Transcrevo abaixo uma interessante informação extraída do livro "A filosofia explica Bolsonaro", de Paulo Ghiraldelli Jr.:
Quando se deu a Abolição da Escravatura, os negros caíram em festas e bebedeiras. Muitos foram levados para o centro do Rio de Janeiro, onde permaneceram completamente nus, bêbados, com as famílias destroçadas, urinando e defecando nas ruas da capital. Era o último ano do Império. Quando veio a República, eles já estavam morando em casebres, em lugares em que contraíam tudo que era tipo de doença. Tentaram se empregar. Mas, com roupas sujas, exalando o cheiro de aguardente barata – única forma de suportar a vida e elemento que os viciou durante a escravidão – e descalços, eles não conseguiam ser ouvidos por nenhuma dona de casa. Ninguém os queria como mão de obra. Os tais “imigrantes” estavam para chegar! Todos diziam isso e rechaçavam os negros. Os imigrantes chegaram. Eram pobres. Mas estavam de terno e gravata. Não tinham o “cheiro de preto”. Parecia que poderiam viver fora das senzalas, quase como humanos. Aos negros nunca foi dada a condição de possíveis humanos. Então, o capitalismo brasileiro se integrou na narrativa do capitalismo internacional: trabalho assalariado para todos. Menos para os negros. Eles foram decretados não os sem-trabalho, mas os vagabundos".
"Nasceu daí o preconceito. Ser negro passou a ser alguém que só poderia trabalhar a ferros; uma vez livre, entraria para a vida da bebida e da bandidagem. Diziam: “é de índole”. As negras, então, deixariam de lado a função de amas de leite para enveredar na prostituição barata, uma vez que a prostituição menos degradante era aquela não da sífilis, mas da simples gonorreia, transmitida pelas polacas. Minha bisavó, aos 107 anos, gostava de me contar histórias da escravidão. Mas aquelas que ela contava do negro livre eram sempre as que mais revoltavam. Pois o negro livre parou de apanhar no pelourinho da praça para ser massacrado nas prisões das delegacias de todo o país. Ela lembrava sempre da peregrinação do Negro José, um homem forte que por seis meses andou pela cidade de Nova Europa, no interior de São Paulo, tentando arrumar um terreno para carpir, sem sucesso. Foi então que ele, já à míngua, deitou-se na praça e escutou do guarda da esquina: “Está preso por vagabundagem.” Espancado na cadeia, José morreu de hemorragia interna. Durante a escravidão, durante mais de trinta anos, José havia sido o carregador de fezes da casa paroquial. Trazia para as fossas o cocô dos padres que, depois da escravidão, passaram a ir eles mesmos às fossas – “que degradante”, diziam, xingando a imperatriz. Eles mesmos tinham de defecar, sem a ajuda dos pretos. Era horrível, diziam. O negro foi tornado trabalhador livre, mas impedido de trabalhar, para em seguida receber o nome que, hoje, alguns policiais usam: “vagabundo”. Eis aí a origem do preconceito."
Os que negam as cotas e insistem em não criar uma política de integração étnica, para afastar o preconceito, são os agentes do cinismo. Procuram fingir que não sabem dessa história toda, de como o preconceito foi gerado, e insistem que no Brasil as cotas seriam um privilégio, uma odiosa marca no liberalismo, que garantiria a igualdade perante a lei. Como alguém acha que negro é realmente igual perante a lei no Brasil? Os liberais brasileiros deveriam pôr a mão na consciência e, também, nos melhores livros, ao virem com a conversa fiada da igualdade perante a lei. O preconceito só vai diminuir se o branco puder ver o negro, mais rapidamente do que temos conseguido fazer até agora, em cargos executivos, costumeiramente. As políticas de ações afirmativas são para isso, elas não são prêmios individuais ou políticas para dar diploma ou melhorar a renda do negro. Elas são políticas para abaixar a bola do preconceito. Os liberais não querem entender isso por uma razão simples: Locke era um liberal escravocrata. Nosso neoliberalismo atual é escravocrata. Nosso liberalismo desconhece John Rawls ou John Dewey."
(from "A filosofia explica Bolsonaro" by Paulo Ghiraldelli Jr.)
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