Eis o artigo.
Al Gore não foi apenas senador durante muitos anos, vice-presidente dos Estados Unidos com Clinton – quando impulsionou uma importante reforma administrativa – e quase presidente frente ao atual Bush, ganhou ainda uma merecida repercussão com a defesa do meio ambiente através do seu filme e livro Uma verdade inconveniente. Nos surpreende agora com este interessante livro de pura política, em toda a extensão da palavra, de leitura fácil como intensa e, que levantou rumores, de novo, sobre a sua candidatura à presidência.
Sobre esta viga constrói três discursos complementares que se reforçam ao longo do livro. No primeiro, Al Gore reflete sobre como a televisão é um dos elementos chaves que mudaram as condições em que se fazem políticas ao ponto de questionar algumas das raízes essenciais com as quais se construiu o sistema democrático. Promove a passividade dos indivíduos convertidos em expectadores ao contrario de protagonistas do debate, simplifica as mensagens políticas até tornar impossível um argumento que exceda os vinte segundos em que cabe um slogan ou uma consigna, torna mais importantes a cor da gravata do que o conteúdo e se exige quantidades volumosas de dinheiro para as campanhas apenas acessíveis para uns poucos. Dado que a essência da democracia requer cidadãos bem informados ativos e dispostos a debater com argumentos, a onipresença da televisão em sua fórmula atual reduz a qualidade da democracia como assinala, também, entre outros, Sartori com seu hommo viddens.
A segunda linha de debate que apresenta o livro é uma das melhores e mais rotundas críticas ao que tem representado a presidência de Bush para os Estados Unidos e para o mundo. A utilização sistemática da mentira na guerra do Iraque, a complacência com a tortura em Guantánamo, a fabricação de um Estado do medo permanente e indefinido que justifica um autoritarismo crescente, o abuso do veto presidencial para reduzir poderes do Congresso, a ocupação descarada do poder judicial mediante manobras obscuras, a submissão da Casa Branca em assuntos com a mudança climática aos interesses das grandes corporações que financiaram a campanha eleitoral, a negação em informar e prestar contas aos cidadãos utilizando de uma maneira exagerada o segredo oficial, a introdução da religião e dos valores mais reacionários na cotidianidade da ação publica presidencial, etc.
Recordo que não se trata de um livro do intelectual radical Chomsky, ou das narrações do jornalista Woodward. Trata-se da denúncia contundente e tranqüila de um patrício americano que foi do establishment e que poderá voltar a sê-lo, de um político preocupado pela degeneração que está passando a democracia em mãos de um grupo de neoconservadores que não acreditam nos princípios fundadores dos Estados Unidos, primos irmãos dos da Revolução Francesa, nem crêem na razão como elemento articulador de uma sociedade livre. Uns reacionários cuja obsessão é mobilizar as emoções convencidos de que a vitória não se consegue com bons argumentos.Este assalto à razão, que fornece o título do livro em inglês é a terceira e, mais importante linha de argumentação de Al Gore em sua crítica do que está acontecendo no Estados Unidos e em todo o mundo ocidental.
O debate não é novo e faz décadas que o filósofo marxista Lukács já escreveu um livro assim intitulado. A defesa da razão frente à tradição ou a religião como princípios organizadores de uma sociedade livre e democrática não tem estado isenta de problemas ao longo do século XX. Entretanto, em que pese as suas insuficiências (ver o livro de Walzer sobre razão, política e paixão) os abusos impelidos pelos neocon demonstram que qualquer sistema político baseado em princípios diferentes à razão, é, o que acaba sendo incompatível com a democracia e a liberdade individual tal como as entendemos e como as entendiam os redatores da Declaração da Independência.
E um dos principais valores do livro que comentamos está no fato de relacionar as ações concretas da gestão Bush com um projeto ideológico global, vinculado a um pensamento supostamente pós-moderno, mas que é realmente anti-moderno, elaborado para assentar as bases da convivência em princípios diferentes ao que fundamenta as nossas democracias atuais.
Princípios mais injustos, porque defendem os fortes e os ricos – mais reacionários porque se movem por sentimentos e não por argumentos e menos éticos porque não se detém diante da tortura, da mentira e da manipulação.
Estaríamos diante da tentativa de se impor uma nova forma de poder político que, liberto das restrições e controles do que definem uma democracia, se sintam impunes para redefinir a realidade à base da propaganda, defender os interesses de quem lhes patrocinam e reprimir com dureza aqueles que discordem.
Na Roma de Cícero e de Calígula já aconteceu algo semelhante. Acreditávamos superado esse estado de natureza a favor de uma civilização baseada na razão e na ciência como antídoto frente a este tipo de fundamentalismos.
Fonte:http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=10592
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