terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Sinto, logo existo - Por uma antropologia dos sentidos



Por: Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia


(RESENHA da obra de LE BRETON, David. "El sabor del mundo – Una antropología de los sentidos". Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 2007, 367 p.)


“El mundo es la emanación de un cuerpo que lo penetra. (...) Antes del pensamiento, están los sentidos” (p.11).

Com essas frases, ainda no primeiro parágrafo do livro, David Le Breton inicia mais uma das críticas ao pensamento de Descartes e sua influência nas noções de corpo no imaginário ocidental. O objetivo de sua afirmativa, “sinto, logo existo”, é estabelecer as bases de uma antropologia dos sentidos focada no papel da orientação cultural e das experiências pessoais nas percepções sensoriais, entendidas como sensibilidades individuais ou projeções de significados do indivíduo sobre o mundo a partir das suas relações com o entorno, das suas formas de comunicação e percepção, enfim, do seu engajamento corporal no mundo.


Ao tratar da corporeidade e o conhecimento do mundo, Le Breton retoma contribuições de duas obras fundamentais de Maurice Merleau-Ponty: Fenomenologia da Percepção (1999) e O visível e o invisível (1999a). Merleau-Ponty mostra em Fenomenologia a relação entre o corpo e o espaço exterior na dinâmica das percepções sensoriais, pois é no movimento, na prática que a espacialidade do corpo se realiza. Segundo o autor, “o movimento não se contenta em submeter-se ao espaço e ao tempo, ele os assume ativamente, retoma-os em sua significação original” (1999, p. 149). O homem se efetiva pela ação do corpo no tempo e no espaço. O corpo habita o tempo e o espaço e essa é a condição humana do conhecimento. Para Lê Breton, isso é essencial para refletir sobre a tomada de consciência sensível do mundo, a inscrição do homem no seu entorno e a elaboração simbólica do seu meio através das percepções sensoriais. Se o corpo tem a mesma carne que o mundo, como propõe Merleau-Ponty em O Visível e o invisível (1999a), “a carne é a via de abertura para o mundo”, sugere Le Breton (p. 21). O corpo não é então um limite ao conhecimento do mundo pelo espírito. É, pelo contrário, a forma do homem experienciar o mundo e a si próprio, agir e atribuir significado à concretude do mundo e reconhecer a si mesmo como um ser, “uma criatura de sentido” (p. 22), a partir do sistema simbólico que vivencia. Conceitua, assim, o corpo em atividade de conhecimento como condição de entrelaçamento do homem com o mundo através dos fluxos de sentidos. Em suas palavras, “frente al mundo, el hombre nunca es un ojo, una oreja, una mano, una boca o una nariz, sino una mirada, una escucha, un tacto, una gustación o una olfacción, es decir, una actividad” (p. 22). O indivíduo se apropria simbolicamente do mundo através de suas percepções, suas projeções de significados sobre o mundo. As percepções sensoriais são tidas por Le Breton como interpretações pessoais do universo de sentidos resultantes da experiência do sujeito a partir da sua localização social e dos códigos simbólicos que compartilha. Cada sociedade configura um modelo sensorial próprio, particularizado pelas experiências e vinculações dos indivíduos que a constituem.



Ou seja, qualquer socialização é uma restrição da sensorialidade possível e, sendo assim, “experimentar el mundo (...) es percibilo com su estilo propio em el seno de uma experiencia cultural” (p. 14). As percepções, sejam olfativas, visuais, auditivas, tácteis ou gustativas, remetem às memórias e emoções fundantes do enraizamento dos indivíduos no mundo social como marcas da experiência decodificadas pelo sistema simbólico. Os dados sensíveis são referenciados por eventos significativos da vivência do indivíduo e, dessa forma, distendem o tempo pela via da rememoração, da evocação de diversas emoções possíveis. Tais propostas estimulam investigações que tenham o corpo como matriz da identidade, com vistas às relações e fronteiras em jogo no social dinamizadas pelas atividades de interpretação e expressão sensoriais. Para Le Breton, o antropólogo deve se abrir às outras culturas sensoriais, estranhar seus sentidos, e, nesse desprendimento perceptivo, acessar outras maneiras de sentir o mundo (p.16). O antropólogo tem o papel de se colocar como outra percepção possível nesse universo de sentidos, de buscar compreender os significados das trocas permanentemente agenciadas pelos sujeitos em suas relações intersubjetivas.


Ao longo do livro o autor expõe um extenso mosaico de dados ilustrativos sobre o papel das percepções nas mais diversas sociedades e épocas como forma de dar sustentação a suas argumentações. Aponta inúmeras direções abertas para explorações no universo das sensibilidades - algumas já mais percorridas que outras. Desde o longo processo histórico que edifica a hierarquização do universo sensorial no mundo ocidental e confere à visão o papel de metáfora do conhecimento, do esclarecimento à visão de mundo, até o cafuné e a sensualidade própria dos negros no Brasil escravagista, da repugnância como emoção socialmente construída e simbolicamente elaborada ao universo acústico próprio a cada comunidade humana, o autor apresenta elementos e inspirações para a antropologia dos sentidos. Em sua análise sobre a supremacia do olhar em relação aos outros sentidos corpóreos no ocidente, Lê Breton reconstrói o processo de configuração da idéia de individualidade relacionado à visão. Busca então na Renascença a celebração da visão, a maior instância das atividades sensoriais e, em conseqüência, a estigmatização da cegueira como a maior das invalidezes, a impossibilidade efetiva de qualquer lucidez ou discernimento. Como “janela da alma”, a visão ganha a partir de então o estatuto de sentido primordial pela importância do distanciamento, da diferenciação entre o eu e o nós, que tem nas biografias e retratos, bem como nos auto-retratos característicos desta época, seu traço revelador. A demarcação do individual na sociedade ganha forma simultaneamente à elevação da visão ao posto de sentido “mais nobre” por ser o sentido próprio da distinção.

Pelo distanciamento, “la vista cobra importancia en detrimento de los sentidos de la proximidad, como el tacto, el olor o el oído. El progressivo alejamiento del otro a través del nuevo estatuto del sujeto como individuo modifica asimismo el estatuto de los sentidos” (p. 37). A epígrafe e o encerramento do livro – nomeado ouverture - são citações de Marcel Proust em No caminho de Swann, inspiração para leituras e reflexões sobre sensibilidades e emoções, memórias impregnadas no corpo em sua trajetória pelo mundo, recordações da “inesgotável profusão” de estímulos experienciada, envolvidas pelo encanto do vivido que revelam a consciência “amarga e doce” das limitações humanas (p. 345). Assim é também, afirma Le Breton, o antropólogo em seu ofício. Leves toques na aproximação da infinitamente profunda dimensão do humano, mas com a consciência do seu encanto pelo efêmero, pelos deslocamentos e retornos tão inúteis quanto plenos de significados, para quem a investigação vale por si mesma, pois a percorre, como Proust, com “a emoção à flor da pele” (Idem).

Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia

(Fonte: RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 7, n. 21, pp. 668
a 675, dezembro de 2008.)






Referências





MERLEAU-PONTY, Maurice. (1999). Fenomenologia da Percepção. São Paulo, Ed. Martins Fontes.



MERLEAU-PONTY, Maurice. (1999). O visível e o invisível. São Paulo, Ed. Perspectiva.



PROUST. Marcel. (2001). No caminho de Swann. Rio de Janeiro, Ed. Globo.




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