domingo, 21 de setembro de 2008

Sociologia do cotidiano de Patópolis


Tio Patinhas no centro do universo (*) (**)

Por: JOSÉ DE SOUZA MARTINS



"Bem, é que no nosso país", disse Alice, ainda um pouco ofegante, "o mais certo seria chegar a outro lugar — depois de correr tanto como nós fizemos".
"Um país muito lento", retorquiu a Rainha. "Não, aqui, como vês, é preciso correr o mais que se pode para ficar no mesmo lugar. Se quiseres ir para outro lugar tens de correr, pelo menos, duas vezes mais depressal
"

(Lewis Carroll, Alice do outro lado do espelho)



(...)



Neste trabalho registro uma leitura sociológica das histórias cujos personagens são os habitantes de Patópolis, figuras criadas pela empresa de Walt Disney. Procuro descrever as relações sociais que vinculam os vários personagens e, através do seu conteúdo, mostrar que elas hierarquizam os patopolitanos por meio de uma escala implícita de valores fundada na figura do capitalista clássico. Essa escala de valores é que se pretende educativa, por meio da definição do gosto do leitor, procurando incutir nele as noções morais de bom, ridículo, delinqüente e louco, entre outras. Tal leitura seria impossível sem a constatação preliminar de que cada personagem é, antes de tudo, mercadoria, que se vende e se compra. Daí resulta o imobilismo que explica os vários tipos e a posição passiva do leitor "educando". Torna-se possível, desse modo, a leitura sociológica das historietas, uma vez que a substância das relações sociais não está primeiro nos vínculos entre os personagens, mas sim na relação da empresa que produz e vende a história e o consumidor que a compra. A historieta sistematiza o universo simbólico que suporta e explica a relação entre produtor-vendedor e o comprador de história em quadrinhos, projetando-o, no entanto, para todas as outras relações, como se substantivamente fossem uma única relação e, em decorrência, os personagens se reduzissem a um.




***

Tio Patinhas, além das suas excentricidades de rico, tem parentes, amigos e inimigos. Cada um possuído por suas próprias características, só consegue definir-se, no entanto, contraponteando com ele. Patinhas é o único personagem que serve de referência na definição e constituição de todos os outros.
Donald, seu sobrinho, vem primeiro na lista dos circunstantes. Um dos herdeiros da fortuna de Patinhas, persegue dolorosamente a existência anômala de rico potencial, cuja vida oscila entre o desemprego e, os empregos que o Tio lhe oferece. Quando empregado pelo Tio vive, entre irado e apavorado, as humilhações que aquele o faz sofrer, desde o salário miserável até as artimanhas e engenhos utilizados para mantê-lo desperto e ativo conforme as expectativas do patrão. Sua humilhação é maior porque o delírio acumulativista de dinheiro do Tio transforma-o numa das peças de um sistema de produzir riquezas, cujo caráter espoliativo consegue perceber, mas ao qual se conforma para não ser deserdado. Excluído dos benefícios da riqueza que ajuda a crescer, com ela se compromete, como se por antecipação fosse sua. Vive o sonho de desfrutar a riqueza que na realidade lhe é vedado.
Seu drama é imenso. É pai sem, ter filhos. Huguinho, Zezinho e Luizinho, os três sobrinhos, representam para ele um encargo paterno e um pesadelo. Podem acompanhar, de modo adulto, toda a incompetência de Donald para o desempenho da maior parte das atividades a que o obrigam as circunstâncias, no emprego ou em casa. Sua determinação de vencer, a desesperada necessidade de ser capaz a que as expectativas inflexíveis de Patinhas o submetem, impedem-no de reconhecer-se incapacitado, bem como o impedem de aceitar sugestões e auxílios dos três sobrinhos. É na interferência dos três que se apóia a maior parte das vitórias de Donald. São eles que, depreciando-o ainda mais, de fato se realizam segundo as regras de Patinhas.
Embora os três correspondam melhor às esperanças de Patinhas do que Donald, eles não repetem o modo de ser, as táticas, as intenções, os recursos do tio senil. São de uma geração de tecnocratas, para os quais não é viável o projeto do enriquecimento pessoal pelo trabalho, pela sorte e pela astúcia. Por isso, agem coordenadamente. Nunca cada, um deles é senhor de um pensamento completo. No mais das vezes cada um se limita a emitir uma única palavra que se junta à palavra do outro e à do outro para que surja uma sentença e uma idéia. Estão articulados entre si como peças ajustadas de um mecanismo rigoroso. Eles têm o que falta a Donald — apenas os pedaços das idéias — enquanto Donald tem o que já é obsoleto — as idéias por inteiro. Isso seria paradoxal, em se tratando de idéias, se para eles o pensamento e a inspiração não fossem objetivamente determinados. Para toda nova situação não há uma idéia nova: há o "Manual do escoteiro% fonte inesgotável de informações que cobre todo o saber possível e do qual se pode receber qualquer resposta ou dado com rapidez, como se viesse de um computador. Para eles a situação é clara: não existem para repetir individualizadamente as mesmas palavras, os mesmos gestos e os mesmos atos que criaram o universo de Patinhas. Não nasceram para produzir o universo, mas para reproduzi-lo.
É aí que representam um pesadelo para Donald, pois este é compelido a repetir sozinho palavras, gestos e atos do criador — Patinhas — sem efeito algum. Seus ataques de ira são indicativos de uma incapacidade fundamental para entender porque à sua atividade é estéril. É que sua condição de herdeiro obscurece a sua condição de trabalhador. Não está entre os deserdados da terra. Não pode ver na riqueza o produto do trabalho, inclusive do seu trabalho, porque ela constitui a massa de bens que -espera receber e que é totalmente desproporcional à sua pequena participação na tarefa de produzi-la. Não pode ver-se na condição de explorado porque se vê na de beneficiário da exploração. Por isso, a sua indignação é sempre e justificadamente uma indignação pessoal, escoada para o nível da irritação descontrolada. Essa é a articulação adequada para transformar o pesadelo de Donald-trabalhador e Donald-desempregado em irritação cômica, em atividade comicamente desastrada. O drama do trabalhador é obscurecido pela comicidade do herdeiro.
Donald é também marido sem ter mulher. Sua namorada Margarida o submete ao regime duro do parceiro de cama e mesa, sem as vantagens do cargo, transformado no perene carregador de pacotes e fazedor de serviços. Margarida não lhe oferece as penas cálidas e macias para que recoste a cabeça atormentada. Ela também o submete ao duro regime da exploração doméstica. De Margarida não se ouve ou vê uma palavra ou atitude de amor, de afeto desinteressado. Para ela, pata venal, a relação entre os sexos é assexuada e utilitária. Nesse plano, ela estabelece com Donald uma relação que amplia a sua esterilidade: não se acasalam nem procriam. Margarida é a fêmea fútil à espera da doação e da rendição incondicional e material dos patos. Não trabalha. Afora o trato das três sobrinhas (Lalá, Lelé e Lili), resumido no adestramento que, por contraposição aos sobrinhos de Donald, as transformará em novas Margaridas, esgota o seu tempo, acompanhada da galinha Clara, nas festinhas da sociedade, vivendo vicariamente a condição de consumidora, não se sabe a partir de que. Para ela Donald é importante apenas enquanto é servil.


Para manter Donald subjugado aos seus caprichos, não hesita em aceitar a corte de outros patos, enciumando-o. O primo de Donald, Gastão, pato de vida fácil, de características mais próximas às de Margarida, sistematicamente empenhado em cortejá-la, pode satisfazê-la em seu afã de consumo, representando sempre um desafio a mais para que Donald se empenhe na luta para preservar ou ganhar aquilo que deseja e nunca alcança: dinheiro ou companhia feminina. Só Margarida não perde — com Donald ou Gastão ela é herdeira virtual de uma parcela da fortuna de Patinhas.
Mas, Gastão é dotado de um dom: ele tem sorte, que lhe é dada por um infalível pé-de-coelho, desde que o tenha sempre consigo. Para ele, tudo se resolve graças aos eflúvios desse talismã, suporte externo que legitima seu modo de ganhar a vida e até a futura herança de parte da riqueza de Patinhas. O talismã tem aí uma importância muito grande, pois Patinhas também tem o seu — a moedinha n.1. A presença desse componente mágico no universo de Patinhas constitui como que a fonte de um direito natural, o direito de enriquecer. Já que todos trabalham — Donald trabalha, Huguinho, Zezinho e Luizinho trabalham e vários outros membros do universo trabalham — é preciso explicar porque uns têm a riqueza e outros não a têm. Esse componente mágico institui uma diferenciação interna fundamental no universo de Patinhas: há os predestinados e escolhidos, cujos talentos se multiplicam (estou aqui trocadilhando com a palavra bíblica "talento", usando-a ao mesmo tempo no sentido de moeda e de dom) e há os demais que não são servos nem bons nem fiéis, de tal modo que misteriosa entidade sobrenatural neles não confia. A sorte representa, portanto, um chamamento mágico, apoiado em símbolos externos. Com isso, nem Gastão nem Patinhas parecem senhores de si mesmos, pois ambos estão subjugados pelos objetos mágicos que lhes garantem a sorte e a riqueza. Dessa maneira, a excepcional riqueza de Patinhas torna-se legítima em face, por exemplo, da modesta existência de Donald. O componente mágico instaura a ordem do universo, pois, do contrário, o Pato Donald subversivamente declararia guerra a seu Tio, dando estrutura e direção à sua irritação perene, efetivando, pois, a profecia de que no fim dos tempos filhos lutariam contra pais, irmãos contra irmãos.
Aparentemente, -a sorte de Gastão é destinada a contrabalançar as adversidades de Donald, através de um contraste que torna a este último mais uma vez cômico. Quase sempre, no entanto, a ajuda tecnocrática e secularizada dos sobrinhos de Donald, senhores de um "talismã" moderno, o já referido "Manual do escoteiro", mediante recursos que separam o pé-de-coelho de seu dono, atenua, desvia ou inverte a privilegiada sorte de Gastão. Esse personagem serve, a um só tempo, para reforçar os fundamentos mágicos da existência de Patinhas e a sua negação, que é o recurso tecnocrático ao "Manual". O "Manual" é a esperança dos desesperançados. Num mundo crescentemente secularizado, o reinado absoluto dos talismãs na distribuição dos bens produzidos pelo trabalho comum poderia fazer com que o Donald irascível se transformasse no Donald consciente, descobrindo que a mágica supremacia dos talismãs poderia ser questionada e até destruída. O "Manual" "democratiza" mais do que o acesso à riqueza, a convivência com a distribuição desigual da riqueza, pois restaura, no plano secular, o princípio ordenados da vida social que encontrara sua primeira eficácia na sorte justificada pelos talismãs.
O Pato Donald não cumpre sozinho as adversidades do universo de Patinhas. Seu primo Peninha acompanha-o, de modo diverso, na trajetória desfavorável. Enquanto Donald é essencialmente um cumpridor de ordens, um pato no trabalho ou em busca de trabalho, Peninha é um pato cheio de imaginação e iniciativa. Sua imensa submissão e boa vontade no atendimento das ordens do Tio leva-o à constante tentativa de inovar. Entretanto, cada iniciativa e cada inovação revelam-se sempre desastrosas. Ao contrário de Donald, não amarga a impossibilidade do cumprimento formal do que lhe é determinado. Não consegue entender por que suas intenções nunca se realizam, por que levam sempre a atos que produzem resultados opostos aos desejados. Peninha não consegue entender nunca o que faz, pois entre a intenção, o ato e o resultado intrometem-se outros componentes da situação que não estão sob seu controle, desvirtuando os seus objetivos. Por isso, não pode decifrar o sentido do que faz. Em termos mannheimianos, Peninha está mergulhado na racionalidade funcional de um universo instituído que "dispensa" os patos e os homens, absorvendo-os apenas no cumprimento do ritual dos papéis sociais rigidamente demarcados.
Peninha e Patinhas estão contrapostos, pois, no plano da criatividade. Enquanto o segundo é criador e criatura na gênese do universo, é senhor das ações e das conseqüências das ações, tem o domínio do que faz, com Peninha se dá o contrário. É que a criatividade de Patinhas se torna impessoal na medida em que ele se submete ao querer objetivo representado pela "moeda n.° 1. Nesse processo, submetido ao reinado das coisas, ele se torna agente e não sujeito da reprodução das coisas e do universo coisificado. Patinhas não é senhor do dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem —diz" ao dinheiro o que deve ser feito, mas é o dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a sua lei natural que é a reprodução crescente, incessante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois está irremediável e totalmente identificado com ele. Peninha inverte a imagem de Patinhas. Tomado de iniciativas é vitimado por elas constantemente. É que essas iniciativas não são canalizadas para o leito natural do que nesse universo é concebido como criação. Peninha quer criar soluções. Patinhas quer criar dinheiro. Peninha não sucumbiu ainda à desumanização que a posse impessoal do sujeito pela riqueza impõe. É que as possibilidades de criar de novo o mesmo universo já estão esgotadas. A fase da acumulação originária encerra-se com Patinhas.
Donald, Gastão e Peninha nascem num mundo constituído e integrado. Nenhum pato pode possuir mais a envergadura heróica do civilizador Patinhas porque no momento histórico por este vivido os dons podiam ser encontrados no mesmo pato. Já seus sobrinhos receberam fatias de um mundo especializado: o trabalho para Donald, a sorte para Gastão, a iniciativa para Peninha. A associação entre eles, porém, não reconstitui o pato heróico: já estão confrontados e em conflito, à espera da herança que virá com a morte do Tio sovina e obsoleto, com suas suíças e polainas à antiga. Os pedaços não podem ser juntados para começar de novo porque cada um deles ainda está tomado pelo mito do capitalista-herói e considera, pois, que o seu próprio dom é o dom essencial. Desse modo, as freqüentes associações entre Donald e Peninha resultam em fracasso, pois cada um tenta a seu modo assumir individualmente a totalidade do mundo. Os pedaços podem ser juntados apenas para reproduzir o já produzido, como fazem Zezinho, Huguinho e Luizinho. Não pode criar de novo quem não tem acesso à moeda n.° 1 e à sua "vontade" impessoal. Os sujeitos misturam-se aos objetos, sem distinção entre uns e outros. Os sujeitos estão sobrecarregados de exigências e significações que não decorrem deles mesmos, tornando-se, portanto, estranhos em relação a si próprios. A natureza humana é subvertida pela mediação dos objetos criados pela atividade humana.
Somente quando essa família volta à natureza é que pode encontrar a sua paz. É na fazenda da Vovó Donalda, no retorno ao mundo natural, que Patinhas aparentemente deixa de reinar. Vovó Donalda o substitui. Aí ela é a senhora do mundo. A natureza dadivosa atenua a exploração dos patos pelos patos. Gansolino, o empregado da fazenda, pode tranqüilamente tirar as suas sonecas nos montos de feno sem que por isso a vida animal e vegetal do estabelecimento rural sofra grandes conseqüências. Nem por isso Vovó Donalda deixará de fazer as suas tortas, sempre disponíveis para todos, inclusive para o próprio Gansolino. Por essas razões, as únicas reuniões familiares, em que todos confraternizam, são presididas por Vovó Donalda, apesar da completa anomalia na estrutura familiar: ela é avó sem ter tido filhos; Patinhas é tio sem, ter tido irmãos e o mesmo se dá com Donald; os três sobrinhos não conhecem pai e mãe. A trágica esterilidade biológica de todos os membros da família só é possível porque na verdade estão em diferentes graus destituídos de humanidade. Vovó Donalda simboliza apenas a recomposição artificiosa do mundo natural. Ainda aí, por trás das aparências, é Patinhas quem reina. A unidade familiar em face da natureza é apenas utopia que ocasionalmente se concretiza para logo mais ser desfeita em resultado de processos substantivos que separam ao invés de unir, que conflitam, ao invés de harmonizar.


É que a unidade do universo de Tio Patinhas não é garantida pela apropriação comum das condições de existência. Por isso, os parentes não formam uma comunidade, nem mesmo uma comunidade familiar e por isso não formam uma família. Os vínculos familiares mais constantemente presentes não são de parentesco por consangüinidade ou afinidade, mas são vínculos dominados pela linha de herança das riquezas. Entre um parente e outro interpõem-se os bens tidos ou esperados. Estão juntos porque a riqueza foi acumulada, foi juntada.
Em conseqüência, as relações sociais que produzem outros personagens do universo, não. parentes — amigos e inimigos — em nada diferem das relações aparentemente familiares.
Maga Patalójika, auxiliada por Madame Min, está obcecadamente voltada para a captura da moeda n.° 1. Deseja para si a fonte mágica da riqueza e supõe que a posse do talismã fará com que ela, que já dispõe de tantos e variados poderes, possa reproduzir em seu benefício a riqueza de Patinhas. Nesse plano, ela e Patinhas são iguais. Ambos acreditam na importância transcendental do talismã como produtor e reprodutor de riquezas. O talismã representa aí, para Patinhas e Maga, os riscos imponderáveis do capitalismo: a sorte de um é a desgraça do outro. Preservar a dimensão mágica da reprodução da riqueza não é apenas um elemento de coerência interna na ditadura dos quadrinhos, mas é também a tentativa de mostrar que o talismã, embora necessário, não é exclusivo. Maga tem poderes excepcionais, pode fazer e desfazer, mas pião pode criar e recriar o capital, pois os outros dois componentes presentes na consciência burguesa de Patinhas — a iniciativa e o trabalho — não podem ser substituídos por bruxaria. Com Maga reforça-se o princípio do direito natural à riqueza, ao talento. No fundo, Maga serve para situar nos limites da ordem o pretenso caráter mágico da acumulação (Ia riqueza. Não é o pato que escolhe o talismã, mas o talismã que escolhe o pato.
Enquanto Maga deseja apossar-se do que ela supõe ser a fonte da riqueza, os irmãos Metralha buscam apossar-se diretamente da riqueza já acumulada. No universo de Patinhas eles representam a conduta anômica dos que aceitam os fins do sistema, mas não os meios institucionais. para alcançá-los. Tanto quanto Patinhas, estão sedentos de riqueza. Mas repudiam os caminhos institucionais para obtê-la. Na verdade, as experiências de cada um dos outros membros do universo, parentes, amigos e inimigos de Patinhas, constituem a reiterada demonstração de que os Metralha têm razão.

Acontece, porém, que a mesma riqueza gerada para as mãos de Patinhas cria os outros componentes do mundo, inclusive os recursos de defesa dá apropriação privada da riqueza. A diferença entre Patinhas e os Metralha é que Patinhas chegou primeiro. A institucionalização dos canais de acesso à riqueza legitimou essa primazia, transformando em ilícitas todas as outras formas de apropriação dos bens. Daí que a vida livre dos Metralha seja sempre apenas curta temporada fora da cadeia. Estão sempre retornando à prisão. Basicamente são iguais a Patinhas, concordam quanto à acumulação da riqueza, discordando apenas quanto aos detalhes na forma de fazê-lo. Estão certos de que a melhor coisa do capitalismo é ser capitalista. O grau de organização dos Metralha para obtenção da riqueza chega a ser empresarial. Os ardis que são interpostos por Patinhas mostram que entre este e aqueles o que há é uma verdadeira competição, freqüentemente decidida através da polícia que responde pela observância da conduta institucionalizada, que, garantindo a igualdade jurídica, garante ao mesmo tempo a desigualdade econômica (Dahrendorf, 1966:29). Em suma, os amigos de Patinhas são amigos do capital. Os seus inimigos são inimigos das formas institucionais e dos mitos de sustentação do capital, embora na verdade sejam amigos do capitalismo.

As histórias se tornam atraentes e engraçadas na medida em que os seus vários cômicos, como Donald e Peninha, retiram a sua comicidade das discrepâncias que há entre suas condutas e o personagem-padrão: Patinhas. A trama das historinhas é una e sólida, amarrada pela valorização do capitalista-herói chamado Patinhas. Ora, Patinhas, sabemos, personifica o capital, assumindo a vida da coisa, vivificando o que é morto, o que é trabalho morto, social, acumulando em suas mãos particulares. Portanto, cada um é ridículo, delinqüente, ingênuo ou louco na medida em que a sua razão particular não é a razão pela qual o capital se institucionalizou socialmente.
É nesse tipo de contraste que o cientista também tem a sua parte na degradação moral que vincula cada um ao Tio Patinhas. O prof. Pardal, inventor desastrado, desespera-se na tentativa de solucionar com a sua inteligência, as suas pesquisas e a sua incansável dedicação à invenção e à descoberta os grandes e pequenos problemas de Patópolis. Seu desligamento do mundo é proverbial nos quadrinhos, em que o cientista é freqüentemente apresentado como louco, ingênuo, alienado, sonhador, perigoso enfim. Por isso, Pardal não pode ter no universo de Patinhas senão a tolerância que piedosamente a nossa hipocrisia burguesa dedica aos alienados mentais. Ele se preocupa 'com pequenas coisas (e nisso é quase infantil), como a invenção de um pula-pula que facilite o transporte das pessoas, ou de um combustível que torne mais rápido, os meios de transporte, ou de uma banheira voadora. Vive, enfim, na esperança de resolver aflitivos problemas do dia-a-dia dos patopolitanos ou na esperança de antecipar e solucionar os problemas que os patopolitanos provavelmente enfrentarão no futuro. Só que Pardal esquece freqüentemente de uma coisa muito importante no universo de Patinhas: é que aí não há lugar para a primazia da utilidade dos objetos. Cada objeto tem que ser, antes de mais nada, uma mercadoria. Por isso, as loucuras de Pardal só desaparecem quando são absorvidas pelo delírio acumulativista de Patinhas. Quando este faz uma encomenda ou solicita uma invenção que resolva um problema crucial para o capital, como unia defesa contra os Metralha ou um equipamento que o torne mais rico. O cientista só deixa de ser doido quando trabalha para o capital, quando perde de vista a perspectiva tola e infantil da condição humana dos patos para atender a demanda da reprodução do dinheiro pelo dinheiro. Aí ele se torna racional, porque a racionalidade é a dos objetos e a do enriquecimento que propiciam quando são comprados e vendidos.
Entre Pardal e Peninha há semelhanças e diferenças. As semelhanças dizem respeito à crença ineficaz na atividade criadora. As diferenças dizem respeito a que um se apóia no pensamento científico e o outro no senso comum para pôr em prática o impulso criador. Ambos são iguais, porém, quando ignoram que tudo 'Já está criado" se se leva em conta que a dinâmica do universo é regida pela riqueza acumulada que insaciavelmente precisa crescer.
De fato, o universo de Patinhas é educativo se tomamos a educação como veículo impositivo de valores. Diante dele as crianças e os adultos podem descobrir como são estúpidos, como são ridículos e alienados quando toleram que na sua personalidade se manifestem grotescos traços humanos. Patinhas constitui um chamado à razão: a razão que faz com que as coisas se relacionem umas com as outras como se fossem dotadas de condição humana e que faz com que as relações entre os homens pareçam relações entre coisas, conforme já observou um sábio alemão.

REFERENCIAS

1. Dahrendorf; Ralf, 1966. Sociedad y líbertad. Editorial Tecnos S.A., Madrid.


2. Dorfman, Ariel e Mattelart, Armand, 1972. Para leer al Pato Donald — Comunicación de masa y. colônialismo, segunda edición, Siglo XXI Argentina Editores S.A., Buenos Aires.


3. Goldmann, Lucien, 1967. Dialética e cultura. Paz e Terra, trad. de Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinbo e Ciseh Vianna Konder, Rio de Janeiro.


4. Mannbeim, Karl, 1946. Libertad y planificación social. Fondo de Cultura Ecorromica, trad. Rubén Landa, México.


5. Merton, Robert K., 1964. Teoria y estnictura sociales, trad. de Florentino Torner, Fondo de Cultura Económica, México — Buenos Aires.


6. Martins, José de Souza, 1974. Conde Matarazzo, o empresário e a empresa — Estudo de sociologia do desenvolvimento, 2.a edição, 1.a reimpressão. HucitecEditora de Humanismo, Ciência e Tecnologia, São Paulo.


(*)Publicado originalmente em Ciência e Cultura, volume 27, número 9, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Setembro de 1975, pp. 943-948. Reproduzido no Caderno de Sábado (suplemento literário do Correio do Povo), Porto Alegre, 4 de setembro de 1976, pp. 8-9.



(**)Com este artigo não tenho a descabida pretensão de parafrasear o surpreendente e ótimo estudo de Ariel Dorfman e Armand Mattelart (Dorfman e Mattelart, 1972) sobre o conjunto dos personagens das historietas industrializadas de Walt Disney. Apenas retomo uma análise que fiz em 1970, como recurso didático, em cursos de Sociologia para alunos de currículos diferentes do de Ciências Sociais. Recebi de diversas pessoas, especialmente ex-alunos, a sugestão para sistematizar e publicar as minhas formulações de então. Depois de resistir por algum tempo, arrisco-me a fazê-lo agora por várias razões, a principal das quais é a de que, fundando-se o trabalho na mesma perspectiva que orientou aqueles autores —decorrendo daí vários pontos de contato —. guarda, no entanto, uma identidade própria que sugere a exploração de outros aspectos do mesmo tema, como notará o leitor.







(Extraído do livro de José de Souza Martins, "Sobre o Modo Capitalista de Pensar" - 3 Ed. - Coleção Ciências Sociais - Ed. Hucitec - 1982)



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