sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Implicações e superação da "tagarelice" contemporânea

Diante das incríveis e profundas transformações que estamos assistindo no mundo dito Ocidental (pós-política, pós-Capitalismo, pós-humano, pós-social, pós-pós-modernismo etc), vou pontuar algumas questões, pensando um pouco também nas discussões acerca da Antropologia Simétrica e do Perspectivismo. Estas duas correntes da Antropologia, parece-me, são tentativas de responder a esses desafios.

Em certa medida, poderia resumir meu argumento da seguinte forma:


"Em tempos de colonização do inconsciente, o xamanismo se apresenta não apenas como uma alternativa, mas talvez a única forma de conquistar a liberdade".


Um conceito preliminar


Vou tomar a liberdade de cunhar um conceito próprio - válido como ponto de partida do argumento para os fins desta exposição.

O ponto em questão diz respeito a tudo aquilo que nos condiciona e nos conforma a uma "visão de mundo" e nos fornece uma escala de valores.

Trata-se de um ponto de apoio que nos permita definir o que é desejável (ou não), o que é confortável (ou não), o que é o "bem" e o que é o "mal" e, sobretudo, o que é significativo ou não.

Há muitas variações para esse conceito geral, tanto na filosofia, como nas Ciências Sociais.

No caso, vou cunhar um conceito que chamarei "Tagarelice".

Definirei "Tagarelice" como a soma daquilo que usualmente chamamos:

["civilização"] + ["ideologia"] (mais fortemente no sentido dumontiano que marxista, mas incluindo este) + ["cultura"].

Para fins didáticos e provisoriamente, diria que "Tagarelice" nos fornece não apenas uma ferramenta cognitiva, mas também axiológica. Uma ontologia, uma escala de valores, uma noção de "eu". E, como espero ficar claro, também uma epistemologia.


A abrangência do conceito não é casual: confere a amplitude necessária para dar conta dos múltiplos, profundos e abrangentes fenômenos que se encontram por trás daquilo que Jameson chamou "colonização do inconsciente".

Preliminarmente, "Tagarelice" tem como peças fundamentais para operar - diria, está apoiada - em 3 noções básicas e intimamente relacionadas, entrelaçadas:

1) uma noção de tempo: uma determinada forma de vivenciarmos o tempo (tempo linear, cíclico, mítico etc);

2) uma noção de espaço : uma determinada forma de lermos e experienciarmos o espaço;

3) uma noção de corpo : uma determinada forma de lermos, sentirmos e vivenciarmos nosso corpo.

Essas 3 noções são uma só: uma dada conformidade de corpo-tempo-espaço para cada "Tagarelice".

Ou, melhor ainda, diria que "Tagarelice" não apenas se apóia nessas noções, como também forma e re-afirma as mesmas. É estruturante delas e é estruturada por elas.

Como diria Guy Debord: "O Espetáculo limita-se a enunciar a si próprio."

"Tagarelice" é, assim, a própria noção que temos de corpo-tempo-espaço. A partir delas - estou dizendo isso ainda num nível preliminar - erigimos nossa escala de valores, o que é "bom" e o que é "mal", o que é certo e o errado etc. E também nossa noção do que seja natureza e cultura, quando estas existirem.

Nossa "Tagarelice" Ocidental contemporânea tem como íntimas as noções de:

progresso,
tempo linear (passado-presente-futuro),
corpo fixo e objetivo,
materialismo,
individualidade,
separação de natureza-cultura,
sujeito/objeto,
consciente/inconsciente,
razão/loucura,
racional/irracional,
processo histórico,
linguagem

etc.

Sempre que nos depararmos com esse tipo de cisão, de dualidade e de separatividade, estaremos dentro da malha de condicionamentos dessa "Tagarelice" especifica, Ocidental (estou ciente de que estou generalizando).

Por exemplo: é próprio de nossa "Tagarelice" dizer que tudo está na linguagem, ou que tudo é histórico ou ainda a versões descartianas-kantianas. E também todas as variações materialistas. Tudo isso está na superfície de nossa "Tagarelice".

Para outras "Tagarelices" (dos índios, da Antiguidade, da Pré-História etc), outros problemas e outras cisões são construídas.


O condicionamento


A "Tagarelice" encontra seu apoio em nossa própria mente, que reproduz a cada instante essa configuração do que seja o nosso corpo, tempo e o espaço.

Ela depende de um modo específico de operarmos com nossa mente.

Ela nos convence de que somos de uma determinada maneira, que não podemos ser de outra maneira e que nossa mente está conformada a operar dessa forma.

A mente então - flexível e ávida por identificações - aceita esse argumento, esse enunciado e opera e se conforma desse modo, aceitando a si mesmo como seu próprio limite.


Descondicionamento íntimo



Em tempos de colonização do inconsciente (Jameson) resta-nos a rebeldia do xamanismo.




Para superar, atravessar e perpassar a "Tagarelice", há que se examinar detidamente, de uma forma não dualista e separada, as noções de corpo-tempo-espaço.

O que importa dizer aqui é: ao admitirmos isso, à simples admissão de possibilidade de que isso possa ser feito, já nos posicionamos parcialmente fora da "Tagarelice", posto que a forma não-dualista de exame significa a própria superação daquela dualidade "tagarelística".

Podemos dizer: para o exame pleno (vivencial + emocional + filosófico + racional + consciente + inconsciente + mental + corporal + subjetivo + objetivo), temos que nos apoiar e nos posicionar "fora" da "Tagarelice".

Ao proceder assim e avançar nesse "processo", o observador começa a duvidar e a relativizar suas próprias noções do que seja corpo-tempo-espaço: essa "dúvida" não é apenas racional-conceitual (pois então ainda estaria na "Tagarelice"), mas VIVIDA: ele começa a sentir seu corpo mais fluido e talvez não muito dotado de realidade "ontológica", começa a dissolver seu corpo e as dualidades mentais (Eu, EGO etc).

Poderá passar por algumas experiências bem estranhas...E considerar seriamente que se tornor um ser contra-cultural. Um sujeito que estivesse ferreamente posicionado dentro da "Tagarelice" poderia quase dizer que nosso observador está passando por um surto esquizofrênico.

Vejamos a seguinte passagem de Deleuze-Guattari em Mil Platôs (vol.3):



"Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso Corpo sem Órgão, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide.

(...)



O Corpo sem Órgão é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário: ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e perde o real no mais alto grau, porque perde o Corpo sem Órgão." (Mil Platôs, Vol. 3)



Importante aqui é que "Tagarelice" não é insuperável, monolítica, estável. Ao contrário, é dinâmica devido inclusive aos próprios resíduos por ela fabricados (Marx, Freud etc). Há sempre novos resíduos a serem incorporados e que também fornecem instabilidade e vitalidade à "Tagarelice".

"Tagarelice" é sempre dinâmica, por definição. Ela depende desse dinamismo.

O texto de Peter Gow toca um pouco nesse ponto: o tédio e a paralisia podem fornecer um ponto de apoio interessante, caso o observador-experimentador-de-si-próprio esteja disposto a não rompê-lo (isto é, não romper o tédio, encontrar-se a si próprio). A não dinâmica sugere a própria superação da "Tagarelice". O Budismo tem muito a dizer sobre isso.




Antropologia simétrica / Perspectivismo Amazônico



Voltando à questão Antropologia Simétrica-Perspectivismo: pôr em questão o que seja corpo-tempo-espaço implica não apenas um método, mas uma superação do que seja método; posicionamo-nos aqui além da separação forma / conteúdo.

De uma certa forma é como se o Antropólogo Simétrico-perspectivista fosse, ele próprio, uma espécie de psicanalista (ou esquizoanalista), operando aquela experiência xamanística descrita acima.

Ele problematiza as noções de corpo-tempo-espaço, valendo dizer, as noções e separações de "Eu"/"Outro" e "Natureza"/"Cultura". Ao fazer isso, não apenas está operando um "método", mas aqui está se posicionando além do método, está subvertendo o núcleo que dá origem àquilo que "Tagarelice" chama de "essência" e "aparência"; substância e forma.

Executa uma transmutação íntima e dissolve "Tagarelice" e seus enunciados mais substantivos (na verdade a própria noção de substância).

Daí porque não é possível distinguir, nesse caso, o que é objeto e método, pois essa separação, essas "ontologia" e "epistemologia", derivam daquilo que está sendo superado e dissolvido.

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