quinta-feira, 29 de maio de 2008

A Glossary of Key Buddhist Terms and Concepts








Four Noble Truths


1 Dissatisfaction and suffering (dukkha) exist
2 Dissatisfaction and suffering have an origin
3 The origin of dissatisfaction and suffering (dukkha) is grasping (tanhá)
4 There is a path that leads one out of dissatisfaction and suffering (dukkha). That path is the Noble Eight Fold Path



The Four Houses of God (Brahma Viharas)


Boundless States, Divine Abodes, Bodhichitta (the Buddha mind):


1 Metta Loving Kindness
2 Karuna Compassion
3 Mudita Sympathetic Joy
4 Upekkha Equanimity



The Four Material Ecstasies, meditative absorption states (rupa jhanas) "samprajana-samadhi" where there is awareness of the material senses and they are is free from 5 things (i.e. the hindrances, nívarana, q.v.):

1- The first jhana (effusive elation) contains 6 jhana factors:


Sati Mindfulness
Vitakka applied or initiating attention
Vicára sustained attention
Sukha joy
Piti bliss
Ekaggatha one-pointedness


2- Second jhana (tranquility, no effort of concentration, or no Vitakka & Vicara needed) contains 6 jhana factors:


Sati Mindfulness
Sukha joy
Piti bliss
Ekaggatha one-pointedness
Passaddhi tranquility
avitakka ca aicara no applied or sustained attention


3- Third jhana (equanimity) contains 6 jhana factors:


Sati Mindfulness
Sukha joy
Piti bliss
Ekaggatha one-pointedness
Passaddhi tranquility
Upekkha equanimity


4- Fourth jhana (freedom from suffering) contains 6 jhana factors:


Sati Mindfulness
Piti bliss
Ekaggatha one-pointedness
Passaddhi tranquility
Upekkha equanimity
Asukha ca Adukkha no pleasure & no pain

Transitional phase absorption (nerupajhana-nearupajhana) between material (rupa) an immaterial (arupa) absorption (jhana), where OOBs and luminous orbs appear, as well as the recollection of former lives takes place.. No sensory stimuli "contact" remains.


The 8 jhana factors (jhánanga):


Sati Mindfulness
Piti bliss
Ekaggatha one-pointedness
Passaddhi tranquility
Upekkha equanimity
Asukha ca Adukkha no pleasure & no pain
Avedana No sensory stimuli
viriya, vîrya, kundalini Energy, lit. 'virility', vigor


The Four Immaterial Attainments trances or raptures (nonmaterial absorptions) (arupa-jhanas) (Jhanas 5-8) "asamprajnata" or "nirvikalpa-samadhi." where there is no awareness of the material senses:

5th jhana

Sphere of Infinite Space Akasanancayatana absorption or union (yoga) with infinite space, or a God of infinite dimension


6th jhana
Sphere of Infinite Consciousness Vinnananaacayatana Absorption or union (yoga) with the infinite consciousness of God, or Devekut with the Shekhinah (Kabbalah), absorption into infinite being, Indra's net of jewels (Mahayana Buddhism), Vishnu's Ocean of Milk (Hinduism), the cloud of truth (dharma meghaï) (yoga sutras).



7th jhana
The Sphere of No-Thingness Akincannayatana absorption or union (yoga) with the Infinite in a non-dual state such that the contemplative cannot distinguish between either this nor that, neither self nor other, neither self nor god. "I am That" Tat Twam Assi.



8th jhana
The Sphere of Neither-Perception-nor-non-perception Nevasannanasannnayatana Cessation (nibbana/nirvana) union (yoga) with the Infinite in which there is no sensible dimension (blackness (the full enlightenment or annihilation (fana).



Other absorption states not apparently described in the Buddha's Discourses

absorption or union (yoga) with infinite time, or a God of infinite time,

The five precepts:



1 Panatipata veramani sikkhapadam samadiyami I undertake the precept to refrain from destroying living creatures.

2 Adinnadana veramani sikkhapadam samadiyami I undertake the precept to refrain from taking that which is not given.

3 Kamesu micchacara veramani sikkhapadam samadiyami I undertake the precept to refrain from sexual misconduct.

4 Musavada veramani sikkhapadam samadiyami I undertake the precept to refrain from incorrect speech.

5 Suramerayamajja pamadatthana veramani sikkhapadam samadiyami I undertake the precept to refrain from intoxicating drinks and drugs which lead to carelessness.


The Five Hindrances (nivarana) to Enlightenment



1 kamacchandra Sensual desire

2 vyapada Ill-will or aversion

3 uddhacca-kukkucca Restlessness and scruples (anxiety)

4 thina-middha Sloth and Unconsciousness

5 vicikiccha Doubt



10 Fetters (samyojana) tying beings to the wheel of existence:


5 Lower Fetters (orambhagiya-samyojana) tying beings to the wheel of existence:


1 sakkaya-ditthi Narcissism
2 vicikiccha Skeptical doubt
3 silabbata-paramasa Clinging to rules, rights and rituals
4 kama-raga Desire for sensuality
5 vyapada Ill-will or aversion


5 Higher Fetters (uddhambhagiya-samyojana)


1 rupa-raga Craving for material existence
2 arupa-raga Craving for immaterial existence
3 mana Conceit
4 uddhacca Restlessness
5 avija Ignorance


The Five Aggregates (khandas/skhandas) of Cognition that cause the arising and passing away of mental structures (pancha-upadana-skhanda):


1 Body, matter, physical form rupa
2 Sensuality, sensory stimuli vedana
3 Perception sañña
4 Mental structures, states and objects sañkhara
5 Cognition viññana


The Five aggregates of one who is "beyond training:"


1 Virtue Sila
2 Absorption Jhana
3 Wisdom Panna
4 Liberation Vimuti
5 Knowledge and vision Nanadassana


The 6 Senses (áyatana) according to the Buddha:


1 Seeing
2 Hearing
3 Smelling
4 Tasting
5 Touching
6 Cognition


The Seven Factors of Enlightenment (bojjhanga), sambojjhanaga DN 22.16, n.689, 33.2.3(2):


1 Panna wisdom
2 Viriya energy, kundalini
3 Passaddhi tranquility 2nd jhana
4 Sati awareness, mindfulness 7th fold of the N8P
5 Upekkha equanimity 3rd jhana
6 Piiti bliss or rapture 1st jhana
7 Samadhi meditative absorption jhana


Noble Eightfold Path:


1 samma-ditthi right view (understanding)
2 samma-sankappa right thought
3 samma-vaca right speech
4 samma-kammanta right action
5 samma-ajiva right livelihood
6 samma-vayam right effort
7 samma-sati right awareness (mindfulness)
8 samma-samadhi right absorption


The Twelve “fruits” (phala) of the contemplative life are Supranormal Powers (lokuttara balani) or higher types of wisdom, "knowledges."


1 Upekkha Equanimity
2 Fearlessness
3 Adukkha Beyond Pain and Discomfort
4 Jhana Meditative absorption
5 Manomaya lit. "mind-made body" (OOB), "wields manifold supranormal powers"
6 Dibba-sota "divine ear-element" (Clairaudience)
7 parassa ceto-pariya-ñána knows the awareness of other beings (mental telepathy)
8 s. patisandhi, paticca samuppada, pubbenivásánussati lit. “rethinking” or "dependent origination" or recollection of manifold past lives
9 Dibba-cakkhu lit. "Divine eye" or "sees beings passing away & re-appearing" (Clairvoyance)
10 ending of mental agitation
11 Nanadassana lit “knowledge" (nana) and "vision" (dassana)
12 vikubbaná-iddhi power of transformation



See the Samaññaphala Sutta (DN 2) or the Kayagata-sati Sutta (MN 119). The claim that some of these "fruits" are "mundane" is pure dogma with no suttic support. They are all "supramundane" according to the Buddha.

O poder da mente num mundo criado por ela


(Do livro "Tibete: MAGIA E MISTÉRIO", Alexandra David Neel - Editora Hemus)

Fonte:http://holosgaia.blogspot.com/2008/04/o-poder-da-mente-num-mundo-criado-por.html


O mestre ordena ao discípulo que se feche em "tsams" e medite, tomando o seu "Yidam" (sua deidade tutelar) como objeto de contemplação.

Mantendo absoluta reclusão, o noviço concentra seus pen­samentos no "Yidam", imaginando-o sob a forma que lhe é atribuída nos livros e imagens. A repetição de certas fórmulas místicas e o traçado de um "kyilkhor" fazem parte do exercício, cujo alvo é fazer o "Yidam" aparecer a seu adorador. Este é, pelo menos, o objetivo apontado pelo mestre ao principiante.

O discípulo interrompe a contemplação somente durante o tempo necessário para alimentar-se e durante um período muito reduzido em que se lhe permite dormir. Com freqüência o recluso não se deita inteiramente, apenas dormita em um daqueles 'gomti" descritos em um dos capítulos anteriores.

Meses e até mesmo anos podem passar desta maneira. Ocasionalmente o mestre indaga sobre o progresso adquirido pelo discípulo. Por fim chega o dia em que o noviço o informa que obteve o fruto do seu esforço: o "Yidam" apareceu-lhe. Como é de regra, no início a visão foi nebulosa e durou apenas um momento. O mestre declara que é um resultado encorajador, mas não ainda o alvo definitivo. É desejável, portanto, que o discípulo prolongue a satisfação de ter a bendita companhia do seu protetor.

O aprendiz de "naljorpa" não tem outra alternativa senão concordar e continua a esforçar-se. Longo período novamente se escoa. E então, o "Yidam" é por fim "fixado" - se é que se pode usar tal termo. Passa a habitar no "tsams khang' e o recluso pode vê-lo sempre presente no meio do "kyilkhor".

- Isto é muito bom - declara o mestre ao ser informado do fato - mas você deve tentar obter um favor ainda maior. Deve prosseguir na sua meditação até que seja capaz de tocar com a cabeça os pés do "Yidam", até que ele o abençoe e fale com você.

Embora os primeiros estágios tenham tomado muito tempo para ser atingidos, são considerados, não obstante, a parte mais fácil do processo. Os estágios que se seguem' são muito mais árduos de atravessar e somente uma minoria entre os noviços obtém o devido sucesso.

Os discípulos vitoriosos podem ver que o "Yidain" adquire vida. Distintamente sentem o toque dos seus pés quando, pros­ternados, descansam a cabeça sobre eles. Sentem o peso das mãos do "Yidam" quando este os abençoa. Podem ver então que os olhos se movem, descerram-se os lábios, o "Yidam" fala e. . . Ó prodígio! desloca-se do círculo do "kyilkhor" e caminha pelo "tsams khang".

Este é um momento perigoso. Quando coléricos, semideuses ou demônios são invocados desta maneira, jamais se lhes deve permitir que escapem do "kyilkhor" cujas mágicas paredes os mantêm prisioneiros. Se libertados fora do devido tempo, vin­gam-se da pessoa que os compeliu à espécie de prisão que é o círculo consagrado. Em se tratando do "Yidam", porém, em­bora a sua aparência possa ser amedrontadora e o seu poder algo a ser temido, deixa de ser perigoso porque o discípulo obteve o seu favor. Conseqüentemente, pode mover-se à vontade no eremitério. E melhor ainda do que isto, deve atravessar a soleira e permanecer a descoberto. Seguindo as instruções do mestre, o discípulo deve procurar saber se a deidade deseja acompanhá-lo quando ele sai do eremitério.

Esta tarefa é mais difícil do que as demais. Visível e tan­gível na obscuridade do eremitério perfumado pelo incenso, onde as influências psíquicas de uma prolongada concentração do pensamento estão em funcionamento, será a forma do "Yidam" capaz de subsistir em ambiente inteiramente diverso, sob a bri­lhante luz do sol, exposto a influências que, longe de mantê-la, poderão atuar como agentes de dissolução?

E uma nova eliminação tem lugar entre os discípulos. Muitos dos "Yidam" recusam-se a seguir os devotos para o exterior. Obstinadamente permanecem em algum canto escuro e algumas vezes vingam-se pelas desrespeitosas experiências a que estão sendo submetidos. Estranhos acidentes sobrevêm a alguns asce­tas, porém, outros obtêm sucesso no seu empreendimento e, aonde quer que vão, gozam da presença do seu venerável pro­tetor.

- Você atingiu o desejado alvo - diz então o "guru" ao seu exultante discípulo. - Nada mais tenho a ensinar-lhe. Ob­teve os favores de um protetor mais poderoso do que eu.

Alguns discípulos agradecem ao Lama e, orgulhosos da sua proeza, retomam ao seu mosteiro ou se estabelecem em um eremitério e passam o restante das suas vidas a entreter-se com o seu fantasma.

Outros porém, ao contrário, tremendo em agonia mental, prosternam-se aos pés do seu "guru" e confessam algum terrível

pecado. As dúvidas levantaram-se em suas mentes. Apesar dos mais vigorosos esforços não foram capazes de vencê-las. Diante dos seus próprios "Yidams", mesmo quando com eles falavam ou quando eles os tocavam, em suas mentes surgiu o pensamento de que contemplavam uma mera fantasmagoria que eles mesmos haviam criado.

O mestre mostra-se aflito com a confissão. O descrente deve voltar ao seu "tsams khang" e recomeçar todo o treina­mento a fim de se sobrepor à sua incredulidade, que revela enorme ingratidão para com o "Yidam" que o favoreceu.

Uma vez enfraquecida, raramente a fé volta a readquirir a firmeza original. Se o grande respeito que os orientais sentem pelos seus instrutores religiosos não os refreasse, esses incrédulos discípulos provàvelmente cederiam à tentação de desistir da vida religiosa, uma vez que o seu longo treinamento redundou em materialismo. Na sua quase total maioria, porém, mantêm-se firmes porque, se chegam a duvidar da realidade do seu "Yidam", jamais duvidam da sabedoria do seu mestre.

Depois de algum tempo, o discípulo repete a mesma con­fissão, desta vez ainda mais positiva do que na primeira. Já não se trata de uma questão: de "dúvida": está absolutamente "con­vencido" de que o "Yidam" foi produzido pela sua, mente e não tem outra existência a não ser a que lhe empresta.

- Era necessário que compreendesse exatamente isto - ­responde-lhe o mestre :-- que deuses, demônios e todo o uni­verso não passam de uma miragem que existe em nossa mente, "na mente surgem e na mente desaparecem".

quarta-feira, 28 de maio de 2008

A política do xamanismo e os limites do medo





Robert Storrie

Departamento de África, Oceania e Américas - Museu Britânico





--------------------------------------------------------------------------------

RESUMO

Os Hoti são um pequeno grupo de caçadores-horticultores que vive na região central da Guiana venezuelana. Neste artigo, examino o que os Hoti entendem por igualdade, hierarquia e poder, bem como o uso coercitivo do medo por indivíduos que cultivam a reputação de "Pessoas Leves" ou seja, pessoas especialmente hábeis em interagir com os poderosos seres do meio xamânico , um papel que é essencial para a fertilidade e segurança da comunidade. O povo hoti é altamente igualitário e anti-hierárquico em suas concepções morais e, para eles, todo poder é ambíguo e toda pretensão de autoridade pode levantar suspeitas. Por essa razão, é muito raro que alguém proclame ter habilidades xamânicas, embora cultivar tal reputação sem nunca admiti-la envolva diretamente considerável habilidade política. A política do xamanismo pode ser um jogo exigente, perigoso e às vezes fatal, pois os Hoti serão capazes por meio do humor, do ridículo e até da violência de limitar a capacidade dos xamãs de acumular autoridade e exercer poder.

Palavras-chave: Amazônia, Venezuela, Hoti, xamanismo, poder, política.


--------------------------------------------------------------------------------

ABSTRACT

The Hoti are a small group of hunter-horticulturalists living in the highlands of central Venezuelan Guiana. In this article I examine Hoti understandings of equality, hierarchy and power and the coercive use of fear by individuals who cultivate a reputation as "Light Ones" that is people especially skilled in their interaction with the powerful beings of the shamanic environment a role that is essential for the safety and fertility of the community. Hoti people are highly egalitarian and anti-hierarchical in their moral understandings and for them all power is ambiguous, and all claims to authority can arouse suspicion. For this reason it is very seldom that anyone will claim ability as a shaman, although there is considerable political skill involved in cultivating such a reputation without ever admitting to it directly. The politics of shamanism can be a demanding, dangerous, and sometimes deadly game, as Hoti people are able, through humor, mockery and even violence to limit the capacity of their shamans to accumulate authority and wield power.

Key-words: Amazonia, Venezuela, Hoti, shamanism, power, politics.


--------------------------------------------------------------------------------





Introdução

Os Hoti1 são um povo seminômade de aproximadamente 700 indivíduos, que habita um território montanhoso na Serra de Maigualida, região central da Guiana venezuelana. Vivem da caça e da coleta, bem como da agricultura de coivara. A maioria de suas terras é dominada pela floresta tropical, com trechos ocasionais de savana, elevando-se em dramáticos espinhaços e serranias, cortados por pequenas ravinas e rios de correnteza rápida. Possuem um território de 10 a 20 mil km2, que os vizinhos os Piaroa, Panare, Hiwi, Yabarana e Ye'kuana visitam para fazer comércio, às vezes para caçar e pescar ou, ocasionalmente, para garimpar ouro. Na época do meu trabalho de campo,2 mais da metade de todos os Hoti vivia em uma de duas aldeias de missões religiosas: uma povoamento da Missão Novas Tribos (MNT) no limite sul de seu território, no rio Caño Iguana,3 e outra em Kayamá, na fronteira norte de suas terras, administrada por freiras da Igreja Católica.

Os Hoti talvez sejam o povo mais igualitário já descrito pela etnografia amazônica. Todos os Hoti a quem perguntei concordaram que não havia diferenças fundamentais ou essenciais de aptidão ou inteligência entre homens, mulheres e crianças. Ódio e violência estão excluídos da esfera social. Quase não se ouvem vozes alteradas numa comunidade hoti, a punição das crianças nunca vai além da mais suave repreensão e elas certamente nunca apanham. Seres humanos, dizem os Hoti, sempre são generosos e nunca violentos. Seres humanos não podem matar ou mesmo ferir outros seres humanos, embora nem sempre seja imediatamente óbvio quem é ou não humano. Sua defesa da igualdade baseia-se em concepções cosmológicas da natureza das pessoas e da humanidade. Essas concepções sustentam que o aspecto eterno de todos os seres o ho (plural, hodï) tem sempre a mesma aparência, as mesmas capacidades e origens, todos são todos coetâneos e, o que é importante, habitam no mesmo universo moral.4

Em suas vidas cotidianas, os Hoti demonstram respeito pelos outros e por outros pontos de vista; vivem em comunidades pacíficas que rejeitam todas as formas de dominação ou coerção, ou a autoridade de uma pessoa sobre outra. Entretanto as concepções morais hoti são estruturadas não em termos de ausência de hierarquia, mas antes em termos de resistência à hierarquia. Eles entendem que a manutenção de relações sociais igualitárias em comunidades tranqüilas e harmoniosas é produto do trabalho social. Reconhecem claramente o potencial humano para a cobiça e a violência e para o desejo de poder sobre os outros; potencial que exprimem nos termos de uma natureza transformacional do universo - a possibilidade de um ser humano pacífico e generoso transformar-se em algo outro.

O povo hoti freqüentemente afirma a equivalência de todos os seres e procura ativamente minar a autoridade e a hierarquia. Quase todos os Hoti a quem perguntei se recusaram a dar algum tipo de declaração normativa acerca da vida social ou de concepções morais - eles não diriam coisas que pudessem ser interpretadas como críticas a outras pessoas. Eles ridicularizam qualquer um que aparente ser orgulhoso ou autoritário e evitam qualquer um que pareça estar zangado ou fale alto, ou demonstre alguma inclinação para a violência. Para os Hoti, uma das características definidoras dos "outros", os não humanos e potencialmente não humanos, é a expressão de uma gama de emoções, todas agrupadas sob a palavra yowali - ira, fúria, cobiça e egoísmo, valentia, loucura ou violência. Uma pessoa não é yowali se é generosa, tranqüila, reservada e temerosa (idiyu).5

Apesar de afirmarem a equivalência, o igualitarismo ativo e a exclusão de qualquer violência física das relações interpessoais, morais e sociais, há uma zona da experiência e do saber na qual desigualdade, poder, violência e medo são todos potenciais, ou mesmo, às vezes, essenciais - como no envolvimento deles com os variados e poderosos seres outros-dos-humanos do sempre presente, subjacente, imanente e causal âmbito do xamanismo. O xamanismo, quer seja utilizado para fins negativos ou positivos, é uma presença bastante real no mundo. Ele não existe como parte de um campo da experiência extraordinária nem é visto como pertencente a uma esfera isolada da prática. Todo mundo tem um aspecto xamanístico, o ho, e todos têm acesso direto ao meio xamânico por intermédio dos seus sonhos, a matéria-prima do xamanismo. À noite, antes de irem dormir, todos os adultos comprimem uma forte mistura de tabaco preparado entre a gengiva e o lábio inferior, para que os sonhos sejam mais intensos. A maioria do xamanismo hoti é conduzida desse modo, em sonhos sensitivos. O sonho sensitivo é aprendido desde muito cedo por crianças que ouvem os adultos toda manhã nas malocas - quando os sonhos são recontados, discutidos e comparados. As crianças aprendem a prestar atenção a seus sonhos; quando elas acordam de um sonho intenso ou um pesadelo, dizem-lhes que o que viram é muito importante e é real (cf. Santos-Granero, 2003).

Não há um papel claramente reconhecido de "xamã" nem demonstrações ostensivas de "xamanismo". Há pessoas que são reconhecidas por outras como especialmente hábeis na interação com os Seres de Fora (èo ma hadï). Acredita-se que elas tenham relações muito próximas com os seres outros-dos-humanos - particularmente, com os guardiões Anciãos da Floresta (èo aimo). É muito raro que alguém reivindique ou admita uma vocação especial para xamã, embora cultivar uma tal reputação sem nunca admiti-la diretamente envolva uma habilidade política considerável. Como muitos povos amazônicos, os Hoti são ativamente igualitários e, para eles, todo poder é ambíguo e toda reivindicação de autoridade pode levantar suspeitas. Uma admissão (ou reivindicação) de vocação xamânica pode expor essa pessoa a acusações abertas de bruxaria.

No entanto, algumas pessoas, geralmente homens - mas, às vezes, também mulheres ou mesmo crianças - , podem tornar-se dignas de medo. Por intermédio do envolvimento habilidoso com os seres do universo misterioso, poderoso, transformacional - as fontes de fertilidade e doença - , elas adquirem poderes curativos e letais. Elas usam seu poder para defender a comunidade e algumas podem também tentar utilizar suas temidas reputações para manipular ou intimidar outras comunidades hoti; podem até exercer seu poder numa política do medo, capaz de afetar seus próprios co-residentes.

Como os Hoti conciliam a aparente tensão entre seu ethos anti-hierárquico e as capacidades desiguais no exercício do poder xamânico? A resposta está, creio, na concepção do valor atribuído ao "temer" como uma característica humana intrínseca e positiva. Neste ensaio, explorarei os limites morais do uso do medo e as sanções que demarcam e policiam esses limites. Entre os Hoti, quem reivindica o exercício desses poderes embarca em um jogo político perigoso e às vezes fatal.



Universo transformacional

O xamanismo é essencial ao povo hoti devido à natureza, e incertezas, do universo em que habitam. Como muitos povos ameríndios, os Hoti descrevem um universo transformacional, composto de diversas camadas, onde seres e objetos não necessariamente podem ser conhecidos ou apreendidos a partir de suas aparências.6 Ao contrário, o conhecimento da verdadeira natureza de uma pessoa, ser ou objeto pode resultar de seus efeitos, ainda que seja possível que ela nunca venha a ser conhecida. Explorei esse aspecto do pensamento classificatório hoti em outro trabalho (Storrie, 1999, 2003), porém aqui é importante salientar que os Hoti aceitam a possibilidade de diferentes interpretações do mesmo evento ou encontro e que o mesmo ser ou objeto pode ser percebido de modo diferente por pessoas diferentes e, assim, ser classificado diferentemente.

É por essas razões que uma compreensão do universo xamânico se torna tão crucial. Como Rivière descreve para os Trio, "se uma criatura particular é a criatura que de fato se vê, ou um espírito vestindo as roupas daquela criatura, depende do que resulta do encontro a menos que a pessoa seja um xamã e, assim, seja capaz de ver, através do disfarce, a realidade interna" (1994, p. 257).

Também para os Piaroa a incerteza é um quebra-cabeças ontológico diário. Para eles,

esses "problemas" de identidade [...] certamente não eram relativos a "metáfora", pois os Piaroa estavam ali obviamente preocupados com a identidade factual: "Esse porco-do-mato é um humano ou um vegetal?"; "Essa onça é um animal, um bruxo humano ou um deus de `antes do tempo'?"; "Essa borboleta ou morcego é um bruxo de uma comunidade estrangeira?". Se interpretassem mal, entendiam que as conseqüências literais poderiam ser terríveis - o indivíduo poderia ficar sujeito ao ataque de um predador. O Ruwang [o xamã] é quem era capaz de resolver esses mistérios de identidade: era o único capaz de transformar carne de porco, que na verdade era carne humana, em comida vegetal segura; era o único capaz de ver o bruxo na pele de morcego e combatê-lo. (Overing, 1990, p. 610)
O cosmos é povoado por uma grande variedade de pessoas e seres. No pensamento hoti eles não estão divididos em categorias correspondentes às nossas noções de "natural" e "sobrenatural", ou de "terreno" e "espiritual". Em vez disso, as qualidades sugeridas por essas categorias estão incorporadas, em graus variados, em todos esses seres. Todos os seres e pessoas, e alguns objetos, têm um aspecto eterno (ho), semelhante à alma, que existe no meio xamânico, geralmente sob uma forma semelhante à humana; bem como um corpo, que é forma distintiva de sua espécie ou tipo. No mundo da experiência de vigília, os Hoti apontam para seus peitos ou estômagos para indicar o ho, que às vezes também é chamado a "coisa animada dentro do coração" (kwo hu kwa ma ha) ou a "coisa animada dentro do estômago" (ièo kwa ma ha).

Em um nível de explicação, parece haver um lado de dentro e um de fora nas pessoas. O de dentro é o ho, a "alma" eterna, cuja aparência é idêntica a todas as outras "almas"; todas são equivalentes e coetâneas umas às outras. O de fora é o corpo, que veste a alma e dá a cada ser suas características e aptidões distintivas. Às vezes, esses seres antropomórficos (o ho, plural, hodï), que são a natureza de suas espécies, podem habitar outros corpos, revelando-se a si mesmos e suas verdadeiras naturezas por meio de comportamentos característicos - ou, antes, por meio do comportamento atípico da forma física que habitam.

No entanto - e significativamente -, não há palavra hoti para "corpo" nem, creio, algum conceito correspondente a nossa idéia de corporeidade (cf. Overing, 1997, p. 2). Os Hoti falam da "pele" (hedodo) e a descrevem como um recipiente ou cobertura para o ho.7 Também chamam o ho "a coisa que se vai" (woi deka ha), referindo-se tanto à partida do ho após a morte quanto à idéia de que, enquanto o "corpo" dorme, a pessoa vivencia o mundo xamânico.

A natureza de uma pessoa ou ser pode modificar-se graças ao efeito de poderosas substâncias sobre o corpo - pela ingestão de carne, por exemplo.8 Corpos e naturezas, comportamentos e almas são permeáveis uns aos outros e são tanto fixos como variáveis, dependendo do contexto; tanto o interior como o exterior podem variar e ser o local da diferença. No caso de uma pessoa, por exemplo, que se comporta de maneira imprópria, os Hoti não acreditam que ela tenha sido possuída pelo ho de outra pessoa, mas que sua natureza modificou-se devido ao contato corporal com alguma substância transformadora.

De acordo com Viveiros de Castro, os ameríndios postulam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres e o cosmos (1998b, p. 56), ou seja, que há uma "alma" universal e corpos mutáveis. Para os Hoti, entretanto, a possibilidade de que transformações do corpo modifiquem o ser interior parece desafiar a noção de uma alma universal. Os Hoti consideram a possibilidade de que a aparência de um ser não forneça prova alguma de sua "natureza", mas os corpos são mais do que "roupas" que incorporam as aptidões e práticas de espécies particulares, e os hodï - "almas" - não são, de fato, claramente dissociados de seus corpos (ver Werlang neste volume). O que está dentro e o que está fora também dependem do contexto - ou ponto de vista. O ho está, para os Hoti, dentro da pele, mas é um èo ma ha, literalmente, "um ser de fora", um aspecto da pessoa que existe "fora" (èo), no mundo xamânico.9 O que os Hoti estão descrevendo, em termos de seus encontros vividos com outras pessoas, são (nos termos de Ingold) "pessoas-organismos" (cf. Ingold, 1996, p. 128) que existem como diferentes aspectos com diferentes capacidades, simultaneamente em diferentes mundos. Por exemplo, um ser que existe como porco no mundo da vigília é, simultaneamente, um ho antropomórfico no meio xamânico e não às vezes uma coisa e outras vezes outra coisa diferente. Sven-Eric Isacsson descreve como os xamãs emberá transformam-se, por meio de canções, de indivíduos a cosmos. As viagens xamânicas que empreendem são feitas dentro de seus corpos - agora não mais pessoais, mas cósmicos. As interpretações de Isacsson são extremamente úteis para nos auxiliar a refletir sobre o potencial do conhecimento cosmológico amazônico sobre indivíduos e corpos e sobre corpos enquanto cosmos (Isacsson, 1993, p. 70).

Os xamãs têm a capacidade de ver simultaneamente todas as transformações possíveis de um ser. Também podem ter o conhecimento de como transformar a si mesmos - possivelmente até mesmo em "outros" perigosos, como uma onça predadora. É no interior desse universo que o conhecimento e os sentidos aguçados dos xamãs ("os que sabem bem", ti anku, ou "Pessoas Leves", kaho hadï) tornam-se questão de vida ou morte. Na maioria das malocas hoti, mora ao menos uma pessoa assim. Elas podem ser, para as outras pessoas, tanto temíveis quanto assombrosas; oferecem uma proteção tranqüilizadora, mas também a possibilidade de poder incontrolado. Um xamã pode perder-se numa transformação, ou ser incapaz de retornar à forma humana - após ter, sob a condição de onça, bebido sangue. Pode até, involuntariamente, atacar seus próprios parentes.



As pessoas leves

Os Hoti se referem às pessoas que acreditam ser particularmente talentosas no xamanismo como Pessoas Leves (kaho hadï). A leveza é, essencialmente, uma qualidade xamânica. Aves são kaho hadï arquetípicos, têm substância - são fisicamente sólidas - mas não são limitadas à terra. São capazes de viajar entre os domínios do cosmos e, quanto a isso, são como kaho hadï humanos - que às vezes são descritos voando como aves ou se transformando em aves. Os Hoti manifestam uma especial fascinação por aves e apontam-nas quando elas estão voando, com o braço esticado, dizendo "të, të, të" - "lá, lá, lá".

O peso é tipicamente uma característica de coisas viventes limitadas à terra; corpos são "pesados" e alguns dos seres "outros-dos-humanos" também são referidos como pesados. Os Senhores dos Animais, os aimo, são pesados por causa do aspecto físico dos animais que representam; tal como são os espíritos do Vento e da Água - por causa, dizem os Hoti, do assombroso poder físico desses elementos. Do mesmo modo, "leveza" não é uma característica exclusiva de seres incorpóreos - onças também são "leves", não deixam rastros, a não ser intencionalmente, e também porque são os animais de estimação dos Anciãos da Floresta, os èoaimo, ou mesmo os próprios Anciãos em forma de onça, ou um xamã humano transformado. As onças são especiais, estão sempre associadas ao ambiente xamânico.

Algumas pessoas nascem leves e demonstram essa aptidão desde a infância. No entanto, conforme as pessoas vão crescendo, ocorre que, para todas elas, a fronteira entre vigília e sono se torna menos definida e elas se tornam mais "leves". É desse estado intermediário entre vigília e sono, entre vida e morte, que a "leveza" dos mais velhos se origina; eles se tornam cada vez mais permeáveis ao ambiente xamânico "de fora". Mas vale lembrar que o "de fora" pode estar localizado dentro da pele. Os corpos das Pessoas Leves são leves em virtude de sua porosidade e permeabilidade. Eles permitem que o universo atemporal passe para dentro desse mundo.

Acredita-se, portanto, que as pessoas leves tenham sentidos tão aguçados que podem perceber o mundo das causas que subjaz ao mundo da vigília; elas podem ver o que uma pessoa ou coisa "realmente" são; elas podem entreter relações próximas com pessoas "outras-dos-humanos" poderosas, que podem ser convencidas a ajudar ou intervir na vida dos Hoti, trazendo proteção e sucesso na caça, ou doença e morte. Podem até se tornar poderosas o suficiente para se transformarem em predadores - tal como a onça. Elas podem percorrer o mundo, através do tempo e do espaço, enquanto seus egos corpóreos permanecem nas redes, junto ao seu próprio coração. Podem fazer com que o hodï de outras pessoas, especialmente dos jovens, se extravie, causando doenças e até a morte. A bruxaria humana pode remover a proteção, deixando o ho da vítima exposto e vulnerável. Acredita-se que algumas pessoas especialmente competentes e maldosas têm a capacidade de tomar o ho de uma pessoa diretamente, mas de modo geral seus poderes vêm da habilidade de convencer seus aliados sobrenaturais a roubar o ho de suas vítimas.

Doença e morte não "acontecem" apenas, são sempre conseqüência de ações diretas. Os awéladï - sombras, fantasmas ou aspectos do mal -, sempre presentes nos locais mais escuros e na fria umidade da floresta, são os agentes diretos da morte humana. Eles podem matar por acidente, com seu toque frio letal, porque sua solidão insuportável leva-os a procurar os vivos; ou podem ser os agentes da ira ou maldade humanas, capturando o ho a mando, propositado ou não, de uma Pessoa Leve - alguém que "conhece bem" o mundo xamânico das causas e intervém - seja para proteger seu povo ou para promover seus próprios objetivos e desejos egoístas. Os awéladï só têm chance de matar se a pessoa estiver carente da proteção de seus guardiões, os Anciãos da Floresta. Esses guardiões podem ser convencidos ou ludibriados pelas Pessoas Leves, de modo a negligenciar seus deveres. Todos os Seres de Fora podem reagir àquelas emoções humanas que os Hoti descrevem como yowali. Sentir fortes emoções pode ameaçar a saúde e o bem-estar daqueles que estão à sua volta. A discórdia, ou mesmo a ira velada, ou o ressentimento no interior de um aldeamento, acredita-se, podem trazer riscos a todos. Indivíduos e famílias prefeririam ir-se embora a arriscar brigas que pudessem provocar essas emoções. Para os Hoti, os perigos envolvidos no sentir emoções negativas não estão relacionados apenas aos possíveis perigos físicos, mas também à percepção das conseqüências sobrenaturais da ira, direta ou indiretamente dirigida. O povo hoti não faz distinção categórica entre violência física e violência xamânica - mas, enquanto as pessoas comuns podem ferir acidentalmente por meio de suas emoções caóticas e descontroladas, as Pessoas Leves podem canalizar isso em violência direta.



Bruxaria, generosidade e humanidade

Passo agora a alguns exemplos de pessoas que dizem ser ou proclamam a si como Pessoas Leves. Uma carreira xamânica como Pessoa Leve apresenta uma variedade de resultados possíveis. O exemplo ao qual muitos aspirariam é o do ancião e chefe reconhecido de maloca ou comunidade - generoso, sábio, respeitado, confiável e, apesar de quieto, assombroso e temível, mas não temível demais. Outra conseqüência possível de se envolver nessa política do medo são o ridículo e o exílio, ou talvez até a morte. É claro que, na verdade, algumas dessas pessoas são tudo isso - respeitadas, temidas, ridicularizadas, evitadas ou atacadas - para pessoas diferentes em momentos diferentes.

A generosidade é muito importante para a moral hoti: cobiça e mesquinhez são comportamentos definidores de pessoas que são yowali - violentas, zangadas, "Outras". A generosidade, por outro lado, é prova de humanidade: ela demonstra que uma pessoa não há de ser yowali. Desde a primeira vez em que estive entre os Hoti, eles me davam espontaneamente presentinhos de todo tipo - incluindo comida preparada, fruta e mel, bem como miçangas e enfeites de plumagem. Comportavam-se adequadamente, mostrando a própria humanidade e esperando para ver como eu reagiria - testando minha humanidade. A generosidade não é medida apenas em termos materiais, mas também em grau de socialidade, tempo, trabalho e conhecimento. O xamã deve dar sua energia e conhecimento desinteressadamente, para que a comunidade prospere sob sua proteção. Ele é provedor da alimentação, graças a seu envolvimento com os Senhores dos Animais, e da fertilidade humana, graças a suas relações com os Anciãos da Floresta, que guardam as almas dos Hoti que ainda estão por nascer. Assim, conhecimento, prosperidade, fertilidade e generosidade se encontram todos juntos no xamã ideal. A falta de generosidade foi mencionada em todas as discussões que presenciei que implicavam acusações de bruxaria.



Itë e Kenowano

Itë, homem com mais de 50 anos e recém-chegado a Kayamá, era um tanto marginal - sua casa e suas roças ficavam do outro lado do rio, a cerca de dois quilômetros das outras casas hoti, mais próximas da missão. Ele vivia com as filhas e seus maridos e famílias. Era distante e não mostrava interesse em visitar e estabelecer laços com as pessoas da aldeia da missão. Como um estranho, ele deveria se esforçar mais, na opinião dos outros, para conviver com os outros grupos - se quisesse obter algum grau de aceitação e superar a forte suspeita que os Hoti têm em relação a membros de comunidades diferentes. Ele se dizia, com orgulho mas também brincando, uma Pessoa Leve.






Kenowano era um homem importante na comunidade da missão: ele tinha cinco irmãs casadas com homens mais velhos na aldeia, e as freiras o designaram como intermediário entre a missão e a comunidade. Quando a filha de Kenowano morreu subitamente após uma pequena febre, veio à lembrança que Itë fora visto discutindo com a menina na margem esquerda do rio há algumas semanas, e a suspeita de que a ira de Itë tinha sido a causa da morte da menina cresceu entre os membros da família de Kenowano. Esta confrontou Itë e tentou forçá-lo a ir embora. No entanto, eles logo se deram conta de que não tinham o apoio nem mesmo de seus parentes consangüíneos, pois Itë era considerado mais um palhaço do que uma ameaça pela maioria da comunidade, e o assunto foi discretamente abandonado. Itë, por sua vez, depois desse confronto, começou a interagir muito mais com as outras casas da aldeia. Itë e sua mulher até anunciaram a intenção de serem batizados e começaram a assistir aos encontros da igreja, organizados pelas freiras todo domingo. Uma atitude hábil, pois Kenowano era muito próximo à missão - até construíra sua casa dentro do núcleo residencial das freiras. Itë também contribuiu com quase todo o produto de suas roças para um banquete comunal e, com essa mostra de generosidade/humanidade, restabeleceu relações amigáveis com as outras famílias de Kayamá.



Abiyema e Uli Dewa

Quando interroguei as pessoas de diferentes aldeamentos sobre violência, houve uma concordância geral de que isso era uma característica de "Outras Pessoas" ("Outras Pessoas" pode referir-se tanto a outros Hoti como aos não Hoti). Quando pressionadas, quase todas concordavam que os Hoti ocasionalmente brigavam ou matavam, e muitas dessas pessoas eram capazes de dar exemplos - aparentemente de suas próprias experiências. Acumulei alguns relatos de violência fatal e senti que isso apresentava um contraste intrigante com a proibição bem explícita quanto à manifestação, ou mesmo o sentimento, de ira entre os Hoti. Gradualmente, quando consegui me dar conta do caráter subjetivo da onomástica hoti, percebi que muitos desses relatos de violência diziam respeito a uma única rixa entre dois grupos e, provavelmente, a um único incidente. As diferentes histórias constituíam uma série de interpretações diferentes do mesmo fato, distorcido pelas vagarosas teias da fofoca.

Por fim, consegui entrevistar alguns dos que estavam realmente envolvidos na briga. O que ocorreu não estava, em grande medida, em questão. As diferentes interpretações giram em torno de motivos e justificativas.

A versão dos fatos que circulou pela aldeia da missão em Kayamá, depois de ser visitada por alguns do grupo de Uli Dewa, foi a seguinte: Abiyema, um homem muito velho e bruxo temido, mandou alguns dos seus para matar Uli Dewa, também uma "Pessoa Leve" velha e famosa, que vivia a cerca de três dias de caminhada. O aldeamento de Abiyema sofrera algumas mortes, e ele se convencera de que Uli Dewa era o responsável. Os enviados - pelo menos dois dos filhos de Abiyema, duas mulheres e outros -, armados com lanças e facões, chegaram do lado de fora da casa de Uli Haiye à noite e disseram a ele e a seu pai, Uli Dewa, que saíssem; os dois, sabiamente, ficaram dentro de casa. Os atacantes entraram e, na luta, Uli Dewa e outra pessoa da casa foram feridos. Uli Haiye conseguiu desarmar ao menos um atacante e, com a lança deste, matou três deles e feriu um ou mais. Entre os mortos, estava uma mulher (que atacara Uli Dewa com um facão).

Outra versão difundida da história conta que o grupo de Abiyema estava visitando Uli Haiye sobretudo para comerciar. Pediram e receberam facões, facas e panelas, mas, quando exigiram zarabatanas, Uli Haiye disse que não havia. Obviamente, era mentira, pois sempre há zarabatanas numa casa hoti. Os convidados eram muito exigentes e muito insistentes. Finalmente, a insistência para que lhes dessem zarabatanas foi, para Uli Haiye, a gota d'água. De acordo com diferentes versões da história, ou a recusa provocou imediatamente a discussão que levou à briga, ou os convidados foram embora, voltando depois para atacar os ex-anfitriões. Os dois velhos, posteriormente, retiraram-se para acampamentos na floresta, distantes um do outro, com a maioria de suas famílias.





Esse argumento, tipicamente, funde acusações de bruxaria com falta de generosidade, com os dois lados ansiosos para demonstrar que foram generosos. Bruxaria e loucura são, em muitos contextos, intercambiáveis em controvérsias - embora esta, que resultou em algumas mortes, foi, de longe, a mais séria de que tomei conhecimento.



Kuèo e Kamaya

A casa e as roças de Kuèo localizam-se numa encruzilhada, no centro do território hoti. Ele vive com a esposa e cinco filhos jovens em uma casinha abobadada, bem abrigada das noites frias, comuns a mil metros acima do nível do mar. Ele mora onde antes morou seu pai, em uma pequena chapada bem abaixo da montanha mais alta da Serra de Maigualida. Kuèo e seus visitantes chamam essa montanha de huana inéwa, a Montanha da Zarabatana, e nos caibros de sua casa sempre há feixes do valioso caniço utilizado para fazer zarabatana. Como ocorre com muitos chefes de povoamentos isolados, Kuèo tem a reputação de Pessoa Leve e bruxo entre as pessoas da aldeia da missão de Caño Iguana, que fica ao sul, a dois dias de caminhada a passo rápido. O caminho não é muito definido nem utilizado com freqüência, mas é conhecido por ser a única via ligando as duas missões, Caño Iguana e Kayamá. Todo ano, uma ou duas vezes, alguém fará essa viagem - e, quando a fizer, sempre irá parar na casa de Kuèo, para trocar caniços de zarabatana. Outro caminho liga Kuèo e seus caniços aos rios a oeste e, no limite, aos Yabarana e Piaroa. A gente de Kuèo sempre viveu nesse lugar e sempre foi o primeiro elo na cadeia que fornece zarabatanas para além dos grandes rios. Sua reputação de Pessoa Leve serve para dissuadir muitas pessoas que pensam em empreender suas próprias expedições para cortar caniços, embora haja alguns que não se impressionem ou julguem que também têm antigas pretensões ao território e que Kuèo não representa uma ameaça.






Uma das ocasiões em que o visitei foi quando viajei com Maièo, Tamuha e Kwaièa, homens de Caño Iguana. Íamos visitar a aldeia de Kayamá. Meus companheiros pararam para pernoitar e construíram um pequeno abrigo em frente à casa dele. Passamos a noite comparando e admirando zarabatanas. Tamuha estava particularmente ansioso para levar caniços para comerciar em Kayamá. Ele e Kuèo retiraram os caniços de três a quatro metros de comprimento um a um, dobraram-nos, examinaram-nos, discutiram sobre seus méritos relativos e finalmente os puseram todos de volta nos caibros. Na manhã seguinte, ocorreu o mesmo, embora no meio da manhã, Tamuha selecionara uma meia dúzia de caniços que considerou os melhores. Kuèo não pediu nada em troca nem se fez oferta alguma.

Um mês depois, voltando pelo mesmo caminho, nós paramos mais uma vez no lado de fora da casa de Kuèo. Tamuha não conseguira trocar todos os caniços que levara, tampouco adquirira tanto curare quanto esperava dos Panare. Agora, Kuèo fazia seus pedidos e todos lhe deram alguma coisa. Um pote de curare e um amolador de Tamuha, uma lança de Maièo, uma faca de Kwaièa e mais uma faca de Hani Kule, um homem de Kayamá que nos acompanhou na viagem de volta, para visitar a família em Caño Iguana. Acomodamo-nos para passar a noite, com o anúncio de Maièo de que ficaríamos todo o dia seguinte, para negociar mais zarabatanas. Na manhã seguinte, contudo, os visitantes mudaram de idéia e se apressaram em partir. Eles explicaram que Kuèo fora yowali ("violento", "zangado" etc.), levantaram acampamento e partiram o mais rápido possível.

Nessa mesma viagem com Maièo, Tamuha e Kwaièa, paramos por uma noite na única outra casa, fora a de Kuèo, que há no caminho de dez dias entre as duas missões. Eu estava cansado, faminto e feliz por chegar ao aldeamento de Hani Kamaya. Hani Kamaya, um homem de quarenta e tantos anos, forte e disposto, de barba rala e pele clara manchada de tinta preta em algumas partes, nos recebeu com uma cabaça de hidromel, que nos entregou sem fazer cerimônia. Ele e a família ficaram então batendo papo com meus companheiros por uma ou duas horas, até escurecer, quando voltaram para dentro de suas casas e fecharam a porta para dormir. Fizemos nosso acampamento num puxado à guisa de cozinha, pegado junto à casa, e passamos a noite fria amontoados ao redor do fogo. Na manhã seguinte, levantamos acampamento rapidamente e partimos logo depois do amanhecer. Na ocasião, eu não comentei ou percebi muito bem a falta de hospitalidade. Eu estava acostumado a ser recebido de modos muito diferentes em diferentes aldeamentos - às vezes desabrida e amigavelmente, outras vezes, com mau humor e suspeição. Na viagem de volta, contudo, mais de um mês depois, chegamos à casa de Hani Kayama de novo no fim do nosso segundo dia de caminhada de Kayamá. Paramos e presumi que passaríamos a noite lá de novo - mas após alguns minutos, Maièo levantou seu cesto, ajeitou a correia na testa e se afastou a passos largos do aldeamento, resmungando para mim que essa gente era ruim e perigosa e que eles iriam tentar nos envenenar se ficássemos. Em vez de ficar, prosseguimos até depois de escurecer, algo que geralmente não se faz quando se viaja pela floresta, e acampamos numa depressão desconfortável e alagadiça.

Maièo explicou para mim que Hani Kamaya não nos dera comida e que isso era uma mostra do seu caráter. Era razoável temer que essa falta de generosidade demonstrasse intenções maldosas. Hani Kamaya é temido pelas pessoas de Kayamá como feiticeiro, e elas não permitem que ele as visite; mas ele tem um histórico de contato com alguns dos grupos estabelecidos em Caño Iguana, o que significa que Maièo não estava imediata ou necessariamente predisposto a acreditar na maldade de Hani Kamaya. Maièo pode ter sido influenciado pelos preconceitos de nossos anfitriões durante nossa estadia em Kayamá, mas foi a prova clara de mesquinharia que o convenceu do perigo de Hani Kamaya. Além disso, Hani Kamaya não bebera primeiro da cabaça de hidromel antes de passá-la a nós - uma cortesia obrigatória para assegurar intenções amigáveis aos convidados. Dada a associação entre generosidade e honradez entre os Hoti, é provável que a mensagem recebida por Maièo fosse exatamente a que Hani Kamaya pretendeu transmitir. Em nossa primeira visita, o próprio Hani Kamaya, orgulhosamente, me disse que a gente de Kayamá tinha medo dele. Um dia depois, dois dos filhos de Hani Kamaya nos alcançaram e anunciaram que voltariam conosco até Caño Iguana.

Tanto Kuèo como Hani Kamaya podiam viajar até as aldeias das missões ou mesmo se aventurar muito além do território de suas casas. Eles conquistaram e cultivaram reputações temíveis e certamente não eram ridicularizados ou considerados engraçados por outros Hoti. Apesar de suas reputações, não eram capazes de atrair muitos seguidores e mesmo seus filhos adultos partiram para se juntar a outros aldeamentos mais próximos das missões.

Tanto Kuèo como Hani Kamaya eram temidos porque meus companheiros sentiram que eles eram yowali. Qualquer um pode se tornar yowali e em muitas circunstâncias não é intrinsecamente imoral ser yowali - por causa de dor ou doença, ou pela ação de outros, que deixam você zangado, ou por causa da solidão. Além da falta de generosidade ser uma indicação de que alguém é yowali, querer ficar sozinho também é yowali. A rejeição intencional da socialidade e da convivência é equiparada à mesquinharia. Kuèo e Hani Kamaya foram os dois condenados à solidão por seu poder e sua reputação, e também condenados por sua solidão, que confirmou sua natureza anti-social. Tanto Kuèo como Hani Kamaya estavam fora de qualquer disputa: a reputação de seu poder fora para além do território hoti e, embora estivessem isolados, foram efetivamente exilados de todas as possibilidades de troca e socialidade fora de suas próprias malocas.





Timoteo, Icu Dodo e Kwaica

Timoteo é reconhecido por todos na aldeia da missão de Caño Iguana como alguém que "sabe bem" (ti anku) - e como uma "Pessoa Leve". O fato de sua opinião, enquanto autoridade no comportamento dos Seres de Fora, "outros-dos-humanos", ser acatada com unanimidade é um indício de uma considerável reputação de habilidade xamânica, que vai muito além do Vale do Iguana. Timóteo não é velho; quando o conheci, tinha mais de 30 anos. Ele é sossegado, humilde e sorridente, a seu jeito, e raramente fala em público. Reconhecendo sua posição e inteligência considerável, os missionários da MNT treinaram-no como enfermeiro, de modo que ele se tornou responsável por uma síntese entre a cura biomédica e a xamânica. A casa dele é muito visitada e, portanto, come-se muito por lá. Ele e a família se esforçam para ser bons anfitriões.

Também em Caño Iguana, havia dois irmãos, Icu Dodo e Kwaica. Na época deste relato, tinham 18 e 16 anos. Pareciam com outros adolescentes hoti - aproveitando a liberdade para serem ora crianças ora adolescentes, conforme desejavam. Eles chamaram minha atenção por serem diferentes dos outros adolescentes, devido ao resultado de uma série de eventos muito anormais. Icu Dodo e Kwaica marcaram uma reunião na casa de Timoteo e deram a estranha declaração de que "iriam ensinar". Essa foi a primeira de algumas reuniões que marcaram durante um período de cerca de um mês, entre outubro e novembro de 1996, que contaram com a presença de quase todos da aldeia. As reuniões começavam com os meninos dando instruções sobre bom comportamento, direcionadas sobretudo às crianças. Havia ampla concordância por parte da assembléia quanto ao que diziam. "As pessoas não devem pegar comida da roça dos outros"; "as pessoas não devem pegar as coisas sem pedir primeiro". Crianças eram chamadas individualmente à frente da assembléia para serem repreendidas. Gradualmente, as instruções começaram a incluir adultos jovens e, depois, os velhos - Icu Dodo e Kwaica criticavam-nos por terem casos amorosos,10 por serem maus maridos, por ameaçarem deixar a comunidade. As reuniões também se tornaram um fórum para decidir sobre casamentos entre os jovens adolescentes. Fiquei surpreso com a paciência dos Hoti em tolerar por todo esse tempo um comportamento tão sentencioso e ditatorial, que, em qualquer outro contexto, seria completamente inaceitável aos Hoti.

Icu Dodo e Kwaica começaram a fazer ameaças: disseram que os caçadores deveriam sempre procurá-los antes de ir atrás dos animais, caso contrário poderiam morrer em algum acidente. Icu Dodo disse que iria acompanhar os caçadores (em espírito). Disse também que iria arrancar o ho do estômago de qualquer um que se opusesse a seus ensinamentos. Estava a fazer claras ameaças de morte.

Eu comparei algumas anotações com as de um dos missionários da MNT, e ele concordou que isso nunca acontecera. Nos vinte anos que vivia lá, nunca vira reunião alguma nem testemunhara críticas públicas a nenhum membro da comunidade, tampouco ameaças como essas feitas no interior de uma comunidade.11

Os dois meninos se declararam kaho hadi, Pessoas Leves, e os dois foram amplamente reconhecidos como tal desde muito novos. Icu Dodo, em particular, demonstrava essa capacidade desde que era muito pequeno. Sua mãe disse que soube quando ele tinha apenas alguns anos de idade, por causa de sua capacidade de ter sonhos prescientes - isto é, mostrar conhecimento e experiência de outros lugares, tempos e acontecimentos. Por exemplo, ele era capaz de predizer, com sucesso, aos caçadores o movimento e a futura localização da caça.

Durante as reuniões, Timoteo ficava sentado em silêncio bem à vista dos outros, endossando o comportamento dos meninos. Todavia, após algumas dessas reuniões em sua casa, discretamente, fez saber que Icu Dodo e Kwaica estavam "ensinando o pensamento deles próprios". Muitos membros da comunidade estavam com a impressão de que a mensagem moral dos meninos vinha dos missionários, com o apoio de Timoteo. Sua intervenção teve o efeito da explosão de uma bolha e solapou a autoridade que os meninos tinham. Embora algumas velhas tivessem manifestado ceticismo durante toda preleção de Icu Dodo e Kwaica, depois da intervenção de Timoteo, as anciãs fizeram longos discursos e envergonharam publicamente os meninos.12

Os meninos foram humilhados, e Kwaica aproveitou para ir comigo em uma caminhada de seis semanas para evitar a vergonha. "Temo ser visto" (we idiyu), ele disse. O emprego do termo idiyu é interessante: uma pessoa não é yowali se for idiyu - ou seja, generoso, tranqüilo, reservado e temeroso. Parece que, mediante a intervenção de Timoteo e das anciãs, essas emoções e os valores fundamentais à socialidade verdadeiramente humana lhe foram novamente infundidos.

Ameaças de violência xamânica são levadas muito a sério - e a comunidade estava temporariamente desequilibrada por esses xamãs adolescentes, que, ao cabo, solaparam a própria autoridade crescente por inaptidão política. De fato, o ethos anti-hierárquico dos Hoti tornou impossível que eles minimizassem as pretensões dos meninos por causa da idade, da inexperiência ou mesmo por explícita inaptidão política. Tiveram de tratá-los com respeito, como iguais, até o momento em que o comportamento deles se tornasse ameaçador demais para ser tolerado. Os meninos passaram de indutores de assombro a aterradores quando ameaçaram arrancar as almas de qualquer um que se opusesse a eles.



Medo e riso

A autoridade é medida em parte pelo alcance da aceitação, por outras pessoas, dos relatos dos sonhos de alguém, da interpretação dos próprios sonhos ou dos sonhos dos outros - como uma visão mais ou menos verdadeira. Essa autoridade, por sua vez, apóia-se tanto na utilidade prática das informações fornecidas pelo sonho (por exemplo, para curar ou identificar a localização da caça) como numa sensibilidade política bem aguda, que equilibra socialidade com "assombro".

Como eu disse, os Hoti são altamente igualitários. A autoridade é só passageira; ela logo retrai, manifestando-se em momentos isolados de assentimento. A autoridade de uma pessoa reside naqueles momentos em que os outros aceitam a sua versão como uma interpretação precisa, mas a experiência pessoal de seus seguidores sempre solapa essa autoridade, e esta nunca pode ficar presa à hierarquia.

As narrativas cosmológicas hoti concentram-se em histórias pouco lisonjeiras que ridicularizam os poderosos seres outros-dos-humanos, criadores do mundo físico onde os Hoti agora habitam. Essas histórias repetem, em estilo "pastelão", a corriqueira mensagem amazônica de que o poder enlouquece.13 Os deuses foram levados à loucura pelos poderes que exerciam e se tornaram palhaços, que toda noite são motivo de piada para os contadores de história hoti. O mesmo destino aguarda qualquer um que busque o poder à custa dos outros. Pessoas que estão na posição de líder já são engraçadas. Dar ordens faz os outros rirem. Ainda assim, em muitas comunidades há pessoas de quem não se pode rir, que não podem ser ridicularizadas; pessoas que, apesar de não darem ordens, são líderes. Essas Pessoas Leves, que "sabem bem", detêm um respeito que se sustenta no medo. E aqui retornamos à questão central deste ensaio: a contradição entre acumular e exercer um poder baseado na ameaça de violência (xamânica) e as concepções hoti que deixam claro que é imoral fazer outras pessoas sentirem medo, que é imoral tentar controlar os outros, e que a falta de generosidade é imoral. Um xamã que tente controlar os outros induzindo medo está usando seu poder e conhecimento de modo egoísta e mesquinho.14



O sublime e os limites do medo

Do exemplo acima, está claro que há limites ao poder xamânico que uma pessoa pode acumular e um limite ao medo que ela pode induzir nos outros. Ser temeroso é ser humano (cf. Howell, 1989, p. 45). Estar temeroso é uma condição valorizada, uma condição que afirma a humanidade. Entretanto, o povo hoti não aceita um comportamento alheio capaz de causar tanto temor e humildade a ponto de constituir uma ameaça a suas vidas. Caso isso ocorra, é moralmente justificável defender-se, inclusive com violência. Como vimos nos exemplos acima, xamãs que induzem o medo arriscam-se a se tornar objeto de brincadeiras humilhantes e até de serem atacados com lanças e facões.

Em noções do sublime, encontramos uma linguagem para tratar do assombroso e do temível. Para Edmund Burke, a raiz do sublime é o medo e o terror. Tal medo é provocado, explica, pela obscuridade, pelo poder e pela infinitude. O xamã, do alto de seu poder, tem a habilidade de convencer os que estão à sua volta de que pode perceber as infinitas transformações do meio xamânico, que para os outros são obscuras. Essa habilidade é de fato sublime, nos termos de Burke. É por isso que casas de xamãs bem-sucedidos e generosos são centros vibrantes de convivência, onde a paisagem mítica do Lado de Fora e os disparates absurdos dos criadores são conjurados em risos e visões flamejantes. Esse sublime é irresistível, atraente e altamente social, mesmo que também seja assombroso e indutor do medo. Nas palavras de Burke:

[...] se o medo e o terror estiverem tão modificados a ponto de não serem de fato nocivos, se a dor não levar à violência e o terror não for congênito à própria destruição da pessoa, enquanto essas emoções liberarem os fragmentos, sejam finos ou grosseiros, de um perturbador ou perigoso estorvo, elas serão capazes de produzir deleite; não prazer, mas uma espécie de horror delicioso, uma espécie de tranqüilidade com um toque de terror, que, por dizer respeito à autopreservação, é uma das mais fortes paixões. Seu objeto é o sublime. Seu grau mais alto, eu chamo de pasmo; os graus inferiores são assombro, reverência e respeito, que a própria etimologia das palavras mostra de que fonte derivam e como se distinguem do prazer positivo. (Burke apud Eco, 2004, p. 293)
Vimos que os xamãs hoti podem ser considerados sublimes, mas quando suas ações revelam uma intenção perigosa (seja mesquinha ou diretamente ameaçadora), seus conhecimentos não mais induzem na comunidade uma sensação de assombro e segurança, antes parecem ameaçadores. Para entender esse deslocamento, podemos invocar a imagem kantiana da tempestade sublime, que a distância inspira excitação e deleite. "Nuvens de raio amontoam-se na abóbada celeste, carregadas de trovões e relâmpagos... [e] o ilimitado oceano se alevanta com força rebelde [...] é o que há de mais atraente por sua temeridade." Mas, quando a tempestade se aproxima e a posição do observador não é mais distanciada e segura, ela atinge um ponto em que a ameaça imanente suplanta o sublime (id., p. 295). Quando a temeridade chega muito perto, quando "se transforma em violência", quando o povo hoti sente que eles ou sua comunidade estão realmente ameaçados, então eles podem reagir, e de fato reagem à ameaça da violência xamânica, respondendo com suas lanças.15



Conclusão

Os Hoti vivem em um universo transformacional em que a experiência cotidiana dos seres que os rodeiam é potencial e ambígua. Os Hoti reconhecem que há diferentes níveis de compreensão, quando confrontados com esse quebra-cabeça ontológico. Acreditam que as pessoas consideradas "Leves" tenham a visão mais clara do ambiente xamânico. A importância da experiência individual para os Hoti classificarem os seres e os objetos que encontram significa que não há expectativas quanto a uma "verdade" final ou a uma ortodoxia. Os xamãs demonstram grande habilidade em convencer os que estão à sua volta de que seu conhecimento produzirá resultados eficazes. Por causa disso, com freqüência, eles se tornam centro de socialidade e demonstram grande generosidade - não apenas no sentido material de dividir alimento e dar acesso a bens que podem ser trocados, mas também em termos de conhecimento. Esse conhecimento é usado para curar e proteger suas comunidades, para encontrar caça abundante e para assegurar a fertilidade humana. No entanto, como foi mostrado nos exemplos acima, nem todos os xamãs são politicamente hábeis e alguns têm dificuldade em manter a posição.

Devido a seu grande saber, as Pessoas Leves são objeto de assombro e respeito, e o poder que detêm é claramente problemático numa sociedade tão igualitária. Suas comunidades obviamente valorizam e adquirem segurança com sua presença, mas outros grupos podem achá-las intimidadoras e mesmo aterrorizantes. Para um xamã, a dificuldade está em manter a reputação de poderoso e ao mesmo tempo renovar a confiança das outras pessoas quanto a sua generosidade e boa vontade perenes. As Pessoas Leves são com freqüência temidas por seus parentes consangüíneos próximos e co-residentes - embora, no caso de Kuèo e Hani Kayama, suas reputações levaram-nos a tal isolamento que suas próprias famílias se afastaram em busca de comunidades onde houvesse maior socialidade e convivência. O regozijo com o sublime é uma explicação da tolerância dos Hoti quanto ao medo induzido por xamãs poderosos. Entretanto, essa tolerância, como mostrei, tem limites.

Para os Hoti, todos têm um aspecto xamânico e qualquer um, potencialmente, dispõe de habilidades xamânicas, como é claramente mostrado pelo exemplo dos xamãs adolescentes, que eram Pessoas Leves desde a infância. Portanto, todos estão em condição de julgar as pretensões ao xamanismo (ver Londoño Sulkin neste volume). O reconhecimento como Pessoa Leve, contudo, não é algo a que a maioria aspire - ou, ao menos, não é algo a que uma pessoa possa de modo ostensivo aspirar. Para um xamã perdurar numa comunidade, ele não deve declarar abertamente sua habilidade, mas apenas permitir que esta lhe seja imputada, o que geralmente requer uma habilidade política apurada. O povo hoti luta contra a hierarquia e não tolera o exercício manifesto da autoridade. Nesse contexto, o poder xamânico é ambíguo - ele é essencial à sobrevivência e à contínua fertilidade e, ao mesmo tempo, o seu exercício põe em risco a convivência tranqüila, altamente apreciada. Os xamãs que proclamam abertamente suas proezas xamânicas e, por conseguinte, sua capacidade de violência fatal, são fisicamente impedidos de se aproximarem de outros aldeamentos dos Hoti. Caso se aproximem, provavelmente serão reclassificados e mortos como letais predadores não humanos.

Os Hoti preservam a importância da experiência pessoal na interpretação e classificação do mundo e não se curvam a nenhuma autoridade ou ponto de vista final. Participam da negociação coletiva e social das narrativas que descrevem a natureza do mundo em que vivem e as ameaças que enfrentam - inclusive os Outros, indutores do medo, em todas as suas formas. Os Hoti podem limitar, por meio do humor, do ridículo e até, se for preciso, da violência, a capacidade daqueles que aspiram a xamãs para acumular autoridade e exercer poder.



Notas


1 O nome Hoti é o mais utilizado para designar esse grupo na Venezuela desde os anos 1970 e deriva do nome hodï (ho + sufixo plural animado dï). Não é, a rigor, uma autodenominação, pois a palavra ho significa "pessoa", ou ser senciente, e não necessariamente distingue os Hoti de outros humanos, ou os humanos de outras pessoas (animais ou seres sobrenaturais). Os Hoti não têm um nome objetivo para eles mesmos enquanto grupo; em vez disso, referem-se a "Eu", "nós", "a gente" ou "meu povo".

2 O trabalho de campo em que este ensaio se baseia foi realizado entre abril de 1994 e março de 1997.

3 Em outubro de 2005, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ordenou a expulsão do pessoal da Missão Novas Tribos do país. As quatro famílias da MNT residentes em Caño Iguana obedeceram a ordem antes do prazo limite, 12 de fevereiro de 2006.

4 Ver Storrie (2003) para um exame da relação entre classificação e concepções cosmológicas.

5 Signe Howell (1989, p. 45) descreve algo muito semelhante para os Chewong da Malásia, para quem "ficar zangado não é ser humano, mas ter medo é".

6 Ver também, por exemplo, Overing (1981, 1990), Black (1977), Rivière (1994), Viveiros de Castro (1992, 1996, 1998a, 1988b), Londoño Sulkin (2000, 2005).

7 Ver Belaunde, Lagrou, Rosengren e Santos-Granero, neste volume, sobre idéias similares entre outros povos nativos amazônicos.

8 Ver Londoño Sulkin, neste volume, para um exemplo comparativo.

9 A palavra èo traduz diretamente a palavra "fora", como em "fora de casa"; também pode significar "floresta" ou "céu" e se refere ao mundo dos sonhos e dos seres outros-dos-humanos. Nesse sentido, também pode significar "fora do tempo" ou "fora de forma".

10 Os Hoti não distinguem "casamento" de "casos amorosos"; a maioria dos Hoti terá filhos com pelo menos três pessoas durante seu período de vida, e pode ter várias relações conhecidas simultaneamente. Os meninos parecem ter aprendido essa noção com os missionários.

11 D. Rodman (1996), comunicação pessoal.

12 O que também é extraordinário. Normalmente, mesmo as crianças mais levadas não são submetidas a punição tão severa.

13 Ver Joanna Overing, neste volume, para uma exploração detalhada dos gêneros lúdicos do grotesco empregados pelos Piaroa, vizinhos próximos dos Hoti.

14 Curiosamente, todos aqueles que podiam ser vistos como xamãs egoístas ou mesquinhos eram homens. Conheci três mulheres que eram reconhecidas como xamãs respeitáveis, e todas eram consideradas exemplares em sua generosidade.

15 Para uma discussão sobre a natureza do sublime e de seu lugar para a compreensão da política contemporânea do medo, ver White (2005, p. 187-202).



Bibliografia

BLACK, Mary B. 1977 "Ojibwa Taxonomy and Percept Ambiguity", Ethos, vol. 5(1): 90-118. [ Links ]

ECO, Umberto 2004 On Beauty: A History of a Western Idea, Londres, Secker and Warburg. [ Links ]

HOWELL, Signe 1989 "To Be Angry Is Not To Be Human, But To Be Fearful Is': Chewong Concepts of Human Nature", in HOWELL, Signe & WILLIS, Roy (ed.), Societies at Peace: Anthropological Perspectives, Londres, Routledge, pp. 79-99. [ Links ]

INGOLD, Tim 1996 "Hunting and Gathering as Ways of Perceiving the Environment", in ELLEN, R. F. & FUKUI, K. (ed.), Redefining Nature: Ecology, Culture and Domestication, Londres, Berg, pp. 117-55. [ Links ]

ISACSSON, Sven-Erik 1993 Transformations of Eternity: On Man and Cosmos in Emberá Thought, tese de doutorado, Universidade de Göteborg. [ Links ]

LONDOÑO SULKIN, Carlos D.2000 "Though it Comes from Evil, I Embrace it as Good: Social Sensibilities and the Transformation of Malignant Agency among the Muinane", in OVERING, Joanna & PASSES, Alan (ed.), The Anthropology of Love and Anger. The Aesthetics of Conviviality in Native Amazonia, Nova York, Routledge, pp. 170-86. [ Links ]

LONDOÑO SULKIN, Carlos D.2005 "Inhuman Beings: Morality and Perspectivism among Muinane People (Colombian Amazon)", Ethnos, vol. 70(1): 7-30. [ Links ]

OVERING, Joanna 1981 "Review Article: Amazonian Anthropology", Journal of Latin American Studies, vol. 13: 151-64. [ Links ]

LONDOÑO SULKIN, Carlos D.1989 "Styles of Manhood: An Amazonian Contrast in Tranquillity and Violence", in HOWELL, Signe & WILLIS, Roy (ed.), Societies at Peace: Anthropological Perspectives, Londres, Routledge, pp. 79-99. [ Links ]

LONDOÑO SULKIN, Carlos D.1990 "The Shaman as a Maker of Worlds: Nelson Goodman in the Amazon", Man, vol. 25(4): 602-19. [ Links ]

LONDOÑO SULKIN, Carlos D.1997 The "Conscious I", the Life of Desires, and the Attachment to Custom: A Piaroa Theory of Practice, comunicação apresentada no "49th International Congress of Americanists". [ Links ]

RIVIÈRE, Peter G. 1994 "WYSINWYG in Amazonia", Journal of the Anthropological Society of Oxford, vol. 3: 255-62. [ Links ]

SANTOS-GRANERO, Fernando 2003 "Pedro Casanto's Nightmares: Lucid Dreaming in Amazonia and the New Age Movement", Tipiti, vol. 1(2): 179-210. [ Links ]

STORRIE, Robert 1999 Being Human: Personhood, Cosmology and Subsistence for the Hoti of Venezuelan Guiana, tese de doutorado, Universidade de Manchester. [ Links ]

STORRIE, Robert 2003 "Equivalence, Personhood and Relationality: Processes of Relatedness among the Hoti of Venezuelan Guiana", Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 9(3), p. 407-28. [ Links ]

TAUSSIG, Michael T. 1991 Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: A Study in Terror and Healing, Chicago, University of Chicago Press. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 1992 From the Enemy's Point of View: Humanity and Divinity in an Amazonian Society, Chicago, University of Chicago Press. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 1996 "Images of Nature and Society in Amazonian Ethnology", Annual Review of Anthropology, vol. 25: 179-200. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 1998a "Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism", Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 4: 469-88. [ Links ]

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo 1998b "Cosmological Perspectivism in Amazonia and Elsewhere", palestras genéricas, Departamento de Antropologia Social, Universidade de Cambridge, 17 fev-10 mar. [ Links ]

WHITE, Curtis 2005 The Middle Mind, Londres, Penguin. [ Links ]



Aceito em fevereiro de 2006.

Tradução de André Pinto Pacheco.

Fonte: Rev. Antropol. v.49 n.1 São Paulo jan./jun. 2006


Extraído de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012006000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt


terça-feira, 27 de maio de 2008

Os Media e a Questão da Identidade


(sobre as leituras pós-modernas do fim do sujeito)

Por: João Pissarra Esteves
Universidade Nova de Lisboa

No debate em torno da questão da identidade, a oposição substancialismo/construtivismo continua hoje a marcar presença como controvérsia central: uma querela cuja origem remonta pelos menos há dois séculos e que chega aos nossos dias sem ter encontrado qualquer solução ou conclusão definitiva.
O paradigma da noção substancial de identidade no pensamento moderno remonta ao cogito cartesiano: o Eu como essência e unidade, fixo, essencialmente inato e inalterável - uma concepção de fundo repetida e renovada em momentos tão importantes como o do sujeito transcendental (de Kant e Husserl) ou o da razão iluminista, e que chegou à actualidade através de teorias da identidade bem conhecidas, sustentadas por certas ideias de "feminismo", "negritude" e "sexualidade". De forma bem distinta, autores tão diferentes como Hume, Kirkegaard, Marx, Nietzsche ou Sartre consideram, pelo contrário, a identidade essencialmente como resultado de uma construção do próprio Eu: o sujeito enquanto projecto de cada indivíduo, criado ao longo da sua vida e desenvolvido pela acção, o "Eu com uma dimensão infinita" que permite a cada um escolher a sua própria identidade (cf. Taylor, 1989: 450).
No âmbito desta querela, nos últimos tempos, temos assistido a um certo ascendente desta última posição - construtivismo – a qual faz valer em seu favor a tendência actual que acentua de forma ainda mais marcante o elemento individualista: a identidade como trabalho de criação de uma individualidade própria e particular, um eu singular e único, com possibilidades de realização aparentemente ilimitadas. Entre os factores sociais que mais têm contribuído para esta tendência destacam-se o actual sistema de consumo e, em particular, os modernos dispositivos tecnológicos de mediação simbólica: ambos, ao longo deste último meio século, têm enfatizado até à exaustão uma certa ideia de identidade indissociável de marcas ostensivas de estilo, imagem e forma de apresentação do indivíduo - style and look.


I


Este território acabou por se constituir, como é conhecido, num domínio de eleição do chamado pensamento pós-moderno, retirando este, aliás, um dos seus traços mais característicos da rejeição massiva da noção racional e essencialista da identidade, à qual contrapõe a sua exultação construtivista do sujeito.
É esta concepção da identidade pós-moderna que me proponho aqui discutir mais em pormenor, questionando o seu discurso liso, redutor das ambivalências e dos paradoxos que atravessam o nosso quotidiano. Temos nesta forma de conceber a identidade uma exaltação apoteótica da individualidade que esquece o facto de ser a mesma sociedade que incita até à exaustão o sujeito (e a subjectividade) - compelindo cada um a ser e a fazer-se único, distinto de todos os demais - que, ao mesmo tempo, explora do modo mais despudorado os recursos da identidade: dirigindo-os, administrando-os e centralizando-os a partir do exterior do indivíduo, através do sistema de consumo, das indústrias da cultura e dos media em geral, que assim realizam uma "desinteriorização da esfera íntima" (Habermas, 1962: 167). Este paradoxo no movimento das identidades nos nossos dias é esquecido pelo discurso pós-modernista, tal como as consequências devastadoras daí resultantes para os próprios indivíduos: a ansiedade de nos vermos compelidos a escolher, a construir-nos a nós mesmos e a produzir sempre mais e mais novidade, com possibilidades aparentemente ilimitadas, mas depois depararmos na vida real com limitações drásticas, cristalizações e constrangimentos de vária ordem que impedem a mudança (a verdadeira escolha/construção da nossa identidade), que dificultam o nosso próprio reconhecimento e nos deixam perplexos com aquilo em que nos tornamos (sem a nossa vontade ou mesmo contra a nossa própria vontade).
A partir de uma base de reflexão reduzida e extremamente frágil, a teoria da pós-modernidade constrói uma espécie de grande narrativa a que podemos dar por título "o fim do sujeito". O fio condutor do seu enredo é a crítica à noção moderna de identidade - o eu como realidade profunda, substancial, coerente e dotada de força emancipatória - que logo toma a forma de uma refutação das próprias noções de sujeito e identidade, apresentadas como mito, ilusão, puras construções da linguagem e (ou) do poder 1 .
Versões particulares mas com variações mínimas desta narrativa surgem na "genealogia da alma moderna" de Foucault, no sujeito como resíduo, sem identidade fixa, radicalmente descentrado, errático e esquizóide de Deleuze e Guattari, no sujeito fractal de Baudrillard, no desconstrutivismo de Derrida, ou ainda em Jameson e Lipovetsky - para citar apenas alguns dos casos mais conhecidos.
Embora a maioria destes autores não tenha dispensado grande atenção aos media, a influência destes em termos culturais é hoje tão marcante que a sua presença não poderia deixar de se fazer sentir no seu pensamento (mesmo que, em geral, de uma forma apenas latente). Baudrillard é a principal excepção a este aparente esquecimento, quando atribui uma importância específica e determinante aos media na "queda do sujeito moderno" e, em última análise, na generalidade das grandes mudanças sociais e culturais da actualidade.


II


O interesse do pensamento pós-moderno pelos media centra-se na televisão e, em particular, num conjunto de novas propostas "estéticas" surgidas mais recentemente neste medium que vieram, de alguma forma, pôr em causa um certo padrão convencional aí instituído. O traço mais marcante desta novidade é a massiva e original utilização da imagem, em que as características realistas e estritamente representacionais desta desaparecem, de acordo com uma nova finalidade estratégica que visa claramente o descentramento da importância que antes cabia à narrativa. O grande paradigma desta "nova" televisão é a MTV, com o seu look and feel único: um novo estilo que, a partir desta estação, se vem impondo de forma determinante nos mais variados formatos televisivos, difundindo-se assim progressivamente pelas televisões em geral. Além da alta sofisticação tecnológica presente, sobressai aqui a marca de um "significante que se liberta e de uma imagem que adquire precedência sobre a narrativa, gerando-se imagens estéticas compactas e altamente artificiais que já não obedecem a uma normal diegesis televisiva, tornando-se centro de fascínio, de prazer sedutor, de uma experiência estética intensa mas fragmentária e transitória" (Kellner, 1995: 235 e 236).
A leitura pós-moderna destes novos sinais proclama um triunfo da superficialidade, do vazio e do efémero. Discutível, contudo, é a transformação que é operada destes sinais em imagem global da televisão e dos próprios media, assumindo então as características referidas uma validade que se pretende extensível aos próprios indivíduos em geral: seres sem profundidade, que pela acção dos media se tornam uniformes, vazios, sem significado nem qualquer tipo de relação com o passado (cf. Jameson, 1984: 60).
Tendo por pano de fundo o fim anunciado das grandes narrativas 2, instala-se a suspeita generalizada relativamente a qualquer tipo de procedimento hermenêutico: a partir de agora, nada se encontra ou esconde para além da superfície das formas, não existe qualquer profundidade ou multiplicidade de significados para a pesquisa crítica descobrir ou interpretar 3. Perante esta (imaginária) realidade simbólica saturada de significantes, o pensamento pós-moderno não só anuncia a obsolência dos significados em geral, como também o fim de qualquer referência substancial à identidade – qualquer outro sentido da identidade que se situe para além do puro jogo das formas encenado pelos indivíduos no "mundo media" 4. É como se, de um momento para o outro, como que por artes mágicas, os interesses, o sentido, a racionalidade e a ideologia que sempre impregnaram o nosso universo simbólico se dissipassem; não restando, assim, à teoria (e à análise em geral) já qualquer função crítica ou de esclarecimento, mas apenas a mera referenciação, o simples exercício do registo das formas simbólicas (na sua pura "facialidade", e num devir infinito e permanente) 5.
O magno problema que esta teoria coloca não está na caracterização que propõe de uma certa estética televisiva pós-moderna, saturante do universo simbólico, que nos deixa inertes e apáticos, rendidos à reprodução ao infinito das formas, siderados pelo jogo de espelhos que estas encenam e em que cada uma se replica infinitamente - imagens de imagens, de imagens, sucessivamente e sem qualquer outro referente que não sejam as imagens. O problema está sim na perda dos limites do seu próprio discurso, quando transforma esta tendência estilística na estética televisiva por excelência - una e única, e a televisão como dispositivo perfeitamente homogéneo e unidimensional. Tal como, do mesmo modo arbitrário, transforma o padrão de recepção correspondente a tal estilo particular num modelo geral, prefigurando assim a audiência televisiva como totalidade e, no limite, as próprias noções de sujeito e identidade: nómadas de imagens, aos quais está reservado esse destino fatal de uma experiência errática que se faz por saltos permanentes, de imagem em imagem (zapping e grazing), num fluxo contínuo, aleatório e já sem qualquer sentido.
Em síntese, o que me parece contestável neste diagnóstico não é a preocupação manifesta com um certo esvaziamento da identidade que está associado a certas formas mediáticas, sim que tais formas esgotem a "experiência dos media" e, mais ainda, que esta seja apresentada como totalidade do trabalho de constituição da identidade. Relativamente a esta, o que se perde de vista nesta vertigem teórica pós-moderna, com a sua poderosa e enebriante metaforologia, é o próprio registo mais convencional dos media, aquilo que neles existe (e ainda hoje continua a ser essencial) não de pós-moderno, nem sequer de moderno, mas pré-moderno: o trabalho da identidade desenvolvido pelos media que cumpre funções sociais básicas tradicionalmente consignadas ao mito - a reprodução cultural, a socialização e a integração social dos indivíduos. Estas funções são hoje em larga medida asseguradas pelos media, através da ampla oferta que estes proporcionam de modelos de pensamento e de acção, de quadros simbólicos difundidos e impostos socialmente por processos de imitação e formas ritualizadas.
Ao esquecerem esta realidade sociológica essencial, as teorias pós-modernas acabam por prestar um contributo duvidoso ao conhecimento, tornando mais opacos os dispositivos de imposição de uma dada ordem social, todo esse laborioso trabalho da ideologia levado a cabo pelos media e que tem como uma das suas componentes básicas, precisamente, a produção de modelos de identidade - "identidades" socialmente úteis, perfeitamente codificas e estereotipadas, que nos chegam através da publicidade, da moda, das diversas narrativas mediáticas e das próprias personagens dos media.

III


Os diferentes registos dos media, independentemente do seu estilo, continuam a ser dirigidos por uma lógica comercial inteiramente convencional e obedecem a uma estratégia precisa: a diferenciação dos públicos e a segmentação do mercado como processos mais eficazes de homogeneização global, com estritos fins de lucro.
Assim se compreende que hoje muitas marcas, empresas e até ditos autores/artistas dos media criem e ponham em circulação mensagens com padrões estéticos tão diferenciados ou até, à primeira vista, antagónicos. Nada há aí, habitualmente, de ruptura cultural (mesmo naquelas formas que se apresentam como mais ousadas, insólitas ou originais): apenas o aperfeiçoamento de uma determinante técnica de marketing que visa maximizar uma eficácia, a da rentabilidade dos produtos – sejam estes uma griffe (automóveis, electrodomésticos, vestuário, etc.), um sitcom, qualquer outro produto televisivo ou uma nova estrela do showbiz 6.
Deste modo, o esvaziamento da identidade que a cultura dos media hoje gera não pode revestir o sentido que os teóricos da pós-modernidade lhe dão: não é um colapso ideológico, uma total obliteração dos significados e o puro jogo dos significantes, estará sim relacionado esse esvaziamento com um esforço renovado de neutralização do indivíduo, com novas estratégias de aprisionamento, mais poderosas e sofisticadas, agora com codificações de identidade minuciosas, estabelecidas planificadamente e com objectivos estritos de obediência e subjugação. O nosso tempo não é o de aniquilamento da identidade, mas o da sua saturação: pseudo-identidades luxuriantes produzidas à margem do próprio indivíduo, com o fim de o domesticar, servindo a generalidade dos modelos em circulação (e as suas variações infinitas) como dispositivo de etiquetagem e de disciplinamento do corpo social.
Os media, enquanto dispositivos nucleares de socialização, de integração social e de reprodução cultural, desenvolvem um trabalho activo em torno das identidades, o qual no entanto é tudo menos linear. O pensamento pós-moderno sobreleva uma tendência regressiva dos media a este nível: as identidades como puros simulacros, criados e impostos pelas indústrias da cultura, já sem qualquer relação efectiva com os sujeitos propriamente ditos e o Mundo da Vida em geral 7; mas esquece uma outra orientação que persiste nos media, muito diferente da anterior, e em torno da qual o trabalho da identidade continua a fazer-se: um espaço simbólico de liberdade e de racionalidade que irrompe de forma fugaz, ao qual os indivíduos episodicamente têm acesso e lhes permite tomarem a sua própria autonomia em mãos - algo que acontece quando os media se abrem ao mundo, quando a vida no seu interior readquire espessura, sempre que, enfim, a visibilidade autêntica permite a cada um de nós reencontrar-se com a responsabilidade perante si mesmo e descobrir o outro.
O magnífico trabalho da moda ou da publicidade, as suas encenações flamejantes de modelos perfeitos de consumo, não pode confundir-se ou fazer esquecer outros registos de linguagem que circulam nos media e onde esta outra tendência continua a marcar presença (seja ao nível do discurso jornalístico, seja nas narrativas de ficção). Vários exemplos actuais deste trabalho dos media ao nível das políticas de identidade podem ser referidos: identidades étnicas, religiosas, regionais, culturais, sexuais, etc., que se dão a ver plenas de tensões e de conflitos, e cuja visibilidade é indissociável das múltiplas possibilidades de discursivização que os media oferecem - a questão HIV/Sida, o caso Salman Rushdie e o islamismo, a invasão de Timor e a causa maubére, Barrancos e os touros de morte, a imigração na Europa e as questões raciais, e tantos outros. Exemplos que, à luz de qualquer análise mais cuidada dos media, evidenciam o excesso e a precipitação do pensamento pós-moderno quando proclama peremptoriamente o fim do sujeito, a dissolução da identidade e a hiperrealidade dos media.
Mesmo ao nível das experiências dos media hoje em dia mais marcantes e afins à tese pós-modernista, desenvolvidas no universo dos computadores e das redes informáticas, com a utilização dos MUDs e do IRC, onde cada um pode assumir personalidades alternativas múltiplas; mesmo aqui, como refere Sherry Turkle, estas novas formas de experiência da identidade (um "eu saturado" e um "eu fragmentado") não induzem necessariamente a dissolução do Eu ou qualquer situação patológica generalizada: a partir delas podemos ainda imaginar a possibilidade de construção de um eu fragmentado mas flexível, múltiplo mas integrado, "um eu multiforme saudável que é capaz de sofrer transformações fluidas, mas assente na coerência e numa perspectiva moral" (Turkle, 1995: 386).
A importância crescente que a cultura dos media, nas suas diferentes expressões, vem assumindo faz da identidade, nos nossos dias, uma questão controversa e de futuro incerto, mas não uma história terminada. Está nela presente, na verdade, uma tendência desubstancializadora que, no limite, pode conduzir à total dissolução da identidade - caso esta se reduza a mera estilização e aparência 8. Mas outras hipóteses continuam a manter-se em aberto. A própria "desubstancialização" pode proporcionar novas possibilidades de realização da identidade: um impulso radical de liberdade que permite e cada um refazer, em cada momento, a sua própria existência, de forma mais favorável para si mesmo, contra as coacções e os constrangimentos sociais da mais diversa ordem que o limitam na sua realização.
O perigo real que esta tendência desubstancializadora encerra não autoriza que a transformemos assim numa espécie de destino fatal, como o discurso pós-moderno mais eufórico pretende. E para contrariar esta tentação bastará uma análise mais cuidadosa da totalidade do processo da identidade nos nossos dias, onde os media têm um papel determinante mas que não esgota as fontes de sentido do mundo da vida social, nem a relação com os media resulta inevitável e invariavelmente em absoluta "ficcionalização da realidade que torna os indivíduos atomizados meros imitadores de estilos de vida prefabricados pelos media" (Honneth, 1991: 223).


IV


O problema do fim do sujeito que a teoria da pós-modernidade hoje coloca retoma uma crítica mais antiga à noção de sujeito que tomou forma no interior do próprio pensamento moderno: o sujeito como autonomia individual, concebido em termos kantianos.
À psicanálise freudiana deve-se a demonstração convincente da ilusão que consiste a ideia de uma absoluta transparência das necessidades do indivíduo 9; ao mesmo tempo que a partir da filosofia da linguagem do segundo Wittgenstein, o outro pressuposto fundamental da noção tradicional de autonomia - a intencionalidade do sentido da acção (comportamental e linguística) - foi também posto em causa 10. Assim, convergentemente mas a partir de ângulos distintos, estas duas críticas puseram em evidência o poder de certas forças estranhas ao sujeito que condicionam de modo determinante o seu desempenho; forças que o sujeito não controla inteiramente e das quais, em geral, nem sequer chega a tomar consciência, mas que nem por isso são de menor importância para a sua constituição.
Perante o poder destas críticas, como resiste a ideia de sujeito? De que forma se poderá continuar a sustentar a noção de identidade?
A questão que daqui decorre é, pois, inequivocamente, a da necessidade de reconstituir a própria forma de conceber a identidade; e adjacente a esta, a do papel específico que pode caber aos media neste trabalho reconstitutivo.
Entre a persistência numa visão puramente idealizada do sujeito e o puro e simples abandono da ideia de autonomia, creio que é possível descortinar outro caminho para a identidade nos nossos dias: a identidade que persiste numa ideia normativa de autonomia, mas que não esquece determinados limites estruturais próprios desta, a identidade ainda constituída na base da liberdade e auto-determinação do indivíduo, sendo estas porém compreendidas "não em oposição às forças contingentes que iludem o controlo individual, mas como uma forma particular de organização destas mesmas forças"(Honneth, 1993: 263). Vejo a possibilidade de trilhar este caminho a partir de um modelo intersubjectivo de identidade: uma concepção segundo a qual o sujeito individual só adquire consciência de si quando ele próprio se coloca numa perspectiva exterior a si mesmo, no lugar do outro simbolicamente representado, isto é, quando se vê como participante de uma interacção social e de uma situação comunicacional, e assume sobre si próprio o ponto de vista dos outros interlocutores. Um "Me", na designação de G. H. Mead, que se forma ao longo de um complexo processo de relações tensionais com o "I" – a fonte dos elementos impulsivos e mais criativos da nossa conduta, mas que para a sua validação requerem um reconhecimento por parte de uma comunidade de comunicação alargada, que é tornada operacional precisamente pelo "Me" (cf. Mead, 1934: 202-205).
O reconhecimento é o mecanismo por excelência da intersubjectividade. E se convencionalmente o seu âmbito se restringe à interacção social, ou seja, à comunidade concreta dos encontros sociais, hoje em dia, uma outra fonte essencial da experiência veio juntar-se-lhe: a de um universo de comunicação virtualmente ilimitado que se tornou acessível graças aos modernos dispositivos tecnológicos de mediação, ou seja, uma cultura dos media que se transformou no palco privilegiado das lutas simbólicas pelo reconhecimento.
Este modelo da identidade permite integrar as forças que escapam ao controlo consciente do indivíduo: as energias pulsionais e as estruturas linguísticas em lugar de se erguerem como obstáculos intransponíveis da identidade, adquirem antes o estatuto de condições constituintes da própria identidade. Só que esta perspectiva não é compatível com a noção clássica de autonomia: a autonomia só poderá continuar a afirmar-se como base normativa do processo de individuação se ela própria for objecto de um profundo descentramento
Descentramento ao nível das necessidades do indivíduo, de forma que a autonomia seja conferida não por uma ilusória transparência dessas necessidades, mas pela capacidade de o indivíduo proceder à sua discursivização, isto é, através da sua competência em processar linguisticamente o inconsciente. Descentramento ao nível da relação que o indivíduo estabelece com a sua própria vida enquanto totalidade, para a qual a figura da narrativa coerente responde de modo mais adequado que o paradigma tradicional da biografia perfeitamente consistente, organizada, orientada por um único fim e obedecendo a uma relação de sentido uniforme e permanente 11. E descentramento da autonomia, por fim, ao nível da sua dimensão moral, onde se exige que à aplicação dos princípios se associe uma profunda sensibilidade prática às circunstâncias concretas de cada situação, às condições sociais e aos interlocutores específicos de cada caso particular.
A autonomia descentrada em todas estas dimensões define a imagem de um sujeito capaz de "dispor criativamente das suas necessidades, de apresentar a sua própria vida de uma forma eticamente reflectida e de proceder à aplicação das normas universais de modo adequado ao contexto" (Honneth, 1993: 271). A sua constituição depende do desenvolvimento de um conjunto de capacidades específicas por parte do sujeito, adquiridas num contexto comunicacional de existência, ou seja, a autonomia própria da identidade é indissociável da experiência social de reconhecimento do indivíduo (por parte dos outros significantes para si).
É neste trabalho da identidade – a experiência de reconhecimento realizada em contexto comunicacional – que os media marcam a sua presença. O âmbito da sua intervenção, como já referi, é muito variável, segundo as circunstâncias sociais da sua apropriação; umas vezes como energias vitais e genuínas da identidade, isto é, uma fonte de recursos simbólicos que proporciona aos indivíduos contextos de comunicação favoráveis à construção da sua própria identidade, livre e autónoma; outras vezes, de forma bem diferente, obedecendo a padrões dirigistas e impositivos. Duas posições limite a partir das quais a experiência concreta dos media pode ser pensada como a realização de um número ilimitado de situações intermédias.
Sobre os media recaem, em qualquer circunstância, as mais elevadas (e exigentes) expectativas em termos de processos de reconhecimento, através da apropriação quotidiana de que são objecto as suas mensagens e os seus diversos produtos. Os media são hoje um palco 12 principal onde tem lugar este tipo de conflitos simbólicos: a luta pelo reconhecimento, que assim se projecta em larga escala e serve às identidades como meio excepcional para a sua afirmação em termos muito amplos - para além de todos os limites imagináveis que o círculo dos contactos sociais convencionais poderiam proporcionar.

Bibliografia


ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max (1947) Dialéctica de la Ilustración, Madrid, Ed. Trotta, 1994 (Dialektik der Auflärung – philosophische fragmente)


FOUCAULT, Michel (1969) O que é um autor?, Lisboa, Vega, 1992 ("Qu’est-ce qu’un auteur?")


GOMES, Wilson (1995) "Duas premissas para a compreensão da política espectáculo", Revista de Comunicação e Linguagens, nº.s 21-22, Lisboa, Cosmos


HABERMAS, Jürgen (1962) L’espace publique – archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise, Paris, Payot (Strukturwandel der öffentlichkeit)


HONNETH, Axel (1991) "Pluralization and recognition: on the self-misunderstanding of postmodern social theory", in The fragmented world of the social – essays in social and political philosophy, N. York, State University of N. York Press, 1995 (Charles W. Wright ed.) ("Pluralisierung uns anerkennung. Zum selbstmibverständnis postmoderner sozialtheorien")


HONNETH, Axel (1993) "Decentered autonomy: the subject after the fall", in The fragmented…, op. cit. ("Dezentrierte autonomie. Moralphilosophischen konsequenzen aus der subjektkritik")


JAMESOM, Frederic (1984) "Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism", New Left Review, nº 146


KELLNER, Douglas (1995) Media culture – cultural studies, identity and politics between the modern and the postmodern, London, Routledge


KING, Anthony (1998) "A critique of Baudrillard’s hyperreality: towards a sociology of postmodernism", Philosophy & Social Criticism, vol.24 - nº.6, London


LYOTARD, Jean-François (1979) La condition postmodern, Paris, Minuit


MEAD, Georg Herbert (1934) Mind, self and society, Chicago, The University of Chcago Press, 1962


RICOEUR, Paul (1965) De l’interprétation – essai sur Freud, Paris, Ed. du Seuil


RICOEUR, Paul (1969) Le conflit des interprétations – essais d’herméneutique, Paris, Seuil


RODRIGUES, Adriano Duarte (1994) Comunicação e cultura – a experiência cultural na era da informação, Lisboa, Presença


TAYLOR, Charles (1989) Sources of the self – the making of the modern identity, Cambridge, Cambridge University Press


TAYLOR, Charles (1981) "The concept of a person", in Philosophical papers I: human agency and language, Cambridge, Cambridge University Press, 1985


THOMPSON, John B. (1990) Ideology and modern culture – critical social theory in the era of mass communication, Cambridge, Polity Press


TURKLE, Sherry (1995) A vida no ecrã, Lisboa, Relógio d’Água, 1997 (Life on the Screen)


Notas

1 A crítica da identidade moderna tinha sido já desenvolvida numa versão bastante radical pela Dialéctica Negativa da Escola de Frankfurt: o declínio do sujeito autónomo, livre e esclarecido (da cultura do individualismo) às mãos de uma pseudo-individualidade produzida como mero efeito das "inúmeras agências da produção em massa e da sua cultura, através das quais se inculcam no indivíduo as formas normativas de conduta, como as únicas naturais, decentes e razoáveis" (Adorno e Horkheimer, 1947: 82). Mas como esta referência teórica não é propriamente familiar nem a mais simpática aos olhos dos pós-modernistas, estes para afirmarem uma individualidade própria sentiram-se na necessidade de radicalizar a sua crítica aos próprios conceitos.


2 "Na sociedade e cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna (…) a grande narrativa perdeu a sua credibilidade, qualquer que seja o modo de unificação que lhe está consignado: narrativa especulativa [ciência], narrativa de emancipação [política]" (Lyotard, 1979: 63). Embora o autor refira que as "pesquisas de causalidade são sempre decepcionantes", o próprio não deixa de mencionar como factores cruciais que estão na origem desta crise, o "progresso das técnicas e das tecnologias" e a valorização que registou a "fruição individual de bens e serviços". Isto é, uma constelação de fenómenos sociais profundamente associados aos media, como sabemos.


3 Esta suspeição da hermenêutica é a completa inversão da "hermenêutica da suspeição", que se atém à polissemia das formas culturais e simbólicas em geral, que acrescenta à dúvida cartesiana sobre o objecto a dúvida sobre a própria consciência e, assim, assume funções de revelação ou esclarecimento: a "redução das ilusões e das mentiras da consciência", através de uma crítica "destruidora" que tem por alvo "a verdade como mentira" e de uma nova "arte de interpretar" que procura o horizonte da "palavra autêntica e de um novo reino da Verdade" (Ricoeur, 1965: 40-44).


4 Esse "novo mundo" da experiência que nos nossos dias se expande como fonte primeira de sociabilidade; ao mesmo tempo que as formas convencionais de mundo (o "mundo tangível" e o "mundo de longa duração") se contraem e acabam por ver confinadas a domínios restritos (periféricos e/ou muito especializados) da experiência simbólica dos indivíduos (cf. Gomes, 1995: 309-311).


5 Ao atingir-se este ponto, em que uma certa forma de pensamento já não é capaz de guardar qualquer distância em relação ao seu objecto (acabando mesmo por se deixar absorver por ele), deparamos com uma situação típica de ruptura das fronteiras entre "teoria da pós-modernidade" e "teoria pós-moderna" (cf. King, 1998: 47).


6 "Em vez da pós-modernidade constituir um corte com o capital e a economia política, como Baudrillard e outros sugerem, onde quer que se observe o fenómeno da cultura pós-moderna por detrás está presente a lógica do capital" (Kellner,1995: 257).


7 Esta percepção trai uma remota influência do pensamento crítico, mas de onde a intenção mais consequente foi já excluída: "O conceito de 'pós-moderno' resumido deste modo não representa mais que uma reverberação trivial do diagnóstico pessimista desenvolvido por Adorno e Horkheimer no capítulo 'Indústria da Cultura' da sua Dialética do Iluminismo [… o único contraste é que] as teorias sociais pós-modernas dão à combinação diagnosticada da erosão cultural e da perda da autenticidade individual uma interpretação positiva e mesmo afirmativa" (Honneth, 1991: 223-224).


8 "O carnaval pós-moderno" das identidades descartáveis e facilmente substituíveis (Kellner, 1995: 260) serve de um modo objectivo e ele próprio é montado por uma poderosa lógica de interesses que é hoje determinante nos media: os interesses da sociedade de consumo.


9 Embora Freud se apresente como o principal responsável por este importante contributo, antes dele e como primeiros grandes percursores deste conhecimento psicológico fundamental não podem ser esquecidos Nietzsche e os Românticos alemães (cf. Ricoeur, 1969: 234 e sg.s)


10 Saussure, com a Linguística Estrutural, veio a fornecer a sistematização mais consequente desta crítica, desenvolvendo assim, convergentemente com a psicanálise, uma outra linha de ataque à noção tradicional de sujeito (cf. Ricoeur, 1969: 242 e sg.s). Mais recentemente, outros autores apresentaram novas explorações originais dentro desta mesma linha crítica - Levi-Strauss e Foucault, por exemplo, este com a sua contundente refutação da noção de autor (cf. Foucault, 1969: 29-89).


11 Um sentido da vida enquanto totalidade que se torna objecto de uma construção por parte do próprio sujeito, através de um trabalho exploratório de "abertura a certas matérias significantes e já não como poder de planeamento" (Taylor, 1981: 105).


12 "Apropriação quotidiana dos produtos mass mediáticos" que torna perceptível uma outra dimensão do sentido destes mesmos produtos - uma dimensão essencial mas pouco conhecida e estudada, que transcende as operações convencionais (técnicas e mais ou menos intencionais) de construção e transmissão das mensagens (cf. Thompson, 1990: 313 e sgs.).