Por: Bel Cesar
(Texto extraído do livro NgelSo -Autocura III, de Lama Gangchen Rimpoche . Ed. Sarasvati)
Fonte: http://somostodosum.ig.com.br/conteudo/conteudo.asp?id=2368
Toda forma de meditação é, basicamente, uma maneira de transcender o ego, ou de morrer para o ego. Neste sentido ela imita a morte - isto é, a morte do ego. Quando progride razoavelmente bem num sistema qualquer de meditação, o indivíduo pode atingir um ponto em que, tento "testemunhado” de maneira tão exaustiva a mente e o corpo, ele realmente se ergue acima da mente e do corpo, isto é, os transcende; "morre", assim para eles, para o ego, e desperta como alma sutil, ou mesmo espírito. E isto é efetivamente vivenciado como uma morte. Por isso pode tratar-se de uma experiência simples, de uma transcendência pacífica do dualismo sujeito-objeto ou de uma experiência verdadeiramente aterradora (porque constitui uma espécie de morte). Mas, seja pacífica ou dramática, rápida ou lenta, a sensação do EU separado morre ou se dissolve e o indivíduo encontra uma identidade superior e anterior como o espírito universal.
O Tantra budista está dividido em quatro tipos, que correspondem a quatro níveis de habilidade iogue - Ação, Execução, Ioga e Ioga mais Elevado. A forma suprema, o Tantra Ioga mais Elevado, tem como objetivo a interrupção da morte e do renascimento, bem como do estado intermediário entre os dois e a transformação deles no Estado de Buddha. Isso é realizado através de uma série de iogas que têm como modelos os processos da morte, do estado intermediário e do renascimento, até que o ioguim obtenha tal controle sobre eles que não fique mais sujeito à morte.
Como essas iogas estão baseados na simulação da morte, é importante para o ioguim saber como os seres humanos morrem - as etapas da morte e as razões fisiológicas por trás delas. A descrição tântrica das mesmas está baseada numa teoria complicada de ventos, ou correntes de energia, que servem como alicerces para vários níveis de consciência. Sob o colapso serial da eficácia desses "ventos” em servirem como bases para a consciência, os eventos da morte - internos e externos - se desenvolvem. Desse modo, o estudo da morte para um praticante do Tantra Ioga mais Elevado é baseado nesses "ventos” e nas consciências dele dependentes.
Através da prática do Tantra Ioga mais elevado, o ioguim procura fazer com que esses ventos, tanto em suas formas mais grosseiras como nas mais sutis, se dissolvam no vento mais sutil de sustentação da vida, localizado no coração.
Essa ioga reflete um processo semelhante ao que ocorre na morte e que envolve a concentração nos canais e nos centros dos canais no interior do corpo.
Observação: a meditação anutarayogatantra é uma forma de prática que envolve a fixação da concentração em diferentes partes do corpo. Fazendo isso, é possível ultrapassar o método analítico de meditação.
O sutrayana apenas descreve como analisar o objeto, isto é, como adquirir a compreensão interior da natureza do objeto através do raciocínio, etc...
O mahanutarayoga tantra, entretanto, ensina, além disso, certas técnicas que usam os canais e os ventos sutis para ajudar a controlar mais efetivamente os pensamentos. Estes métodos ajudam a ganhar rápido controle sobre a mente dispersa e a melhor atingir um nível de consciência ao mesmo tempo sutil e poderoso. Esta é a base do sistema.
Precisamos treinar o conhecimento e a experiência dessa visão interna agora, antes de morrermos. Fazemos isso por meio das várias meditações na absorção da energia sutil do corpo numa sílaba-semente mântrica que progressivamente encolhe e desaparece no Espaço interno. Isso simula o movimento de nossos ventos de energia durante a morte, e desenvolvemos, então, um conjunto semelhante de experiências internas.
À medida que nossa prática da Autocura melhora, é nos possível passar pelo mesmo processo elemental de absorção que acontece na morte, incluindo a parada de nossa respiração grosseira; mas a intensidade é menor, e não experimentamos aí a poderosa desintegração dos elementos do mesmo jeito que o faremos na nossa morte real. Não se preocupem! Nossa língua não encolherá, nem nossos fluídos do corpo secarão. As práticas Mahamudra de Autocura Tântrica relativas à transformação da morte no caminho do Dharmakaya são como a morte com o botão do volume virado para baixo.
Quando a meditação tântrica de Autocura relativa à morte começa a funcionar, as pessoas normalmente se descontrolam, sentindo que estão de fato morrendo e sua visualização criativa é, de repente, um pouco real demais (especialmente quando a respiração pára pela primeira vez).
Precisamos encarar e transformar esse medo poderoso da morte.
Mesmo que nossa respiração cesse, devido à meditação; mesmo que todas as oito visões internas apareçam com clareza em nossa mente, não morreremos, porque nosso karma de vida não terminou e, portanto, não é o tempo da nossa mente muito sutil deixar o corpo. (Grandes yogues podem até mesmo ter sangue saindo do nariz sem que morram).
Na verdade, esse tipo de meditação tântrica de ensaio na morte ajuda-nos a viver por mais tempo, porque estamos economizando nossa respiração. E também, apenas ao verdadeiramente abraçarmos a morte é que podemos aprender a como estarmos verdadeiramente vivos.
Se ao longo da vida nós estivermos familiarizados com a experiência da morte, seja em sonhos ou em meditações, então, quando a hora chegar, seremos capazes de reconhecer com clareza cada etapa.
Porque temos uma mente em paz e atenta, as visões internas se manifestarão mais clara, estavelmente, e por um tempo mais longo que o normal.
Durante cada visão interna, à medida que nossos ventos de energia elemental se dissolvem, precisamos sentir muito fortemente que essa é uma projeção de nossa mente, uma manifestação do Espaço interno da vacuidade.
Se perdermos a atenção, nós nos tornaremos "inconscientes", e mesmo que as visões internas surjam na nossa mente, não estaremos atentos a elas ou não saberemos como usar a energia desse momento. Então acabaremos tendo outra morte descontrolada, que é como cair nas profundezas do sono desatento normal e acordar chocado numa nova vida, perguntando-nos onde estamos e quem somos. Buddha significa: "O Totalmente Desperto".
Se morrermos com atenção, podemos integrar nossa experiência meditativa da morte e nossa mente muito sutil, chamada clara-luz-filho, com a própria experiência da morte. Podemos usar a experiência da morte para despertar do sonho da vida. No momento da morte, nossa mente muito sutil se manifesta em seu pleno esplendor, e é então chamada de clara-luz-mãe.
Todo mundo experimenta a clara-luz-mãe brevemente quando morre, mas apenas meditadores tântricos podem prolongar a mente muito sutil final dessa luz e misturar mãe e filho claras-luzes. Essa clara luz da morte ou clara luz da bem-aventurança é o nível mais fundamental da consciência humana e é a parte de nós que sobrevive à morte. Nossa personalidade e memória ordinárias são apagadas durante as absorções da morte.
Tudo o que restará de nós depois dela será o "continuum" de nossa mente muito sutil de clara luz e dos ventos de energia (nosso disco de Espaço interior) e os imprints kármicos nele armazenados. Por causa dos imprints negativos armazenados no disco do Espaço, para a maior parte das pessoas a morte não é uma experiência útil. Se praticarmos a Autocura Tântrica agora, a morte será uma experiência muito bela, confortável e significativa, como ir para nossa casa verdadeira, e encontrar nossa mãe querida após muitos anos de separação.
Assim quando a morte chegar este processo não será desconhecido. Isto ocorre com os Bodhisattvas que por conhecerem todo o processo da morte e do bardo podem decidir voluntariamente a onde e quando reencarnar.
Este tipo de meditação que imita a morte não é algo perigoso, pois o corpo não morre, realmente nem atravessa, na realidade, os estágios concretos do processo da morte. Apesar de ser uma imitação muito concreta e muito real.
Onde quer você vá, seja o que fizer ou o que lhe acontecer, recorde-se de que é ilusório. Pratique reconhecer:
"Isto é um sonho; não há nada sólido ou permanente nesta experiência. Isto é o bardo".
Reze ao objeto de sua fé para que você venha a conseguir liberação.
Se você estabelecer esse hábito bem antes da sua morte, irá se lembrar desta meditação e oração no Bardo.
Bel Cesar é terapeuta e dedica-se ao atendimento de pacientes que enfrentam o processo da morte.
Autora dos livros Viagem Interior ao Tibete, Morrer não se improvisa, O livro das Emoções e Mania de sofrer pela editora Gaia.
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