quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A experiência mística entre êxtases e ''transe''





O corpo do soberano: nas sociedades tradicionais, o líder tem algo que o torna diferente dos outros. Um arcaísmo que voltou a irromper nas nossas democracias.

Publicamos aqui o artigo de Marino Niola, antropólogo da contemporaneidade italiano e professor da Università degli Studi Suor Orsola Benincasa, de Nápoles, na Itália, publicado no jornal La Repubblica, 13-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Se o poder é uma espécie de possessão, então a política é uma espécie de transe. Um curto-circuito estático entre o carisma de um líder e a exaltação de uma multidão que saiu fora de si. Essa é a forma elementar da política, em que o poder surge diretamente do corpo do chefe, dos espíritos animais do domínio. Que, nas sociedades tradicionais, se revelam no ritual remoto do transe, em que o líder encarna aquele poder irresistível que o torna outro, diferente dos comuns mortais e o faz ultrapassar a soleira da humanidade colocando-o entre a ferocidade da fera e a onipotência do deus.

Essa paisagem antropológica tão arcaica parece pertencer a um passado já distante, porém, surpreendentemente, volta a irromper nas nossas democracias maduras. Em formas novas, naturalmente, mas que ainda conservam uma estreita ligação entre poder e transe, herança de uma história social e biológica esquecida que continua, porém, totalmente inscrita no nosso genoma político. Com a diferença de que, há muito tempo, os ritos do poder tinham a ver com o corpo físico do chefe, enquanto hoje o que está em primeiro plano é o seu simulacro midiático.

Quem o afirma é o antropólogo belga L uc de Heusch, seguidor de Claude Lévi-Strauss e, como ele, estruturalista fervente e surrealista de primeira hora, em um livro recém publicado, cujo título "Con gli spiriti in corpo. Transe, estasi, follia d'amore" [Com os espíritos no corpo. Transe, êxtases, loucura de amor] já anuncia o programa do autor (Ed. Bollati Boringhieri, 227 páginas).

Uma sugestiva viagem através do êxtase e do transe em busca daquele fundo primitivo que resta dentro da nossa civilização. Partindo das monarquias africanas com os seus espetaculares cerimoniais surpreendentemente próximos de dramas shakespearianos. Nos quais a essência da soberania se mostra em toda a sua plenitude justamente quando, no corpo do rei em transe, revelam-se as forças obscuras do poder: a violência, a transgress� �o sexual, a promiscuidade.

Em alguns casos, o rito coloca em cena até o parricídio e o incesto com uma sequência edípica que teria feito a felicidade de Freud. Por meio do espetáculo da degeneração monstruosa do líder, a sociedade coloca em cena, portanto, os seus aspectos mais inconfessáveis, tudo o que não se pode fazer e que, pelo contrário, o poder faz. E justamente isso ele torna objeto de execração e ao mesmo tempo de admiração.

O transe aparece, portanto, como um sismógrafo das forças que se combatem no homem e na sociedade. Uma transição escrita sobre o corpo alterado e mutante do soberano que reflete simbolicamente as incógnitas e os perigos de uma transformação social fora de controle. Mas também, como ocorre hoje, as insídias de uma sedução exercida pelo líder que rapta a a lma do povo em um êxtase multitudinário. Em uma relação de fusão em que qualquer um se perde no outro. Em uma experiência de perda e alteração de si muito semelhante à transe. Assim como o significado literal da palavra seduzir que é o de desviar, mandar para fora.

Hoje, o chefe carismático é o que satisfaz o desejo dos seus eleitores de serem seduzidos. E estabelece uma relação direta com o seu povo, que passa por meio da contínua visibilidade do seu corpo. Assim, o fio que une estética, erótica e política aparece em toda a sua força vital, uma força quase animal. O chefe político na civilização comunicante move-se justamente como o macho dominante dos chipanzés que tem necessidade de estar constantemente sob os olhos absortos do bando, transformando, porém, o olhar físico em contemplação televisiva, a distância real em ilusória familiaridade.

O grande enigma da história contemporânea, conclui De Heusch, é justamente o retorno efetivo e sempre mais opressor do macho dominante, mas nas formas híbridas do presente que transformam a antiga relação física entre poder e potência, entre supremacia social e domínio sexual sobre as mulheres do grupo em um hiperbólico "jus primae noctis" midiático. De forma a dizer que, hoje, mais do que nunca, a política está entre a sedução e a possessão.