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quinta-feira, 18 de junho de 2009

O duelo entre a montanha e a planície


(Artigo escrito por Sergio Paulo Rouanet em Março/2001)

(Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras).)

Quando representantes do Fórum Social de Porto Alegre debateram por satélite com representantes do Fórum Econômico de Davos, a imprensa falou num "duelo" entre duas concepções do mundo e da sociedade. O termo é exato, mas a pré-história desse duelo deu-se na própria cidade de Davos, muito antes que Porto Alegre entrasse em cena. Como já recordei em artigo anterior, a pacífica cidadezinha suíça foi o palco de três duelos, um duelo literário, um duelo filosófico e um duelo econômico.

O primeiro foi um duelo real entre dois personagens de ficção, Naphta e Settembrini, heróis do romance de Thomas Mann (1875-1955), "A Montanha Mágica".

Thomas Mann


Os dois sofriam do pulmão e por isso moravam em Davos, onde havia um sanatório para tuberculosos. Settembrini era um humanista italiano, partidário ardente das idéias iluministas. Acreditava no mundo moderno, na democracia e na liberdade, na razão e no progresso, na ciência e na técnica, na evolução moral da humanidade e na união final de todos os povos da terra. Defendia os valores da vida e detestava todos os tipos de obscurantismo.

Naphta era jesuíta. Desprezava a modernidade, a razão e o progresso, e considerava a democracia um regime burguês, que breve seria substituído por um regime forte, um socialismo teocrático sob a autoridade da Igreja. Sua antropologia era pessimista e atribuía à morte um papel central. A cultura era historicamente contingente, estava condenada ao desaparecimento próximo e de qualquer modo era apenas uma fachada que servia para mascarar a miséria da condição do homem, sua fragilidade e sua dependência. No final, Settembrini não suporta mais as provocações de Naphta. Os dois se batem em duelo. Settembrini, defensor dos direitos da vida, atira no ar. "Covarde!", diz Naphta. E suicida-se com um tiro na cabeça.

O segundo duelo foi metafórico, mas teve o mérito de ocorrer entre dois personagens de carne e osso, os filósofos Ernst Cassirer e Martin Heidegger. Os dois eram as figuras centrais de um ciclo de conferências realizado em Davos, em março de 1929, cinco anos depois da publicação do romance de Thomas Mann. Quando eles entraram no auditório, o público deve ter pensado instintivamente nos dois personagens de "A Montanha Mágica": Heidegger tinha algo de Naphta e Cassirer lembrava Settembrini.

Existência e cultura

Não era inteiramente exato comparar Cassirer com Settembrini, porque o iluminismo do autor da "Filosofia das Formas Simbólicas" era menos ingênuo que o do livre-pensador italiano. Nem era muito justo comparar Heidegger com Naphta, porque, embora tanto o filósofo de verdade quanto o personagem de ficção tivessem estudado num colégio de jesuítas, Naphta era um fanático religioso e Heidegger tinha abandonado o catolicismo. Além disso, algumas das convergências mais impressionantes entre ambos, como a crítica à democracia, ao humanismo, à modernidade e à técnica, só se tornariam plenamente visíveis anos depois.

Não importa. Naquela manhã de março, o público tinha razão em pressentir que a montanha mágica ia servir de cenário para um novo duelo -um duelo entre a grande tradição cultural européia, impregnada pelos valores da Renascença e da Ilustração, e uma filosofia da existência, que estava contribuindo para solapar essa cultura.

Ernst Cassirer


O tema do debate era Kant. Mas no fundo Kant foi mais um pretexto para que os dois contendores articulassem suas respectivas filosofias. Heidegger fez de Kant o precursor de uma ontologia da finitude, e Cassirer o transformou no precursor de uma filosofia das formas simbólicas. É que não era Kant que estava em jogo, e sim a oposição entre a existência e a cultura.

Na perspectiva da filosofia da existência, a de Heidegger, o que interessa é a origem, a analítica do "Dasein", aquilo que constitui a essência de um ente condenado à inquietação, à angústia, à morte. Na perspectiva da filosofia da cultura, a de Cassirer, o que interessa não é o ponto de partida, a origem, e sim o ponto de chegada, a cultura, o conjunto das objetivações por meio das quais o homem supera seus limites: a linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência.

Para Heidegger, o mundo da cultura é um falso refúgio. A linguagem, por exemplo, pode funcionar como simples "tagarelice", "Gerede". A objetividade da ciência se torna problemática se levarmos em conta que toda verdade é relativa ao "Dasein". A cultura, em geral, é uma falsa transcendência, a transformação do mundo pré-reflexivo do "Zuhanden" no mundo artificial do "Vorhanden", dominado pelas abstrações vazias, pela perda de concreção.

Por tudo isso, a cultura não pode ser vista como um asilo legítimo, uma verdadeira casa do "Dasein", onde ele possa consolar-se de seu desamparo, de seu estar-jogado-no-mundo, de sua "Geworfenheit". Ao contrário, ela é uma anestesia, que nos condena à inautenticidade, ao não-reconhecimento de nossa finitude e de nosso ser-para-a-morte. A rigor, o mundo da cultura faz parte daquilo no qual fomos "jogados" ao nascer e, nesse sentido, não constitui algo para o qual devamos caminhar, mas algo de que devemos nos libertar.

Não, responde Cassirer. A cultura não afasta do concreto, pois a realidade humana é sempre culturalmente mediatizada, e estamos tanto mais próximos do real quanto mais agimos no universo das formas simbólicas. O conceito heideggeriano de verdade é relativista, enquanto a filosofia das formas simbólicas permanece fiel ao ideal cognitivo de Kant, que queria salvar a objetividade e a universalidade do conhecimento, e mesmo vai além de Kant, porque pela imersão na cultura o homem tem acesso ao "mundus intelligibilis", que Kant julgava inalcançável. Quanto à linguagem, longe de ser uma simples "tagarelice", ela é o instrumento pelo qual o homem se individualiza, no momento em que estabelece uma relação intersubjetiva com seus semelhantes.

O debate se encerrou com a pergunta: qual a tarefa da filosofia? Para Cassirer, ela deveria ajudar o homem a libertar-se da angústia e do medo da morte, dentro de um universo cultural que estava a seu alcance modificar. Para Heidegger, ao contrário, a tarefa consistiria em "entregar radicalmente o homem à sua angústia". Era preciso "jogá-lo de volta" à sua condição original, fazendo-o enfrentar a "dureza do destino".

O duelo entre Heidegger e Cassirer opôs os que desprezam a cultura como simples "tagarelice" aos que valorizam a cultura.

Um certo ar de família

O terceiro duelo deu-se e continua a dar-se entre as facções distintas que se confrontam no Fórum Econômico Mundial, promovido desde 1971. O encontro reúne empresários, intelectuais e representantes governamentais, e, embora se tenha a impressão de que no fundo todos os participantes são partidários das mesmas idéias, consubstanciadas num consenso neoliberal favorável à globalização, seria absurdo desconhecer a existência de modulações diversas nas diferentes posições. Assim, alguns países em desenvolvimento negam de todo as vantagens da globalização, enquanto os franceses só a aceitam sob fortes reservas.

Simplificando muito, portanto, podemos dizer que o duelo se dá, grosso modo, entre os advogados duros e puros da globalização, como os Estados Unidos, que advogam uma política de "laissez-faire", e os que defendem uma regulamentação internacional capaz de disciplinar os fluxos de capital especulativo.

Se examinarmos em conjunto esses três duelos, verificaremos entre eles um certo ar de família. O duelo entre Naphta e Settembrini opôs os que acreditam em forças impessoais que escapam do controle individual aos que acreditam na democracia e no progresso ético da humanidade. O duelo entre Heidegger e Cassirer opôs os que desprezam a cultura como simples "tagarelice" e exaltam "a dureza do destino" aos que valorizam a cultura e vêem nela uma perspectiva de transcendência. O duelo entre globalistas e antiglobalistas opõe os que vêem no mercado uma fatalidade à qual os homens devem submeter-se e os que estão convencidos da capacidade do homem de criar uma economia mais humana.

Simplificando ao extremo, os três duelos são variantes de um só combate, que se trava entre os que acham que o mundo pode ser mudado pela razão, pela política e pela cultura, e os que apostam na perenidade do status quo, seja ele definido em termos existenciais, em que ele assume o rosto do destino, seja em termos econômicos, em que ele assume o aspecto do capitalismo global.

Mas, se observarmos mais de perto o terceiro duelo, verificaremos que ele se parece menos com um duelo que com uma exibição de esgrima para distrair a platéia. No fundo, sabemos que são os conservadores que estão ganhando a partida, mas eles mascaram sua vitória incorporando gestos e palavras dos adversários vencidos. No combate entre Settembrini e Naphta, foi este que venceu, mas os participantes do Fórum Econômico exprimem a filosofia fatalista do jesuíta com a retórica de Settembrini, ao descreverem a globalização como o triunfo planetário da ciência e da tecnologia e como um passo decisivo em direção à união da humanidade.

Do mesmo modo, Heidegger ficou com a última palavra, porque a globalização é vista como a sorte que nos coube desde o nascimento, como a face atual da "Geworfenweit", do estar-jogado-no mundo, do desamparo original, mas essa condição é expressa pelos membros do Fórum Econômico na linguagem de Cassirer, como a realização histórica do projeto iluminista de emancipação por meio do progresso.

No romance de Thomas Mann, a atmosfera da montanha mágica acaba se tornando rarefeita, porque está demasiadamente longe das lutas reais que se travam no mundo exterior. Por isso, depois de sete anos o herói volta à planície, aos conflitos e reivindicações que se entrechocam na planície. Não seria esse, um pouco, o papel de Porto Alegre? Não seria o Fórum Social uma resposta da planície, da vida real, da sociedade civil mundial, às decisões tomadas na montanha mágica, entre gelos eternos, por megaempresários e por megagovernos? Se é assim, têm razão os que falam num duelo entre Davos e Porto Alegre. Mas não se trata bem de um novo duelo, e sim de uma nova geografia.

Os direitos da vida, que antes eram defendidos na própria cidade de Davos, estão hoje sendo defendidos em Porto Alegre. No entanto é o mesmo combate. Hoje como ontem, é um duelo entre os que aceitam passivamente a "dureza do destino" e os que atribuem ao homem o poder de construir racionalmente seu futuro.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

O "Círculo Max Weber de Heidelberg"...(5)




Parte V - A Montanha Mágica


A ousada associação entre elementos aparentemente contraditórios faz pensar irresistivelmente em certo jesuíta comunista, fervoroso partidário da revolução proletária e da Igraja Católica e em quem se vê, por vezes, uma alegoria de Lukács, por outras, uma imagem de Ernst Bloch, ou ainda uma síntese sui generis dos dois: "Leon Naphta", a singular criação literária de Thomas Mann em A Montanha Mágica.

Thomas Mann, em 1943




Raramente um personagem romanesco suscitou tão ásperas discussões políticas e controvérsias literárias. Seria ele um fascista, como pretende Lukács, ou um bolchevique fantasiado com uma batina, como o afirma Yvon Bourdet ? Não seria uma personificação do próprio Lukács como o pensam tantos pesquisadores franceses: Maurice Colleville, Pierre-Paul Sagave, Nicolas Baudy e, mais recentemente, Yvon Bourdet ? Em nossa opinião, todas estas diferentes teses e hipóteses contraditórias são, ao mesmo tempo, verdadeiras e falsas. Tentaremos demonstrar porquê.
Segundo Lukács, "o jesuíta Naphta" é pura e simplesmente "o representante dos ideais reacionários e fascistas, das idéias antidemocráticas", ou ainda, "o propagador de um sistema de tendência católica que prefigura o fascismo."(1) Nas proclamações revolucionárias e proletárias reiteradas e incendiárias do intelectual (judeu) Naphta, Lukács não vê mais que demagogia anticapitalista reacionária, característica do fascismo. Ressalta, aliás, a similaridade entre o pensamento mórbido do personagem de A Montanha Mágica e a apologia da enfermidade em Novalis. Consequentemente, para Lukács, o eixo central do romance de Thomas Mann é sem sombra de dúvida, "a luta ideológica entre a vida e a morte, a sanidade e a doença, a reação e a democracia", "a luta das ideologias democráticas e fascistas", respectivamente simbolizadas por Settembrini e Naphta, "para ganhar a alma de um Alemão médio moralmente correto", encarnado prlo personagem de Hans Castorp. Chega até a proclamar a visão profética de Thomas mann que, "aproximadamente dez anos antes da vitória do fascismo", "mostra através da literatura que a demogagia anticapitalista é a maior força de propaganda fascista." (2)
No entanto, Lukács constata que o romance "termina com um resultado nulo"; como explicá-lo, no quadro de sua interpretação ? Ele dá a isso duas razões:
1. Trata-se , da parte de Thomas Mann, "de uma apreciação instintivamente sábia da relação de forças no pós-guerra". Argumento bastante discutível, à medida que este período é precisamente "a idade de outro" da República de Weimar, da social-democracia no poder etc.;
2. Thomas Mann jamais escreveu um "romance de tese" parcial : "forças e fraquezas das duas partes estão perfeitamente dosadas nele (vê de forma particularmente aguda as fraquezas da velha mentalidade da democracia em face dos ataques do anticapitalismo romântico)". Portanto, Lukács é obrigado a reconhecer que, no personagem Naphta, Thomas Mann mostra "o caráter sedutor (inclusive no sentido espiritual e moral) do anticapitalismo romântico" e "os elementos justos de sua crítica da vida atual da sociedade". Mas Lukács persiste em não ver na "sedução" de Naphta mais que "demagogia reacionária", anunciadora do fascismo.


Thomas Mann




É necessário acrescentar que Lukács só vai "descobrir" o fascista oculto sob a máscara refinada e irônica de Leon Naphta em 1942, quando da invasão nazista na URSS...

A ideologia de Naphta deriva efetivamente do "fascismo" ou da "prefiguração do fascismo"? Examinemos de perto uma das principais falas "programáticas" (se se pode dizê-lo assim) do pequeno jesuíta judeu:

"Os Pais da Igreja chamaram "meu" e "teu" de palavras funestas e disseram que a propriedade privada era usurpação e roubo. (...) Eram louváveis a seus olhos o camponês, o artesão, mas não o comerciante, nem o industrial. Pois queriam que a produção se adaptasse à necessidade e tinham horror da produção em grandes quantidades. Ora, todos estes princípios e esta escala de valores econômicos ressuscitaram após séculos no movimento moderno do comunismo. A concordância é completa, até quanto à reinvindicação da sobreania formulada pelo trabalho internacional contra o reino internacional do comércio e da especulação, o proletariado mundial que opõe agora a humanidade e os critérios do reino de Deus à podridão burguesa e capitalista. A ditadura do proletariado, condição de sanidade política e econômica deste tempo, não tem o sentido de uma dominação pela dominação, para toda a eternidade, mas o de uma suspensão momentânea do conflito entre o espírito e o poder, sob o sinal da cruz; o sentido de uma vitória sobre o mundo terrestre através da dominação do mundo; o sentido da transição, da transcendência; o sentido do reino. O proletariado retomou a obra de Gregório, o Grande, renovou em si seu zelo piedoso e, tal qual o santo, não poderá impedir sua mão de derramar sangue. Seu dever é instituir o terror para a salvação do mundo, para atingir aquilo que foi o objetivo do Salvador: a vida em Deus, sem Estados nem classes."

Neste discurso (que o narrador escreve como "contundente") efetivamente encontramos uma estranha combinação de catolicismo e bolchevismo, mas onde está o fascismo ? Que fascista alguma vez se refeiu ao proletariado mundial ? Desde quando o fascismo tem por objetivo político instaurar a ditadura do proletariado como forma de transição para uma sociedade sem Estado nem classe ?



A redução ao fascismo, feita por Lukács, da doutrina estranha e "sedutora" de Naphta, nem sequer é um simplificação; aparece como totalmente inadequada para explicar seu objeto. Isto não quer dizerque não haja um "nó racional" na interpretação lukacsiana: não está totalmente errado considerar o fascismo como um dos desenvolvimentos potenciais do "naphtismo" (se nos for permitido esse neologismo !); mas uma simples leitura em preconceitos dos discursos do personagem judeu-jesuíta-bolchevique de Thomas Mann é suficiente para mostrar a parcialidade da tese de Lukács. Na realidade, o erro de Lukács não pode ser com´reendido fora de sua atitude geral para com a corrente neo-romântica, a partir de 1934, ou seja, depois do traumatismo ideológico que significa para ele o triunfo do fascismo na Alemanha. Retornaremos ao tema.


A outra interpretação é a que vê em Leon naphta uma figura romântica do próprio Lukács e, em geral, uma imagem típica do doutrinário comunista. Examinaremos esta tese em sua última variante, a interessante e estimulante obra de Yvon Bourdet, Figures de Lukács (1972).


Segundo Bourdet, as declarações de Naphta "permitem compreender toda a vida de Lukács e até seus últimos dias"; por outro lado, "os princípios fundamentais de Lukács e de Naphta são idênticos" ! Sempre segundo Bourdet, Thomas Mann traçou em Naphta não apenas a imagem viva de Lukács, mas também "o caráter essencial e altamente significativo do militante leninista".(3)
Naphta não tinha, pois, nada de nazi, nem de romântico; sob uma aparência de jesuíta, seria fundamentalmente comunista, no sentido da III Internacional: "Com uma ironoa profética e uma intuição genial, Thomas mann sabia ver, no militante bolchevique, uma simples reencarnação do homem de Igreja." A tese de Bourdet não está desprovida de pressupostos políticos, como ele mesmo destaca explicitamente, "nosso conceito de Naphta como representante do marxismo bolchevique conduz a considerar o stalinismo como uma continuação coerente do leninismo."


O que pensar desta interpretação que se situa, simetricamente, no pólo oposto à de Lukács ?


Em nossa opinião, não há dúvidas de que Lukács serviu parcialmente de modelo a Thomas Mann para a fabricação de Leon Naphta: a semelhança física entre os dois, o nome - ironicamente trocado por Thomas mann - do proprietário da casa onde Naphta se aloja (o costureiro Lukacek), a coincidência temporal entre o primeiro encontro entre Thomas Mann e Lukács em 1922 e a aparição no penúltimo capítulo do romance, do novo personagem (Cap. VI: "Ainda alguém"), enfim, certas declarações e cartas do autor de A Montanha Mágica, mostram a existência de uma ligação entre o verdadeiro marxista e o jesuíta imaginário.(4)


No entanto, não se pode fazer caso omisso da carta de Thomas Mann a Paul Savage, onde o escritor insiste: "Peço-lhe encarecidamente que não estabeleça relações entre Lukács e A Montanha Mágica, assim como com o personagem Naphta...Personagem e realidade são extremamente diferentes e, sem falar dsas origens e da biografia, a combinação do comunismo e do jesuitismo que criei neste livro, e que intelectualmente talvez não seja assim tão má, não tem nada a ver com o verdadeiro Lukács."


Y. Bourdet minimiza esta carta creditando-a ao "jesuitismo" de Thomas Mann.

Thomas Mann

Tentaremos mostrar mais abaixo porque as notas aparentemente contraditórias do escritor sobre a relação Naphta-Lukács são "complementares" na realidade: Lukács serviu parcialmente de modelo a Naphta, mas o pensamento do jesuíta obscurantista não é, de forma alguma "idêntico" ao do comissário do povo da República Húngara dos Conselhos...

Para provar esta "identidade", Bourdet é obrigado a encontrar um traço de igualdade bastante arbitrário entre o antinaturalismo místico de Naphta e a crítica lukacsiana da dialética da natureza.

Referindo-se à passagem "programática" de Naphta que citamos acima, Yvon Bourdet acredita que ela é a prova que "Thomas Mann não podia fazer mais para adverti-los de que se preocupa muito pouco com os jesuítas e que esse disfarce indica os militantes revolucionários marxistas." O jesuitismo de Naphta será apenas um "disfarce" do "revolucionário marxista" ? Ora, Thomas Mann, na carta a Paul Savage, escreve explicitamente que se trata de uma combinação e não de um mascaramento. Longe de se "preocupar muito pouco com os jesuítas", o escritor insiste sobre o caráter católico e obscurantista se seu personagem, do qual a maior parte dos propósitos não tem grande coisa a ver com o bolchevismo, mesmo "disfarçado". (5)


Por outro lado, é evidente que o anticapitalismo apaixonado e místico de naphta, suas invectivas contra o "reino satânico do dinheiro e dos negócios" estão bastante afastadas da crítica marxista e leninista do capitalismo. Esse distanciamento se deveria, como o sugere Y. Bourdet, ao fato de que Thomas Mann tinha "um conhecimento insuficiente das análises de O Capital" ? É necessário estudar os três livros de O Capital para saber que as teses econômicas de Marx são distintas das dos padres da Igreja, e nada têm a ver com a nostalgia da Idade Média ou com a luta contra as tentações do Diabo ? O fato assinalado pelo próprio Bourdet, de que as críticas de Naphta contra o comércio "se aproxima mais de uma homilia religiosa do que da crítica marxista" pode ser explicado pela ignorância de Thomas Mann sobre os escritos de Marx ?


Parece-nos então que o jesuitismo, o obscurantismo e o clericalismo de Naphta não são nenhum "disfarce" nem uma fraqueza devida à ignorância de Thomas Mann: eles fazem parte de sua ideologia do mesmo modo que a dimensão revolucionário-proletária.


Thomas Mann e Albert Einstein


Nicolas Tertulian, da Universidade de Bucarest, em sua poêmica resposta a Bourdet, está mais próximo de uma análise rigorosa do texto de Thomas Mann, quando encontra (partindo de uma sugestão do próprio Lukács) nos discursos de Naphta "let-motiv de determinada sociologia e determinada filosofia germânicas, de tipo conservador-reacionário, desde Max Scheller de Von Umsturz der Werte a Sombart, e de Von Ewigen im Menschen e desde Othmar Spann até Hans Freyer, temas e atitudes que a forma lukacsiana do "romantismo anticapitalista" definiu exatamente. Os exemplos de pensadores neo-românticos dados por ele não são os mais pertinentes - os autores que influenciaram Thomas Mann nessa época eram antes Dostoievsky, Tolstoi, Novalis, Schopenhauer, Nietzsche, Bergson e Sorel - mas, a idéia fundamental é justa. Em nossa opinião, Tertulian está no caminho certo para resolver o "enigma Naphta" quando fala das "fusões paradoxias" e "misturas ideológicas insólitas", das quais Sorel é um exemplo evidente. Infelizmente, ele retorna, em última instância, à tese clássica de Lukács, considerando as idéias de Naphta como "fascistizantes", sublinhando que os temas do romantismo anticapitalista desaguam necessariamente na "literatira demagógica das ideologias ´ré-fascistas e fascistas" e proclamando peremptoriamente: "as idéias possuem sua morfologia e sua sintaxe rigorosas, as quais tornam impossível uma confusão entre um pensamento "de direita" e um pensamento "de esquerda".


Ora, as "misturas ideológicas insólitas" do tipo Sorel mostram precisamente que as coisas não são tão simples...

Não podemos também seguir Tertulian quando afirma que o pensamento de Lukács situa-se "exatamente nas antípodas de semelhantes constelações ideológicas" e que ele foi "sempre fundado sobre o elogio do aristotelismo, da renascença, do Século das Luzes, das tradições democráticas européias". Lukács, ao contrário, reconhecia explicitamente no prefácio de 1967 aos seus escritos de juventude que durante todo um período seu pensamento se caracterizava por um "idealismo ético como todos os componentes de anticapitalismo romântico". Voltaremos a este assunto.

Quem é então Naphta ?

As respostas fornecidas por Lukács e Yvon Bourdet são totalmente opostas, mas resultam de um procedimento semelhante: em ambos os casos seleciona-se um aspecto do personagem e tenta-se "desembaraçar-se" do outro. Para Lukács, Naphta é um fascista e seu comunismo não é mais do que "demagogia"; para Bourdet, ele é leninista e seu catolicismo não é senão "disfarce". Tentam assim tornar arbitrariamente coerente um personagem cuja essência são precisamente a contradição e o paradoxo. Ambos são também obrigados a fazer de Thomas Mann um adivinho, um profeta, um visionário que, por dons miraculosos de clarividência, previu com grande antecipação o fascismo e o stalinismo.

Porém, como acentuava, com razão, esse eminente professor da dialética que se chama Blaise Pascal, "para entender o sentido de um autor é preciso conciliar todas as passagens contraditórias. Assim, para entender as Escrituras, é preciso ter um sentido com o qual todas as passagens contrárias concordem. Não basta ter um sentido que convenha a várias passagens concordantes, mas ter um que concorde inclusive com as passagens contraditórias. Todo autor tem um sentido, ao qual todas as passagens contrárias se coadunam, ou não tem sentido algum."

A nosso ver - e isso decorre de tudo aquilo que temos escrito nesse capítulo sobre intelligentsia alemã na passagem do século -o sentido com o qual concordam todas as passagens contraditórias do discurso estranho, sedutor, repulsivo e ambíguo de Naphta é precisamente o neo-romantismo antiburguês, que contém em si, como virtualidades, ao mesmo tempo, o comunismo e a reação, o bolchevismo e o fascismo, Ernst Bloch e Paul Ernst, Gyorgy Lukács e Stephan George. O gênio da Thomas Mann não está em "profetizar" o futuro, mas em descrever com ironia e sutileza um fenômeno contemporâneo, levando-o até as últimas consequências (consequências precisamente contraditórias).


Vimos que as "Considerações de um Apolítico" (1918) de Thomas Mann estavam profundamente impregnadas pelo anticapitalismo romântico. Em 1922-1923, distanciou-se parcialmente das teses dessa obra (sobretudo de seu antidemocratismo) sem por isso se vincular ao liberalismo burguês clássico: donde a hesitação de Hans castorp entre Naphta e Settembrini...Longe de travar (como pretende Lukács) um "luta ideológica" contra a "demagogia fascista", Thomas Mann mostra-se, em A Montanha Mágica tão seduzido quanto inquieto peolo discurso de Naphta. Na realidade, a perspectiva de uma síntese entre o conservantismo romântico e a revolução socialista - que é a idéia principal de Naphta - não está tão distanciada das concepções político-culturais do próprio Thomas Mann, que escreve num ensaio dos anos 20 ("Kultur und Sozialismus"):

"o que seria necessário, o que seria, inclusive, tipicamente alemão seria uma união e um pacto entre a concepção conservadora da cultura e as idéias sociais revolucionárias, entre Grécia e Moscou, se me posso permitir esse recurso: eis as idéias que um dia eu tentei promover. Declarei que a situação não seria boa na Alemanha, e que a Alemanha não reencontraria a si mesma, senão quando Karl Marx tivesse com Friedrich Hörlderlin, um encontro que, todavia, está a ponto de realizar-se. Esqueci de acrescentar que o conhecimento unilateral permaneceria forçosamente estéril."

Lukács cita essa frase de Thomas Mann, mas procura esvaziar seu conteúdo acentuado que Hörlderlin "foi o maior poeta citoyen alemão" e, consequentemente, estava "muito longe de uma 'concepção alemã conservadora da cultura'".

Porém, nesse contexto, o que importa não é tanto o "verdadeiro" sentido de Hörlderlin, mas o sentido que lhe atribui Thomas Mann. Associando Hörlderlin ao conservantismo cultural romântico, Thomas Mann apenas segue a tradição da crítica literária alemã. O próprio Lukács o reconhece em outro lugar, pois em sua Breve História da Literatura Alamã lamenta-se da "anexação desse revolucionário tardio e solitário que foi Hörlderlin pelo romantismo reacionário."

Em que a ideologia de Naphta depende do anticapitalismo romântico ?

Ele condena violentamente "os ingleses (que) inventaram a doutrina econômica da socieade", "a riqueza capitalista...alimento das chamas infernais", os "horrores do comércio e da especulação modernas", o poder demoníaco do dinheiro, "a selvageria bestial e infame do campo de batalha econômico", burguês etc. E fá-lo em nome da Igreja Católica, de uma nostalgia da Idade Média e da sociedade pré-capitalista. Seu pensamento é, pois, "mistura de revolução e obscurantismo" (Settembrini dixit); em uma passagem surpreendente, Hans Castorp qualifica Naphta de "revolucionário da conservação - quase a mesma definição que Martin Buber dá do pensamento de Gustav Landauer, o amigo de Paul Ernst (1891) e Ernst Toller (1918-1919) ! - e o narrador o descreve nos seguintes termos:

"Naphta era por instinto simultaneamente revolucionário e aristocrata, socialista, e, ao mesmo tempo, possuído pelo sonho de chegar a formas de existência nobres e distintas, exclusivas e ordenadas."

A fonte de todas essas contradições e ambigüidades nos é dada pelo próprio Naphta em uma de suas derradeiras homilias:

"Fala, entre outras coisas, do romantismo e do fascinante duplo sentido desse movimento europeu do início do Século XIX, diante do qual os conceitos de reação e revolução se desvanescem, embora não se reúnam em um novo conceito mais alto." Thomas Mann cristalizou em Naphta, portanto, o "duplo sentido fascinante" do romantismo, desenvolvendo até o fim os dois sentidos opostos contidos nessa matriz. A tese que estamos tentando apresentar neste capítulo, sobre o hermafroditismo ideológico do anticapitalismo romântico é magnificamente ilustrada pelo personagem do jesuíta comunista, que contém em si, justapostas, combinadas, misturadas às vezes, as tendências extremas que se podem desenvolver a partir da raiz comum.

(...)

Numa carta de 1917 a um amigo, Thomas Mann da sua intenção de opor ao liberal-republicano Settembrini o personagem de um "reacionário cínico-desesperado".(6)
Esse desespero de Naphta está próximo ao "clima ideológico" dos principais escritos de Thomas Mann de antes da guerra: a atmosfera de declínio monumental de Os Buddenbrooks e a da decomposição mórbida de Morte em Veneza. Na realidade, uma tendência semelhante delineia-se na maior parte dos autores neo-românticos: Theodor Storm, Stephan George, Paul Ernst. Não é por acaso que essa versão trágica do mundo seja mais intensa e dramática em Paul Ernst, cuja recusa da sociedade liberal-burguesa é também a mais impressionante, inclusive assumindo no início uma forma semi-anárquica (os grupos dos "Jünger" do SPD em 1891) - antes de se tornar ultraconservador nos anos 20. (7) E não é também por acaso, como veremos, que Lukács, cujo anticapitalismo é bem mais radical do que o da maioria dos intelectuais alemães, seja atraído precisamente pela obra de Paul Ernst.
* * *
No entanto, além da literatura, é no conjunto da intelligentsia alemã romântico-anticapitalista que se apresenta essa "consciência trágica" e, em particular, entre os sociólogos universitários.
Já observamos o aspecto trágico de Tönnies, o profundo pessimismo social de max Weber e a problemática simmeliana da tragédia da cultura. A isso pode-se acrescentar a visão da História como declínio permanente dos valores em Scheller e o tema da decadência em autores tão diversos como Alfred Weber, Werner Sombart e Oswald Spengler.
Max Weber resumiu notavelmente essa atitude comum a uma larga fração da intelligentsia alemã (compartilhada parcialmente por ele) nos seguintes termos:
"Eles (os intelectuais) olham com desconfiança a abolição das condições tradicionais da comunidade e a destruição de todos os inúmeráveis valores éticos e estéticos ligados a essas tradições. Duvidam de que a dominação do capital possa dar garantias superiores e mais duráveis à liberdade pessoal e ao desenvolvimento da cultura intelectual, estética e social que representam...Acontece então, atualmente, nos países civilizados, que os representantes dos interesses superiores da cultura dão as costas e se opõem com uma profunda antipatia ao inevitável desenvolvimento do capitalismo..."(8)
Os três princiapais aspectos dessa visão trágica são:
1. Uma versão metafísica do problema da alienação, da reificação e do fetichismo da mercadoria. O exemplo característico é (como já vimos) a obra de Simmel que transfigura a problemática sócio-econômica do marxismo em uma visão idealista, de coloração neokantiana, do conflito, do próprio abismo, entre o sujeito e o objeto, a "vida" e as "formas" culturais, a cultura subjetiva e a cultura objetiva; autonomização das instituições sociais com relação às necessidades concretas dos indivíduos, a dominação dos homens por seus produtos econômicos e/ou culturias que assim se torna um "destino trágico" inevitável e irresistível da sociedade moderna. (9)
2. Uma dualidade neokantiana entre a esfera de valores e a realidade, entre o reino do espírito e o da vida social e política, que é característica da escola de Heidelberg (Rickert, Lask etc) e que também se manifesta sob formas mais mediatizadas entre os sociólogos (Max Weber notadamente).
3. O sentimento de "impotência do espírito" em face de uma sociedade "massificada", inculta, bárbara-civilizada, grosseiramente materialista.
Concluindo, pode-se dizer que a visão trágica do mundo entre os escritores, sociólogos, e outros intelectuais alemães da passagem do século é o produto da combinação entre:
a) uma oposição mais ou menos profunda entre os seus valores ético-culturais e o processo de desenvolvimento rápido e brutal do capitalismo industrial monopolista na Alemanha;
b) o desespero de toda possibilidade de conter ou impedir esse processo, considerado como uma "fatalidade" irreversível.
A intensidade e o radicalismo da visão trágica de mundo depende, em cada autor, do grau de repulsa diante do capitalismo e da resignação e/ou indignação diante do seu advento triunfante.


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Notas

(1) Lukács, Thomas Mann, Maspero, 1967, p. 35-37.

(2) Ibid, p. 36, 212, 224; cf. também p. 228: Thomas Mann "foi um dos primeiros escritores a reconhecer o perigo desta reação ascendente de novo tipo - o fascismo - e a comprometer-se valentemente na luta contra ela, com os maiores meios literários. Esta luta ideológica forma o eixo de sua novela A Montanha Mágica".


(3) Bourdet cita como "outros marxistas" que puderam inspirar Thomas Mann: Ernst Bloch e Walter Benjamin. Concorda-se quanto a Bloch, mas, como o destacou Nicolas Tertulian, em sua resposta a Bourdet, Benjamin antes de 1923 estava longe de ser marxista...


(4) Poder-se-ia acrescentar a isto que, considerando o testemunho de Ernst Bloch e de Paul Honigsheim sobre o catolicismo do jovem Lukacs por volta de 1912-1914, naphta pode parecer como uma justaposição de duas etapas distintas da evolução ideológica de Lukács. Todavia, é pouco provável que Thomas Mann tivesse conhecimento das tendências "eclesiásticas" de Lukács antes da guerra.


(5) Por exemplo, quando naphta elogia a caridade cristã para com os doentes e elogia a própria doença como um "estado sagrado" tira disso esta conclusão muito provocadora: " Por esta razão a conservação da pobreza e da enfermidade era do interesse para ambas as partes, e esta concepção permaneceria válida tanto tempo quanto fosse possível manter-se no ponto de vista puramente religioso." La Montagne Magique, p.487. Mesmo com toda boa vontade do mundo não se pode achar muito "bolchevismo" nesse tipo de raciocínio...


(6) Thomas Mann, Briefe an Paul Amman, Lübeck, 1960. Terulian cita esta carta como prova de que Naphta foi concebido completamente como um "prefascista" e não como um "leninista". Tem razão, mas não se deve esquecer que a dimensão "revolucionária" foi acrescentada ao personagem Naphta em princípios dos anos 20, quando Thomas Mann assistiu, com assombro, à conversão ao bolchevismo de certos pensadores próximos da corrente neoromântica: Ernst Bloch, Lukács etc.


(7) Sobre Paul Ernst, ver neste mesmo Blog a postagem O Círculo Max Weber de Heidelberg...(2), em http://metamorficus.blogspot.com/2008/04/o-crculo-max-weber-de-heidelberg2.html

(8) Max Weber, Essays in Sociology, London, Routledge & Kegan Paul Ltd, 1967, p. 371-372.

(9) Simmel, Philosophische Kultur, Leipzig, 1911, p.272.



Extraído de
: Michael Löwy, Para Uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários.

sábado, 17 de maio de 2008

O "Círculo Max Weber de Heidelberg"...(4)

Max Weber

Parte IV: Misticismo ou Marxismo ? - O pensamento de Ernst Bloch



Outro notável representante da "esquerda de Heidelberg" é Ernst Bloch, cuja obra - intimamente ligada, por seu estilo e tema, à corrente expressionista - é o mais coerente exemplo de romantismo revolucionário e a mais irrefutável demonstração da possibilidade de um desenvolvimento para o comunismo marxista a partir da Weltanschauung anticapitalista romântica. Neste sentido, ele é a negação viva da tese unilateral e esquemática do "velho Lukacs" sobre os frutos inevitavelmente envenenados, i.e., reacionários, se não fascistas, desta árvore ideológica.
Este pensamento profundamente original encontra suas raízes na sociologia alemã da passagem do século.
Bloch ensaiou seus primeiros passos no seminário berlinense de Georg Simmel, de quem foi um dos alunos preferidos.

George Simmel



Mais tarde, vai desenvolver em suas obras a problemática simmeliana da tragedia da cultura, i.e., da oposição entre a alma e suas objetivações, notadamente em Geist der Utopie, onde, por exemplo, formulará esta sugestiva metáfora:

"Todas as alienações humanas (alles Menschlinch Entfremdete), em última análise, não têm valor, já que Deus...no julgamento final, apenas reconhece a ética como valor em ouro, enquanto o conjunto das exteriorizações formais...aparentemente objetivas em si mesmas...para ele não passam de Assignats."

Bloch deixará Berlim por volta de 1912 para ir a Heidelberg, onde será introduzido no "Círculo de Max Weber" por Lukacs.

Segundo Paul Honigsheim, a Weltanschauung de Bloch, neste momento, era "uma combinação de elementos católicos, gnósticos, apocalípticos e econômico-coletivistas." A mulher de Max Weber (que não gostava de Bloch) descreve-o como "um novo filósofo judeu, um jovem...que acreditava ser, com toda certeza, o precursor de um novo Messias" e cujo pensamento se caracterizava por "altas especulações apocalípticas". Com a Guerra Mundial, o pensamento de Bloch "politiza-se" e aproxima-se do marxismo, sem abandonar, no entanto, seu ar messiânico, o que resultará no célebre último capítulo de Geist de Utopie:"Karl Marx, der Tod und die Apokalypse", onde denuncia a guerra como um produto do capitalismo - "uma guerra de empresários em toda sua nudez" - e vê na revolução anticapitalista a única forma de "arrancar da boca do Golem do militarismo europeu seu papel da vida". Bloch vai saudar, portanto, com esperança e com um fervor quase religioso o início da Revolução russa (o livro foi terminado em maio de 1917, antes, portanto, da Revolução de Outubro), e particularmente "o Conselho dos Operários e dos Soldados" que quer destruir "a economia monetária e a moral de comerciantes, o ápice de tudo o que há de celerado no homem". Entretanto, sua visão dos acontecimentos na Rússia ainda está profundamente impregnada pelo universo espiritual religioso de Tolstoi e de Dostoievsky, que constitui para os intelectuais alemães anticapitalistas românticos da época, um dos principais pontos de referência ideológicos. É no quadro desta "russofilia" mística que se situa a estranha e espantosa passagem de Geist der Utopie, onde Bloch explica que as obras de Marx atravessam a fronteira alemã e se encontram na Rússia em mãos de "pretorianos que, agora, na Revolução russa, pela primeira vez, instauram o Cristo como Imperador".
Apesar do misticismo, a posição de Bloch quanto ao "Conselho dos Operários e dos Soldados" russo, situa-o decididamente no campo revolucionário proletário, e separa-o, portanto, de todas as correntes e pensadores reacionários e conservadores, saídos do neo-romantismo literário ou sociológico. Iring Fetscher ressalta, de maneira penetrante, a propósito de Gaist der Utopie: "Para Bloch, o artista não podia cegar perante a desnaturalização da arte e o declínio da força criadora, pela generalização do mercado, pela transformação de cada objeto em mercadoria. Reconhecendo, entretanto, que o lamento pela perda de qualidade e de pureza é impotente e reacionário se não se liga à vontade de transformação futura, Bloch une-se - em seu pensamento - ao movimento operário revolucionário, depositando nele sua esperança."

Ernst Bloch


Isso não impede que se encontre ainda em Bloch, em 1918, uma nostalgia do passado pré-capitalista, de certos valores sociais e religiosos da Idade Média que Bloch vai projetar no próprio centro de sua visão utópico-messiânica do futuro. Assim, por exemplo, nesta passagem de Geist der Utopie, onde escreve:
"Toda Utopia pode apresentar o quadro de uma hierarquia que já não é economicamente rentável, que em sua base reconhece apemas camponeses e artesãos, e que se distingue em direção ao alto, talvez pela honra e pela glória, por uma nobreza (Adel) sem servos e sem guerra, por homens novos, diferentemente cavaleirescos (ritterliche) e pios, pela autoridade de uma aristocracia espiritual".
Na entrevista que nos deu (*), Bloch explica o sentido desta postura (ao que parece, partilhada por Lukacs): trata-se de uma hierarquia invertida, inspirada pela doutrina católica, ou seja, uma hierarquia onde o ascetismo e as dificuldades (e não os privilégios) e as provas, aumentam em direção ao alto da escala. De qualquer forma, na segunda edição de Geist der Utopie (1923) esta problemática "medieval" desaparece e a passagem supracitada é substituída pelo seguinte texto:
"Toda longínqua Utopia apresenta o quadro de uma estrutura (Bau) que já não é mais economicamente rentável: cada um produz segundo sua capacidades e concome segundo suas necessidades".
Inútil ressaltar que a diferença entre estas duas formulações é aquela entre o neo-romantismo e o marxismo: a reformulação da obra atesta a evolução ideológica de Bloch de 1918 a 1923.


No entanto, embora se aproprie cada vez mais do pensamento de Marx, a filosofia de Bloch guardará sempre uma dimensão romântica (revolucionária). É esta a razão de sua profunda identidade com Lukacs até 1918 e de sua progressiva separação depois desta data. Da entrevista que nos deu (*), depreende-se claramente que Bloch considerava as novas posições de Lukacs, depois da guerra, como uma espécie de traição das suas idéias comuns, na juventude. A célebre polêmica entre os dois amigos-rivais, sobre o experessionismo nos anos 30, não é mais que o resultado desta divergência fundamental entre um marxismo de cores neo-românticas e um marxismo rigorosamente "neoclássico". Ainda mais significativa é a diferença de suas análises e atitudes políticas em face do fascismo na Alemanha: Lukacs denuncia com veemência o pensamento romântico da passagem do século como raiz ideológica do fascismo e procura a salvação numa aliança político-cultural com a burguesia esclarecida e democrática (encarnada, a seus olhos, por Thomas Mann).

Thomas Mann, em 1937


Bloch, ao contrário, vai analisar em Erbschaft dieser Zeit (A Herança de Nossa Época, 1933) o mundo cultural contraditório e despedaçado da pequena burguesia alemã, tentando separar a esperança e a revolta autênticas de seu contexto reacionário. O irracionalismo e o antimecanicismo desta classe, não são julgados por ele como simples "destruição da razão", mas como uma reação irrefletida contra os sofrimentos inflingidos à pequena burguesia pelo desenvolvimento industrial e a racionalidade capitalista. Para Bloch, a conclusão é que a conquista política das camadas médias pauperizadas e a ativação de suas contradições com o capitalismo são tarefas tão importantes para a Alemanha quanto a conquista do campesinato o foi para a Revolução russa.
Um aspecto particular do neo-romantismo que permanecerá como um dos traços mais característicos da postura de Bloch, é a dimensão religioso-atéia, "eclesiástica", messiânico-revolucionária.
Em Thomas Münzer, Theologien de la Revolution (1921) - obra que o próprio Bloch classifica de "romântico-revolucionária" - ele se refere a uma imemorial tradição subterrânea de misticismo e de heresia:
"Eis que os Imãos do vale, os Cátaros, os Valdenses, os Albigenses, o abade Joaquin de Calabre, os Irmãos da Boa Vontade, do Livre Espírito, Eckhart, os Hussitas, Münzer e os Batistas, Sebastian Franck, os Iluministas, Rousseau e a mística racionalista de Kant, Weitling, Baader, Tolstoi, eis que todos unem suas forças, e a consciência moral desta imensa tradição bate novamente à porta para acabar...com o Estado, com todo o poder desumano."
Mas além das heresias, Bloch também se interessa pelo catolicismo e pela Igreja. Em Geist der Utopie (edição de 1918), desenvolve uma visão do futuro espantosa:
"o socialismo, liberando o homem dos problemas materiais, apenas consegue tornar mais intensa a problemática socialmente insolúvel (Sozial Unaufhebbare) da Alma, que deve estar relacionada com 'os grandes meios de graça sobre-humanos e supraterrestres da Igreja, da Igreja necessariamente e a priori instituída depois do socialismo'".
Este tema reaparece na edição de 1923, que proclama:
"Uma Igraja transformada é o suporte de fins a longo prazo...é o espaço imaginável de uma tradição e de uma ligação com o Fim, sompre renovados; e nenhuma ordem, seja qual for sua finalização, pode prescindir desta última articulação na série de relações entre o Nós e o problema final do Por Quê (Wozu-problem)."
Até a obra sobre Münzer, que critica severamente os compromissos da Igreja com o mundo, contém essa nostalgia de uma Igreja "autêntica":
"Assim, para além da Igreja efetiva, como se impedir de evocar em espírito uma outra Igreja, muito mais profunda, aquela que sonharam, em seu próprio seio, tantos hereges - uma Igreja que conserve alguma coisa de sua primeira exigência, e que conheça uma verdadeira tensão com a própria existência ?"
Portanto, Bloch chega a conciliar, ou melhor, a fundir, numa combinação alquimística misteriosa e sibilina, Karl Marx e o Apocalipse, Mestre Eckhart e a Revolução de Outubro, o socialismo científico e a Igreja Cristã.
A ousada associação entre estes elementos aparentemente contraditórios, faz pensar irresestivelmente em certo jesuíta comunista, fervoroso partidário da revolução proletária e a Igreja católica, e em quem se vê, por vezes, uma alegoria de Lukács, por outras, uma imagem de Bloch, ou ainda uma síntese sui generis dos dois: "Leon Naphta", a singular criação literária de Thomas Mann em A Montanha Mágica.


(Fonte: Michael Löwy - "Para Uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários" - pags. 46 e segs.)




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(*) Nota do Blog: Trata-se de uma entrevista concedida por Ernst Bloch a Michael Löwy em 24/03/74, que, segundo Löwy, teve por objetivo esclarecer alguns aspectos das relações entre Bloch e Lukacs, sobretudo no período de 1910 a 1918, no quadro da problemática geral de formação da corrente anticapitalista entre os intelectuais alemães na passagem do século. É minha intenção postar futuramente essa entrevista - ou parte dela - no Blog.