quinta-feira, 18 de junho de 2009

O duelo entre a montanha e a planície


(Artigo escrito por Sergio Paulo Rouanet em Março/2001)

(Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras).)

Quando representantes do Fórum Social de Porto Alegre debateram por satélite com representantes do Fórum Econômico de Davos, a imprensa falou num "duelo" entre duas concepções do mundo e da sociedade. O termo é exato, mas a pré-história desse duelo deu-se na própria cidade de Davos, muito antes que Porto Alegre entrasse em cena. Como já recordei em artigo anterior, a pacífica cidadezinha suíça foi o palco de três duelos, um duelo literário, um duelo filosófico e um duelo econômico.

O primeiro foi um duelo real entre dois personagens de ficção, Naphta e Settembrini, heróis do romance de Thomas Mann (1875-1955), "A Montanha Mágica".

Thomas Mann


Os dois sofriam do pulmão e por isso moravam em Davos, onde havia um sanatório para tuberculosos. Settembrini era um humanista italiano, partidário ardente das idéias iluministas. Acreditava no mundo moderno, na democracia e na liberdade, na razão e no progresso, na ciência e na técnica, na evolução moral da humanidade e na união final de todos os povos da terra. Defendia os valores da vida e detestava todos os tipos de obscurantismo.

Naphta era jesuíta. Desprezava a modernidade, a razão e o progresso, e considerava a democracia um regime burguês, que breve seria substituído por um regime forte, um socialismo teocrático sob a autoridade da Igreja. Sua antropologia era pessimista e atribuía à morte um papel central. A cultura era historicamente contingente, estava condenada ao desaparecimento próximo e de qualquer modo era apenas uma fachada que servia para mascarar a miséria da condição do homem, sua fragilidade e sua dependência. No final, Settembrini não suporta mais as provocações de Naphta. Os dois se batem em duelo. Settembrini, defensor dos direitos da vida, atira no ar. "Covarde!", diz Naphta. E suicida-se com um tiro na cabeça.

O segundo duelo foi metafórico, mas teve o mérito de ocorrer entre dois personagens de carne e osso, os filósofos Ernst Cassirer e Martin Heidegger. Os dois eram as figuras centrais de um ciclo de conferências realizado em Davos, em março de 1929, cinco anos depois da publicação do romance de Thomas Mann. Quando eles entraram no auditório, o público deve ter pensado instintivamente nos dois personagens de "A Montanha Mágica": Heidegger tinha algo de Naphta e Cassirer lembrava Settembrini.

Existência e cultura

Não era inteiramente exato comparar Cassirer com Settembrini, porque o iluminismo do autor da "Filosofia das Formas Simbólicas" era menos ingênuo que o do livre-pensador italiano. Nem era muito justo comparar Heidegger com Naphta, porque, embora tanto o filósofo de verdade quanto o personagem de ficção tivessem estudado num colégio de jesuítas, Naphta era um fanático religioso e Heidegger tinha abandonado o catolicismo. Além disso, algumas das convergências mais impressionantes entre ambos, como a crítica à democracia, ao humanismo, à modernidade e à técnica, só se tornariam plenamente visíveis anos depois.

Não importa. Naquela manhã de março, o público tinha razão em pressentir que a montanha mágica ia servir de cenário para um novo duelo -um duelo entre a grande tradição cultural européia, impregnada pelos valores da Renascença e da Ilustração, e uma filosofia da existência, que estava contribuindo para solapar essa cultura.

Ernst Cassirer


O tema do debate era Kant. Mas no fundo Kant foi mais um pretexto para que os dois contendores articulassem suas respectivas filosofias. Heidegger fez de Kant o precursor de uma ontologia da finitude, e Cassirer o transformou no precursor de uma filosofia das formas simbólicas. É que não era Kant que estava em jogo, e sim a oposição entre a existência e a cultura.

Na perspectiva da filosofia da existência, a de Heidegger, o que interessa é a origem, a analítica do "Dasein", aquilo que constitui a essência de um ente condenado à inquietação, à angústia, à morte. Na perspectiva da filosofia da cultura, a de Cassirer, o que interessa não é o ponto de partida, a origem, e sim o ponto de chegada, a cultura, o conjunto das objetivações por meio das quais o homem supera seus limites: a linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência.

Para Heidegger, o mundo da cultura é um falso refúgio. A linguagem, por exemplo, pode funcionar como simples "tagarelice", "Gerede". A objetividade da ciência se torna problemática se levarmos em conta que toda verdade é relativa ao "Dasein". A cultura, em geral, é uma falsa transcendência, a transformação do mundo pré-reflexivo do "Zuhanden" no mundo artificial do "Vorhanden", dominado pelas abstrações vazias, pela perda de concreção.

Por tudo isso, a cultura não pode ser vista como um asilo legítimo, uma verdadeira casa do "Dasein", onde ele possa consolar-se de seu desamparo, de seu estar-jogado-no-mundo, de sua "Geworfenheit". Ao contrário, ela é uma anestesia, que nos condena à inautenticidade, ao não-reconhecimento de nossa finitude e de nosso ser-para-a-morte. A rigor, o mundo da cultura faz parte daquilo no qual fomos "jogados" ao nascer e, nesse sentido, não constitui algo para o qual devamos caminhar, mas algo de que devemos nos libertar.

Não, responde Cassirer. A cultura não afasta do concreto, pois a realidade humana é sempre culturalmente mediatizada, e estamos tanto mais próximos do real quanto mais agimos no universo das formas simbólicas. O conceito heideggeriano de verdade é relativista, enquanto a filosofia das formas simbólicas permanece fiel ao ideal cognitivo de Kant, que queria salvar a objetividade e a universalidade do conhecimento, e mesmo vai além de Kant, porque pela imersão na cultura o homem tem acesso ao "mundus intelligibilis", que Kant julgava inalcançável. Quanto à linguagem, longe de ser uma simples "tagarelice", ela é o instrumento pelo qual o homem se individualiza, no momento em que estabelece uma relação intersubjetiva com seus semelhantes.

O debate se encerrou com a pergunta: qual a tarefa da filosofia? Para Cassirer, ela deveria ajudar o homem a libertar-se da angústia e do medo da morte, dentro de um universo cultural que estava a seu alcance modificar. Para Heidegger, ao contrário, a tarefa consistiria em "entregar radicalmente o homem à sua angústia". Era preciso "jogá-lo de volta" à sua condição original, fazendo-o enfrentar a "dureza do destino".

O duelo entre Heidegger e Cassirer opôs os que desprezam a cultura como simples "tagarelice" aos que valorizam a cultura.

Um certo ar de família

O terceiro duelo deu-se e continua a dar-se entre as facções distintas que se confrontam no Fórum Econômico Mundial, promovido desde 1971. O encontro reúne empresários, intelectuais e representantes governamentais, e, embora se tenha a impressão de que no fundo todos os participantes são partidários das mesmas idéias, consubstanciadas num consenso neoliberal favorável à globalização, seria absurdo desconhecer a existência de modulações diversas nas diferentes posições. Assim, alguns países em desenvolvimento negam de todo as vantagens da globalização, enquanto os franceses só a aceitam sob fortes reservas.

Simplificando muito, portanto, podemos dizer que o duelo se dá, grosso modo, entre os advogados duros e puros da globalização, como os Estados Unidos, que advogam uma política de "laissez-faire", e os que defendem uma regulamentação internacional capaz de disciplinar os fluxos de capital especulativo.

Se examinarmos em conjunto esses três duelos, verificaremos entre eles um certo ar de família. O duelo entre Naphta e Settembrini opôs os que acreditam em forças impessoais que escapam do controle individual aos que acreditam na democracia e no progresso ético da humanidade. O duelo entre Heidegger e Cassirer opôs os que desprezam a cultura como simples "tagarelice" e exaltam "a dureza do destino" aos que valorizam a cultura e vêem nela uma perspectiva de transcendência. O duelo entre globalistas e antiglobalistas opõe os que vêem no mercado uma fatalidade à qual os homens devem submeter-se e os que estão convencidos da capacidade do homem de criar uma economia mais humana.

Simplificando ao extremo, os três duelos são variantes de um só combate, que se trava entre os que acham que o mundo pode ser mudado pela razão, pela política e pela cultura, e os que apostam na perenidade do status quo, seja ele definido em termos existenciais, em que ele assume o rosto do destino, seja em termos econômicos, em que ele assume o aspecto do capitalismo global.

Mas, se observarmos mais de perto o terceiro duelo, verificaremos que ele se parece menos com um duelo que com uma exibição de esgrima para distrair a platéia. No fundo, sabemos que são os conservadores que estão ganhando a partida, mas eles mascaram sua vitória incorporando gestos e palavras dos adversários vencidos. No combate entre Settembrini e Naphta, foi este que venceu, mas os participantes do Fórum Econômico exprimem a filosofia fatalista do jesuíta com a retórica de Settembrini, ao descreverem a globalização como o triunfo planetário da ciência e da tecnologia e como um passo decisivo em direção à união da humanidade.

Do mesmo modo, Heidegger ficou com a última palavra, porque a globalização é vista como a sorte que nos coube desde o nascimento, como a face atual da "Geworfenweit", do estar-jogado-no mundo, do desamparo original, mas essa condição é expressa pelos membros do Fórum Econômico na linguagem de Cassirer, como a realização histórica do projeto iluminista de emancipação por meio do progresso.

No romance de Thomas Mann, a atmosfera da montanha mágica acaba se tornando rarefeita, porque está demasiadamente longe das lutas reais que se travam no mundo exterior. Por isso, depois de sete anos o herói volta à planície, aos conflitos e reivindicações que se entrechocam na planície. Não seria esse, um pouco, o papel de Porto Alegre? Não seria o Fórum Social uma resposta da planície, da vida real, da sociedade civil mundial, às decisões tomadas na montanha mágica, entre gelos eternos, por megaempresários e por megagovernos? Se é assim, têm razão os que falam num duelo entre Davos e Porto Alegre. Mas não se trata bem de um novo duelo, e sim de uma nova geografia.

Os direitos da vida, que antes eram defendidos na própria cidade de Davos, estão hoje sendo defendidos em Porto Alegre. No entanto é o mesmo combate. Hoje como ontem, é um duelo entre os que aceitam passivamente a "dureza do destino" e os que atribuem ao homem o poder de construir racionalmente seu futuro.

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