segunda-feira, 10 de março de 2008

Meditação: Samatha e Vipassanã (*)





I - Samatha


Meditação

por Chris Pauling




Se a base ética da nossa vida afecta indirectamente o espírito, a meditação, o segundo aspecto da via budista, é um método que exerce uma influência mais directa sobre os nossos estados mentais. A meditação é uma maneira de trabalharmos sobre o espírito com o espírito, permitindo-nos aumentar o nível de consciência e a atitude positiva em geral, para depois usarmos esta consciência intensificada e apurada para olharmos para a natureza das coisas como elas são realmente.


Embora a palavra meditação se tenha tornado corrente no Ocidente, para a maior parte das pessoas continua a ser um conceito desconhecido. Por conseguinte não é de admirar que existam um certo número de ideias falsas sobre o assunto, nomeadamente que se trata de uma forma de relaxação; um estado de transe; uma deliciosa evasão da realidade; uma forma de auto hipnose; ou que consiste em fazer o vazio na mente. Não há dúvida que a meditação é um poderoso antídoto contra a tensão e que também pode ser bastante agradável, mas estes são efeitos secundários e não o verdadeiro objectivo. A meditação não é um transe nem um estado hipnótico ou vazio. É um estado de intensificação da consciência no qual elevamos o nosso nível de ser a altitudes desconhecidas e não uma maneira de cairmos num torpor semiconsciente.


Um outro erro comum acerca da natureza da meditação consiste em identificá-la com uma técnica específica. Um tradutor de textos budistas muito conceituado afirmou que existem mais de quatrocentas técnicas de meditação budistas. É óbvio que tomar uma destas técnicas pela meditação no sentido absoluto é uma visão particularmente limitada. A meditação é essencialmente um estado de consciência, ou melhor, uma série de estados conectados entre si, e não existe apenas uma maneira correcta de os atingir ou de trabalhar sobre eles, embora uma ou outra possa convir melhor a certas pessoas, ou ser mais apropriada a um certo nível de desenvolvimento espiritual.


Essas quatrocentas técnicas de meditação budista dividem-se em duas categorias em função do seu objectivo. Podem ser práticas de "samatha" – a palavra Pali significa mais ou menos "paz" ou "serenidade" – ou de "vipassana", ou seja técnicas de "cognição". Algumas técnicas contêm elementos de ambas.



A Meditação Samatha



A meditação samatha acalma o espírito e concentra a atenção; estimula os sentimentos positivos e alarga as nossas perspectivas. Este tipo de meditação é a preparação indispensável para as técnicas de vipassana, pois sem esta base a emergência do tipo de cognição, que a meditação tem por objectivo estimular, é quase impossível. O nosso estado de consciência habitual é demasiado disperso e dividido, obscurecido por emoções negativas, e as suas perspectivas são demasiado limitadas para que possamos ver a realidade como ela é.



O nosso grau de consciência habitual pode ser comparado à luz difusa de uma lanterna de má qualidade com as filhas fracas. Não ilumina quase nada na escuridão. O trabalho da meditação samatha é concentrar a luz num único foco e recarregar as pilhas para que possamos começar a ver melhor. Para usarmos uma analogia mais tradicional, diremos que o nosso estado mental habitual pode ser comparado a água turbulenta e enlameada, com demasiadas partículas em suspensão para deixar passar a luz. A meditação samatha acalma a turbulência do espírito e faz com que o lodo assente, de modo a que a água se torne transparente, luminosa e cristalina.



A maior parte das técnicas de meditação samatha utilizam um objecto de concentração que pode ser a própria respiração, um disco colorido, a chama de uma vela, um mantra ou uma emoção positiva como a bondade. Dos objectos citados a respiração é provavelmente o mais utilizado para concentrarmos a atenção. Esta prática – por vezes chamada a "respiração consciente" – foi descrita detalhadamente pelo Buda nos primeiros escritos budistas e é usada, sob diferentes formas, em praticamente todas as escolas do budismo. Uma outra prática de samatha bastante comum é o "desenvolvimento da bondade" para consigo mesmo e para com os outros, ou seja a utilização deste sentimento como objecto de meditação.



Estas duas técnicas meditativas oferecem-nos meios directos para trabalharmos sobre nós mesmos no sentido de cultivarmos duas qualidades essenciais ao desenvolvimento espiritual: a vigilância e as qualidades de coração.



A respiração consciente permite-nos desenvolver um nível de atenção vigilante que raramente conhecemos na nossa vida de todos os dias, e para algumas pessoas chega a ser quase uma revelação descobrirem que podem estar tão atentos. Se estivermos a tentar manter a vigilância como parte da nossa prática de ética, com o tempo, o tipo de atenção que desenvolvemos durante a meditação vai infiltrar-se nos nossos estados de espírito e trazer mais claridade e mais espaço à nossa vida, bem como uma liberdade nova para agirmos construtivamente.



A prática do "desenvolvimento da bondade" oferece-nos um meio para trabalharmos directamente sobre as emoções de modo a incrementarmos o sentido de dignidade interior e o afecto pelos outros. Muitos principiantes nesta prática ficam surpreendidos por sentirem emoções tão intensas e tão calorosas. E aqui também, se os efeitos da meditação forem reforçados pela prática da ética, este tipo de sentimentos rapidamente se infiltra na nossa vida de todos os dias, onde têm um efeito quase mágico nas nossas relações com os outros e, por extensão, na vida em geral.



Todas as técnicas de samatha têm por objectivo induzir um estado de "concentração num só ponto", no qual todas as tendências do nosso ser se fundem numa consciência única, serena e luminosa. Se a nossa vida obedecer a uma ética, e se estivermos rodeados por condições que favoreçam o contentamento e as emoções positivas, à medida que meditamos, a tagarelice mental incessante do nosso espírito é progressivamente substituída por uma serenidade silenciosa e subtil. Os conflitos internos começam a dissolver-se os nossos lados nevróticos e obsessivos são substituídos por uma perspectiva mais lata e mais objectiva. Ao entrarmos numa meditação mais profunda, poderemos experimentar sentimentos de amor e alegria que parecem surgir das nossas profundezas e cuja intensidade pode ser tal que nos dêem arrepios. Podemos ser completamente invadidos por um tal sentimento de ternura que o coração e a mente se fundem numa faculdade única que vê tudo com uma claridade muito maior. Certos meditantes mais experimentados ou mais dotados podem mergulhar ainda mais fundo, em estados de inspiração completamente envolventes, nos quais as fronteiras habituais entre o eu o resto do mundo começam e dissolver-se. Podem mesmo manifestar-se certos poderes ditos "sobrenaturais", tais como a capacidade de exercer um efeito positivo sobre o espírito alheio.Isto parece muito atraente mas, como é óbvio, a meditação nem sempre se passa assim. A maior parte das pessoas também têm momentos em que a meditação é um rodopio de desejos, ódios ou conflitos. Nessas alturas meditar é um trabalho árduo. Mas a meditação é útil mesmo quando o nosso espírito está agitado pois permite-nos controlar progressivamente esses estados de espírito negativos, durante a sessão de meditação e no resto da nossa vida.



Embora a meditação samatha seja uma preparação para a prática de vipassana ou de "cognição", deveria ser óbvio, pelo que foi dito, que não se trata de um mero e aborrecido exercício preliminar, algo que temos de ultrapassar o mais depressa possível para podermos chegar "ao que é importante". Mesmo que não existisse meditação vipassana, valeria a pena praticar samatha. O facto de praticar samatha, mesmo quando é muito difícil, aumenta a capacidade de modificar os nossos estados de espírito e faz-nos sentir mais calmos, mais equilibrados e mais positivos. Nos melhores momentos, é profundamente agradável e pode ter efeitos poderosos sobre a nossa maneira de viver dando-lhe uma perspectiva mais clara, mais luminosa e mais vasta.



A Meditação Vipassana




Para muitas pessoas os resultados mais evidentes da prática budista é uma maior serenidade, uma atitude mais calorosa e mais positiva e uma maior atenção, acompanhadas por um sentimento de dignidade e de contentamento. Mas por muito desejáveis que estas qualidades sejam, não são objectivos em si pois o ser humano mais sadio continua a ser afectado pela mudança. Para deixarmos de ser afectados pelas circunstâncias, para nos elevarmos acima da adversidade, da doença e mesmo da velhice e da morte, temos de ser mais do que um ser humano sadio. A saúde mental é um objectivo válido mas limitado. A partir de um certo ponto a visão, essa cognição transcendente da verdadeira natureza da realidade, é a finalidade última da via espiritual.



As práticas de meditação vipassana são as técnicas que os budistas utilizam para estimular essa cognição. Existem inúmeras técnicas e aliás a maior parte das quatrocentas técnicas meditativas budistas pertencem provavelmente a esta categoria. Não teria muito sentido descrevermos uma ou outra num livro tão curto, mas existem algumas características comuns de que podemos falar.


As técnicas de vipassana exigem a obtenção prévia de um nível de meditação estável e profundo, graças uma prática de samatha como aquelas que anteriormente descrevemos. Uma vez que este estado foi atingido, o meditante pode concentrar a atenção numa representação simbólica de um aspecto da realidade última, numa frase ou numa imagem visual. Deixa então que esta representação simbólica se difunda na sua consciência sobrelevada e apurada de modo a que ela lhe comunique a cognição da verdade que incarna. Quando atinge a estabilidade, o meditante pode alternar entre a concentração sobre a natureza do próprio espírito e uma grande acuidade de presença consciente, com o objectivo de chegar a uma cognição directa da natureza da realidade que está a experimentar.Já dissemos que o tipo de cognição a que os budistas fazem referência não é uma mera compreensão intelectual. Nunca será demais lembrá-lo. A razão é apenas uma pequena parte do nosso psiquismo. A compreensão meramente intelectual de um certo aspecto do mundo ou de nós próprios pode surgir como uma revelação, mas tem uma influência muito limitada no nosso comportamento ou na nossa visão das coisas, enquanto que uma cognição directa conquista e altera o nosso ser por completo. Mas para chegarmos a esse tipo de cognição temos de estar num estado especial de elevação espiritual e esta meditação cognitiva só é eficaz se tivermos a base firme da ética e da meditação samatha. Por conseguinte, não podemos atingir a Iluminação através dos livros, dos estudos ou da filosofia, por muito valor que estas coisas possam ter em determinado contexto.



O objectivo último da meditação vipassana é a acumulação e o amadurecimento desta cognição até ao momento em que ela provoca aquilo que foi chamado "uma viragem no profundo oceano da consciência". Esta viragem é irreversível: a mudança é tão profunda e tão radical que não temos qualquer possibilidade de voltarmos à nossa antiga perspectiva mais estreita e mais egoísta. A partir deste ponto o nosso ser volta-se inteiramente para a Iluminação e só podemos ir em frente.



Excerto extraído do livro "Pensamento Budista" de Chris Pauling, Editorial Presença





II - Vipassanã

Vipassanā (Pāli) ou vipaśyanā (sânscrito) significa "insight", ver as coisas como elas realmente são. Mesmo tendo sido ensinada na Índia há 2500 anos por Gautama, o Buda, a Meditação Vipassana não está ligada ao budismo ou a qualquer outra religião, podendo ser praticada por todos independentemente de crenças religiosas. Enquanto as práticas da meditação variam de tradição em tradição, o princípio subjacente é a investigação e entendimento dos fenômenos manifestados nos 5 agregados (skandhas), nomeados como apego à forma física (rūpa), sensações ou sentimentos (vedanā), percepção (sajñā, Pāli saññā), formações mentais (saṃskāra, Pāli saṅkhāra) e consciência (vijñāna, Pāli viññāṇa). Este processo é um caminho para a experiência da percepção direta, vipassanā.


Num sentido mais amplo, vipassanā tem sido usada como um dos dois polos para a categorização da Meditação Budista, sendo o outro a samatha (Pāli) ou śamatha (Sanskrit). A Samatha visa o desenvolvimento da tranqüilidade através de estados de absorções meditativas, comum em diversas tradições em todo o mundo, tendo se espalhado principalmente através do yoga. É normalmente usada como uma iniciação ao vipassanā, tranquilizando a mente e fortalecendo a concentração para tornar possível o "insight". Esta dicotomia pode ser discutida como "parar e observar." Na prática Budista, é dito que enquanto a samatha pode tranquilizar a mente, somente o "insight" pode revelar como os distúrbios da mente se iniciaram, guiando o indíviduo ao prajñā (Pāli: paññā, conhecimento) e ao jñāna (Pāli: ñāṇa, sabedoria pura), assim o prevenindo de novos distúrbios.


O termo é ainda usada para denominar o Movimento Budista Vipassana, moldado após o Budismo Theravāda, que emprega a meditação Vipassanā e ānāpāna como técnicas primárias nos ensinamentos de Satipaṭṭhāna Sutta. Vedanā (sentimento/sensação) é o aspecto inicial da investigação.




A Técnica


Vipassana, que significa ver as coisas como elas realmente são, é uma das mais antigas técnicas de meditação da Índia. Foi redescoberta pelo Buda Gautama há mais de 2500 anos e ensinada por ele como um remédio universal para males universais, ou seja, uma Arte de Viver.

Essa técnica não sectária visa a total erradicação das impurezas mentais e a resultante felicidade suprema da liberação completa. A cura, não a mera cura de doenças, mas a cura essencial do sofrimento humano, é o seu propósito.


Vipassana é um caminho de auto-transformação que utiliza a auto-observação. Foca a profunda interconexão entre mente e corpo, a qual pode ser experimentada de forma direta, por meio da atenção disciplinada às sensações físicas, que constituem a vida do corpo, e que continuamente se interconectam com a vida da mente e a condicionam. É essa jornada de auto-conhecimento baseada na observação - que objetiva a raiz comum da mente e do corpo - a responsável pela dissolução das impurezas mentais, resultando numa mente equilibrada, cheia de amor e compaixão.


As leis científicas que regulam os pensamentos, sentimentos, julgamentos e sensações tornam-se claras. Pela experiência direta, compreende-se a natureza de como se progride ou regride, como se produz ou se liberta do sofrimento. A vida começa a caracterizar-se por uma intensificação da consciência, libertação de ilusões, auto-controle e paz cada vez maiores.



A Tradição



Desde o tempo de Buda, Vipassana tem sido transmitido até ao presente, por uma cadeia ininterrupta de professores. Embora de origem indiana, o atual professor nesta cadeia, Sr. S.N. Goenka, nasceu e foi criado na Birmânia (Myanmar). Enquanto viveu lá, teve o privilégio de aprender Vipassana com o seu professor, Sayagyi U Ba Khin que, naquela época, era um graduado funcionário público. Depois de ser treinado pelo seu professor durante catorze anos, o Sr. Goenka estabeleceu-se na Índia, começando a ensinar Vipassana em 1969. Desde então, tem ensinado milhares de pessoas de todas as raças e credos, no ocidente e no oriente. Em 1982 começou a nomear professores assistentes para ajudá-lo a responder à crescente procura de cursos de Vipassana.


Os Cursos


A técnica é ensinada em retiros de dez dias, durante os quais os participantes, reunidos em Centros ou instalações alugadas e preparadas para o efeito, seguem o Código de Disciplina recomendado, aprendem os fundamentos do método e praticam o suficiente para experimentar os seus efeitos benéficos.


O curso requer trabalho sério e árduo. Há três passos no treino. O primeiro passo é abster-se - durante todo o curso - de matar, roubar, manter actividade sexual, e tomar intoxicantes. Este simples código de conduta moral serve para acalmar a mente que, de outra forma, estaria muito agitada para executar a tarefa de auto-observação.


O próximo passo é desenvolver o domínio da mente, aprendendo a fixar a atenção na realidade natural do fluxo da respiração, sempre mutável, entrando e saindo das narinas.


Ao quarto dia, a mente está mais clara e mais focada, mais preparada para empreender a prática de Vipassana em si: observar as sensações em todo o corpo, compreendendo a sua natureza e desenvolvendo a equanimidade, aprendendo a não lhes reagir.


Finalmente, no último dia os participantes aprendem a meditação do amor benevolente ou boa vontade face a todas as coisas, em que a pureza desenvolvida durante o curso é partilhada com todos os seres.


Toda a prática é na verdade um treino mental. Tal como usamos exercícios físicos para melhorar a saúde do nosso corpo, Vipassana pode ser utilizado para desenvolver uma mente saudável.


Visto ter-se constatado que a técnica é genuinamente proveitosa, é dada muita importância à preservação da sua forma autêntica, original. Ela não é ensinada comercialmente, pelo contrário, é oferecida gratuitamente. Nenhuma pessoa envolvida nesse ensino recebe qualquer remuneração material.


Não se cobra nada pelos cursos - nem mesmo para cobrir os custos de alimentação e acomodação. Todas as despesas são cobertas por doações de pessoas que, tendo completado um curso e experimentado os benefícios de Vipassana, desejam dar a outros a oportunidade de beneficiarem também.


Claro que os resultados surgem gradualmente pela prática contínua. Não é realista ter a expectativa de que todos os seus problemas sejam resolvidos em dez dias. Nesse tempo, no entanto, o essencial de Vipassana pode ser aprendido de forma a ser aplicado na vida diária. Quanto mais se pratica a técnica, mais se é libertado do sofrimento, e mais próximo se está do objetivo final de libertação completa. Mesmo dez dias podem dar resultados vividos e obviamente benéficos para a vida diária.


Todas as pessoas sinceras são bem-vindas a participar num curso de Vipassana, para ver por si mesmas como a técnica funciona e para sentir os seus benefícios. Até em prisões estão a ser realizados Cursos de Vipassana, com grande sucesso e maravilhosos benefícios para os participantes. Todos aqueles que experimentam acham que Vipassana é uma ferramenta inestimável para atingir e repartir com outros a verdadeira felicidade.



Palestra peroferida pelo Sr S.N. Goenka

Todos procuram paz e harmonia, porque é isso que falta nas nossas vidas. De vez em quando todos experimentamos agitação, irritação, desarmonia, sofrimento; e, quando isso acontece, não mantemos esses sentimentos só para nós. Propagamo-los também aos outros. Agitação permeia a atmosfera que circunda a pessoa em sofrimento. Todos aqueles que entram em contacto com a pessoa em questão, contaminam-se também, ficando igualmente agitados, irritados. Certamente que não é essa a maneira adequada de viver.


Nós devíamos viver em paz connosco e com os outros. Antes de mais nada, o ser humano é um ser social, tem que saber viver em sociedade e lidar com os outros. Mas, como vamos nós viver pacificamente? Como vamos nós manter a harmonia interior, manter a paz e a harmonia à nossa volta, para que os outros possam também viver pacífica e harmoniosamente?


Para nos libertarmos da agitação interior, temos que entender a razão básica da sua existência, a causa desse sofrimento. Se investigarmos o problema, tomar-se-á claro, sem demora que, sempre que começarmos a gerar qualquer negatividade ou impureza na mente, sentimo-nos invadidos pelo sentimento da agitação. A negatividade ou impureza mental dificilmente coexiste com a paz e a harmonia.


Como é que se começa a gerar negatividade? Novamente, investigando, toma-se claro. Tornamo-nos infelizes quando achamos que alguém se comporta de um modo de que não gostamos, ou quando não gostamos de alguma coisa que acontece. Coisas indesejáveis acontecem e criamos tensão interior. Coisas desejáveis não acontecem devido ao aparecimento de alguns obstáculos no caminho e, novamente, criamos tensão interior; começamos a criar "nós" no nosso interior. E, pela vida fora, coisas indesejáveis continuam a acontecer, as desejáveis podem ou não acontecer, e este processo de reacção, de criar nós - nós cegos - faz com que toda a estrutura física e mental fique tão tensa, tão cheia de negatividades, que a vida se toma miserável.


Ora, uma forma de resolver este problema é conseguir que nada de desagradável aconteça na vida, que tudo aconteça exactamente como desejamos. Devemos, então, desenvolver esse poder ou conhecer alguém que o possua e venha em nosso auxílio sempre que o requisitarmos, para que tudo o que seja desejável aconteça e o indesejável não aconteça. Porém, isso é impossível! Não existe ninguém no mundo cujos desejos sejam sempre satisfeitos, cuja vida ocorra sempre de acordo com a sua vontade, sem que nada de indesejável aconteça. Factos contrários aos nossos desejos e à nossa vontade ocorrem constantemente. Surge, então, uma questão: como poderemos parar de reagir cegamente perante aquelas coisas de que não gostamos? Como poderemos nós não criar tensão interior? Como permanecer em paz e harmonia?


Na Índia, assim como noutros países, pessoas sábias e santas do passado estudaram este problema - o problema do sofrimento humano - e encontraram uma solução: se algo indesejável ocorre e reagimos gerando raiva, medo ou qualquer outra negatividade, devemos, então, desviar a nossa atenção o mais rápido possível para qualquer outra coisa. Por exemplo; levante-se, pegue um copo de água, comece a bebê-la - assim, a sua raiva não se intensificará, pelo contrário, começará a diminuir. Ou comece a contar: um, dois, três, quatro. Ou comece a repetir uma palavra, uma frase ou um mantra; talvez o nome de um santo ou de uma divindade à qual tenha devoção. A mente dispersar-se-á e, até certo ponto, estará liberta da negatividade, da raiva.


Esta solução foi útil; provou dar resultados. Ainda hoje dá. Praticando isso, a mente liberta-se da agitação. Contudo, essa solução actua apenas ao nível consciente. Na realidade, ao desviar a atenção, impelimos a negatividade para o inconsciente profundo e, a esse nível, continuamos a gerar e multiplicar a mesma negatividade. A superfície existe uma camada de paz e harmonia, mas nas profundezas da mente jaz um vulcão adormecido de negatividade suprimida que, mais cedo ou mais tarde, explodirá numa erupção violenta.


Outros exploradores da verdade interior foram ainda mais longe na sua busca; e, vivenciando a realidade da mente e da matéria em si mesmos, concluíram que desviar a atenção é apenas fugir do problema. Fugir não é solução. É necessário enfrentar o problema. Sempre que uma negatividade surgir na mente, observe-a, enfrente-a. Assim que se começa a observar qualquer impureza mental, a mesma começará a perder a sua força. Lentamente desaparece e é neutralizada.


Uma boa solução é evitar os dois extremos - repressão ou livre manifestação. Manter a negatividade no inconsciente não a erradicará; permitir sua manifestação, através de ações verbais ou físicas, apenas criará mais problemas. Porém, se apenas se mantiver a observar, a impureza desaparecerá e conseguirá neutralizar aquela negatividade.


Isto parece maravilhoso, mas será realmente praticável? Será fácil para uma pessoa vulgar encarar negatividades? Quando a raiva surge, apodera-se de nós tão rapidamente que nem nos apercebemos. Então, dominados pela raiva, cometemos certas ações físicas ou verbais que nos prejudicam e prejudicam os outros. Mais tarde, quando tudo passa, arrependemo-nos e pedimos perdão. Contudo, na próxima vez que nos encontramos numa situação semelhante, voltamos a reagir da mesma maneira. Esse tipo de arrependimento não ajuda em nada.


A dificuldade é que não temos consciência quando surge uma negatividade. Tudo começa ao nível do inconsciente profundo da mente. Quando chega no nível consciente, já ganhou tanta força que nos deixamos subjugar totalmente, retirando-nos a capacidade para observar. Ficamos, então, possuídos pela raiva e nenhum conselho nos ajudará.


Assim que fechamos os olhos e tentamos observar a raiva, o objeto da raiva surge imediatamente na mente - a pessoa ou a situação que me provocou a raiva. Nesse caso, não estou a observar a raiva em si mesma. Estou apenas a observar o estímulo exterior da emoção; isso não é solução. Só que, é muito difícil observar qualquer negatividade ou emoção abstrata, divorciada do objeto exterior que a provocou.


Contudo, aquele que alcançou a verdade última (Gautama o Buda), encontrou uma solução real. Descobriu que sempre que uma negatividade surge na mente, começam a acontecer, em simultâneo, duas coisas ao nível físico. A primeira é que a respiração perde o seu ritmo natural; começamos a respirar mais fortemente sempre que uma negatividade surge na mente. A segunda passa-se a um nível mais sutil; uma espécie de reacção bio-química faz-se sentir no corpo - uma sensação. Toda e qualquer negatividade criará uma sensação interior numa ou noutra parte do corpo.


Parece-nos uma solução prática. Uma pessoa vulgar não consegue observar emoções abstratas da mente - medo, raiva ou paixão abstratas. Mas, com a prática e o treino adequado, é muito fácil observar a respiração e as sensações no corpo, ambas diretamente relacionadas com negatividades na mente.


A respiração e as sensações podem auxiliar de duas maneiras. Primeira; assim que uma impureza surgir na mente, a respiração perderá o seu ritmo normal, que é em si, um aviso. À semelhança da primeira, as sensações dizem-nos igualmente que algo está mal. Assim, tendo sido avisados, começamos a observar a respiração e as sensações e, rapidamente, veremos que a negatividade pára e desaparece.


Este fenômeno físico-mental é como uma moeda de dois lados. Num dos lados, estão os pensamentos e as emoções que surgem na mente. No outro, estão a respiração e as sensações no corpo. Quaisquer pensamentos ou emoções, conscientes ou inconscientes, qualquer impureza mental que surja, manifesta-se na respiração e nas sensações do momento. Logo, observando a respiração ou as sensações, estamos a observar indiretamente a negatividade mental. Em vez de fugir da situação, enfrentamos a realidade tal como é. A negatividade perderá a sua força: não nos subjugará mais como fez no passado. Se persistirmos, a impureza eventualmente será neutralizada e manter-se-á a paz e a harmonia.


Desta forma, a técnica de auto-observação mostra-nos a realidade tal como é nos seus dois aspectos, interna e externa. Tentamos sempre encontrar no exterior a causa da nossa infelicidade; tentamos sempre mudar a realidade externa. Ignorantes da realidade interna, dificilmente compreendemos que a causa do sofrimento se encontra no nosso interior.


Agora, com treino, podemos ver o outro lado da moeda. Podemos tomar consciência da respiração e também do que acontece em nós. O que quer que seja, respiração ou sensação, aprendemos a observá-las sem perder o equilíbrio mental. Paramos de reagir, de multiplicar as nossas misérias. Pelo contrário, permitimos que as impurezas se manifestem e sejam neutralizadas.


Quanto mais praticamos esta técnica, mais depressa descobrimos que nos podemos libertar das negatividades. A mente vai-se libertando gradualmente das impurezas, tornando-se pura (limpa). Uma mente pura está sempre cheia de amor - amor desinteressado pelos outros; cheia de compaixão pelas falhas e sofrimentos dos outros; cheia de alegria pelo seu sucesso e felicidade; cheia de equanimidade perante qualquer situação.


Quando alguém atinge este estágio, todo o seu padrão de vida muda. Não é mais possível fazer ou falar qualquer coisa que perturbe a paz e a alegria dos outros. Em vez disso, uma mente equilibrada não apenas se torna pacífica, mas ajuda também os outros a serem pacíficos. A atmosfera que cerca uma tal pessoa é permeada de paz e harmonia. E isso influenciará e ajudará também os outros.


Aprendendo a permanecer equilibrado perante todas as coisas que se vivencia internamente, desenvolve-se o desapego a todas as situações exteriores. Contudo, tal desapego não se trata de fuga ou indiferença aos problemas do mundo. Aqueles que praticam Vipassana regularmente, tornam-se mais sensíveis ao sofrimento dos outros e fazem o seu melhor para aliviar esse sofrimento da melhor forma que podem - não com agitação, mas com uma mente cheia de amor, compaixão e equanimidade. Aprendem a "santa indiferença" - como estar totalmente comprometidos, totalmente envolvidos em ajudar os outros, enquanto que, ao mesmo tempo, mantêm o equilíbrio mental. Desta forma, permanecem pacíficos e felizes enquanto trabalham para a paz e felicidade dos outros.


Este foi o ensinamento de Buda: a arte de viver. Nunca estabeleceu ou ensinou qualquer religião, nenhum "ismo", nunca instruiu os seus seguidores em qualquer rito ou ritual, em alguma formalidade cega ou vazia. Pelo contrário, ensinava-os a observar a natureza tal como é, observando a realidade interior. Na ignorância, continuamos a reagir de maneira prejudicial relativamente a nós e aos outros. Porém, quando a sabedoria surge - discernimento de observar a realidade tal como é - libertamo-nos desse hábito de reagir. Quando paramos de reagir cegamente, então, somos capazes de exercer a ação verdadeira - ação proveniente de uma mente equilibrada e equânime que vê e compreende a verdade. Tal ação poderá ser apenas positiva, criativa e benéfica para todos.


Logo, o que é necessário é conhecer-se a si mesmo - conselho dado por todo o sábio. Devemos conhecer-nos a nós mesmos, não apenas intelectualmente, ao nível teórico e das ideias. Também não quer dizer conhecer-nos a nível emocional e devocional, aceitando cegamente o que lemos e ouvimos. Tal conhecimento não é suficiente. Mais do que isso, devemos conhecer a realidade presente, vivenciar diretamente a realidade deste fenômeno mental-físico. Apenas isso nos ajudará a libertar-nos das negatividades e do sofrimento.


Esta técnica de experiência direta da nossa realidade, esta técnica de auto-observação, é conhecida por meditação "Vipassana". Na língua da Índia e nos tempos de Buda passanã significava ver com os olhos abertos; mas Vipassanã é observar as coisas como realmente são, não como parecem ser. A realidade aparente tem que ser penetrada, até alcançarmos a verdade última de toda a estrutura física e mental. Quando vivenciamos esta verdade, então aprendemos a parar de reagir cegamente, de criar negatividades - e, naturalmente, as antigas impurezas são gradualmente erradicadas. Somos libertados de todo o sofrimento e experimentaremos felicidade.


Existem três etapas no treino dado num curso de meditação Vipassana. Primeiro, devemos abstermo-nos de qualquer ação, física ou verbal, que perturbe a paz e a harmonia dos outros. Não podemos trabalhar para nos libertar de impurezas da mente quando, ao mesmo tempo, continuamos a atuar física e verbalmente de modo a intensificar essas impurezas. Por isso, um código de moralidade é o primeiro passo essencial da prática. Existe assim um compromisso de não matar, não roubar, não praticar qualquer atividade sexual, não dizer mentiras e não ingerir intoxicantes. Abstendo-nos de praticar tais ações, permitimos que a mente se acalme.


O passo seguinte é desenvolver alguma mestria sobre a mente selvagem, treinando-a a permanecer fixa num objeto único: a respiração. Tentamos manter a nossa atenção na respiração o maior tempo possível. Isto não é um exercício de respiração: não tentamos regularizar a respiração. Apenas observamos o nosso fluxo respiratório natural, a entrar e a sair. Deste modo, vamos acalmando mais a mente, para não ser dominada por negatividades tão intensas. Ao mesmo tempo, estamos a concentrar a mente, tornando-a mais aguda e penetrante, capaz do trabalho da visão interior ("insight").


Estes dois primeiros passos, viver uma vida moral e controlar a mente, são muito benéficos e necessários por si só; porém, podem conduzir-nos à repressão, a não ser que se tome um terceiro passo - purificar a mente das impurezas, desenvolvendo a visão interior da nossa própria natureza. Isto é Vipassana: vivenciar a própria realidade interna, através da observação sistemática e imparcial do fenômeno mental-físico, sempre mutante, que se manifesta enquanto sensações. Este é o culminar dos ensinamentos de Buda: auto-purificação através da auto-observação.


Isto pode ser praticado por todos. Todas as pessoas enfrentam o problema do sofrimento. É uma doença universal que requer um remédio universal, não-sectário. Quando alguém sofre com raiva, não é raiva budista, indú ou cristã. Raiva é raiva. Quando alguém fica agitado em consequência dessa raiva, a agitação não é cristã, judia ou muçulmana. O sofrimento é universal. O remédio deve ser também universal.


Vipassana é o remédio. Ninguém se oporá a um código de vivência que respeite a paz e a harmonia dos outros. Ninguém se oporá ao desenvolvimento do controle da mente. Ninguém se oporá ao desenvolvimento da visão clara/interior da sua própria natureza, através da qual é possível libertar a mente de negatividades. Vipassana é um caminho universal.


Observar a realidade tal como é através da observação da verdade interior, é conhecer-se a si próprio ao nível direto e vivencial. À medida que se pratica, mantém-se a mente livre de negatividades. A partir da realidade grosseira, externa e aparente, penetra-se na verdade última da mente e da matéria. Só depois se transcende esse estado e se experiencia uma verdade que está para além da mente e da matéria, para além do tempo e do espaço, para além do campo condicionado da relatividade: a verdade da libertação total de todas as negatividades, todas as impurezas e todo o sofrimento. Qualquer que seja o nome que se dê à verdade última, é irrelevante; é o objetivo final de todos nós.


Que todos possam viver esta verdade fundamental! Que todos possam libertar-se das impurezas e das misérias. Que todos possam desfrutar da verdadeira felicidade, da verdadeira paz e da verdadeira harmonia!


QUE TODOS OS SERES SEJAM FELIZES.


O texto acima é baseado numa palestra dada em público pelo Sr. S.N. Goenka em Berna, Suíça.
Sr. e Sra S.N. Goenka



Quem é S.N. Goenka


S. N. Goenka é professor de meditação Vipassana na tradição do falecido Sayagyi U Ba Khin da Birmânia (Myanmar).


Embora de descendência indiana, o Sr. Goenka nasceu e cresceu na Birmânia. Enquanto ali viveu, teve o privilégio de conhecer U Ba Khin e aprender com ele a técnica de Vipassana. Depois de aprender com o seu professor durante catorze anos, o Sr. Goenka estabeleceu-se na Índia e começou a ensinar Vipassana em 1969. Num país ainda marcadamente dividido por diferenças de casta e religião, os cursos oferecidos por Goenka atraíram milhares de pessoas de todas as camadas sociais. Além disso, muitas pessoas originárias de países de todo o mundo, vieram fazer cursos de meditação Vipassana.


O Sr. Goenka ensinou dezenas de milhares de pessoas em mais de 450 cursos de 10, 20, 30, 45 e 60 dias, na Índia e noutros países no Oriente e no Ocidente. Em 1982, começou a nomear professores-assistentes para o ajudar a responder à procura crescente de cursos. Sob a sua direcção foram já estabelecidos mais de 90 centros de meditação, na Índia, Nepal, Birmânia, Tailândia, Sri Lanka, Japão, Nova Zelândia, Austrália, Reino Unido, França, Espanha, Alemanha, Itália, Suíça, Bélgica, Canada e Estados Unidos, e têm sido regularmente oferecidos cursos em quase todos os países do mundo.


A técnica que S.N. Goenka ensina, representa uma tradição que remonta a Buda. Buda nunca ensinou uma religião sectária, ele ensinou Dhamma - O Caminho de Libertação - que é universal. Dentro dessa tradição, a abordagem do Sr. Goenka é totalmente não-sectária. Por essa razão, o seu ensino apela fortemente a pessoas de todas as classes sociais, de todas as religiões ou sem religião, de todas as partes do mundo.



2 comentários:

Anônimo disse...

Caro amigo,
é necessário antes de mais nada que eu aprenda a respirar. Teria muita dificuldade em aprender a meditar. Mas de fato é o que eu preciso. A figura de deixar assentar o lodo para que a água límpida suba é perfeita para descrever o que busco.
Abraços e obrigado pelas visitas.
Celso

M18 disse...

Muito obrigado amigo, seu texto me ajudou muito. fazia vipassana, agora vc me ajudou a entender que samatha é INDISPENSAVEL!!! mudei para samatha!

abraço do Brasil.