quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Arquivo vital: o fim da privacidade ?



Arquivo vital: o futuro sem amnésia


Pessoas que saberão exatamente quantos telefonemas fizeram em um certo mês, a quem e quanto duraram, se foram à academia e com qual frequência, se saíram com os amigos, que estradas percorreram e se estavam de carro, de bicicleta ou a pé. Diferentemente de um velho álbum de família, as crianças de hoje darão vida a uma revolução que mudará a face das relações interpessoais e da própria sociedade.

A reportagem é de Jaime D'Alessandro, publicada no jornal La Repubblica, 29-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Quem defende esse futuro é Gordon Bell (foto ), pesquisador de ponta da Microsoft e ex-vice-presidente da Digital Equipment Corporation, uma empresa que contribuiu muito para o nascimento da World Wide Web, em um livro recém publicado nos EUA e intitulado justamente "Total Recall, how the e-memory revolution will change everything". "Todo dia que passa, me esqueço sempre mais e lembro sempre menos", escreve Bell aos 75 anos. "Mas acontece com todos, também com vocês", continua.

E é por isso que, desde 1998, ele decidiu começar a salvar em suporte digital o que era possível salvar da sua vida no âmbito de um projeto experimental chamado MyLifeBits. Para sua sorte, ao longo do tempo, foi possível arquivar sempre mais coisas de maneira cada vez mais fácil e automática. Bell, de fato, começou a passar no scanner os documentos e livros que lia, depois passou ao correio eletrônico, anotando o s sites que visitava na rede, registrando os telefonemas feitos. Por fim, começou a levar a tira-colo a SenseCam, uma máquina digital que tira uma fotografia automaticamente a cada 30 segundos. E um aparelho de bolso que tem um GPS integrado para traçar os movimentos de quem o vesto, um sensor infravermelho para medir a temperatura do corpo e capturar uma imagem quando alguém entre em seu campo de visão.

O resultado? Gordon Bell tem agora um arquivo de 261 gigabytes e, considerando o fluxo sempre maior de vídeos e de fotos de alta resolução, cada mês deve aumentar um gigabyte. Mas ele se diverte, porque não precisa dedicar tempo para recordar, mas só para pensar. E depois admite achar agradável poder ver sequências de imagens da sua vida em sucessão rápida. Ele pode reviver a sua viagem à Austrália e acompanhá-la em um mapa digital, ou aquela vez em 2007 em que ele baixou hospital por causa do marcapasso.



Porém, nem todos estão convencidos de que a Total Recall será verdadeiramente uma revolução. Pelo contrário. "No fim das contas, não muda muita coisa", comenta o filósofo Maurizio Ferraris, professor da Universidade de Turim. "Porque, desde sempre, toda sociedade tem formas de registro. A única contrapartida é um aumento dos conflitos, inevitáveis quando tudo fica gravado. Porque essa segunda memória digital não faz outra coisa que colocar luz, deixar evidente aquilo que somos de todos os pontos de vista. No bem e no mal. E isso vale também para a sociedade e a política. Basta pensar nos escândalos dos últimos tempos que nunca viriam à luz sem os celulares e as máquinas fotográficas compactas. Enfim, não acredito que seja necessário ter medo, porque é um processo já em curso. E depois não se sabe se as fotos tiradas hoje ou os vídeos serão compatíveis com os computadores de amanhã. Certamente, a vida sempre mais documentada está no presente, na contemporaneidade. Tenho mais recordações do que se tivesse mil anos, escrevia cansado Charles Baudelaire. Bem, tenho essas impressões toda vez que abro o meu e-mail. O problema é que não sei se, em dez anos, eu ainda conseguirei ler esses e-mails".


Além da compatibilidade entre os formatos, causará efeito a muitos o fato de saber que uma parte sempre mais consistente das suas recordações existe há muito tempo sob a forma de dados digitais. Faltam apenas os instrumentos para unir as várias peças do quebra-cabeças. Qualquer smartphone de última geração tem GPS e, por meio dele, é possível reconstruir os nossos movimentos. Todos usamos e-mails, tiramos sempre mais fotografias e gravamos vídeos, o nosso leitor de mp3 guarda traços do que escutamos, assim como o nosso celular mantém as marcas de tudo o que lemos, ouvimos, vimos.

Não há escapatória, escreve Bell, e por três fatores principais. Em primeiro lugar, por causa do aumento exponencial das capacidades de armazenamento dos hard disks. Em 1970, um disco de 20 gigabytes era grande como uma lavarroupa e custava 30 mil dólares. Atualmente, um disco com 50 vezes mais capacidade, de um terabyte, tem as dimensões de um livro de bolso e pode ser levado para casa por 150 euros. Em 2020, será grande como uma moeda e contido nos celulares, e o preço será inferior ao de um cafezinho. Pelo contrário, 100 euros serão suficientes para 250 terabytes: muito para conter centenas de milhões de documentos, milhões de imagens, milhares de horas de vídeo. Uma vida inteira.




O uso e a difusão dos dispositivos hi-tech farão o resto. Enfim, os instrumentos para arquivar e organizar toda essa massa de dados que serão sempre mais específicos e simples. Assim como automáticos e invisíveis. Uma foto será tirada e transferida diretamente o nline. As máquinas digitais com GPS e wi-fi integrado já começaram a aparecer. Sem esquecer que as gerações sucessivas a 1984, sempre segundo Bell, distinguem sempre menos entre público e privado, colocando na Web as suas vidas, graças às redes sociais. Estão colocando em curso um processo de progressiva espetaculatização de si mesmos.

"É um sonho que se torna realidade", comenta Gustavo Pietropolli Charmet, psiquiatra e professor de psicologia dinâmica na Universidade de Milão, que trabalhou durante anos com adolescentes, um pouco divertido e um pouco cético. "Ser os próprios pensamentos e a própria história é uma hipótese fascinante. Paciência se isso ocorre por meio das próteses tecnológicas. Fazendo as contas, é melhor assim que perder todo rastro do que ocorreu. E depois pensemos nos muitos benefícios: ter o controle sobre a memória de maneira tão fácil e imediata salvaria muitas pessoas da obsessão de ter diário s ou guardar notas escrupulosamente, dando-lhes uma importância capital. No fundo, todo o tratamento psicanalítico mira isso, porque lembrar tudo significa recalque zero. Depois, certamente, as multidões virão até nós, psiquiatras. A desocupação, sabe-se, é um problema muito ruim", conclui rindo.

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