terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Violência e mitos fundadores das sociedades humanas




Artigo de René Girard

“Enquanto nos mitos as vítimas são responsabilizadas pelos crimes pelos quais são acusados, na tradição bíblica e cristã este veredicto é frequentemente invertido. Muitos relatos da Bíblia condenam a multidão e reabilitam a vítima”, escreve René Girard, antropólogo francês radicado nos Estados Unidos.

“Ali onde os mitos arcaicos se colocam do lado da multidão, e incitam seus leitores a fazerem o mesmo, a maioria dos textos da Bíblia inverte o procede, e tomam o partido dos bodes expiatórios”, completa Girard.


René Girard
é autor de entre outros livros A violência e o Sagrado (Paz e Terra), Eu via Satanás cair do céu como um raio (Lisboa: Instituto Piaget) e A voz desconhecida do real. Uma teoria dos mitos arcaicos e modernos (Lisboa: Instituto Piaget).


Segue o artigo de René Girard, professor emérito da Universidade Stanford (Estados Unidos) e membro da Academia Francesa, publicado no jornal francês Le Monde, 21-11-2008. A tradução é do Cepat.


Meu interesse pelo cristianismo não se funda nem nas Escrituras nem na teologia. Este interesse, tão estranho quanto possa parecer, vem do darwinismo. Esta teoria evolucionista propõe que a cultura humana evoluiu desde quando nos chamamos de “cultura animal”. Seremos capazes de elaborar uma gênese plausível daquilo que não é animal em nossa própria cultura – esse “suplemento” que faz de nós seres humanos?
Podemos supor que a humanização começou quando as rivalidades miméticas se tornaram tão intensas que a relação de dominância animal se enfraqueceu. A humanidade sobreviveu, sem dúvida, porque os interditos religiosos emergiram muito cedo para impedir que a nova espécie se autodestruísse.
Mas como explicar esta emergência? Para compreender o que aconteceu, os nossos únicos indícios são os relatos que contam o nascimento dos cultos aos quais pertencem. São os chamados mitos fundadores ou mitos das origens.
Eles começam, geralmente, pelo relato de uma crise destruidora. No mito de Édipo, é uma peste, em outro lugar, um monstro canibal. Por trás desses temas se esconde o que Hobbes chamou de “a guerra de todos contra todos”: explosões de rivalidade tão intensas que ameaçam destruir as comunidades. A sede de vingança se concentra sobre um número cada vez mais restrito de indivíduos. No final das contas, a comunidade se une contra um único indivíduo, aquele que eu chamo de bode expiatório. O grupo se reconcilia em torno desta vítima única, a um custo que parece milagrosamente baixo.
O problema que os pensadores racionalistas procuraram inutilmente resolver através da hipótese do contrato social, o da origem das sociedades humanas, se resolve assim sem intenção humana quando a “crise mimética” está no seu auge.
O caráter inconsciente do linchamento é admiravelmente ilustrado pela frase de Jesus na Cruz: “Pais, perdoa-os porque não sabem o que fazem”. Esta frase deve ser interpretada literalmente. Porque se os mitos reconhecem os fatos, a inocência do bode expiatório se tornará visível, e a violência perderá sua eficácia catártica. A verdade transparece quando se pergunta sobre as características recorrentes dos heróis míticos.



Muitos deles são cegos como Tirésias, mal afamados como Wotan ou, de maneira mais significativa, designados como “homens vindos do além”. As comunidades arcaicas estavam certamente muito distantes umas das outras. Quando um estranho aparecia, se reuniam em torno dele com grandes esperanças. O menor gesto inesperado da sua parte poderia desencadear um pânico, e levar à morte.
Como as interdições religiosas vão tomando lugar? Podemos supor que, nas comunidades arcaicas, tão logo o linchamento catártico tinha colocado fim à crise mimética, um novo deus emergia. E cada vez que uma nova luta eclodia, estando as comunidades ainda marcadas pela prova das rivalidades passadas, tornava-se impossível qualquer contato entre as pessoas envolvidas. Cada nova escalada das violências era interpretada como a expressão da cólera do deus e, graças ao seu prestígio, apareciam as interdições; interdições que, pouco a pouco, se erigiam num sistema mais ou menos coerente e definitivo.
Com o passar do tempo, o medo que essas interdições inspiravam provavelmente foi diminuindo, e com ele o poder que eles tinham para impedir as transgressões. Diante desse perigo, as comunidades arcaicas procuraram freneticamente uma nova proteção contra a sua própria violência. Como elas não tinham esquecido a grande catarse que as salvou de uma crise anterior, elas se perguntavam se uma nova catarse não poderia ser reproduzida para encontrar o processo da crise, inclusive o linchamento.
Assim, numerosos ritos sacrificiais começam pelas desordens provocadas, que os antropólogos justamente definiram como “crises simuladas”.
Duas coisas sugerem que a religião (interditos e ritos) está na origem e na essência da cultura humana: não se encontra o menor traço dela em culturas animais; nenhuma cultura humana está dela totalmente desprovida. Duas antigas e poderosas religiões, a religião grega e a hinduísta, desenvolveram uma compreensão incompleta, mas profunda, dos sistemas arcaicos em sua diversidade como em sua unidade fundamental – sistemas que renascem regularmente de suas cinzas, mas fracassam na sua tentativa de eliminar, uma vez por todas, as rivalidades miméticas. Não é um processo idêntico que se dá nos Evangelhos, o mesmo linchamento que desemboca na mesma divinização?
É um fato que a maioria dos cristãos não ousou aprofundar, acreditando que a confissão dessas evidentes semelhanças desmorone o edifício de sua fé. Eles agiram erradamente, porque uma comparação feita entre os Evangelhos e a mitologia dá vantagem ao cristianismo. Os mitos levam o linchamento coletivo muito a sério. Eles pensam que as vítimas realmente cometeram os crimes pelos quais são acusados. Os Evangelhos, ao contrário, acreditam e proclamam na inocência total de Jesus.
Enquanto nos mitos as vítimas são responsabilizadas pelos crimes pelos quais são acusados, na tradição bíblica e cristã este veredicto é frequentemente invertido. Muitos relatos da Bíblia condenam a multidão e reabilitam a vítima. No que se refere aos salmos, eles dão instantâneos de um linchamento: um narrador horrorizado observa um grupo de indivíduos que tentam cercá-lo para matá-lo. A situação lembra aquela de muitos profetas que, após terem sido idolatrados pelas multidões, repentinamente tornam-se suas vítimas.
Ali onde os mitos arcaicos se colocam do lado da multidão, e incitam seus leitores a fazerem o mesmo, a maioria dos textos da Bíblia inverte o procede, e tomam o partido dos bodes expiatórios nas situações que, no mundo pagão, teriam levado à elaboração de um novo mito. A Paixão de Cristo é uma ilustração decisiva dessa inversão.
A Bíblia opera, pois, uma ruptura em relação à mitologia, quando no Antigo Testamento, e mais espetacularmente ainda nos Evangelhos, a supremacia da multidão, que remonta às origens da humanidade, é finalmente invertida.










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