Por: RAM DASS
(Ram Dass (Richard Alpert, Ph.D.) é famoso por suas pesquisas na área psicodélica na Harvard University, e por sua subseqüente investigação e divulgação da ioga e da filosofia oriental em livros tais como Be Here Now e The Only Dance There Is. É o fundador da Seva Foundation e consagra hoje sua vida à ajuda de pacientes contaminados pela AIDS.)
A seguinte história me foi contada por um indiano, há alguns anos, sobre o meu guru, Neem Karoli Baba:
"Certa vez, em Bhumiadhar, onde Baba ia passar a noite, nós todos havíamos comido nossa refeição noturna e nos havíamos recolhido as dez e meia. Por volta da uma hora da madrogada, Baba se pôs a gritar dizendo que estava com muita fome e que queria dal [lentilhas] e chapattis. Acordei e lembreI a ele que já havíamos comido. Mas ele insistiu, afirmando que precisava de dal e de chapattis. Quem pode compreender o que se passa com um ser como ele? Por isso acordei Brahmachari Baba (o sacerdote) e este acendeu uma fogueira e preparou a comida. Já eram cerca de duas horas da madrugada, e estávamos a observar Baba consumir a comida com grande apetite. Então voltamos todos a nos recolher.
"Por volta das onze horas da manhã seguinte, chegou um telegrama avisando que um dos velhos devotos de Baba morrera numa aldeia das planícies (distante cerca de 150 milhas de onde estávamos) na noite anterior, às duas horas da madrugada. Quando leram o telegrama para Baba, ele disse: "Estão vendo, era por isto que eu precisava de chapattis e de dal." Isto despertou a nossa curiosidade pois não estávamos entendendo nada. Insistimos, mas ele não quis acrescentar mais nada. Finalmente, diante de nossa insistência, ele disse, dois ou três dias depois: "Não compreendem? Ele [o homem que morrera] estivera desejando chapattis e dal, e eu não quis que ele levasse consigo esse desejo ao penetrar na morte, pois isso teria afetado um futuro renascimento."
Esta história reflete uma visão da vida e da morte com a qual tenho convivido nestes últimos vinte e oito anos. Quando pergunto a mim mesmo como é que sei que alguma coisa continua depois da morte, reconheço que minha fé tem por base três fontes: minhas próprias experiências, as visões expressas por pessoas que eu conheço e nas quais confio (como as da história que contei acima), e a extrapolação da literatura espiritual que tenho lido. É uma combinação dessas fontes que produz em mim uma convicção tão forte de que nem tudo termina no momento da morte.
Minhas experiências pessoais dizem respeito a entrar e sair de vários estados alterados de consciência. Enquanto explorava esses estados, experimentei de tempos em tempos um estado de desprendimento de minha identidade com o corpo e com a personalidade, o que me permitiu o acesso a um estado de percepção que parece ter pouco a ver com nascimento ou morte, com vir ou ir. Graças à prática da meditação intensiva e ao meu trabalho com drogas psicodélicas, testemunhei a maneira pela qual a mente cria realidades, e atingi o domínio que fica além do pensamento. Um dos resultados disso foi que cheguei a uma certa compreensão intuitiva dos estados post-mortem - compreensão que foi a seguir corroborada pelas duas outras maneiras de conhecer mencionadas acima.
É óbvio que as conclusões que vou apresentar a respeito do que acontece depois da morte não são "conhecidas" por mim no sentido científico usual, que determina os critérios para conhecer o que conhecemos. Na verdade, é somente porque eu ouço e respeito meu coração-mente intuitivo, considerando-o como meio de conhecimento, embora esse meio não esteja aberto aos critérios de reprodutibilidade pública, que pude dispor de abundantes informações sobre os estados post-mortem.
Observei que, devido a essas experiências pessoais, assim como às oportunidades que aproveitei familiarizando-me com pessoas sábias e com a literatura que dá apoio a essas experiências, meus próprios temores com relação à morte foram profundamente atenuados. Conseqüentemente, tenho sido capaz de trabalhar com pessoas que estão agonizando e proporcionar-lhes qualidades de equanimidade e paz diante do desconhecido - qualidades que parecem lhes ter sido benéficas. Durante os momentos que tenho passado junto a pessoas que estão se aproximando da morte, descobri que a única coisa que funciona é a verdade; sou assim forçado a examinar e a reexaminar minha fé na vida após a morte. É este, então, o cadinho pelo qual passou aquilo que vou compartilhar com vocês.
Nas tradições espirituais do Oriente afirma-se que as formas-pensamento às quais estamos ligados no momento da morte determinam o que acontecerá a seguir. Como disse certa vez o meu guro: "Basta-lhe desejar o próximo hausto de ar e você terá um novo nascimento." É devido a esse efeito imediato de nossos pensamentos e desejos no momento da morte que, nos países onde é muito difundida a crença na reencarnação, dedica-se tanta atenção à preparação para esse momento. Os tibetanos, por exemplo, descrevem maneiras de evitar ficar atolado na sensação de peso que surge quando o elemento "terra" do corpo é dissolvido; ou na sensação de secura, quando é o elemento "água" que se dissolve; ou na sensação de frio, quando o elemento "fogo" é dissolvido; ou na sensação de que a expiração é mais prolongada que a inspiração, que ocorre com a dissolução do elemento "ar".
Esta ênfase atribuída no Oriente à importância das formas-pensamento no momento da morte é apoiada pelas evidências fomeddas pelos estudos sobre o xamanismo e pelas pesquisas da consciência. Os xamãs, por exemplo, sabem que a natureza dos pensamentos que se tem quando se inicia a "viagem" xamanista através de estados alterados de consciência possui uma importância crucial para a detenninação da natureza dessa viagem - definindo se as visões encontradas serão paradisíacas ou infernais. (Daí a ênfase na "purificação" - seja através do jejum, da transpiração ou de outras práticas ascéticas - antes das iniciações xamânicas.) De maneira semelhante, os pesquisadores ocidentais das drogas psicodélicas descobriram bem cedo que a disposição mental de uma pessoa no início da experiência psicodélica é um fator determinante para a qualidade dessa experiência. Desse modo, se é de fato provável que os estados post-mortem se assemelham a estados alterados de consciência, parece igualmente provável que o estado da mente de um indivíduo no momento de sua morte exercerá uma poderosa influência sobre a natureza de sua experiência após a morte.
Podemos nos referir à parte do indivíduo que atravessa o véu da morte física como sendo a "alma", muito embora possamos considerar que essa "alma" é, ela própria, apenas uma forma-pensamento mais sutil, que eventualmente se dissolve ao se realizar a plenitude do que se expressa no termo budista anatta (não eu). Aquilo em que a alma finalmente se dissolve está, sem dúvida, além do que as palavras conseguem descrever, como testemunharam muitos seres iluminados. Há, no entanto, muitos símbolos que apontam para essa verdade suprema. Muitas palavras, tais como Deus, Nirvana, Aquele que não tem Forma, e assim por diante, são usadas para indicar o Mistério. Essas palavras, porém, são apenas "dedos apontando para a Lua"; pois a mente humana cognoscitiva, com todas as suas muletas conceituais e simbólicas, deve ser deixada para trás quando o indivíduo morre e imerge na verdade suprema.
Intelectualmente, podemos compreender que do ponto de vista da verdade suprema, a própria reencarnação é uma ilusão; no entanto, não somos capazes de nos desenredar da teia dessa ilusão até que os últimos impulsos de apego da mente sejam apaziguados. Na viagem evolutiva, a maioria de nós não precisa se preocupar por enquanto com a dissolução no nada, pois ainda possuímos carma (inércia de apegos passados) suficiente para nos levara transmigrar, como almas, ao longo de muitos nascimentos vindouros.
Os grandes mestres espirituais sustentam que aquilo que experimentamos após a morte também é função de nossa evolução como almas - evolução que se reflete da maneira mais clara na qualidade da manifestação da vida que estamos completando. Agrada-me pensar que o nascimento humano é mais ou menos como inscrever-se num curso de grau intermediário: ali permanecemos enquanto se faça necessário para que nossa alma conquiste nesse grau específico aquilo de que precisa; depois disso, estamos naturalmente preparados para prosseguir em nossa evolução ao deixannos esta vida. Desse modo, a alma deixa o plano físico no momento exato: nem um instante antes, nem um instante depois. A maneira de deixá-lo faz parte do currículo da alma. E o que ela leva consigo ao deixá-Io é a essência daquilo que foi a sua vida - uma essência que a alma conhece ainda que tenha sido deixado para trás o cérebro que promove o pensamento.
De acordo com várias escolas de filosofia perene, essas "jovens almas" profundamente entrincheiradas no apego ao corpo físico morrem imersas num invólucro físico sutil no qual experimentam uma espécie de "sono" confuso. Afirma-se que sua identificação com a grosseira materialidade do corpo faz com que elas estejam mal preparadas para perceber que continuam a existir depois de terem morrido; daí a sua confusão e algumas débeis tentativas de seguir adiante como se estivessem vivas. Tenho a impressão de que elas se surpreendem bastante quando ninguém, no plano físico, toma conhecimento delas. Esses seres são então, de maneira totalmente inconsciente, reprogramados pela inércia de seu carma (uma espécie de "ADN psíquico") para ingressarem em seu próximo nascimento. Aqueles que possuemem apegos físicos extremos, geralmente estabelecidos pela ganância ou pelo rancor, com freqüência continuam no plano físico, ou em suas proximidades, como aquilo que, ãs vezes, as pessoas percebem como fantasmas ou poltergeists.
Quando a alma está mais evoluída, sucede que por volta do final de sua encarnação sobre a terra ela chega a ficar suficientemente desperta para se dar conta de sua situação de modo a desvencilhar-se de um ou mais de seus "invólucros" ou "véus" - isto é, dos seus diversos corpos ou veículos de consciência (físico, astral, emocional, mental e espiritual) descritos no vedanta, na ioga e em outras tradições meditativas. Uma alma que esteja nesse nível de evolução percebe de imediato, um momento após a morte, o que aconteceu, e sente-se expandir à medida que se liberta do receptáculo da encarnação. A alma pode hesitar durante algum tempo, enquanto se sente tolhida entre o prazer por estar livre da encarnação e a atração exercida pelo amor que a prende àqueles que deixou para trás. Mas depois de algum tempo ela compreende a maneira como as coisas têm de ser, e, sozinha ou acompanhada por um guia, prossegue, entrando em outro domínio.
Nesse estágio, a alma pode ingressar num domínio mental, se os seus apegos estiverem aí, ou então nos domínios vital ou emocional. Estes últimos freqüentemente são chamados de domínios astrais, ou, no budismo Mahayana, bardos ou "ilhas intermediárias". Ao morrer nesses domínios, os tibetanos dizem que a alma pode conservar a consciência e ter aí experiências detalhadas - por exemplo, atravessar túneis de luz, sentir-se repleta de imensa alegria e de profundo amor, encontrar seres com corpos sutis luminosos e que são familiares à alma, vivenciar domínios de cores e de sons intensos, e assim por diante.
Depois de passar algum tempo nesse domínio, afirma-se que a alma - sozinha ou com a ajuda de guias - reflete sobre a sua viagem cármica anterior e, como resultado dessas reflexões, se prepara e se programa para sua próxima encarnação. Evidências fornecidas por pessoas que, durante contatos imediatos com a morte, tiveram "lembranças panorâmicas" nas quais vivenciaram uma profunda compreensão do significado de toda a sua vida parecem confirmar a veracidade desse ensinamento.
Na ioga e no vedanta, ensina-se que uma alma ainda mais evoluída, que, por ocastao de sua morte, rompe sua identificação com seus corpos sutis pode atravessar, plenamente consciente, o portal da morte e ingressar nos domínios mais elevados ou "causais" (por vezes denominados "campos de Brahma"), e permanecer em sua forma essencial mais sutil durante algum tempo, em sua viagem.
Em algumas escolas, acredita-se que, a menos que essa alma seja iluminada, ou completamente liberada da ilusão da separatividade, depois de passar nesses domínios sutis um período mais ou menos prolongado, ela inevitavelmente enveredará por uma outra encarnação num corpo físico. Intimamente, no entanto, eu não tenho muita certeza de que uma alma deva encarnar-se por meio de um nascimento físico antes de sua libertação final da ilusão da separatividade. O trabalho final talvez possa realizar-se em outros domínios, ou talvez não. Neste estágio de meu desenvolvimento, eu simplesmente não o sei, e terei de esperar para ver. O que eu sei é que o momento da morte (ou o "soltar o corpo", como dizem na Índia) é o momento mais excitante da vida. E acredito que a melhor maneira de se preparar para ele - assim como é a melhor maneira de viver a própria vida - é Estar Aqui e Agora, plenamente presente e atento neste exato momento.
Quando praticamos o exercício de permanecer atentos ao momento presente, insistindo sempre em trazer a mente de volta à atividade que estamos exercendo a cada momento - seja ela a tarefa de lavar pratos, de erguer o pé ao caminhar ou simplesmente a de inalar o próximo hausto de ar - mais cedo ou mais tarde a mente deixa de reagir com apego ou aversão aos pensamentos ou às sensações. Este desprendimento permite que nossa consciência se desloque sem "bagagens" de um momento para o momento seguinte. Como disse Cristo: "Vejam, faço novas todas as coisas."
Essa prática envolve o deixar que o momento passado morra ao emergir o novo momento. Então, deixaremos de amarrar o passado no presente, e o presente no futuro. Embora seja relativamente fácil manter esse tipo de prática em situações que envolvem pouca ou nenhuma tensão, é difícil permanecer imune à atração ou à aversão quando são intensos os estímulos presentes na situação. No entanto, com bastante prática isso é possível. Estamos então preparados para manter nossa atenção num estado de constância e de disponibilidade para o momento que vem a seguir, mesmo que este seja o momento da morte física, quando estão ocorrendo muitos estímulos poderosos. Desse modo, não levamos conosco nenhuma bagagem ou "velho carma" quando atravessamos o portal da morte. Na verdade, ninguém está atravessando o portal da morte. Pois até mesmo a idéia de um eu foi deixada para trás.
Quando perguntaram a Buda, um ser plenamente evoluído, para onde ele iria quando chegasse o momento de sua morte, ele respondeu: "Para onde vai o fogo depois que o combustível se consume?" Aí está!
(Texto extraído do livro: "Explorações Contemporâneas da Vida Depois da Morte" - Gary Doore, Ph.D. - Ed. Cultrix)
3 comentários:
Valeu por dar uma passada no meu blog, eu estou estudando aos poucos e postando parte dos meus estudos. O projeto ainda está ingatinhando...
Rafael
Bonissimo!
Bom!
OM
Grato
E aí Rapha ??
Andou sumido...
Senti sua falta ;)
Abraços !
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