que um não percebe o outro?

D – Em vez de indagar “Quem sou eu?”, posso formular a pergunta “Quem é o senhor?” para mim, pois assim a minha mente poderá fixar-se no senhor, que eu considero ser Deus na forma de um Guru. Talvez eu fique mais próximo do objetivo da minha busca através dessa inquirição do que perguntando-me “Quem sou eu?”.

M – Não importa que forma assuma a sua inquirição, você acabará chegando ao único “Eu”, o Eu superior. Todas estas distinções entre “eu” e “você”, entre Mestre e discípulo, etc., são apenas um sinal de desconhecimento. O “Eu” supremo apenas é. Pensar de outro modo é o mesmo que iludir-se.

Uma história dos Puranas sobre o Sábio Ribhu e seu discípulo Nidagha é particularmente instrutiva a este respeito.

Embora Ribhu tenha ensinado a seu discípulo a Verdade suprema do Brahman¹ único sem segundo, Nidagha, não obstante sua erudição e compreensão, não se convenceu o suficiente a ponto de adotar e seguir o caminho de jnana², mas estabeleceu-se em sua cidade natal a fim de levar uma vida devotada à observância da religião cerimonial.

Contudo, o Sábio amava seu discípulo tão profundamente quanto este venerava seu Mestre. A despeito de sua idade, Ribhu foi em pessoa ao encontro do discípulo na cidade, apenas para ver se este último superara o ritualismo. Às vezes, o Sábio disfarçava-se, para observar como Nidagha agia quando sabia que não estava sendo observado pelo Mestre.

Disfarçado de camponês, Ribhu encontrou Nidagha observando atentamente uma procissão real. Não tendo sido reconhecido pelo morador da cidade Nidagha, o camponês indagou sobre aquele alvoroço, e disseram-lhe que o rei participava de um cortejo.

“Oh! É o rei. Ele está participando de um cortejo.” “Mas onde está ele?”, indagou o camponês.

“Lá, montado no elefante”, disse Nidagha.

“Você diz que o rei está montado no elefante. Sim, vejo os dois”, redargüiu o camponês. “Mas quem é o rei e quem é o elefante?”

“O quê!”, exclamou Nidagha. “Você vê os dois e não sabe que o homem, que está em cima, é o rei e que o animal, que está embaixo, é o elefante? De que vale falar a um homem como você?”

“Rogo-lhe que não seja impaciente com um homem ignorante como eu”, implorou o camponês. “Mas você disse ‘em cima’ e ‘embaixo’ – o que significam essas expressões?”

Nidagha não se conteve mais. “Você vê o rei e o elefante, um em cima e outro embaixo. Entretanto, quer saber o que significa ‘em cima’ e ‘embaixo’?”, explodiu Nidagha. “Se as coisas vistas e as palavras ditas significam tão pouco para você, só a ação pode ensiná-lo. Curve-se e saberá muito bem.”

O camponês fez o que lhe fora ordenado. Nidagha subiu em seus ombros e disse: “Agora você sabe. Eu estou em cima, como o rei, você está embaixo, como o elefante. Está claro?”

“Não, ainda não”, foi a resposta tranqüila do camponês. “Você diz que está em cima como o rei, e eu, embaixo como o elefante. O ‘rei’, o ‘elefante’, ‘em cima’, ‘embaixo’, até aí está claro. Mas peço-lhe que explique: o que quer dizer com ‘Eu’ e ‘você’?”

Quando Nidagha subitamente viu-se diante do profundo problema de definir o “você” separado do “eu”, sua mente clareou. Saltou imediatamente das costas do camponês e caiu a seus pés, dizendo:

“Quem mais senão meu venerável Mestre, Ribhu, poderia iluminar assim minha mente, retirando-a da superficialidade da existência física e trazendo-me o verdadeiro Ser do Eu superior? Oh, bom Mestre, imploro a sua bênção.”

Portanto, enquanto seu objetivo consiste em transcender aqui e agora as superficialidades da existência física por meio de atma-vichara³, onde está o espaço para distinguir entre “mim” e “você”, se elas pertencem apenas ao corpo? Quando você volta sua mente para o interior, buscando a Fonte do pensamento, onde está o “você” e onde o “eu”?

Você deve buscar e ser o Eu superior que tudo inclui.

¹ Brahman: o Eu superior Universal
² jnana: conhecimento
³ atma-vichara: inquirição do Eu superior