quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O espelho quebrado


O MOMENTO DA PSICANÁLISE

Por: Fábio Herrmann

Os seres humanos são pessoas muito estranhas e até absurdas. Se você já o percebeu, acho que andou a terça parte do caminho para se tornar psicanalista. O segundo terço do caminho consiste em aprender algumas coisas: o método, a teoria e a técnica psicanalíticos, de que lhe vou falar um pouco neste livrinho. Quanto à última e mais difícil etapa, que é a de você mesmo descobrir que é também uma pessoa estranha e absurda, isto é, que é um ser humano, lamento não poder ajudá-lo a percorrer, pelo menos escrevendo: talvez fosse preciso fazer análise.


Todavia, como estava dizendo, os homens são pessoas estranhas e absurdas. Enquanto outros bichos têm relativamente pouco trabalho em construir sua residência, porque parecem satisfeitos com o mundo que encontram — o que os cientistas chamam "sistemas ecológicos" —, os homens têm passado seu tempo tentando construir uma casa para si, gastando nisso um trabalho insano, sem nunca ficarem contentes com o resultado. Construíram instrumentos de osso e de eletrici­dade; domesticaram as plantas, os primos animais e até seu próprio pensamento selvagem; edificaram cidades, sistemas filosóficos, ciência e tecnologia. Tudo fizeram para ter um mundo sob medida, quer dizer, um mundo na medida humana.

Mas não desprezemos os homens por causa disso. Coitados, eles talvez não tivessem outro jeito de sobreviver! Em primeiro lugar, quando os bebês humanos nascem e por longo tempo depois são muito indefesos e incapazes para a vida: não conseguem comida sozinhos, não sabem defender-se do frio, queimam-se com a própria urina etc. Logo, era mesmo necessário viver em grupo, construir abrigos e um sistema social. Por outro lado, os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer de comer e o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso — coisa a que os psicanalistas chamam "satisfação aluci­natória do desejo". Alguns talvez até morram de fome, sonhando, sonhando. Por fim, enquanto os animais ferozes quase nunca matam os de sua espécie — "inibição da agressividade intra-espeçífica—, é como os estudiosos do comportamento animal (ou etólogos) chamam a essa prova elementar de sensatez —, os homens chegam a gostar de fazê-lo. Para sobreviver, então, ou pelo menos para se poderem dominar e matar civilizadamente, foi preciso que os homens domesticassem a natureza.

Por que, entretanto, esse trabalho não tem fim e nem é considerado satisfatório? Bem, se você pertence a uma família mais ou menos rica, prova­velmente já mudou de casa algumas vezes. De cada vez, a casa era perfeita, não é verdade? — construída sob medida para o desejo de sua família, com tantos quartos, garagens e televisões quantos bastassem para fazê-los felizes —, porém, quando lá moravam, descobriam que ainda não estavam satisfeitos nem felizes. Aí mudavam, reformavam a casa ou compravam um videocassete; e, insatis­feitos ainda, tornam a mudar ou instalam uma mesa completa de som. Se esta é sua história habitacional, não se culpe, nem a seu pai: culpe a casa; e estará bem integrado com o resto da humanidade.




É que a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos,não sabemos bem o que desejamos.

Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que "somos dese­jados" desta, ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e, dizia, constrói-se e constrói o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito freqüentes. Ora, se o tempo e o espaço são infinitos demais, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?

Numa palavra, ao domesticar o mundo, os homens irritam-se ao ver que construíram uma casa que os retrata maravilhosamente bem, que exprime seu desejo, tanto naquilo que gostam, como naquilo, que odeiam — a esta última parte de seu desejo chamam desumana, dizem que não ,é deles, que é um resto que deve ainda ser dominado.

Talvez por esta última razão, a construção do mundo humano se tenha ultrapassado. Você já viu alguém fazer uma lição com má vontade, pensando que quer realmente fazê-la bem. Aparecem erros a cada linha, manchas de tinta, lapsos de português, e o estudante começa a escrever adoidado, obsessivamente, errando e copiando errado. Assim, a espécie humana adquiriu uma estranha obsessão de domesticar, familiarizar, educar. Se seus pais o educaram assim, você provavelmente será exatamente como eles o desejaram; e, no entanto, tanto eles como você mesmo terão a impressão de que tudo saiu às avessas, pela simples razão que ambos ignoram boa parte do modelo que foi impresso e não o reconhecem depois de pronto. Domesticar significa adaptar às normas da casa (que em latim se diz domus); familiarizar significa tornar algo familiar, como que "da família". Mas, como os homens negam-se a admitir grande parte de seu desejo, quanto mais doméstico e familiar vai ficando o mundo, mais estranho e desumano lhes parece. Desumano, que calúnia!

Sucedeu então que este grande projeto de construir um mundo à medida humana, que é o de todas as culturas, acelerou-se subitamente e estreitou-se. Uma das maneiras de realizá-lo parece dominar todas as outras; e, não tendo contra quem competir, pôs-se a tentar ser mais veloz que a própria sombra. Nem é preciso dizer que a maneira dominante é a civilização tecnológica, a qual se vale de uma racionalidade exacerbada, de cálculo, medida das Ciências Naturais, tendo a Física por modelo. Quanto à sombra, é o que veremos mais adiante.

Por enquanto, basta observar que o mundo onde vivemos, sobretudo nas grandes cidades, tornou-se tão construído, tão fabricado, que uma crise muito curiosa se desencadeou. As pessoas come­çaram aos poucos
a duvidar de que o lugar onde vivem seja mesmo real. Antes, quando o contato com a natureza era mais estreito, nos tempos em que qualquer criança podia ver, digamos, ordenhar uma vaca, a sensação de realidade vinha diretamente desse tipo de experiência: podia-se dizer real como uma pedra ou como uma árvore. De repente, contudo, os fatos começam a vir pelos jornais, depois pela televisão, e você tem de se perguntar, a cada momento, se o que ouve e vê é assim mesmo, se é uma interpretação ou se é uma tentativa de enganá-lo. Quer dizer, a realidade começou a perder confiabilidade.

As máquinas funcionam hoje quase como gente, as pessoas quase como máquinas. A cada ação que você pretende executar, fica sempre a dúvida se não está servindo a um propósito que ignora e que talvez ache abominável. Se você quer ser original, se quer recusar tudo o que está por aí, acabará provavelmente descobrindo que faz parte duma indústria da originalidade, usando um uniforme de original.

Pois bem, a ruptura com a natureza e a fabri­cação excessiva da nossa vida cotidiana constituem exatamente o êxito completo da construção da casa dos homens. Mas o homem mesmo não se sente à vontade na casa que criou. Esse retrato que vê no seu mundo parece-lhe absurdo. Ele se pergunta: "Sou assim?". E responde: "Claro que não; é que falta dominar, organizar e calcular uma última coisa, a mente humana".





Veja que estranho. A loucura do nosso mundo é simplesmente o resultado da maneira pela qual o construímos. Porém, preferimos dizer que essa espécie de sombra, a irracionalidade das relações entre os homens e a irrealidade do mundo cotidiano, é produto de outra coisa, não da razão, mas da falta de razão, da loucura. Assim, lá pelos fins do século passado, fez-se um grande esforço para compreender a loucura, para medi-la, para dividi-la em tipos e explicá-la cientificamente.

No começo isso não deu muito resultado. É verdade que surgiu uma classificação das doenças mentais que até hoje é bastante útil. Mas, em matéria de cura, pouco avanço houve. Principal­mente, a loucura do dia-a-dia permanecia inexpli­cável e intratável.

E foi assim que nasceu a Psicanálise. As Ciências Exatas tiveram de pedir ajuda -a uma espécie de primo pobre: a interpretação. Só a interpretação era capaz de abarcar os sonhos, as emoções, a loucura etc. Até aí, tudo bem. Entretanto, ao procurar elucidar a loucura — domínio que se lhe havia concedido —, o método interpretativo acabou tendo de ir mais longe, por descobrir que aquilo que não parecia ser loucura, a vida comum, não era também muito diferente. Posta em movi­mento, a interpretação não se soube deter, nem é bom que se detenha, como veremos no próximo capítulo, que trata do método interpretativo da Psicanálise.

Tudo se passa como numa história de fadas, quando depois de chegar ao limite da pobreza a princesa recebe o príncipe e o reino — ou quando depois de gozar da maior felicidade ao abusar um pouquinho mais da sorte, um homem se desgraça. Vamos chamar a isto "princípio do absurdo": quando algo chega ao limite e ultra­passa-o, transforma-se em seu contrário. Em nosso caso, o projeto de tornar bem racionais todas as coisas, quando pretendeu dominar uma fran­jinha que faltava, a loucura, criou um instrumento capaz de entender e curar a loucura, é certo, mas que, junto com ela, entende e mostra irraciona­lidade e loucura onde não se suspeitava que houvesse. A história das idéias é assim: irônica e vezes, vingativa. Vingança foi fazer ver ao homem que, no desconhecimento de seu próprio desejo, criava o que queria e o que não queria, sendo portanto absurdo para si , mesmo. E isto quando ele pretendia erradicar os restinhos de absurdo e loucura de seu mundo.

Aliás; a atmosfera de conto de fada não pára aí. Só nas histórias infantis é que uma pessoa isolada inventa algo que modifica o mundo, e o faz quase sozinho. Nossa ciência, infelizmente, sugere que o impossível aconteceu. Com efeito, Freud, prati­camente só, inventou um método para interpretar o lado irracional, ou melhor, o lado da mente que obedece a regras duma racionalidade diferente daquela da consciência. Digo infelizmente, porque isso aumenta muito a dificuldade que temos os psicanalistas, de continuar e, eventualmente, vir a superar sua obra. Penso que os grandes psicana­listas estão, quase sempre, começando de novo.

É claro que Freud não estava interessado, origi­nalmente, em denunciar toda a loucura da crise do real de que há pouco eu falava. Como um médico honesto, ele queria curar doenças. Foi assim que se dedicou a tratar doentes histéricos — pessoas que sofriam de ataques de angústia, de paralisias ou dores sem causa orgânica (física) e outros sintomas parecidos. Pode-se dizer que, ao tentar fazê-lo, foi como se puxasse o gatilho do "princípio do absurdo", pois dos sintomas histéricos teve de passar aos sonhos, dos sonhos aos atos falhos — por exemplo, esses escorregões de linguagem, tão inoportunos, que nos fazem dizer a verdade quando não queremos — e daí à vida mental como um todo. Isso, porém veremos ao longo de nosso livrinho.





No momento, apenas desejo que você guarde a idéia central. O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso e o homem a ver-se, malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo. Ora, se a Psica­nálise foi inventada por uma pessoa chamada Freud, no fim do século, em Viena, a idéia psicanalítica — isto é, o método interpretativo —não foi inventado ninguém. Ela era a resposta certa para o problema da loucura de nosso tempo. Por assim dizer, quando o momento estava maduro, saiu do lugar onde esta guardada, no grande depósito das idéias dominantes numa dada época, para vir a habitar a ciência que Freud fundou. Sua missão, portanto, é apresentar ao homem o absurdo que o constitui e, se possível, ajudá-lo a reconciliar-se com ele, com o absurdo, e consigo mesmo.




Fonte: "O QUE É PSICANÁLISE", Fábio Herrmann, Abril Cultural / Brasiliense, 1984


(Extraído do Blog Holosgaia)

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