Thomas Merton nasceu na França durante uma tempestade de neve, apenas poucos meses depois do início da Primeira Guerra Mundial. Ele morreu no fim da manhã do dia 10 de dezembro de 1968, em Bangkok, vítima de um acidente inusitado com um ventilador defeituoso.
A reportagem é de Rich Heffern, publicada no sítio National Catholic Reporter, 10-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Formando em Cambridge, na Inglaterra, e na Columbia, em Nova Iorque, entre as duas Guerras Mundiais, Merton experimentou o desencanto com o mundo moderno que muitos dos intelectuais da sua geração sentiram. Sua conversão ao catolicismo romano levou-o a um sistema antigo de valores e doutrinas que se contrapunha ao niilismo e o hedonismo que ele não gostava na sociedade moderna. Em 1941, ele iria encontrar tanto um lar como uma família no claustro monástico da vida comunitária de um mosteiro trapista no Kentucky, nos Estados Unidos.
No começo de sua trajetória lá, ele escreveu a respeito da austera vida trapista: “Os homens que vem aqui são iguais, originalmente, aos homens no metrô [...] mas a diferença é que aqui eles se esqueceram de ser rapazes sábios. Muitos dos meus irmãos são realmente santos”.
Ele desejava estar nesse número, porque “a coisa que faz o maior sentido é estar na presença de Deus e viver sob a Sua vontade, assim como vivemos de ar e de pão”.
Em 1948, sua autobiografia, “A montanha dos sete patamares” (Editora Vozes, 2005), se tornou um best-seller. Nunca deixou de ser impresso e foi traduzido em 15 idiomas. Ele se tornou o monge mais famoso do mundo.
Ele afirmou, ainda, em uma carta a um companheiro monge: “Qualquer um que me imita o faz sob o seu próprio risco. Eu posso prometer a ele alguns finos momentos de desespero nu”.
Em 1965, ele se mudou para uma construção de blocos de concreto de dois quartos, com amplas janelas frontais, a pouco mais de um quilômetro da abadia e começou a viver como um eremita. “Eu estou vivendo como um estilita [1] no topo de um chapéu de eremita. Eu estou completamente sozinho de companhia humana [...] Eu não faço mais biscoitos na fábrica de biscoitos”. Ele compartilhou uma patente próxima de seu eremitério com uma grande cobra preta.
Ao longo dos anos 60, ele escreveu sobre os assuntos controversos: justiça social, direitos civis, armas nucleares, a guerra no Vietnã. “Eu estou do lado das pessoas que estão sendo queimadas, cortadas em pedaços, torturadas, tomadas como reféns, atacadas com gás, arruinadas, destruídas. Elas são as vítimas de ambos os lados. Tomar partido com o poder pesado é tomar partido contra os inocentes”.
Em 1968, “naquele campo de tiro de um ano”, em uma viagem de carro até Bardstown, no Kentucky, ele ouviu no rádio que Martin Luther King Jr. havia sido atingido.
Mais tarde, ele escreveu em seu diário: “Então, o assassino de Martin Luther King [...] pousou no topo daquele carro em viagem como um animal, uma besta do apocalipse. E finalmente confirmou todas as apreensões [...] que as coisas estavam, finalmente, inexoravelmente, se explicando. Por quê? As coisas estão acontecendo porque as pessoas em desespero querem que elas aconteçam? Ou elas têm que acontecer? A raça humana é autodestrutiva? A mensagem cristã de amor é uma lamentável desilusão? Ou alguém deve “amar” só em uma situação impossível?
King estava planejando em fazer mais tarde naquele ano um retiro com Merton como seu diretor espiritual.
Durante o seu último ano de vida, Merton fez viagens aos Alasca, ao norte da Califórnia e finalmente ao Extremo Oriente.
Em seu diário daquelas viagens, ele tomou nota das pichações das paredes de banheiro em Anchorage, no Alasca, e percebeu a sua impaciência com constantes interrupções e pedidos para pequenas conversas entediantes. “Sempre há alguém, em algum lugar, que conhece um trapista”. Ele escreveu um lembrete a si mesmo para futuras viagens de avião: “Pegue o último assento da janela no fundo, próximo da cozinha. Pegue um Bloody Mary [coquetel feito com vodca e suco de tomate] quando as garotas começarem com os seus carrinhos”.
Partindo finalmente em um avião de São Francisco rumo ao Oriente, ele escreveu: “Deixamos o solo, eu com mantras cristãos e um grande sentido de destinação, de estar ao menos no meu verdadeiro caminho depois de anos escrevendo e sonhando e andando à toa. Que eu não possa voltar sem ter estabelecido a grande questão. E sem ter descoberto também a grande compaixão, mahakaruna. [...] Eu estou indo para casa, onde eu nunca estive com este corpo, neste traje lavável”.
No Sri Lanka, no santuário budista de Polonnaruwa, uma antiga cidade abandonada, ele pôde passear entre as ruínas, enquanto seu companheiro, outro padre, esquivava-se da arte pagã à mostra.
Ele olhou uma estátua colossal de Buda dormindo e observou: “A questão a respeito de tudo isso é que não há enigma, não há problema e realmente não há ‘mistério’. Tudo é claro. A rocha, toda a matéria, toda a vida, está carregada com dharmakaya – tudo é vacuidade e tudo é compaixão. Eu não sei quando, em minha vida, eu tive um tal sentido de beleza e de força espiritual correndo juntos em uma iluminação asceta. [...] Eu não sei o que permanece, mas agora eu vi e atravessei a superfície e fui além da sombra e da máscara”.
Ele se encontrou com o Dalai Lama em Dharamsala, no norte da Índia, e então gastou quatro dias de descanso nas montanhas do Himalaia ali perto. Lá ele desenvolveu um relacionamento com Kanchenjunga, a terceira maior montanha do mundo. Ele subiu pela plantação e, primeiro, ele viu a montanha como um enorme cartão postal, mas depois ele escreveu em seu diário que a imensa montanha gelada, o “palácio yin-yang de opostos em unidade”, tinha um lado escondido que não podia ser fotografado. Sua beleza total “não pode ser vista até que você assuma o paradoxo impossível” de saber que a montanha tanto é quanto não é. “Quando nada mais precisa ser dito, a fumaça das idéias se aclara, a montanha é vista”.
Thomas Merton foi um ativista pelo espírito, um Argonauta [2] explorando a alma cristã, uma ponte entre o Leste e o Oeste, um verdadeiro ser humano que compartilhou suas descobertas interiores com todos.
“Nós temos o que procuramos”, ele escreveu. “Nós não precisamos correr atrás disso. Ele estava lá o tempo todo, e, se lhe dermos tempo, ele se fará conhecido para nós”.
Merton esgotou seu tempo muito cedo, mas no fim ele testemunhou esse tempo, e de fato o próprio mundo visível como um todo está construído unicamente sem compaixão. Todo momento e todas as coisas são iluminados pelo amor, amor pelos outros e amor por Deus, que é “misericórdia dentro de misericórdia dentro de misericórdia”.
Notas:
1. Estilita era o nome do monge que, no início do cristianismo, refugiava-se do mundo e passava a viver sobre uma coluna. Diz a tradição que São Simeão (400 d.C.), um asceta sírio, viveu cerca de trinta anos sobre uma coluna de pedras cuja altura chegava a 17 metros.
2. Na mitologia grega, Argonautas eram tripulantes da nau Argo que, segundo a lenda grega, foi até à Cólquida (atual Geórgia) em busca do Tosão de Ouro, ou Velocino de Ouro.
A reportagem é de Rich Heffern, publicada no sítio National Catholic Reporter, 10-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Formando em Cambridge, na Inglaterra, e na Columbia, em Nova Iorque, entre as duas Guerras Mundiais, Merton experimentou o desencanto com o mundo moderno que muitos dos intelectuais da sua geração sentiram. Sua conversão ao catolicismo romano levou-o a um sistema antigo de valores e doutrinas que se contrapunha ao niilismo e o hedonismo que ele não gostava na sociedade moderna. Em 1941, ele iria encontrar tanto um lar como uma família no claustro monástico da vida comunitária de um mosteiro trapista no Kentucky, nos Estados Unidos.
No começo de sua trajetória lá, ele escreveu a respeito da austera vida trapista: “Os homens que vem aqui são iguais, originalmente, aos homens no metrô [...] mas a diferença é que aqui eles se esqueceram de ser rapazes sábios. Muitos dos meus irmãos são realmente santos”.
Ele desejava estar nesse número, porque “a coisa que faz o maior sentido é estar na presença de Deus e viver sob a Sua vontade, assim como vivemos de ar e de pão”.
Em 1948, sua autobiografia, “A montanha dos sete patamares” (Editora Vozes, 2005), se tornou um best-seller. Nunca deixou de ser impresso e foi traduzido em 15 idiomas. Ele se tornou o monge mais famoso do mundo.
Ele afirmou, ainda, em uma carta a um companheiro monge: “Qualquer um que me imita o faz sob o seu próprio risco. Eu posso prometer a ele alguns finos momentos de desespero nu”.
Em 1965, ele se mudou para uma construção de blocos de concreto de dois quartos, com amplas janelas frontais, a pouco mais de um quilômetro da abadia e começou a viver como um eremita. “Eu estou vivendo como um estilita [1] no topo de um chapéu de eremita. Eu estou completamente sozinho de companhia humana [...] Eu não faço mais biscoitos na fábrica de biscoitos”. Ele compartilhou uma patente próxima de seu eremitério com uma grande cobra preta.
Ao longo dos anos 60, ele escreveu sobre os assuntos controversos: justiça social, direitos civis, armas nucleares, a guerra no Vietnã. “Eu estou do lado das pessoas que estão sendo queimadas, cortadas em pedaços, torturadas, tomadas como reféns, atacadas com gás, arruinadas, destruídas. Elas são as vítimas de ambos os lados. Tomar partido com o poder pesado é tomar partido contra os inocentes”.
Em 1968, “naquele campo de tiro de um ano”, em uma viagem de carro até Bardstown, no Kentucky, ele ouviu no rádio que Martin Luther King Jr. havia sido atingido.
Mais tarde, ele escreveu em seu diário: “Então, o assassino de Martin Luther King [...] pousou no topo daquele carro em viagem como um animal, uma besta do apocalipse. E finalmente confirmou todas as apreensões [...] que as coisas estavam, finalmente, inexoravelmente, se explicando. Por quê? As coisas estão acontecendo porque as pessoas em desespero querem que elas aconteçam? Ou elas têm que acontecer? A raça humana é autodestrutiva? A mensagem cristã de amor é uma lamentável desilusão? Ou alguém deve “amar” só em uma situação impossível?
King estava planejando em fazer mais tarde naquele ano um retiro com Merton como seu diretor espiritual.
Durante o seu último ano de vida, Merton fez viagens aos Alasca, ao norte da Califórnia e finalmente ao Extremo Oriente.
Em seu diário daquelas viagens, ele tomou nota das pichações das paredes de banheiro em Anchorage, no Alasca, e percebeu a sua impaciência com constantes interrupções e pedidos para pequenas conversas entediantes. “Sempre há alguém, em algum lugar, que conhece um trapista”. Ele escreveu um lembrete a si mesmo para futuras viagens de avião: “Pegue o último assento da janela no fundo, próximo da cozinha. Pegue um Bloody Mary [coquetel feito com vodca e suco de tomate] quando as garotas começarem com os seus carrinhos”.
Partindo finalmente em um avião de São Francisco rumo ao Oriente, ele escreveu: “Deixamos o solo, eu com mantras cristãos e um grande sentido de destinação, de estar ao menos no meu verdadeiro caminho depois de anos escrevendo e sonhando e andando à toa. Que eu não possa voltar sem ter estabelecido a grande questão. E sem ter descoberto também a grande compaixão, mahakaruna. [...] Eu estou indo para casa, onde eu nunca estive com este corpo, neste traje lavável”.
No Sri Lanka, no santuário budista de Polonnaruwa, uma antiga cidade abandonada, ele pôde passear entre as ruínas, enquanto seu companheiro, outro padre, esquivava-se da arte pagã à mostra.
Ele olhou uma estátua colossal de Buda dormindo e observou: “A questão a respeito de tudo isso é que não há enigma, não há problema e realmente não há ‘mistério’. Tudo é claro. A rocha, toda a matéria, toda a vida, está carregada com dharmakaya – tudo é vacuidade e tudo é compaixão. Eu não sei quando, em minha vida, eu tive um tal sentido de beleza e de força espiritual correndo juntos em uma iluminação asceta. [...] Eu não sei o que permanece, mas agora eu vi e atravessei a superfície e fui além da sombra e da máscara”.
Ele se encontrou com o Dalai Lama em Dharamsala, no norte da Índia, e então gastou quatro dias de descanso nas montanhas do Himalaia ali perto. Lá ele desenvolveu um relacionamento com Kanchenjunga, a terceira maior montanha do mundo. Ele subiu pela plantação e, primeiro, ele viu a montanha como um enorme cartão postal, mas depois ele escreveu em seu diário que a imensa montanha gelada, o “palácio yin-yang de opostos em unidade”, tinha um lado escondido que não podia ser fotografado. Sua beleza total “não pode ser vista até que você assuma o paradoxo impossível” de saber que a montanha tanto é quanto não é. “Quando nada mais precisa ser dito, a fumaça das idéias se aclara, a montanha é vista”.
Thomas Merton foi um ativista pelo espírito, um Argonauta [2] explorando a alma cristã, uma ponte entre o Leste e o Oeste, um verdadeiro ser humano que compartilhou suas descobertas interiores com todos.
“Nós temos o que procuramos”, ele escreveu. “Nós não precisamos correr atrás disso. Ele estava lá o tempo todo, e, se lhe dermos tempo, ele se fará conhecido para nós”.
Merton esgotou seu tempo muito cedo, mas no fim ele testemunhou esse tempo, e de fato o próprio mundo visível como um todo está construído unicamente sem compaixão. Todo momento e todas as coisas são iluminados pelo amor, amor pelos outros e amor por Deus, que é “misericórdia dentro de misericórdia dentro de misericórdia”.
Notas:
1. Estilita era o nome do monge que, no início do cristianismo, refugiava-se do mundo e passava a viver sobre uma coluna. Diz a tradição que São Simeão (400 d.C.), um asceta sírio, viveu cerca de trinta anos sobre uma coluna de pedras cuja altura chegava a 17 metros.
2. Na mitologia grega, Argonautas eram tripulantes da nau Argo que, segundo a lenda grega, foi até à Cólquida (atual Geórgia) em busca do Tosão de Ouro, ou Velocino de Ouro.
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Abaixo, um trecho da carta escrita pelo Pe. Mathew Kelty, OCSO, monge do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora de Gethsemani, no Kentucky, Estados Unidos, por ocasião da morte do monge Thomas Merton, no dia 10 de dezembro de 1968. Pe. Kelty foi noviço de Merton e seu confessor nos últimos anos de sua vida. A carta foi publicada no blog Reflexões de Thomas Merton:
"Não sei como resumir aquele homem; essa idéia nem vem ao caso. Salvo para dizer que ele era uma contradição. Viveu no centro da cruz, onde os dois braços se encontram. Talvez , poderíamos dizer, no coração da vida. Imagino que em nenhum outro lugar a contradição é reconciliada.
Ele era um problema para muitos aqui e em outros lugares. Sei qual é a razão do problema: quero dizer, as tensões aterrorizantes que aquele homem suportou com um tipo de coragem que só o poder de Deus possibilitava. Quando eu estava ao lado dele, sempre sentia que Deus estava perto. E estar perto de Deus é estar perto de algo ao mesmo tempo maravilhoso e terrível. Como o fogo. Queima. As pessoas ficavam sempre tentando sair do lugar que ele criava (simplesmente sendo o que era) para elas encaixando-o em uma ou outra categoria e fazendo com que ele ficasse ali. Dava tão certo como engarrafar neblina! Decidiam que ele era “monge” e o que o monge deveria fazer. Então esperavam que ele o fizesse. Mas ele não fazia. Não podia.
Quando se tornou eremita, decidiam o que é eremita e então viam se ele estava sendo um bom eremita. E ele não estava! A única maneira como eu conseguia viver com ele era amando-o como um todo, como ele era, com todas as suas contradições, e acho que esta é a única maneira de entendê-lo. Esta era a maneira como ele me amava.
Nunca conheci homem mais alegre, mas com tristezas profundas de que era melhor nem falar. Amava a vida monástica, mas a vivia conforme um estilo todo próprio. Tinha um real amor pela vida solitária, mas ninguém aqui tem o amor que ele tinha pelas pessoas, pelo mundo que Deus fez.
Estava acima de tudo que era trivial e miúdo, mas se mantinha a par de tudo e sabia tudo o que estava acontecendo. Podia ser duro como qualquer pessoa, mas era suave e terno como uma criança com um passarinho. Podia ser loquaz e leve, mas também congelar você com sua intensidade e ardor. Seu andar era lépido como o de um homem de vinte anos, mas não conheço muitos que tenham seu senso de compaixão. Amava o mosteiro, mas era crítico de suas fraquezas e tolices. Discutia e argumentava com seu abade assim como um advogado astuto defende uma causa perdida, mas era obediente até o cerne de seu ser. Sua obediência foi testada várias e diversas vezes, e encontrada pura.
Não consigo continuar. Não se recebe com freqüência esse tipo de pessoa das mãos de Deus. Ele é uma testemunha viva de Deus, de Gethsemani, da vida monástica, da Igreja, do mundo. Louvado seja Deus em seus santos agora e para sempre. Amém.
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