segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A Etica Protestante e o Espirito do Capitalismo

Max Weber



Weber procura estudar uma da infinitas causas que, segundo ele, suscitaram o advento do Capitalismo, posto que, para o autor, o número e a natureza das causas que determinam qualquer acontecimento individual são sempre infinitos. Isto posto, passa a perquirir “se” e “de que modo” a Reforma e a ética por ela fundada influenciaram a ocorrência do sistema econômico e social denominado capitalismo.
Podemos discriminar duas ordens de influência entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, distintas, mas intimamente relacionadas:
1.      De ordem “espiritual” ou moral, que daria origem ao modo racional de conduta, dominante no sistema capitalista;
2.      De ordem “material” ou econômica, relacionada com a acumulação de capital e realizada, sobretudo, por aqueles impregnados da “ética protestante”, principalmente a calvinista.

(I)

Foi o Calvinismo a fé em torno da qual se estabeleceram as lutas políticas e culturais na Inglaterra, Países Baixos e França nos séculos XVI e XVII e, por isso, ocupa ele o papel central na análise de Weber. O dogma que o caracterizava era a doutrina da predestinação segundo o qual, por decreto de Deus e desde sempre, alguns homens são predestinados à vida eterna e outros são predestinados à morte eterna. A graça de Deus dessa forma, obtida por alguns, apenas, não podia ser, quer por meios mágicos, quer por qualquer outro meio, obtida pelos demais. Ela (a graça de Deus), uma vez que Seus desígnios não podiam mudar, é tão impossível de ser perdida por aqueles a que Ele a concedeu, como é inatingível para aqueles aos quais Ele a negou. Ante à interrogação de como o indivíduo podia assegurar-se de sua própria eleição, Calvino tinha apenas a resposta de que devíamos nos contentar com o conhecimento de que Deus escolhera e dependermos mais da confiança em Cristo, que é o resultado da verdadeira fé. Calvino rejeita, a princípio, a suposição de que alguém possa deduzir, pela conduta dos outros, serem eles escolhidos ou condenados. “Os eleitos, assim, são e permanecem a Igreja invisível de Deus”. Contudo, tal atitude foi impossível para seus adeptos. Por isso , onde quer que a doutrina da predestinação tenha sido mantida, não se pôde suprimir a questão referente à existência de algum critério infalível pelo qual a eleição pudesse ser reconhecida. Disso resultou 2 tipos principais de recomendações pastorais: por um lado, manteve-se como um dever absoluto o cada um considerar-se escolhido e de combater as dúvidas e tentações do demônio, já que a falta de autoconfiança era o resultado da falta de fé, portanto, de graça imperfeita. Por outro lado, a fim de alcançar aquela autoconfiança, uma intensa atividade profissional era recomendada, como o meio mais adequado. Ela, e apenas ela, afugenta as dúvidas religiosas e dá a certeza da graça. A comunidade dos eleitos apenas podia concretizar-se , e a eles ser perceptível, naquilo que Deus se realiza através dele e daquilo que se lhes tornasse consciente. Isto é, sua atividade originava-se da fé causada pela graça de Deus e esta, por sua vez, justificava-se pela qualidade daquela atividade tornada legítima por Deus. O Calvinismo julgava capaz de identificar a verdadeira fé por um tipo de conduta cristã que servisse para aumentar a glória de Deus. O mundo existe para a glorificação de Deus e somente para este fim. O cristão eleito está no mundo apenas para aumentar esta glória, cumprindo seus mandamentos ao máximo de suas possibilidades. Somente o eleito, devido ao seu renascimento e de sua consequente santificação de toda sua vida, é capaz de aumentar a glória de Deus através das boas obras verdadeiras, e não apenas aparentes. Assim, apesar da inutilidade das boas obras como meio de obtenção da salvação, elas eram indispensáveis como sinal de escolha. “Eram os meios técnicos não da compra da salvação, mas de libertação do medo da condenação.”
Percebemos que também no Catolicismo o fiel “criava” sua própria salvação, ou melhor, a convicção disto. Mas, diferentemente do que ocorria nessa religião, no Calvinismo, tal não podia constituir-se do acúmulo gradual de boas obras isoladas, mas sim de um sistemático autocontrole. As boas obras do católico não formam, necessariamente, um sistema de vida integrado, ou ao menos racionalizado, mas constituem, no mais das vezes, uma sucessão de atos isolados. O Deus do calvinista, por outro lado, requeria de seus fiéis não apenas “boas obras” isoladas, mas uma santificação pelas obras, coordenada em um sistema unificado. A conduta moral do homem médio foi, assim, despojada de seu caráter não planejado e assistemático e sujeita, como um todo, a um método consistente. “A vida do santo”, diz Weber “era dirigida unicamente para um fim transcendental: a salvação, Precisamente por essa razão, entretanto, ela era completamente racionalizada do ponto de vista deste mundo e dominada inteiramente pela finalidade de aumentar a glória de Deus sobre a Terra.” Assim, depois da Reforma, todo cristão tinha que ser um  monge por toda a sua vida: aqueles dotados de uma natureza eminentemente espiritual, que até então formavam o monasticismo da Idade Média, sob a Religião Católica, foram forçados, daí por diante a perseguir seus ideais ascéticos através de ocupações seculares. Baseando sua ética na doutrina da predestinação, o Calvinismo substituiu a aristocracia espiritual dos monges, alheia e superior ao mundo, pela aristocracia espiritual dos predestinados, integrados no mundo. Tanto o Calvinismo, como o monasticismo católico, entretanto, caracterizaram-se por um método sistemático de conduta racional a fim de libertar o homem dos impulsos irracionais. Diz Weber : “ o ascetismo puritano (...) tentava habilitar o homem a afirmar e a fazer valer os seus ´motivos constantes´ especialmente aqueles que foram por eles adquiridos em contraposição aos sentimentos. Sua finalidade (...) era habilitar para a vida alerta e inteligente, enquanto a tarefa imediata de anulação do gozo espontâneo e impulsivo da vida era o meio mais importante da ascese na ordenação da conduta de seus adeptos”.
Assim, à medida que a ética puritana e a sua concepção de vida foi se propagando, favoreceu-se o desenvolvimento de uma vida econômica racional e burguesa.

(II)

Em segundo lugar e intimamente relacionado ao que já foi dito, mencionamos acima que o puritanismo favoreceu o advento do capitalismo também naquilo que poderíamos considerar estritamente econômico. Com efeito, Weber mostra de que modo os fiéis, na tentativa de “aumentar a glória de Deus” através de uma vocação eficientemente exercida, conjugada com a repressão aos impulsos de caráter “hedonísticos” , acabaram por acumular riquezas que constantemente eram reinvestidas. Na doutrina e no dogma calvinista, a riqueza constitui sério perigo, mas tal objeção moral refere-se ao descanso sobre ela, ao seu gozo e a o ócio por ela proporcionado o que poderia levar à desistência da procura de uma vida santificada. O homem deve trabalhar e dar o máximo de si no trabalho para estar seguro de seu estado de graça. Ele é a própria finalidade da vida, sendo a falta de vontade de trabalhar um sintoma da ausência do estado de graça. Outrossim, no próprio fenômeno da divisão de trabalho era atribuída um caráter providencial, em virtude de seus resultados: a especialização das ocupações leva, à medida que possibilita o desenvolvimento das habilidades do trabalhador, a progressos quantitativos e qualitativos na produção, servindo assim também ao bem comum, que é idêntico ao bem do maior número.
Portanto, a riqueza é condenável eticamente só na medida que constituir uma tentação para a vadiagem e para o aproveitamento pecaminoso da vida. Sua aquisição é má somente quando é feita com o propósito de uma vida posterior mais feliz e sem preocupações. Mas, como o empreendimento de um dever vocacional, ela não é apenas moralmente permissível, como diretamente recomendada.
Diz Weber: “Esse ascetismo secular do protestantismo opunha-se , assim, poderosamente, ao espontâneo usufruir das riquezas, e restringia o consumo, especialmente o consumo de luxo. Em compensação, libertava psicologicamente a aquisição de bens das inibições da ética tradicional, repondo os grilhões da ânsia de lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou como diretamente desejada por Deus”. E prossegue : “combinando essa restrição ao consumo com essa liberação da riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação capitalista através da compulsão ascética à poupança. As restrições impostas ao uso da riqueza adquirida só poderiam levar a seu uso produtivo como investimento de capital.”

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