Entrevista especial com Mario Fleig
A pós-modernidade vive uma crise de legitimidade da autoridade, e o lema da Revolução Francesa pode nos dar pistas para compreender a “crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei no chefe, no pai”, frisa o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele acentua que tal crise de legitimidade da autoridade “tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite”. Segundo ele, “o que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares”. O gozo sem limites como fonte de autoridade para um sujeito se expressa na “adição aos objetos”, e o que passa a “valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor”.
Mario Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que medida o desejo e a felicidade como imperativos fundamentam a violência na pós-modernidade?
Mario Fleig - A felicidade sempre foi e continua sendo a aspiração que determina a existência do homem ocidental, e talvez de qualquer ser humano, independente de sua cultura. Contudo, o ideal de felicidade se formula de maneiras muitos diversas, e isso depende de cada cultura e seu sistema de crenças e representações. Temos indicações de que a modernidade, e sua radicalização no que se passou a denominar de pós-modernidade, se caracteriza pela implementação de mudanças radicais nos ordenadores sociais precedentes que definiam o que se denomina de modo genérico de modelo tradicional. Ora, sabemos que os ideais que predominam em uma cultura determinam os valores prevalentes, tendo efeitos na organização da cultura e na estruturação das subjetividades. Assim, podemos supor que a modernidade e a pós-modernidade se caracterizam por mudanças radicais nos ideais partilhados, que por sua vez têm efeitos sociais e subjetivos marcantes.
Ora, o projeto de fazer uma sociedade orientada pela razão é o que caracteriza a modernidade. A razão se coloca em exercício essencialmente pelo caminho da crítica, de modo que os três grandes princípios ordenadores das sociedades não-modernas - hierarquia, tradição e holismo - foram postos abaixo. A difusão dos ideais da modernidade, firmando-se progressivamente pela crítica aos segmentos da sociedade tradicional, somando-se aos avanços das ciências modernas e os inventos tecnológicos decorrentes, faz com que aumentem as fileiras de adeptos, cujo entusiasmo pelos novos ideais conflui na irrupção das diversas revoluções sociais que se dão até nossos dias, somadas às incessantes revoluções científicas e tecnológicas. Dentro da diversidade que caracteriza cada uma das revoluções sociais, poderíamos considerar que o lema central da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, indica a crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei, no chefe, no pai. Assim, na pós-modernidade podemos ver os limites extremos da crise legitimidade de qualquer instância que queira fazer o exercício de autoridade. A crise de legitimidade da autoridade tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite. Ser educado e subjetivado evitando qualquer interdição tende a produzir sujeitos incapazes de dialetizar o ódio que a introdução da cria humana na linguagem produz. Ao ser introduzido na fala, o sujeito é confrontado com a falta que a interação com o outro lhe apresenta, resultando no surgimento do ódio contra aquele que lhe impõe a falta e o limite. Falta que se apresenta na alteridade do semelhante e falta estruturalmente presente na própria linguagem. Ser introduzido no campo da linguagem e na função fala produz no cerne do faltante uma ferida incurável. Esta ferida é denominada por Freud de desejo.
A pós-modernidade vive uma crise de legitimidade da autoridade, e o lema da Revolução Francesa pode nos dar pistas para compreender a “crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei no chefe, no pai”, frisa o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, ele acentua que tal crise de legitimidade da autoridade “tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite”. Segundo ele, “o que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares”. O gozo sem limites como fonte de autoridade para um sujeito se expressa na “adição aos objetos”, e o que passa a “valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor”.
Mario Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que medida o desejo e a felicidade como imperativos fundamentam a violência na pós-modernidade?
Mario Fleig - A felicidade sempre foi e continua sendo a aspiração que determina a existência do homem ocidental, e talvez de qualquer ser humano, independente de sua cultura. Contudo, o ideal de felicidade se formula de maneiras muitos diversas, e isso depende de cada cultura e seu sistema de crenças e representações. Temos indicações de que a modernidade, e sua radicalização no que se passou a denominar de pós-modernidade, se caracteriza pela implementação de mudanças radicais nos ordenadores sociais precedentes que definiam o que se denomina de modo genérico de modelo tradicional. Ora, sabemos que os ideais que predominam em uma cultura determinam os valores prevalentes, tendo efeitos na organização da cultura e na estruturação das subjetividades. Assim, podemos supor que a modernidade e a pós-modernidade se caracterizam por mudanças radicais nos ideais partilhados, que por sua vez têm efeitos sociais e subjetivos marcantes.
Ora, o projeto de fazer uma sociedade orientada pela razão é o que caracteriza a modernidade. A razão se coloca em exercício essencialmente pelo caminho da crítica, de modo que os três grandes princípios ordenadores das sociedades não-modernas - hierarquia, tradição e holismo - foram postos abaixo. A difusão dos ideais da modernidade, firmando-se progressivamente pela crítica aos segmentos da sociedade tradicional, somando-se aos avanços das ciências modernas e os inventos tecnológicos decorrentes, faz com que aumentem as fileiras de adeptos, cujo entusiasmo pelos novos ideais conflui na irrupção das diversas revoluções sociais que se dão até nossos dias, somadas às incessantes revoluções científicas e tecnológicas. Dentro da diversidade que caracteriza cada uma das revoluções sociais, poderíamos considerar que o lema central da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, indica a crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei, no chefe, no pai. Assim, na pós-modernidade podemos ver os limites extremos da crise legitimidade de qualquer instância que queira fazer o exercício de autoridade. A crise de legitimidade da autoridade tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite. Ser educado e subjetivado evitando qualquer interdição tende a produzir sujeitos incapazes de dialetizar o ódio que a introdução da cria humana na linguagem produz. Ao ser introduzido na fala, o sujeito é confrontado com a falta que a interação com o outro lhe apresenta, resultando no surgimento do ódio contra aquele que lhe impõe a falta e o limite. Falta que se apresenta na alteridade do semelhante e falta estruturalmente presente na própria linguagem. Ser introduzido no campo da linguagem e na função fala produz no cerne do faltante uma ferida incurável. Esta ferida é denominada por Freud de desejo.
Desejo e interdição imposta pela Lei
Ora, podemos atribuir a Freud a introdução na linguagem corrente de diversos termos, como recalque, desejo, complexo etc., que tendem então a perder sua conotação psicanalítica específica. O desejo, para Freud, diz respeito ao que está interditado e por isso mesmo tende a ser recalcado e perdura no sujeito de modo inconsciente. Assim, o desejo se estrutura a partir da interdição imposta pela Lei, ou seja, a interdição indica para o sujeito que algo lhe falta e ao qual não poderá ter acesso. Deste modo, o desejo radical é sempre em vão e contudo não deixa de pulsar no sujeito, ou seja, o desejo inconsciente é indestrutível. O que se passa com o desejo na nova economia psíquica próprio do neo-sujeito? Podemos observar uma tendência em se produzir uma equiparação entre a vontade de tudo gozar e o que passa então a ser denominado de desejo, de modo que o desejo como relativo ao impossível que se apresentaria como interditado se transmuta em desejo do que não pode ser negado. Esta equiparação se soma à equivalência que a economia de consumo induz ao consumidor entre o objeto de consumo e o suposto objeto de desejo. Deste modo, o neo-sujeito não suporta desejar em vão, mas tem uma vontade de vontade de tudo querer gozar, sem que nenhuma impossibilidade se interponha, de modo incessante e imediato.
Direito ao gozo
Assim, atribuímos aos novos imperativos que caracterizam a nova economia psíquica traços que especificam a violência em nossos dias. Encontramos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, nos ideais da revolução, introduzidos na figura do direito do cidadão, uma nova posição a respeito do usufruto dos direitos, isto é, há um deslocamento na posição do sujeito quanto ao gozo em relação à sociedade anterior, ao antigo regime. Segundo esta Declaração, as únicas causas das desgraças do mundo são o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem. Com isto fica demarcado que a pretensão da declaração dos direitos do homem e do cidadão tem como finalidade pôr fim à infelicidade humana. O primeiro passo de tal empreendimento é, segundo o “Art. 1o. - A meta da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”. Esta garantia fundamental para a consecução do gozo dos direitos de cada um é complementada no “Art. 23 - A garantia social consiste na ação de todos para assegurar a cada um o gozo e a conservação de seus direitos: esta garantia repousa sobre a soberania nacional”.
Podemos ler os ideais revolucionários da consecução da “felicidade comum” através do acesso ao “gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”, garantidos pelo governo na perspectiva de que aqui se encontra implicitamente a afirmação irrestrita do direito ao gozo que diz respeito a cada um. É esta suposição que passa a reordenar os ideais da cultura moderna e pós-moderna que situa o sujeito na posição de reivindicante: cada um de nós, tomado na suposição de um direito ao gozo prometido pelo gozo do direito passa a exigir-se e exigir do social o gozo que cabe a cada um na vida, e ainda por acréscimo, um gozo suposto e almejado sem falhas. É o ideal máximo de nossa cultura: realizar neste mundo aquilo que era anteriormente apenas uma promessa para a outra vida.
A afirmação generalizada do direito ao gozo, na forma como é veiculada em nossa cultura, determina consequências subjetivas e culturais de amplo alcance. Podemos ver estas consequências no modo como alguém responde às perguntas referenciais da vida, relativas ao que seja a honra e a dignidade, ou seja, o que seja uma vida realizada. Em outras palavras, a supressão da distância entre o gozo e o desejo pela progressiva supressão de qualquer forma de proibição, somada à destituição da legitimidade das instâncias de poder, se coadunam com um deslocamento radical da autoridade, ou seja, dos ideais. Se o ideal de gozar aqui e agora, a qualquer preço e sem limite se torna a fonte de autoridade para um sujeito, vemos que se opera uma substituição da autoridade tradicional (o pai, o rei, Deus, a Lei) pela autoridade anônima alocada no objeto que faz gozar. Dentro desta lógica, podemos compreender por que a adição aos objetos que produzem gozo tende a se generalizar e dominar o mercado de consumo.
Violência estrutural
Neste contexto, podemos supor que as novas formas de violências específicas da pós-modernidade seriam um efeito tardio e inesperado da Modernidade, visto que impediria que a violência estrutural, o ódio própria da condição humana, pudesse ser dialetizada, levando os sujeitos e os grupos a abandonarem o campo da fala e da linguagem, em troca da imersão no imediato e no instantâneo. A sustentação de tal hipótese implica: afirmar a tese da existência de uma violência estrutural da condição humana, que se apresenta nos sujeitos e nos grupos por meio da diferença simbólica entre gerações e lugares ocupados, sendo a autoridade simbólica o reconhecimento desta diferença. A subversão e deslegitimação do lugar simbólico da autoridade, decorrente da confusão entre o ideal democrático e o que se pode denominar de democratismo, impede, por não ter mais a quem endereçar a violência, o conflito que permitiria a dialetização da violência estrutural (equivalente à pulsão de morte freudiana), destinando a geração jovem a abandonar o exercício do aprendizado do limite. Em lugar do embate com a geração precedente, engendra-se uma violência suplementar, que especifica aquela que encontramos hoje.
IHU On-Line - Por que a promessa de felicidade da pós-modernidade coincide com o desaparecimento do lei, daquilo que fundamenta o limite?
Mario Fleig - A promessa de felicidade da pós-modernidade acena com o gozo imediato e sem falhas, seguindo os ditames da lógica infernal imposta pelo imperativo de gozar a qualquer preço e sem limite. Este imperativo, ordenador de uma nova economia psíquica em consonância com a lógica da economia neoliberal, se coaduna com a grande confusão entre a crítica moderna ao modelo patriarcal e a destruição do lugar de autoridade. Em outras palavras, a crítica e destruição do modelo que legitimava a autoridade patriarcal, que se impunha de modo vertical, e sua substituição pelo modelo horizontal, avesso a qualquer dessimetria de lugares e poderes, resultou em uma confusão entre a autoridade patriarcal, ancorada na equiparação entre o lugar de autoridade e seu ocupante, e a autoridade resultante do próprio exercício da fala e da linguagem. Ou seja, a confusão entre a transcendência patriarcal e a transcendência que se impõe a partir das leis da linguagem se configura em uma confusão entre democratismo e democracia. A crítica ao modelo patriarcal, benefício maior do modelo crítico introduzido pela Modernidade, não pode coincidir com a destruição do lugar de autoridade.
Crise da lei simbólica
Aqui poderíamos multiplicar os exemplos de valores até há pouco unanimemente reconhecidos e agora profundamente subvertidos em consequência do abandono da referência transcendente. O que não está mais à disposição é uma legitimidade que reconheceria a prevalência de tal ou tal ponto de vista. Isso indica que, além da crise ou da ausência de referências, é a legitimidade da própria referência que se tornou inacessível. Esta crise de legitimidade do lugar de autoridade e de poder leva a uma crise da lei simbólica, que se ancorava no efetivo exercício da fala e da linguagem. O que pode autorizar alguém, uma fala que tenha função de estabelecer uma proibição? Já não sabemos, e até uma nova lei, sancionada em todas as instâncias reconhecidas, precisa aguardar o consentimento daqueles que a ela estão submetidos, para então sabermos se ela terá legitimidade, ou não.
O que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares. Ou seja, uma figura indicava o lugar de exceção, constituindo-se o fundamento de legitimidade das instâncias que estabeleciam o limite, que assim sempre se impunha de modo heterônomo. Ora, o desaparecimento do lugar de exterioridade legitimado pela transcendência – como ele o era no que se chama sociedade religiosa – leva a espontaneamente acreditar que é possível nos desembaraçar de qualquer diferença de lugares e então recusar qualquer prevalência que não seja aquela que se mantém por minha única e exclusiva decisão.
Ora, pelo fato do estabelecimento de uma norma necessária para qualquer vida social, um lugar diferente se reorganiza imediatamente. Lugar diferente imanente, sem dúvida, mas ainda assim lugar diferente. Mas, na falta desse discernimento, nessa passagem de uma transcendência a uma imanência, é a legitimidade de ocupar um lugar qualquer diferente que está invalidada, isso acarretando na geração seguinte a erosão do processo pelo qual se transmite o consentimento à existência da diferença de lugares. E, se tal é o caso, compreende-se que isso torna tanto mais difícil o alcance de uma norma comum imanente, visto que essa última, não podendo se apoiar na legitimidade de uma autoridade transcendente, tem necessidade de um reconhecimento unânime para poder funcionar. Isso não pode então ter outro efeito que um embalo no qual a legitimidade em ocupar um lugar diferente – de fato, a autoridade – é cada vez mais colocada em situação difícil.
Poder do objeto como nova forma de autoridade
Ora, a erosão da legitimidade do lugar do pai, lugar terceiro e exógeno à relação imediata entre a criança e sua mãe, corroborada pelo funcionamento do discurso da ciência que se legitima na pura racionalidade do encadeamento de enunciados sem sujeito, tem como efeito social e subjetivo a instauração de outra forma de autoridade, alocada então no poder do objeto. O que então passa a valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor. Sabemos que o objeto específico da Modernidade é aquele resultante da unificação do campo dos entes, cujo resultado é o objeto passível de medição e acúmulo. Este novo objeto tem como propriedade maior seu caráter de infinitização, ou seja, ele é destituído de limite. Assim, o que passa a comandar a todos nós, sujeitos pós-modernos, é a aspiração ao usufruto do neo-objeto. Ele nos comanda a aspirar ao gozo sem limite e a qualquer preço. Contudo, em algum lugar encontraremos o limite, nem que seja o choque que se produz no encontro com o outro. Atualmente este choque faz com que se ouça um som parecido com “crack”. O efeito em geral é rapidamente visível: o consumidor não mais consegue deixar de obedecer ao comando da nova autoridade, impessoal, muda e repetitiva, na busca de manter um gozo ininterrupto. A entrada no contínuo deste gozo se chama morte, efeito maior da violência específica da nova felicidade. A única lei que impera é a afirmação de que não há Lei.
IHU On-Line - Por que a concepção de gozar sem limite se transforma em violência?
Mario Fleig - Atualmente se multiplicam os relatos de usuários de crack que começam a fumar uma pedra atrás da outra e quando o estoque se esgota vão em busca de mais, passando por cima de qualquer obstáculo que se interponha à retomada do estado de euforia almejado. É certo que a remoção dos obstáculos não se fará sem uma violência desmedida e insana. Não há mais medida que possa conter a busca do paraíso alucinado. O bem ou o belo são completamente incapazes de constituir alguma barreira ao desvario em que se precipita o sujeito. Caso ele não seja contido física ou quimicamente, derradeira barreira será o gozo perpétuo que a morte lhe concederá. Assim, a violência, que atinge de modo brutal os objetos e os semelhantes, revelará seu alvo principal: violência contra si mesmo.
Em decorrência das consequências devastadoras do gozo sem limite torna-se relevante a investigação dos modos de produção de limite para um grupo humano e para um sujeito. Lacan reconheceu a tese freudiana do declínio da função paterna em nossa cultura como correlativa ao surgimento do mal-estar na civilização. Quando a referência à instância terceira (representada pelo Pai e seus correlatos) deixa de ter prevalência, surgem as condições para o aparecimento, tanto da desagregação do tecido social, quanto da desestrutura psíquica. Em seu lugar, podemos ver o surgimento de uma nova economia psíquica, na qual ocorre um deslocamento do lugar da autoridade. Se antes ela estava localizada nos representantes do pai, agora cada vez mais quem passa a comandar os sujeitos é o objeto a ser consumido.
Novas patologias
As novas patologias tomam diferentes direções, dentre as quais ressaltamos duas: a primeira diz respeito à facilitação para o surgimento de irrupções de paranóia social e individual, correlativas ao enfraquecimento dos operadores da função do terceiro. Dito de outro modo, presenciamos um incremento de relações duais, sem a intermediação do terceiro simbólico, ou seja, dispensando a mediação da lei. O efeito imediato da paranóia, tanto social quanto individual, é a instalação da relação “ou eu, ou ele”, ou seja, o conflito e jogo de forças feito diretamente com o semelhante, sem nenhuma possibilidade de haver o recurso a uma instância mediadora, enfim, sem nenhuma lei possível, a não ser a força na forma da violência. O sujeito se encontra à mercê do arbítrio da força do semelhante. A segunda aparece no incremento dos laços sociais organizados em torno da instrumentalização do outro, cujo modo mais flagrante na atualidade se constata na organização das trocas econômicas, regidas pela “lei de sempre levar vantagem”, deflagrador, provavelmente, da espiral da corrupção. Essa forma de patologia psíquica já havia sido descrita por Freud com a denominação de perversão.
IHU On-Line - A morte seria o único interposto nessa relação de desejo e violência? Por quê?
Mario Fleig - A relação com o pai, sua função nomeante, é essencial, na perspectiva psicanalítica, para apreendermos que a fisiologia do desejo humano é feita de modo que uma renúncia ao gozo imediato e absoluto é necessária para poder desejar. O sujeito deve consentir em perder o gozo do objeto inteiramente satisfatório, metaforizado pela mãe. É em função da proibição do incesto que se organiza o que Lacan denomina o caráter fundamentalmente decepcionante da ordem simbólica. Deste modo, o pai se apresenta como aquele que ordenará essa renúncia ao gozo desmedido e absoluto, na medida em que ele está em jogo apenas como representante da Lei da linguagem. É a linguagem e suas leis que tornam o incesto impossível. Para habitar o mundo mediatizado pelas palavras, o sujeito teve de consentir em perder o gozo imediato das coisas. Paradoxalmente, a natureza do homem é, então, ter perdido o natural. O uso da linguagem indica a necessária passagem pela alteridade para constituir a subjetividade, o que implica a diferença e disparidade entre os sexos. Não há um sexo sem o outro, e consentir com a impossibilidade de haver apenas um sexo ou haver paridade absoluta com o outro constitui o suporte do estabelecimento do limite, ou seja, que se constitua borda em torno da falta estruturante do desejo. Em outras palavras, a identidade humana é inteiramente construída na alteridade.
Subjetividades inacabadas
Ora, quando o bom funcionamento da linguagem falha, e o consentimento em se submeter à perda que falar implica é recusado, temos o aparecimento de subjetividades inacabadas, que não puderam se confrontar com o limite que a consistência da alteridade impõe. Estes sujeitos ou neo-sujeitos tenderão a buscar o limite em um sistema aberto, ou seja, sem o auxílio da alteridade que venha sinalizar o ponto do limite. Além disso, tomados na aspiração de gozar sem limite, encontrarão o limite demarcado pelo impossível radical: a morte. Antes disso, encontramos os equivalentes da morte em formas de se bater, bater no outro, bater nos objetos, descontrole corporal etc. Estas formas vão desde a hiperatividade infantil (que pode ser uma forma de depressão infantil), denominada de Transtorno de Déficit de Atenção (TDA), até o descontrole adolescente que se evidencia em forma de bater e se bater. Acresce-se a isso a potencialização desta vontade sem limite pelos meios tecnológicos que torna a aspiração à morte ainda mais violenta. Todos sabemos o que pode acontecer se um sujeito que se bate e bate nos outros e nos objetos tiver à sua disposição substâncias que o turbinam e uma arma de repetição.
IHU On-Line - Em que medida a crise de legitimidade apontada por Arendt e Habermas explica a irrupção da violência em nossa época?
Mario Fleig - A crise de legitimidade apresenta, por exemplo, efeitos deletérios no cotidiano da vida coletiva quando o funcionamento não se ancora no estabelecimento da diferença dos lugares e não mais implica no reconhecimento espontâneo, por todos, da prevalência de um desses lugares sobre os outros. A diluição da legitimidade de um lugar diferente dos outros, que garanta a legitimidade e a autoridade de quem o ocupe tem como resultado a paralisia do projeto coletivo ou o retorno à lei do mais forte.
Hannah Arendt caracterizou a crise de legitimidade como sendo a condição de vida em um domínio político sem a autoridade nem o saber concomitante de que a fonte da autoridade transcende o poder e aqueles que estão no poder se encontram novamente confrontado, sem a confiança religiosa em uma origem sagrada, nem a proteção de normas de conduta tradicionais, com os problemas elementares do convívio dos homens.
Frente ao dilema gerado pela crise de legitimidade, alguns almejam o retorno à autoridade de ontem, e até mesmo preconizam o estabelecimento de uma autoridade forte, o passo será tanto mais rapidamente transposto que aquele que sofre da falta de reconhecimento compartilha espontaneamente a ideologia ambiente da exigência de paridade democrática e, não vê, por conseguinte, nenhuma correlação entre a diluição da autoridade e o mal-estar de que é o objeto.
Arendt examina a questão no caso exemplar do sistema totalitário, como foi o sistema nazista, no qual o sujeito se encontra em dificuldade pelo fato do desaparecimento do que funda a legitimidade, ou seja, a terceiridade. Para ela, o regime totalitário explodiu a própria alternativa sobre a qual repousava todas as definições da essência dos regimes na filosofia política: a alternativa entre regimes sem leis e regimes submetidos a leis, entre poder legítimo e poder arbitrário. Com o regime totalitário, estamos em presença de um gênero de regime totalmente diferente, pois ele desafia todas as leis positivas, visto que jamais opera sem ter a lei por guia e também não é arbitrário, pois pretende obedecer rigorosamente e sem equívoco a essas leis da Natureza e da História das quais todas as leis positivas sempre supostamente se originaram. Não podemos aqui discutir o alcance da proposta de Arendt, que nos indica que o sistema totalitário como aquele que teria substituído a evaporação da autoridade, ou seja, o desaparecimento da legitimidade do terceiro. A produção característica do sistema nazista foi o campo de concentração, imposição de uma ordem de ferro, que não deve ser considerada uma anomalia do passado, mas antes como a matriz do espaço político no qual ainda vivemos.
IHU On-Line - As figuras de autoridade foram destruídas na pós-modernidade, mas o lugar por elas ocupado continua a existir. Como é possível operar esses lugares?
Mario Fleig - Somos tomados em uma confusão entre a crítica radical ao autoritarismo e ao modelo patriarcal e a suposição de que teria havido a destruição do lugar de exceção que legitima o exercício da autoridade e do poder, ou seja, a suposição de que estaríamos liberados da referência paterna. Ligado a isso, também ocorre uma recusa de que estejamos submetidos à linguagem e ao fato que o objeto capaz de causar o nosso desejo e satisfazê-lo seja um objeto radicalmente perdido. Ora, a disparidade de lugares se impõe pelas leis da própria linguagem. Quando alguém toma a palavra e a sustenta, produz-se uma disparidade entre aquele que fala e aquele que ouve. Contudo, o lugar prevalente não está colado ao falante, visto que no momento seguinte ele pode ceder este lugar para outro e vice-versa. O que sabemos é que o não reconhecimento do lugar de exceção e a autoridade de quem o ocupa tende a gerar uma grande confusão no convívio humano, que não pode ser bem resolvido pelo consenso ou pelo contrato. O problema que enfrentamos hoje na vida com os outros é que solução encontrar que não seja o restabelecimento da autoridade de ontem, mas que, ao contrário, reconheça a diferença dos lugares e a prevalência do lugar de exceção, e não recuse o impossível a que este nos permite – mas, também, nos intima – a nos confrontar.
Lacan, em sua interrogação sobre o que seria uma ética da psicanálise, afirmou em 1965, em seu seminário Os problemas cruciais para a psicanálise, que “ser psicanalista é uma posição responsável, a mais responsável de todas, pois que ele é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo.” Portanto, é para a responsabilidade de um novo convívio entre os homens que estamos sendo convocados.
IHU On-Line - Por que não há suficiente endereçamento do ódio que se produz ao terceiro? O que quer dizer quando afirma que esse ódio não é dialetizado?
Mario Fleig - Freud postulou que o amor e o ódio são dois integrantes fundamentais da formação psíquica de cada sujeito, sendo que o segundo tende a não ser reconhecido ou até mesmo posto para baixo do tapete, além de ser mais primitivo do que o amor.
Jean-Pierre Lebrun, em O futuro do ódio (Porto Alegre: CMC, 2008), retoma a questão do ódio em razão da afirmação de Freud de que o ódio seria mais originário do que o amor. Lacan esclarece que o motivo fundamental dessa precedência deve-se ao fato que o ódio é sempre primeiramente o ódio contra o Simbólico, que se instaura com um furo na consistência narcísica, ou seja, ele se produz a partir da introdução da criança na fala e na linguagem. Assim, o ódio se endereça em primeiro lugar contra aquele que ocupa o lugar de terceiro, ou seja, o pai. Se hoje assistimos a evaporação da legitimidade do lugar de autoridade e igualmente de seu ocupante, o ódio tende a se tornar impessoal e sem endereçamento, o que impede que ele possa sofrer uma adequada elaboração e ser sublimado. Pelo contrário, ele tende a perdurar em estado bruto, irrompendo ao menor sinal de oposição ou limitação, na forma de desmedida violência.
IHU On-Line - Em que aspectos podemos dizer que o discurso da ciência é um dos fatores que sedimenta a impessoalização da fala e, por conseguinte, da desresponsabilização do sujeito?
Mario Fleig - Quando consideramos os efeitos sociais e psíquicos da ciência moderna passamos do campo da epistemologia das ciências para o âmbito do laço social e da vida cotidiana, no que então denominamos, seguindo Saussure e Lacan, de discurso. Discurso, neste sentido específico, se refere àquilo que constitui laço com o outro, ou seja, o que permite estabelecer relação com o semelhante e permite inscrever subjetiva e socialmente as interdições e as impossibilidades. A linguagem da ciência é imprópria para tal função, visto que de saída, especialmente a linguagem da ciência moderna, requer a forclusão do sujeito da enunciação, buscando-se então o encadeamento de enunciados acéfalos e rigorosamente justificados. A ciência moderna, com base na invenção do genérico realizada por Sócrates, se ancora na redução da totalidade dos entes diversos ao objeto unificado como res extensa, que assim se torna apto para que seja feita a matematização da natureza. A mensuração do ente dispensa, de saída, o lugar e a função do sujeito implicado em cada enunciado.
Mas, então, como se poderia falar de “discurso da ciência”, visto que a linguagem científica não faz laço social? Parece contraditório, contudo a denominação “discurso da ciência” faz referência aos efeitos da linguagem científica na vida cotidiana. Podemos dizer que a linguagem objetiva da ciência moderna tende a invadir e colonizar o mundo vivido. O efeito mais surpreendente da entrada das linguagens formais na vida cotidiana é a expansão dos entendimentos da vida a partir de linguagem impessoais, ou seja, conjunto de enunciados sem sujeito e que dispensam a função nomeante do pai (a autoridade de quem ocupa um lugar de exceção), ao mesmo tempo em que promovem a anulação da responsabilização do sujeito que ali estaria implicado. A responsabilidade passa a ser do sistema, mas como este é acéfalo, não há mais ninguém a quem imputar a responsabilidade. Não temos mais chefes, mas apenas gestores.
Em contrapartida, temos que reconhecer que, nas práticas sociais vigentes na modernidade, sempre foram as grandes tradições religiosas que mantiveram o exercício da fala engajada, apostando no compromisso da palavra empenhada. E é precisamente desse elemento nada científico dessas tradições que Freud faz uso em sua descoberta. Por isso, podemos afirmar que Freud, como o reconhece Lacan, reintroduz no campo da ciência o sujeito da enunciação, que dali havia sido banido.
IHU On-Line - E por que os enunciados da ciência não produzem laço social?
Mario Fleig - Como já adiantei acima, posso dizer em outras palavras que oferecer um presente para a pessoa amada, por exemplo, utilizando termos científicos resultará em uma impossibilidade de constituir um signo de amor. Se ofereço cravos vermelhos à minha amada e lhe digo para receber o vegetal de tal espécie certamente que causarei um espanto. Lacan introduz a distinção entre a função do pai como nomeante e o “nomear para”, salientando que o Nome-do-Pai está diretamente ligado ao amor, ao passos que o “nomear para” tem a função de estabelecer a ligação entre enunciados. O discurso da ciência encontra seu efeito maior naquilo que Lacan denomina de discurso do capitalismo, cujo operador maior é o dinheiro, o objeto mais unificado que conhecemos e que funcionam na mais completa forclusão do sujeito. O dinheiro circula de modo a apagar todos os vestígios do sujeito que ela pudesse estar. Acontece de às vezes recebermos notas de dinheiro com as marcas de usuários precedentes, mas que não fazem diferença alguma. Podemos evocar que Lacan afirma, em O saber do psicanalista, que “todo discurso que se aparenta com o capitalismo deixa de lado o que nós denominaremos simplesmente as coisas do amor”.
O neolibealismo, com seus corolários de globalização e de promessa de gozo sem limites e para todos, produz efeitos na própria economia e igualmente efeitos subjetivos importantes. Na realidade, se trata de mutações nas formas de trocas entre os seres humanos. Ora, desde sempre sabemos que aquilo que organiza o social, e dentro deste, os sujeitos, é o sistema de trocas, que nunca se restringe apenas às trocas de bens, ou seja, as trocas econômicas. Classicamente, como nos ensinaram os sociólogos e antropólogos, os povos se organizam em torno de três formas relacionadas de trocas: troca de bens (economia), trocas de mulheres (relações de parentesco) e troca de palavras (lei simbólica). Podemos supor que a primazia da troca de bens, desconectada das duas outras, produz efeitos desorganizadores dos discursos sociais, ou seja, provoca patologias no laço social, com efeitos psíquicos salientes. Em razão disso, podemos levantar a hipótese de que a condição pós-moderna tem uma nova economia psíquica correlata, que poderia ser caracterizada em uma frase: o imperativo de gozar a qualquer preço, não importa qual, mesmo que seja ao preço do outro.
Reintrodução do sujeito na ciência moderna
Freud contribui e acompanhou de perto o surgimento de quatro grandes inovações do final do século XIX: a descoberta do poder anestésico da cocaína, precursor dos psicofármacos; o nascimento da neurologia; o uso científico do poder da sugestão; e o tratamento psicanalítico. Ele abandonou a cocaína pelo amor (casou-se com Martha), deixando os méritos das descobertas subsequentes para seus colegas; tomou progressiva distância da neurologia (nunca quis retomar seu importante esboço escrito no final de 1895 – Projeto para uma psicologia científica); abandonou o uso da hipnose como técnica de tratamento psíquico (Freud teria feito fortuna se tivesse se dedicado a elaborar uma psicologia de auto-ajuda, visto que chegou decifrar a lógica da sugestão); em contrapartida, dedicou-se ao mais demorado e mais difícil: o tratamento pela fala do analisante. Esta escolha de Freud indica que nunca aceitou submeter-se às leis locais (esta seria a posição tomada pelo nazismo, que obedecia apenas às leis da raça pura, recusando qualquer princípio do direito situado acima de cada povo), o que seria cair em uma posição antropocêntrica (entendida aqui pelo princípio de que o homem seria a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são, como enunciou Protágoras) . Pelo contrário, requerer a mediação da fala na relação com o semelhante é contar com a operação da lei organizada a circulação e a troca. Assim poderíamos interpretar a postulação de Freud de que todos os problemas dos seres humanos têm uma relação com o pai. Isso não impedia Freud de ser uma crítica contundente das religiões.
Talvez Lacan tenha nos ajudado a esclarecer esta questão, lembrando que a crítica freudiana se endereça à religião, não tendo efetivamente se ocupado da teologia. Uma das formulações originais de Lacan é a categoria do Outro, que designa um lugar vazio, mas também potencialmente todo elemento da linguagem que possa se inserir na enunciação e dar a ouvir o que diz respeito a uma outra coisa, ao inconsciente. Ora, isso é uma leitura da estrutura formal da mais genuína teologia trinitária de Santo Agostinho. A psicanálise freudiana, calcada na ciência moderna, promove a crítica desta, na medida que ela opera a exclusão do sujeito da enunciação de seu campo (a subjetividade perturba o bom funcionamento da ciência). Por mais estranho que pareça, a psicanálise é uma ciência moderna que propõe a reintrodução do sujeito da enunciação no cerne de seu procedimento.
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