quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O AVANÇO DO CONSERVADORISMO NOS EUA (1)


PARTE 1 - ORIGEM DO PROBLEMA E CONTEXTUALIZAÇÃO

Ao final da Guerra de Secessão, as lideranças escravocratas reunidas em torno do Partido Democrata do Sul dos EUA estavam derrotadas. O Partido Republicano, nortista abolicionista e vitorioso na Guerra impôs uma agenda integracionista em relação aos antigos escravos. Essa agenda ficou conhecida como Reconstrução.


Reconstrução dos Estados Unidos foi um período da história dos Estados Unidos que se iniciou após o término da Guerra de Secessão, em 1865, e se estendeu até o ano de 1877. O período é marcado pelo retorno gradual dos estados que haviam se separado do país e formado os Estados Confederados da América, do status dos líderes da antiga Confederação, e pelo início do processo de integração dos ex-escravos afro-americanos.

O governo dos Estados Unidos à época era dominado pelo Partido Republicano. Líderes republicanos concordavam que remanescentes do poder político dos antigos senhores de escravos, bem como o nacionalismo confederado, teriam que ser suprimidos. Republicanos moderados, liderados pelos Presidentes Abraham Lincoln Andrew Johnson, sugeriram a unificação do país o mais rapidamente possível. Porém, republicanos extremistas queriam ações severas contra os Estados que compunham a antiga Confederação.

Em 1866, Johnson rompeu com os republicanos, e aliou-se com o Partido Democrata, que se opunham à igualdade entre brancos e afro-americanos e à abolição do trabalho escravo. Nas eleições de 1866 da Câmara dos Representantes, os republicanos radicais obtiveram posições suficientes para anular vetos do Presidente Jonhson, e até mesmo para iniciar um processo de impeachment. O processo foi aprovado na Câmara dos Representantes mediante votação, mas Johnson permaneceu no cargo após votação no Senado, por apenas um único voto, embora possuísse pouco poder político em assuntos ligados à Reconstrução.[1]

Durante a Reconstrução, os estados que haviam formado os Estados Confederados da América foram ocupados por tropas militares dos Estados Unidos. Enquanto isto, os republicanos radicais instituíram diversas medidas que desagradaram a elite de tais estados, como:

  • permitindo que afro-americano votassem em eleições;
  • colocando negros em posições de poder e
  • removendo o poder de voto de cerca de 15 mil brancos, antigos soldados ou oficiais confederados.

Gradualmente, os radicais foram substituídos por republicanos mais moderados, que se esforçaram para modernizar os estados ocupados.

Em 1876, o republicano Rutherford B. Hayes venceu as eleições presidenciais americanas, em uma eleição controversa. Enquanto isto, os democratas haviam assumido o poder de todos os estados que formavam a antiga Confederação. Tais democratas concordaram em aceitar os resultados da eleição, caso as tropas federais que ocupavam tais estados fossem removidas da região. Como muitos já consideravam o nacionalismo confederado e o trabalho escravo como destruídos no país, Hayes concordou, e removeu as tropas em 1877, dando fim à Reconstrução.

A Reconstrução deixou profundas feridas nas relações entre o antigo Sul e Norte americano, que durariam aproximadamente um século. No cenário político do país, os democratas teriam amplo domínio político do Sul, enquanto o Norte seria dominado pelos republicanos. Este cenário permaneceu praticamente intacto até a  Grande Depressão da década de 1930, e mudaria profundamente somente a partir da década de 1960.

CONSENSO SOBRE EXCLUSÃO RACIAL (1877-1965)

Segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt , em “Como As Democracias Morrem”:

As normas que sustentam o sistema politico norte-americano repousavam até os anos 1960/70 , num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos de 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a “desdemocratização” do Sul e a consolidação das leis Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no sec. XX.

Ou seja, para os autores, o consenso politico só foi possível graças à segregação de boa parte da população.

Ainda segundo os autores: a tolerância mútua só se estabeleceu depois que a questão da igualdade racial foi retirada da agenda politica. Dois acontecimentos foram decisivos.

  • O primeiro foi o infame Compromisso de 1877. O pacto acabou efetivamente com a Reconstrução, pois ao retirar as proteções federais para os afro-americanos , permitiu aos democratas sulistas anular direitos democráticos e consolidar o domínio de um partido único.
  • O segundo acontecimento foi o fracasso do Projeto de lei de Eleições Federais de Henry Cabot Lodge, em 1890, o qual teria permitido a supervisão federal de eleições legislativas a fim de garantir a implementação do sufrágio negro. O fracasso do projeto deu fim aos esforços federais para proteger o direito ao voto dos afro-americanos no sul, ocasionando, consequentemente, a sua extinção.

Paradoxalmente, portanto , as normas que mais tarde serviriam como fundação para a democracia norte-americana emergiram de um arranjo profundamente antidemocrático: a exclusão racial e a consolidação da predominância de um partido único no Sul.

Depois que democratas e republicanos se aceitaram como rivais legítimos, a polarização declinou gradativamente, dando origem ao tipo de politica que caracterizaria a democracia americana nas décadas seguintes. A cooperação bipartidária viabilizou uma serie de reformas importantes, inclusive a 16 Emenda (1913), que legalizou o IR Federal, a 17 Emenda que estabeleceu a eleição direta para senadores, a 19 Emenda (1919) que concedeu às mulheres o direito de voto.

"Visto que ambos os partidos tinham uma composição interna bastante heterogênea, a polarização entre eles era muito mais baixa do que é hoje. Congressistas republicanos e democratas se dividiam em torno de questões como impostos e despesas, regulação governamental e sindicatos, mas os partidos se sobrepunham na potencialmente explosiva questão de raça. Embora ambos os partidos tivessem facções que apoiavam os direitos civis, a oposição dos democratas do Sul e o controle estratégico do sistema de comitês do Congresso mantiveram a questão fora da agenda. Essa heterogeneidade interna neutralizava os conflitos. Em vez de ver um ao outro como inimigos, republicanos e democratas muitas vezes encontravam bases comuns. Enquanto republicanos e democratas liberais frequentemente votavam juntos no Congresso para pressionar em prol dos direitos civis, democratas do Sul e republicanos de direita do Norte sustentavam uma “coalizão conservadora” no Congresso para se opor." (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

O MOVIMENTO PELOS DIREITOS CIVIS E O FIM DO CONSENSO RACIAL

O movimento pelos direitos civis, que culminou com a Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei do Direito de Voto em 1965, deu fim a esse arranjo partidário. Não só ele finalmente democratizou o Sul, emancipando os negros e acabando com o domínio de um único partido, mas acelerou um realinhamento em longo prazo do sistema partidário cujas consequências estão se desdobrando ainda hoje.

Seria a Lei dos Direitos Civis – que o presidente democrata Lyndon Johnson abraçou e o candidato republicano de 1964, Barry Goldwater, combateu – que definiria os democratas como o partido dos direitos civis e os republicanos como o partido do status quo racial.

Nas décadas que se seguiram, a migração sulista branca para o Partido Republicano se acelerou. Os apelos raciais da “Estratégia Sulista” de Nixon e, subsequentemente, as mensagens codificadas sobre raça de Ronald Reagan comunicaram aos eleitores que o GOP era a casa dos conservadores raciais brancos. No final do século, aquela que por muito tempo fora uma região solidamente democrata tinha se tornado firmemente republicana. Ao mesmo tempo, os negros sulistas – aptos a votar pela primeira vez em quase um século – afluíram em bando para os democratas, assim como vários republicanos liberais que apoiavam os direitos civis. Quando o Sul se tornou republicano, o Nordeste se tornou autenticamente azul, a cor dos democratas." (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

A NOVA FRONTEIRA DE KENNEDY E A GRANDE SOCIEDADE DE TRUMAN

De 1955 a 1960, o crescimento econômico se enfraqueceu nos EUA. Depois de 8 anos de governo republicano (1952-1960) ,  Kennedy foi eleito com uma plataforma que fazia alusão ao New Deal. Seu manifesto Nova Fronteira prometeu gastos com educação,  saúde,  renovação urbana, transportes, artes, proteção ambiental, radiodifusão pública, pesquisa na área das humanidades etc.. Truman lança um programa ainda mais ambicioso, a Grande Sociedade, tendo como objetivo central a meta de eliminar não só a pobreza para a classe trabalhadora branca, mas também o racismo. Em seus primeiros 3 anos 1 bilhão  de dólares foi gasto anualmente em diversos programas  para aumentar as oportunidades educacionais e introduzir cobertura de saúde para idosos e vários grupos vulneráveis. 

Quando começou,  mais de 22% dos norte-americanos viviam abaixo da linha de pobreza oficial. No final do programa , essa percentagem tinha caído para 13%. Entre os negros , foi de 55% (em 1960) para 27%  ( em 1968).(extraído de O Minotauro Global - Yanis Varoufakis)

SEPARAÇÃO IDEOLÓGICA DOS ELEITORES

"O realinhamento pós-1965 também deu início a um processo de separação ideológica dos eleitores. Pela primeira vez em quase um século, filiação partidária e ideologia convergiam, com o GOP se tornando sobretudo conservador e os democratas se tornando predominantemente liberais.

Nos anos 2000, os partidos Republicano e Democrata já não eram mais “grandes tendas” ideológicas. Com o desaparecimento dos democratas conservadores e dos republicanos liberais, as áreas de sobreposição entre os dois partidos aos poucos desapareceram. E, como a maioria dos senadores e deputados acabou passando a ter mais em comum com seus aliados partidários do que com membros do partido de oposição, eles começaram a cooperar com menos frequência e a votar consistentemente com seu próprio partido. À medida que tanto eleitores como seus representantes eleitos iam se agrupando em “campos” cada vez mais homogêneos, as diferenças ideológicas entre os partidos iam se tornando cada vez mais marcadas. " (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

O EFEITO DA IMIGRAÇÃO

Juntamente com a emancipação negra, a imigração transformou os partidos políticos norte-americanos. Esses novos eleitores apoiaram desproporcionalmente o Partido Democrata. A fração dos votos democratas não brancos subiu de 7% nos anos 1950 para 44% em 2012. Os eleitores republicanos, em contraste, ainda eram quase 90% brancos anos 2000 adentro. Assim, enquanto os democratas se tornaram cada vez mais um partido de minorias étnicas, o Partido Republicano permaneceu quase inteiramente um partido de brancos.

A DIREITA CRISTÃ

O Partido Republicano também se tornou o partido dos cristãos evangélicos. Os evangélicos entraram em massa na política no final dos anos 1970, motivados, em grande parte, pela decisão Roe contra Wade da Suprema Corte, que legalizava o aborto.

A partir de Ronald Reagan em 1980, o GOP abraçou a direita cristã e adotou posições crescentemente pró-evangélicas, incluindo :

  • oposição ao aborto,
  • apoio ao direito de oração nas escolas públicas e, mais tarde,
  • oposição ao casamento gay.

Evangélicos brancos – que se inclinaram para os democratas nos anos 1960 – começaram a votar no Partido Republicano. Em 2016, 76% dos evangélicos brancos se identificavam como republicanos. Eleitores democratas, por sua vez, se tornaram cada vez mais seculares. A porcentagem de democratas brancos que frequenta igrejas regularmente caiu de 50% nos anos 1960 para abaixo de 30% nos anos 2000. Trata-se de uma mudança extraordinária. Como destaca o cientista político Alan Abramowitz, nos anos 1950 os cristãos brancos casados eram a maioria esmagadora – quase 80% – do eleitorado norte-americano, divididos mais ou menos igualmente entre os dois partidos. Nos anos 2000, cristãos brancos casados mal chegavam a 40% do eleitorado, estando então concentrados no Partido Republicano.

Em outras palavras, os dois partidos encontram-se agora divididos sobre raça e religião– duas questões profundamente polarizadoras, que tendem a gerar maior intolerância e hostilidade do que questões políticas tradicionais como impostos e despesas governamentais." (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

AFROUXAMENTO DAS REGRAS DE FINANCIAMENTO

Graças, em parte, ao afrouxamento das leis de financiamento de campanha em 2010, grupos de fora como o Americans for Prosperity e a American Energy Alliance – muitos deles parte da rede bilionária da família Koch – adquiriram uma influência extraordinária no Partido Republicano durante os anos Obama. Só em 2012, a família Koch foi responsável por mais de 400 milhões de dólares em despesas eleitorais. Junto com o Tea Party, a rede Koch e outras organizações similares ajudaram a eleger uma nova geração de republicanos para a qual fazer concessões era um palavrão. Um partido cujo núcleo foi ativamente esvaziado por doadores e grupos de pressão também ficou mais vulnerável a forças extremistas." (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

TEA PARTY

A partir sobretudo da eleição de 2008 (Obama), o Partido Republicano deu una guinada à direita. Foi quando o Tea Party começou a ter proeminência na indicação de candidatos do partido. Organizações bem financiadas como Freedom Works, Americans for Prosperity, Tea Party Express e Tea Party Patriots patrocinaram dezenas de candidatos. Em 2010, mais de 100 foram candidatos, sendo 40 eleitos. Em 2011, o Tea Party tinha 60 membros na Câmara de Representantes.

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