terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A Essência Mais Profunda




Por: Sogyal Rinpoche

Ninguém pode morrer sem medo e em completa segurança sem ter atingido a realização da natureza da mente. Porque só essa realização, aprofundada em anos de prática continuada, pode manter a mente estável no confuso caos do processo da morte. De todas as maneiras que conheço de ajudar a realizar a natureza da mente, a prática de Dzogchen, a mais antiga e direta corrente de sabedoria dentro dos ensinamentos do buddhismo [nyingmapa] e a própria fonte dos ensinamentos do bardo, é a mais clara, mais eficaz e relevante para as circunstâncias atuais.
As origens do Dzogchen remontam ao Buddha Primordial, Samantabhadra, que o transmitiu a uma linha ininterrupta de grandes mestres que chega até o presente. Centenas de milhares de indivíduos na Índia, no Himalaia e no Tibet atingiram a realização e a iluminação através dessa prática. Há uma maravilhosa profecia segundo a qual "nesta era de trevas, a essência do coração de Samantabhadra brilhará como fogo". [...]
O Dzogchen não foi amplamente difundido e ensinado no Tibet, e por algum tempo muitos dos maiores mestres não o ensinaram no mundo moderno. Por que, então, eu o estou ensinando agora? Alguns dos meus mestres me disseram que este é o momento de se difundir o Dzogchen, a época a que se refere a profecia. Sinto também que seria falta de compaixão não partilhar com as pessoas a existência de sabedoria tão extraordinária. Os seres humanos chegaram a um ponto crítico da sua evolução e esta época de extrema confusão pede um ensinamento com o mesmo grau de poder e claridade. Descobri também que as pessoas de hoje querem um caminho que elimine o dogma, fundamentalismo, exclusivismo, metafísica, complexa e parafernália cultural exótica, um caminho ao mesmo tempo simples e profundo, que não precise ser praticado em ashrams ou mosteiros, mas possa integrar-se à vida do dia-a-dia e ser praticado em qualquer lugar.
O que é, então, o Dzogchen? O Dzogchen não é apenas um ensinamento, nem mais uma filosofia, nem mais um elaborado sistema, nem mesmo uma sedutora série de técnicas. Dzogchen é um estado, o estado primordial, aquele estado totalmente desperto que é o coração e a essência de todos os buddhas e de todos os caminhos espirituais, e o ápice da evolução espiritual de um indivíduo. Dzogchen é freqüentemente traduzido como "Grande Perfeição". Prefiro deixar a palavra sem traduzir, porque Grande Perfeição traz esse sentido do perfeito que temos de lutar para conseguir, meta que fica no final de uma longa e árdua jornada. Nada podia estar mais distante do significado de Dzogchen: o estado já perfeito em si mesmo da nossa natureza primordial, que não precisa de "aperfeiçoamento", uma vez que, como o céu, sempre foi perfeito desde o começo.
Todos os ensinamentos buddhistas [do Dzogchen] são explicados em termos de "Base, Caminho e Fruição". A Base do Dzogchen é esse estado fundamental e primevo, nossa natureza absoluta que já é perfeita e está sempre presente. Patrul Rinpoche diz: "Nem é para ser buscada externamente, nem é algo que você não tinha antes ou que precise nascer agora de um modo novo em sua mente". Do ponto de vista da Base — o absoluto — nossa natureza é a mesma que a dos buddhas, e nesse nível não há que ouvir ensinamentos ou fazer prática — nem um pingo, dizem os mestres.
Não obstante, temos de entender, os buddhas tomaram um caminho e nós tomamos outro. Os buddhas reconhecem sua natureza original e tornam-se iluminados; nós não a reconhecemos e por isso nos tornamos confusos. Nos ensinamentos, esse estado de coisas é chamado "Uma Base, Dois Caminhos". Nossa condição relativa é que nossa natureza intrínseca está obscurecida e precisamos seguir os ensinamentos e a prática para voltarmos à verdade: esse é o Caminho do Dzogchen. Finalmente, atingir a realização da nossa natureza original é atingir a completa liberação e tornar-se um buddha. Essa é a Fruição do Dzogchen, que de fato é possível ao praticante em uma só vida, quando ele ou ela a isso dedica seu coração e mente.
Os mestres Dzogchen são agudamente conscientes dos perigos de confundir o absoluto com o relativo. Quem não consegue compreender essa relação pode subestimar ou até desprezar os aspectos relativos da prática espiritual e a lei kármica de causa e efeito. No entanto, àqueles que apreendem verdadeiramente o significado do Dzogchen terão um respeito ainda mais profundo pelo karma, bem como uma apreciação mais intensa e premente da necessidade de purificação e de prática espiritual. Isso se dará porque eles poderão perceber a vastidão daquilo que há neles e que foi obscurecido, o que os fará empenhar-se de maneira mais fervorosa, e com disciplina sempre fresca e natural, em remover o que quer que se interponha entre eles e sua verdadeira natureza.
Os ensinamentos Dzogchen são como um espelho que reflete a Base da nossa natureza original com pureza tão elevada e liberadora, e claridade tão imaculada, que constituem uma proteção ao perigo de ficar presos em qualquer forma de entendimento conceitualmente fabricado, mesmo que sutil, convincente ou sedutor.
Qual é então, para mim, a maravilha do Dzogchen? Todos os ensinamentos levam à iluminação, mas a singularidade do Dzogchen é que, mesmo na dimensão relativa dos ensinamentos, a sua linguagem nunca macula o absoluto com conceitos; deixa-o intacto em sua simplicidade desnuda, dinâmica e majestosa, e mesmo assim fala dela a qualquer um de mente aberta em termos tão vívidos e expressivos que, mesmo antes de nos iluminarmos, somos agraciados com o vislumbre mais forte que podemos ter do esplendor do estado desperto.






A Visão


Tradicionalmente, o treinamento prático do Caminho do Dzogchen é descrito com muita simplicidade em termos de Visão, Meditação e Ação. Ver diretamente o estado absoluto, a Base do nosso ser, é a Visão; o modo de estabilizar essa Visão e fazer dela uma experiência contínua é Meditação; integrar a Visão à nossa realidade total e à nossa vida é o que chamamos Ação.
O que é então a Visão? É nada menos que ver o estado real das coisas como elas são; saber que a verdadeira natureza da mente é a verdadeira natureza de tudo; e atingir a realização de que a verdadeira natureza da nossa mente é a verdade absoluta. Dudjom Rinpoche diz: "A visão é a compreensão da consciência intrínseca desnuda, dentro da qual tudo está contido: a percepção sensorial e a existência fenomênica, o samsara e o nirvana. Essa consciência intrínseca e imediata tem dois aspectos: vacuidade como o absoluto, e aparência ou percepção como relativo."
O que isso significa é que todo o conjunto das possibilidades das aparências e todos os possíveis fenômenos em todas as diferentes realidades — todos eles, sem exceção, seja no samsara ou no nirvana — sempre foram e sempre serão perfeitos e completos, dentro da vasta e ilimitada extensão da natureza da mente. Mais ainda, que a essência de tudo seja vazia e "pura desde o início", sua natureza é rica em nobres qualidades, prenhe de todas as possibilidades, um campo ilimitado, incessante e dinamicamente criativo que é sempre perfeito e espontâneo.
Você poderá perguntar: "Se a realização da Visão é a realização da natureza da mente, com o que se parece então essa natureza da mente?" Imagine um céu, vazio, pleno de espaço e puro desde o início; sua essência é assim. Imagine um sol, luminoso, claro, sem obstrução e espontaneamente presente; sua natureza é assim. Imagine esse sol brilhando sobre nós e todas as coisas, penetrando em todas as direções; sua energia, que é a manifestação da compaixão, é assim: nada pode detê-la e ela penetra em toda parte.
Você também pode pensar na natureza da mente como um espelho com cinco diferentes poderes ou "sabedorias". Sua abertura e vastidão é a "sabedoria do espaço que tudo abrange", o útero de onde provém a compaixão. Sua capacidade de refletir com detalhes precisos o que se põe diante dela é a "sabedoria do espelho". Sua ausência fundamental de propensão para qualquer impressão é a "sabedoria da equanimidade". Sua habilidade de distinguir claramente e sem confundir de maneira alguma os vários fenômenos diferentes que surgem é a "sabedoria do discernimento". E seu potencial de ter tudo já consumado, aperfeiçoado e espontaneamente presente é a "sabedoria que tudo realiza".
No Dzogchen, a Visão é introduzida ao estudante diretamente pelo mestre. É esse modo direto de fazer a introdução que caracteriza o Dzogchen e o faz tão singular.
O que é introduzido ao estudante na introdução é a experiência direta da mente de sabedoria dos buddhas, através da bênção do mestre que encarna a completa realização deles. Para estar pronto para receber a introdução, o aluno deve ter chegado a um ponto em que tenha, como resultado de aspirações passadas e do karma purificado, a abertura da mente e também a devoção para fazê-lo receptivo ao verdadeiro significado do Dzogchen.
Como a mente de sabedoria dos buddhas pode ser introduzida? Imagine a natureza da mente como seu próprio rosto; está sempre com você, mas não pode vê-lo sem ajuda. Agora imagine que nunca viu um espelho antes. A introdução feita pelo mestre é colocar subitamente um espelho diante de você, no qual pela primeira vez vai ver seu próprio rosto refletido. Tal como seu rosto, a pura percepção de Rigpa [a natureza da mente, a consciência primordial] não é algo "novo" que o mestre lhe está dando, ou algo que nunca tenha tido antes, e nem algo que teria a possibilidade de achar fora de si mesmo. Sempre foi seu e sempre esteve com você, mas até aquele momento, surpreendente, você nunca o tinha visto de maneira direta.
Patrul Rinpoche explica que "de acordo com a tradição especial dos grandes mestres da linhagem dessa prática, a natureza da mente, o rosto de Rigpa, é introduzido precisamente na dissolução da mente conceitual". No momento da introdução o mestre atravessa a mente conceitual, deixando à vista o estado puro de Rigpa revelando explicitamente sua verdadeira natureza.
Nesse poderoso momento tem lugar uma fusão de mente e corações e o aluno tem uma incontestável experiência ou vislumbre da natureza de Rigpa. Nesse mesmo e único instante, o mestre apresenta e o estudante reconhece. À medida que o mestre dirige suas bênçãos a partir da sabedoria de seu Rigpa para o coração do Rigpa do seu aluno, mostra diretamente a este a face original da natureza da mente,
Para que a introdução do mestre seja plenamente eficaz, no entanto, condições e ambiente corretos devem ser criados. Apenas uns poucos indivíduos na história, devido ao seu karma purificado, puderam reconhecer e iluminar-se num instante; por isso a introdução deve quase sempre ser precedida pelas práticas preliminares que apresento a seguir. São essas práticas preliminares que purificam e removem os obscurecimentos da mente ordinária, trazendo você ao estado em que seu Rigpa pode ser revelado.

Primeiro, a meditação, antídoto supremo da distração, traz a mente de volta e permite que ela se assente no seu estado natural.

Segundo, práticas profundas de purificação e o fortalecimento do karma positivo, através da acumulação de mérito e sabedoria, começam a enfraquecer e dissolver os véus intelectuais e emocionais que obscurecem a natureza da mente.

Como escreveu meu mestre Jamyang Khyentse: "Se os obscurecimentos forem removidos, a sabedoria de Rigpa de cada um brilhará naturalmente". Essas práticas de purificação, chamadas Ngöndro em tibetano, devem ser cuidadosamente observadas para produzir uma ampla transformação interior. Elas envolvem o ser inteiro — corpo, fala, mente — e começam com uma séria de profundas contemplações sobre:

a singularidade da vida humana;

a contínua presença da impermanência e da morte;

a infalibilidade da causa e efeito das nossas ações;

o ciclo vicioso de frustração e sofrimento que é o samsara.

Essas reflexões inspiram um forte sentido de "renúncia", um desejo urgente de emergir do samsara e seguir o caminho da liberação que é a base para as práticas específicas de:

tomar refúgio no Buddha, na verdade dos seus ensinamentos [Dharma] e no exemplo dos seus praticantes [Sangha], despertando assim confiança e fé em nossa própria natureza búddhica interior;

gerar compaixão (bodhichitta — o coração da mente iluminada) e treinar a mente para trabalhar consigo mesmo e com os outros, bem como com as dificuldades da vida;

remover os obscurecimentos e a "corrupção" mediante as práticas de visualização e de mantras voltadas à purificação e à cura;

acumular mérito e sabedoria, desenvolvendo generosidade universal e criando circunstâncias auspiciosas.

Todas essas práticas se desenvolvem e estão centradas no Guru Yoga, que é a prática mais decisiva, instigante e poderosa de todas, indispensável à abertura do coração e da mente para a realização do estado de Dzogchen.

Terceiro, uma investigação meditativa especial sobre a natureza da mente e dos fenômenos, que sacia a incansável fome da mente de pensa e procurar, bem como sua dependência de conceitualização, análise e referência incessantes, e desperta uma compreensão íntima da natureza da vacuidade.
Nunca é demais enfatizar a importância dessas práticas preliminares. Elas devem trabalhar em conjunto e sistematicamente para inspirar o estudante a despertar para a natureza da mente, e habilita-lo a estar pronto e preparado quando o mestre escolher o momento de mostrar a ele ou ela a face original de Rigpa.
Nyoshul Lungtok, que depois tornou-se um dos maiores mestres Dzogchen dos nossos tempos, acompanhou seu professor Patrul Rinpoche por cerca de dezoito anos. Todo esse tempo eles foram quase inseparáveis. Nyoshul Lungtok estudou e praticou de forma particularmente dedicada, e acumulou purificação, mérito e prática em abundância; ele estava pronto para reconhecer Rigpa, mas ainda não havia recebido a instrução final. Então, numa noite inesquecível, Patrul Rinpoche deu-lhe essa instrução. Aconteceu quando estavam juntos num eremitério das montanhas acima do Mosteiro Dzogchen. A noite era muito bonita. O céu azul escuro estava límpido e as estrelas brilhavam muito. O som da sua solidão era acentuado pelo latido de um cachorro do mosteiro distante.

Patrul Rinpoche estava estirado no chão, fazendo uma prática de Dzogchen. Chamou Nyoshul Lungtok, perguntando: "Você disse que não conhece a essência da mente?"
Nyoshul Lungtok adivinhou pelo tom da sua voz que aquele era um momento especial e balançou a cabeça confirmando, na expectativa.
— "Não há nada a respeito, de fato", disse Patrul Rinpoche distraidamente, acrescentando, "Meu filho, venha cá e repouse aqui como seu velho pai". Nyoshul Lungtok estirou-se ao seu lado.— "Está vendo as estrelas no céu?", perguntou Patrul Rinpoche.— "Sim".— "Está ouvindo os cães latindo no Mosteiro Dzogchen?"— "Sim".— "Bem, a natureza do Dzogchen é isso: simplesmente isso".
Nyoshul Lungtok nos conta o que aconteceu então: "Nesse instante, cheguei a uma certeza de realização dentro de mim. Tinha sido liberado dos grilhões do 'é' e do 'não é'. Atingira a realização da sabedoria primordial, a união desnuda da vacuidade e da consciência intrínseca. Fui introduzido a essa realização por sua bênção, como disse o grande mestre indiano Saraha: 'Aquele em cujo coração entravam as palavras do mestre, vê a verdade como um tesouro na palma de sua própria mão.'"
Naquele instante, tudo estava em seu lugar; o fruto de todos os anos de aprendizado, purificação e prática de Nyoshul Lungtok havia nascido. Ele obteve a realização da natureza da mente. Não havia nada extraordinário, esotérico ou místico nas palavras que Patrul Rinpoche usara; de fato, eram absolutamente comuns. Mas além das palavras, alguma coisa a mais estava sendo comunicada. O que ele revelava era a natureza inerente de tudo, que é o verdadeiro significado do Dzogchen. Naquele momento ele já havia conduzido Nyoshul Lungtok diretamente àquele estado pelo poder e a bênção de sua realização.
Mas os mestres são muito diferentes, e eles podem usar todo tipo de meio hábil para provocar essa mudança de consciência. O próprio Patrul Rinpoche foi introduzido à natureza da mente de um modo muito distinto, por um mestre excêntrico de nome Do Khyentse. Esta é a tradição oral que escutei dessa história.
Patrul Rinpoche estivera fazendo uma prática avançada de yoga e visualização, e ficara emperrado; nenhuma das mandalas das deidades aparecia com clareza na sua mente. Um dia ele se aproximou de Do Khyentse, que havia acendido uma fogueira ao relento e estava sentado diante dela, tomando chá. No Tibet, quando você vê um mestre pelo qual tem profunda devoção, tradicionalmente começa a prostrar seu corpo no chão como sinal do seu respeito. Quando Patrul Rinpoche começou a prostrar-se, ainda à distância, Do Khyentse o reconheceu e rosnou, ameaçadoramente: "Ei, seu cão velho! Se você tem coragem, venha até aqui!" Do Khyentse era um mestre muito impressionante. Parecia um samurai, com seus cabelos longos, suas roupas vistosas e sua paixão por montar belos cavalos. À medida que Patrul Rinpoche continuava a fazer reverências e se aproximava, Do Khyentse, praguejando o tempo todo, começou a atirar nele seixos e depois pedras maiores. Quando finalmente chegou ao seu alcance, Do Khyentse começou a socá-lo até faze-lo desmaiar.
Quando Patrül Rinpoche voltou a si estava num estado de consciência inteiramente diferente. As mandalas que com tanto esforço tentara visualizar manifestavam-se, espontaneamente, diante dele. Cada maldição e insulto de Do Khyentse havia destruído os últimos remanescentes da mente conceitual de Patrul Rinpoche e, cada pedra que o atingiu havia aberto os centros de energia e canais sutis de seu corpo. Por duas semanas maravilhosas as visões das mandalas não o abandonaram.
Mesmo sabendo que as palavras e os conceitos fracassam quando tentamos descrevê-la, vou procurar dar uma idéia do que é a Visão e do que acontece quando Rigpa é revelado diretamente.
Dudjom Rinpoche diz: "Esse momento é como tirar um capuz de sua cabeça. Que amplitude infinita e que alívio! Esse é o ver supremo: ver o que não foi visto antes". Quando você "vê o que não foi visto antes" tudo se abre, se expande e se torna fresco, claro, transbordante de vida, animado de encantamento e frescor. É como se o teto de sua cabeça se desprendesse, ou se um bando de pássaros repentinamente revoasse de um ninho escuro. Todas as limitações se dissolvem e desaparecem como se, dizem os tibetanos, um selo tivesse rompido.
Imagine-se morando numa casa no topo do mundo. De repente, toda a estrutura da casa que limitava sua visão simplesmente desaparece e você pode ver tudo ao seu redor, tanto dentro como fora. Mas não há alguma "coisa" para ver; o que acontece não tem qualquer referência no mundo ordinário; é uma visão total, completa, sem precedentes, perfeita.
Dudjom Rinpoche diz: "Seus inimigos mais mortais, aqueles que o mantiveram amarrado ao samsara por incontáveis vidas, desde tempos imemoriais até o presente, são o agarrar e o agarrado". Quando o mestre o introduz e você os reconhece, "esses dois são completamente consumidos como penas numa fogueira, não deixando vestígios". Agarrar e agarrado, a coisa agarrada e aquele que agarra são completamente liberados a partir mesmo da sua base. As raízes da ignorância e do sofrimento são totalmente cortadas e todas as coisas aparecem como reflexos num espelho, transparentes, bruxuleantes, ilusórias e com a qualidade de um sonho.
Quando você chega naturalmente a esse estado de meditação, inspirado pela Visão, pode permanecer aí por um longo tempo sem qualquer distração ou esforço especial. Então não há nenhuma coisa de nome meditação para proteger ou sustentar, uma vez que você está no fluxo natural da sabedoria Rigpa. E, quando está nele, perceberá que é como se tivesse sido sempre assim, e é. Quando brilha a sabedoria de Rigpa, nem uma sombra de dúvida permanece e um entendimento completo e profundo surge diretamente e sem qualquer esforço.
Você descobrirá que todas as imagens que dei, bem como as metáforas que tentei usar, estão fundidas em uma experiência da verdade que abrange tudo. A devoção está nesse estado, e a compaixão também está nesse estado, e todas as sabedorias, bênção, claridade e ausência de pensamentos, porém não separadas umas das outras, mas integradas e ligadas de maneira inquebrantável num mesmo sabor. Esse é o momento do despertar. Um profundo senso de humor brota de dentro e você sorri, divertido com a inadequação dos seus antigos conceitos e idéias sobre a natureza da mente.
O que surge disto é uma crescente, tremenda e inabalável certeza e convicção de que "é isto". Não há nada além a procurar, nada a mais a ser esperado. Essa certeza da Visão é aquilo que deve ser aprofundado, de lampejo a lampejo, sobre a natureza da mente, e estabilizado pela contínua disciplina da meditação.


A Meditação


Então o que é meditação do Dzogchen? É simplesmente repousar, sem distrações, na Visão, uma vez que ela tenha sido introduzida. Dudjom Rinpoche a descreve: "A meditação consiste em ficar atento a esse estado de Rigpa, livre de todas as construções mentais, embora permanecendo totalmente relaxado, sem qualquer distração e sem agarrar-se a nada. Por isso se diz que a "meditação não é se esforçar, mas permitir que a própria meditação nos assimile naturalmente".
O ponto central da prática de meditação Dzogchen é fortalecer e estabilizar Rigpa, permitindo que ele cresça até sua plena maturidade. A mente ordinária e habitual, com suas projeções, é extremamente poderosa. Ela fica voltando e toma conta de nós quando estamos desatentos e distraídos. Como Dudjom Rinpoche costumava dizer: "No momento, nosso Rigpa é como um bebezinho desamparado no campo de batalha onde os pensamentos irrompem com força". Gosto de dizer que temos de começar sendo a ama-seca do nosso Rigpa dentro do ambiente seguro da meditação.
Se a meditação é simplesmente continuar o fluxo de Rigpa após a introdução, como sabemos quando é Rigpa e quando não é? Fiz essa pergunta a Dilgo Khyentse Rinpoche e ele respondeu com sua simplicidade característica: "Se você está num estado inalterado, é Rigpa". Se não estamos dentro da mente que de algum modo manipula e distorce a realidade, mas apenas repousando num estado inalterado de consciência pura e original, então isso é Rigpa. Se há qualquer trama ou maquinação de nossa parte, alguma forma de manobra ou de apego, já não se trata de Rigpa. Rigpa é um estado em que não há mais qualquer dúvida: não há na verdade algo como uma mente que possa duvidar: você vê diretamente. Se está nesse estado, certeza e confiança completas e naturais vibram com o próprio Rigpa, e é assim que você sabe.
A tradição do Dzogchen é de precisão extrema, já que quanto mais fundo você vai, mais sutis são os enganos que podem surgir, e o que está em jogo é o conhecimento da realidade absoluta.
Mesmo após a introdução, os mestres esclarecem em detalhes os estados que não são meditação Dzogchen e que com ela não devem ser confundidos. Num desses estados você perambula por uma terra de ninguém da mente, onde não há pensamentos ou memórias; é um estado obscuro, embotado e apático, onde você está mergulhado na base da mente ordinária. Num segundo estado há certa quietude e leve claridade, mas é uma quietude estagnada, ainda enterrada na mente ordinária. Num terceiro você experimenta a ausência de pensamentos mas está "em outra", apenas num estado vazio de encantamento. Num quarto estado sua mente vagueia, ansiando por pensamentos e projeções. Nenhum desse é o verdadeiro estado de meditação e o praticante deve observar habilmente o que ocorre para evitar ser iludido por esses caminhos.
A essência prática da meditação no Dzogchen está contida nesses quatro pontos:
Quando um pensamento passado cessou e ainda não surgiu um pensamento futuro, há uma brecha. Nesse preciso instante, não há uma consciência do momento presente, fresca, virgem, em nada alterada por conceitos, uma atenção luminosa e pura? Pois bem, isso é Rigpa!
Entretanto a mente não fica neste estado para sempre, porque outro pensamento subitamente surge, não é assim? Essa é a auto-irradiação de Rigpa.
No entanto, se você não reconhece esse pensamento pelo que de fato ele é, no instante em que surge, ele se transformará em um pensamento comum, como antes. Essa é a chamada "cadeia da ilusão", e é a raiz de samsara.
Se você é capaz de reconhecer a verdadeira natureza do pensamento logo que ele surge e o deixa em paz, sem persegui-lo, então quaisquer pensamentos que surjam se dissolvem automaticamente, retornando à vasta extensão de Rigpa, e são liberados.
É preciso uma vida inteira de prática para entender e realizar a profunda riqueza e a majestade desses quatro pontos tão simples e tão fundamentais, e tudo o que posso fazer aqui é dar a você uma amostra da vastidão que é a meditação Dzogchen.
Talvez o ponto mais importante é que a meditação Dzogchen vem a tornar-se um contínuo fluxo de Rigpa, como um rio que se move constantemente, dia e noite sem interrupção. Claro que isto é um estado ideal, uma vez que esse atento repouso na Visão, já introduzida e identificada, é a recompensa de muitos anos de prática permanente.
A meditação Dzogchen é sutilmente poderosa na lida com os movimentos da mente, apresentando uma perspectiva única sobre eles. Tudo o que surge é visto na sua verdadeira natureza, não como coisa separada de Rigpa, e não antagônica a ele, mas — e isso é muito importante — verdadeiramente como nada mais que a sua auto-irradiação, a manifestação de sua própria energia.
Digamos que você se encontre num estado de profunda quietude; ele não costuma durar muito, porque logo um movimento ou um pensamento surge, como uma onda no oceano. Não rejeite o movimento nem se apegue à tranqüilidade, mas deixe seguir o fluxo da sua pura presença. O estado penetrante e sereno da sua meditação é o próprio Rigpa e tudo que surge nada mais é que a auto-irradiação de Rigpa. Esse é o coração e a base da prática Dzogchen. Um modo de imaginar isso é pensar que você está cavalgando raios solares retornando para o sol: você segue todas as manifestações de volta à sua origem, imediatamente, de volta à própria raiz, à base de Rigpa. À medida que incorpora a firme estabilidade da Visão, você não é mais enganado nem distraído pelo que quer que possa surgir, e assim não cai vítima da ilusão.
Claro que no oceano há ondas violentas e ondas suaves; surgem emoções fortes como raiva, desejo e inveja. O verdadeiro praticante as reconhece não como perturbação ou obstáculo, mas como uma grande oportunidade. O fato de você reagir ao que aparece com as tendências habituais de apego e aversão é sinal não somente que está distraído, mas também de que não tem o reconhecimento e perdeu a base de Rigpa. Reagir às emoções desse modo significa reforçá-las , prendendo-nos ainda mais fortemente às cadeias da ilusão. O grande segredo do Dzogchen é ver bem através delas, tão logo aparecem, percebendo-as pelo que de fato são: a vívida e elétrica manifestação da própria energia Rigpa. À medida que você aprende a fazer isso, mesmo as emoções mais turbulentas já não conseguem dominá-lo e se dissolvem como ondas bravias que aparecem e retrocedem, mergulhando de volta na calma do oceano.
O praticante descobre — e essa é uma visão revolucionária, cuja sutileza e poder vão além do que podemos entrever — que as emoções violentas não precisam necessariamente precipitá-lo no turbilhão de suas próprias neuroses; elas podem ser usadas para aprofundar, estimular, avivar e fortalecer Rigpa. Essa energia tempestuosa torna-se matéria-prima para a energia desperta de Rigpa. Quanto mais forte e ardente a emoção, mais Rigpa se fortalece. Sinto que esse método peculiar ao Dzogchen é uma força extraordinária para libertar até os problemas emocionais e psicológicos mais inveterados e mais profundamente enraizados.
Deixe-me apresentar-lhes agora, do modo mais simples que puder, uma explicação sobre como exatamente esse processo funciona. [...]
No Dzogchen, a fundamental e inerente natureza de tudo é chamada "Luminosidade Base", ou "Luminosidade Mãe". Ela permeia todas as nossas experiências e é inclusive, embora não a reconheçamos, a natureza inerente também dos pensamentos e emoções que surgem em nossa mente. Quando o mestre introduz à verdadeira natureza da mente, ao estado de Rigpa, é como se ele ou ela nos desse uma chave mestra. No Dzogchen chamamos essa chave, que vai abrir a porta do conhecimento total, de "Luminosidade Caminho", ou "Luminosidade Filha". A Luminosidade Base e a Luminosidade Caminho são fundamentalmente as mesmas, é claro, e é só para fins de explanação e prática que elas são categorizadas dessa forma. Mas uma vez que temos a chave da Luminosidade Caminho, dada pela introdução do mestre, podemos usá-la à vontade para abrir a porta da natureza inata da realidade. Este abrir a porta se chama na prática do Dzogchen "o encontro da Luminosidade Base e da Luminosidade Caminho", ou "o encontro das Luminosidades Mãe e Filha". Outro modo de dizer isso é que, assim que um pensamento ou emoção aparece, a Luminosidade Caminho — Rigpa — reconhece-os imediatamente pelo que são, reconhece sua natureza inerente, a Luminosidade Base. Nesse instante de reconhecimento, as duas Luminosidades se fundem e os pensamentos e emoções são liberados em sua própria base.
É fundamental o aperfeiçoamento dessa prática de fusão das duas Luminosidades e da auto-liberação daquilo que surge na sua mente enquanto você está vivo, porque o que ocorre para todos no momento da morte é isto: a Luminosidade Base desponta com seu imenso esplendor, trazendo com ela uma oportunidade de liberação total — se, e somente se, você tiver aprendido a reconhecê-la.
Talvez fique claro agora que essa fusão das Luminosidades e da auto-liberação dos pensamentos e das emoções é meditação no seu nível mais profundo. De fato, um termo como meditação não é verdadeiramente apropriado para a prática Dzogchen porque, em última análise, implica meditar "sobre" algo, enquanto que no Dzogchen tudo é apenas e para sempre Rigpa. Desse modo, não existe meditação separada do simples ficar na pura presença de Rigpa.
A única palavra que talvez pudesse descrever isso é "não-meditação". Nesse estado, dizem os mestres, mesmo se você procurar a ilusão, não encontrará nenhuma. Mesmo se você procurar pedrinhas comuns numa ilha de ouro e jóias, não terá oportunidade de encontrá-las. Quando a Visão é constante, o fluxo de Rigpa é inesgotável e a fusão das duas Luminosidades é contínua e espontânea, toda a ilusão possível é liberada em sua própria raiz e toda a sua percepção aparece como Rigpa, sem interrupção.
Os mestres enfatizam que para estabilizar a Visão na meditação é essencial, primeiro, realizar essa prática num ambiente especial, de retiro, onde todas as condições favoráveis estejam presentes; entre as distrações e a correria do mundo, as experiências verdadeiras, por mais que você medite, não surgirão na sua mente. Segundo, embora não haja diferença no Dzogchen entre meditação e vida cotidiana, até que você tenha encontrado a verdadeira estabilidade pela prática em sessões a isso dedicadas, não conseguirá integrar a sabedoria da meditação na experiência da vida diária. Terceiro, mesmo se você pratica e é capaz de assentar no fluxo de Rigpa com confiança na Visão, mas não consegue manter esse fluxo todo o tempo, em todas as situações, combinando sua prática com a vida cotidiana, isso não servirá quando circunstâncias desfavoráveis surgirem, e você será desviado para a ilusão pelos pensamentos e emoções.
Há uma história deliciosa sobre um yogi Dzogchen que vivia modestamente, cercado no entanto por um grande número de discípulos. Um certo monge, que tinha uma opinião exageradamente favorável do próprio aprendizado e erudição, sentia ciúmes do yogi, que ele sabia não era nada letrado. Pensou: "Como pode ele, que não passa de uma pessoa comum, ter a ousadia de ensinar? Como ousar fingir ser um mestre? Vou testar seus conhecimentos, desmascarar a impostura e humilhá-lo na presença dos seus discípulos, para que eles o deixem e me sigam".
Então um dia ele visitou o yogi e lhe disse, maliciosamente:— "Vocês do Dzogchen, tudo o que fazem é meditar?"
A resposta do yogi tomou o monge completamente de surpresa:— "E há algo sobre que se possa meditar?"
— "Então você nem sequer medita!", exclamou o erudito, triunfante.
— "Mas quando é que alguma vez me distraio?", respondeu o yogi.


A Ação


À medida que a familiaridade com o fluxo de Rigpa vai se tornando realidade e permeia a vida cotidiana, as ações do praticante começam a mudar e geram estabilidade e confiança profundas.
Dudjom Rinpoche diz: "Ação é estar verdadeiramente atento aos seus próprios pensamentos. Bons ou maus, olhando para a verdadeira natureza de qualquer pensamento que surja, sem evocar o passado ou convidar o futuro, sem permitir qualquer apego à experiência de alegria nem deixar-se dominar pelas situações tristes. Assim fazendo, você tenta atingir e permanecer num estado de grande equilíbrio em que bom e mau, paz e angústia, são desprovidos de verdadeira identidade."
Atingir a realização da Visão transforma de maneira sutil, porém completa, o modo como você vê as coisas. Mais e mais eu percebi o quanto pensamentos e conceitos são tudo o que nos impede de estar sempre, muito simplesmente, no absoluto. Agora vejo com claridade porque os mestres dizem com tanta freqüência: "Procure com afinco não criar muita esperança ou medo", porque só engendram mais tagarelice mental. Quando a Visão está presente, os pensamentos são percebidos como de fato são: fugazes, transparentes e apenas relativos. Você pode enxergar através de tudo, como se tivesse olhos de raios-X. Não se apega aos pensamentos e emoções, nem os rejeita, mas acolhe-os todos no vasto abraço de Rigpa. O que levava muito a sério antes — ambições, planos, expectativas, dúvidas e paixões — já não tem nenhum poder profundo sobre você nem o deixa ansioso, uma vez que a Visão o ajudou a perceber a futilidade e a insensatez de todas as coisas, e fez nascer em você um espírito de verdadeira renúncia.
Permanecer na claridade e na confiança de Rigpa permite que todos os seus pensamentos e emoções se liberem naturalmente e sem esforço em sua vasta extensão, qual escrever na superfície da água ou pintar no céu. Se você aperfeiçoa verdadeiramente essa prática, não há jeito de acumular karma; e nesse estado de entrega despreocupada e sem intencionalidade, que Dudjom Rinpoche chama de tranqüilidade aberta e desnuda, a lei de causa e efeito já não pode sujeitá-lo de modo algum.
Não presuma que isso é fácil ou poderia de algum modo sê-lo. É muito difícil repousar sem distrações na natureza da mente, mesmo por um instante, e permitir que um pensamento ou emoção se auto-libere espontaneamente quando surge. Via de regra assumimos que apenas porque compreendemos algumas coisas intelectualmente, ou pensamos que compreendemos, nós de fato as realizamos. Essa é uma enorme ilusão. A tarefa exige a maturidade que somente anos de audição, contemplação, reflexão, meditação e prática contínua podem trazer. E nunca é demais enfatizar que a prática continuada do Dzogchen sempre requer a direção e a instrução de um mestre qualificado.
De outro modo há um grande perigo, que a tradição chama "perder a Ação na Visão". Um ensinamento tão elevado e poderoso como o Dzogchen comporta um risco extremo. Ao iludir-se de que está liberando pensamentos e emoções, quando de fato não está nem próximo de conseguir isso, e ao imaginar que está agindo com a espontaneidade de um verdadeiro yogi Dzogchen, tudo o que você faz é acumular enormes quantidades de karma negativo. Como dizia Padmasambhava, e esta é a atitude que todos devem ter: "Embora minha visão seja tão vasta quanto o céu, minhas ações e meu respeito pela causa e efeito são refinados como o grão de farinha."
Os mestres da tradição Dzogchen enfatizam incansavelmente que, sem um conhecimento completo e profundo da "essência e método da auto-liberação", através de longa prática, a meditação somente incrementa o caminho da ilusão. Isso pode parecer severo mas este é o caso, porque só a auto-liberação constante dos pensamentos pode de fato acabar com o domínio da ilusão e proteger o discípulo de mergulhar outra vez no sofrimento e na neurose. Sem o método da auto-liberação você não estará apto para enfrentar desventuras e circunstâncias infelizes quando elas surgirem, e mesmo se você já tem o hábito de meditar vai perceber que emoções como raiva e desejo estão presentes, tão fortes quanto antes. O perigo de outros tipos de meditação que não têm esse método consiste em que eles se tornam como a "meditação dos deuses", extraviando-se com facilidade em uma suntuosa auto-absorção, num transe passivo, ou numa inanidade de espírito de um tipo ou de outro, e nada disso ataca e dissolve a ilusão na sua raiz.
O grande mestre Dzogchen, Vimalamitra, falou de maneira muito precisa sobre os graus de crescente naturalidade nesse caminho de liberação: quando você domina a prática pela primeira vez, a liberação acontece simultaneamente ao que surge na mente, e aí é como reconhecer um velho amigo na multidão. Aperfeiçoando e aprofundando a prática a liberação virá junto com o surgimento das emoções e pensamentos, como uma serpente desenrolando-se. E, no estado final de mestria, a liberação é como um ladrão que entra numa casa vazia; nada do que surge traz males nem benefícios para o verdadeiro yogi Dzogchen.
Mesmo nos maiores yogi, a alegria e o sofrimento, a esperança e o medo, ainda aparecem exatamente como antes. A diferença de uma pessoa comum e o yogi está em como eles vêem suas emoções e reagem a elas. Uma pessoa comum , de maneira instintiva, irá aceitá-las ou rejeitá-las, suscitando assim apego ou aversão que resultarão na acumulação de karma negativo. Um yogi, no entanto, percebe tudo o que surge no seu estado natural e originalmente puro, sem permitir o apego entre em sua percepção.
Dilgo Khyentse Rinpoche descreve um yogi vagando num jardim. Apesar de estar totalmente desperto para o esplendor e a beleza das flores, apreciando suas cores, formas e perfumes, ele não tem pelo jardim nenhum vestígio de apego, ou qualquer pensamento superveniente. Como diz Dudjom Rinpoche: "Em qualquer percepção que surja, você deve ser como uma criança que entra num templo lindamente decorado: ela olha, mas o apego não entra de modo algum em sua percepção. Então você deixa tudo ali, fresco, natural, vivo e intocado. Quando você deixa tudo no seu estado próprio, a forma não muda, a cor não esmaece, o brilho não declina. Tudo o que surge não é maculado por nenhum apego, e assim todas as coisas que você percebe surgem como a desnuda sabedoria de Rigpa, que é a inseparabilidade entre luminosidade e vacuidade."
A confiança, o contentamento, a vasta serenidade, a força, o profundo humor e a certeza que advêm da realização direta da Visão de Rigpa são o maior tesouro da vida, a maior das felicidades, que uma vez obtida nada pode destruir, nem mesmo a morte. Dilgo Khyentse Rinpoche diz: "Uma vez que você obtém a Visão, embora as percepções ilusórias do samsara possam surgir na sua mente, você será como o céu: não fica particularmente lisonjeado quando surge nele o arco-íris, nem particularmente desapontado quando as nuvens o encobrem. Há uma profunda sensação de contentamento. Você ri por dentro quando vê a fachada do samsara e do nirvana; a Visão o manterá constantemente maravilhado com um suave sorriso interior se esboçando, todo o tempo."
Como diz Dudjom Rinpoche: "Tendo purificado a grande ilusão, que é o lado escuro do coração, a luz radiante do sol não-obscurecido nascerá continuamente".
Quem leva a sério as instruções sobre Dzogchen e sua mensagem sobre o morrer [...] irá se sentir inspirado, espero, para buscar, encontrar e seguir um mestre qualificado, e para comprometer-se a passar por um completo treinamento sob orientação dele ou dela. O coração do treinamento Dzogchen consiste em duas práticas, Trekchö e Tögal, que são indispensáveis a uma compreensão profunda do que ocorre durante os bardos. Só posso dar aqui uma brevíssima introdução a ambas. A explicação completa só é dada de mestre a discípulo, quando este já se comprometeu de todo o coração com os ensinamentos e atingiu um certo estágio de desenvolvimento. O que expliquei neste capítulo — "A Essência Mais Profunda" — é a essência da prática do Trekchö.
Trekchö significa atravessar a ilusão essencialmente com força irresistível da visão Rigpa, como uma faca corta manteiga ou um mestre de karatê quebra uma pilha de tijolos. Todo o fantástico edifício da ilusão desmorona, como se você tivesse pulverizado seus alicerces. A ilusão é atravessada e a pureza primordial e a natural simplicidade da mente são desveladas.
Somente quando o mestre determinar que você tem uma base firme na prática do Trekchö é que ele ou ela o introduzirá na prática avançada do Tögal. O praticante do Tögal trabalha diretamente com a Clara Luz — que habita de modo inerente em todos os fenômenos e está "espontaneamente presente neles" — usando exercícios específicos e muito poderosos para revelá-la dentro de si mesmo.
O Tögal tem a qualidade de ser instantâneo, de trazer realização imediata. Em vez de viajar por uma cordilheira para alcançar um pico distante, o Tögal leva-o até lá num salto. O efeito de Tögal é tornar alguém capaz de efetivar todos os diferentes aspectos da iluminação em si próprios no decurso de uma vida. Por isso é considerado o método único e extraordinário do Dzogchen; enquanto o Trekchö é a sua sabedoria, o Tögal são seus meios hábeis. Exige imensa disciplina e é geralmente praticado em retiro.
No entanto, nunca é demais ressaltar que o caminho do Dzogchen só pode ser seguido sob a orientação direta de um mestre qualificado. Como o Dalai Lama diz: "Um fato que você tem de ter em mente é que só se pode atingir a realização em práticas Dzogchen como o Trekchö e o Tögal com a direção de um mestre experiente, e recebendo a inspiração e a bênção de uma pessoa viva que possui essa realização".


O corpo de arco-íris


Através dessas práticas avançadas de Dzogchen, praticantes realizados podem levar suas vidas a um fim extraordinário e triunfante. Quando morrem, capacitam seu corpo a ser reabsorvido na essência de luz dos elementos que o criaram; em conseqüência, esse seu corpo material se dissolve em luz e desaparece por completo. Esse processo é conhecido como "corpo de arco-íris", ou "corpo de luz", por que a dissolução é comumente acompanhada por manifestações espontâneas de luz e de arco-íris. Os antigos tantras do Dzogchen e os escritos dos grandes mestres distinguem diferentes categorias desse fenômeno espantoso e sobrenatural que, numa certa época, embora não habitual, era razoavelmente freqüente.
Via de regra uma pessoa que sabe que está prestes a obter um corpo de arco-íris pede para ser deixada sozinha por sete dias, sem ser perturbada, em um quarto ou tenda. No oitavo dia somente são encontrados os cabelos, as unhas e as impurezas do corpo.
Isso pode ser muito difícil de acreditar atualmente, mas a história dos fatos da linhagem Dzogchen está cheia de exemplos de indivíduos que obtiveram o corpo de arco-íris e, como Dudjom Rinpoche costumava sempre salientar, não se trata apenas de história antiga. Entre os muitos exemplos, gostaria de escolher um dos mais recentes, com que tive ligação pessoal. Em 1952 houve um famoso exemplo de corpo de arco-íris no Tibet oriental, testemunhado por muita gente. O homem que conseguiu, Sönam Namgyal, era o pai do meu tutor e irmão de Lama Tseten [...].
Ele era uma pessoa muito simples e humilde, que ganhou sua vida como escultor itinerante, talhando em pedra mantras e textos sagrados. Alguns dizem que teria sido caçador em sua juventude, recebendo depois ensinamentos de um grande mestre. Ninguém nunca soube que ele era um praticante; era de fato o que se chama "um yogi oculto". Algum tempo antes da sua morte, viam-no subindo as montanhas e sentando-se, sua silhueta contra o céu, com os olhos fixados no espaço. Compunha suas próprias canções e cânticos, e entoava-os em lugar dos tradicionais. Ninguém tinha idéia do que ele estava fazendo. Então ficou doente, ou pelo menos foi isso o que pareceu, mas estranhamente foi ficando cada vez mais feliz. Quando a doença se agravou, sua família chamou mestres e médicos. Seu filho lembrou-lhe que precisava recordar-se de todos os ensinamentos ouvidos; ele sorriu, dizendo: "Esqueci-me de todos, e de qualquer modo não há nada a lembrar. Tudo é ilusão, mas estou confiante de que está tudo bem".
Bem próximo do momento de sua morte, aos setenta e nove anos, disse: "Tudo o que peço é que, quando eu morrer, não mexam no meu corpo por uma semana". Quando morreu, sua família embrulhou seu corpo e convidou lamas e monges para virem fazer práticas para ele. Puseram o corpo numa pequena sala da casa, e foi impossível deixar de notar que, tendo sido ele um homem alto em vida, não houve problema em fazê-lo caber no aposento, com se tivesse se tornado menor. Ao mesmo tempo, via-se em torna da casa uma extraordinária manifestação de luz das cores do arco-íris. Quando no sexto dia olharam dentro da sala, viram que o corpo diminuíra de tamanho. Na manhã do oitavo dia, quando o enterro deveria acontecer, os agentes funerários chegaram para pegar o corpo. Ao retirarem os envoltórios, verificaram que nada havia ali além das unhas e do cabelo.



Meu mestre Jamyang Khyentse pediu que esses restos lhes fossem trazidos, e verificou que se tratava de um caso de corpo de arco-íris.


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