quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O imaginário radical de Cornelius Castoriadis e o teatro de Jacob Levi Moreno




Por: Ana Maria Otoni Mesquita (2)


SUMÁRIO

O propósito deste trabalho é o de refletir sobre o conceito de imaginário radical segundo Cornelius Castoriadis, as noções de protagonista e espaço cênico propostas por Jacob Levi Moreno na teoria psicodramática, face aos principais pressupostos do empirismo lógico, enquanto teoria do conhecimento que influenciou hegemonicamente o pensamento científico até fins do século passado.
A autora explora esses conceitos a partir da concepção dos autores citados fazendo contraponto das teses do emprirismo lógico que marcou a visão de ciência até fins do século 19, com as mudanças de paradigma processadas na contemporaneidade.

SUMMARY

The purpose of this essay is to bring some analogical reflections over the concept of radical imaginary proposed by Cornelius Castoriadis and the notions of protagonist and scenic space proposed by Jacob Levi Moreno in his psychodramatic theory, in face of the main assumptions of logical emprirism, as a knowledge theory that influenced hegemonically science and philosophy till the end of the 19th century.
The author explores the conceptions of the refered authors, confronting the basic thesis of logical empirism with paradigmatic changes processed in contemporary times.

INTRODUÇÃO

O empirismo lógico enquanto teoria do conhecimento, marcou a visão de ciência do século 15 ao 19, e a partir do século passado vem sofrendo a oposição de outras concepções teórico-metodológicas como o estruturalismo, a hermenêutica sob influência da fenomenologia, e do pragmatismo, em que pese também o fato de já estarmos convivendo com visões ditas pós-modernas (3).


O empirismo lógico se caracteriza pelas noções de realidade objetiva, de conhecimento como representação objetiva da realidade, de sujeito em oposição à realidade, da concepção de verdade essencial e universal, e de uma lógica finalista de causalidade.


Teve início no racionalismo cartesiano que decretou a supremacia do pensar(razão) sobre o sentir(corpo, sentidos), ou seja, o dualismo mente/corpo; na concepção de uma razão natural, apriorística, com idéias inatas, de uma mente que forma representações da realidade e mediadora do conhecimento. O empirismo ingles introduziu a concepção de conhecimento através dos sentidos e da experiência, o que foi uma contribuição importante no sentido de abalar a premissa do solipsismo cartesiano do isolamento do eu não apenas em relação ao mundo, mas também em relação ao corpo. A idéia era introduzir uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva. Contudo, a concepção de dualidade sujeito/mundo objetivo continuava intacta, assim como a de verdade universal e essencial.


Portanto, o empirismo lógico introduz e mantém uma visão objetivista com relação à realidade, independente do sujeito e da linguagem; entende que o conhecimento verdadeiro é representação correta, ou cópia da realidade, assim como a verdade como correspondência a essa realidade. Ele é uma tentativa de criar uma linguagem ideal, formal que represente a realidade em si corretamente e implica na busca de universais, uma visão ahistórica, descontextualizada do sujeito e num fisicalismo que considera as questões referentes a valores, ética e estética como pseudo-questões (4).


Considera-se, atualmente, novos paradigmas para a ciência, em contraponto a visão tradicional proposta pelo empirismo lógico. Compreendendo que tanto o conceito de imaginário radical como as noções de protagonista e espaço cênico no psicodrama, não estão alinhados aos principios desta visão, meu intuito é o de problematizar as mudanças que eles implicam.



CASTORIADIS E O IMAGINÁRIO RADICAL



Cornelius Castoriadis, filósofo grego, viveu entre os anos de 1922 e 1997. Em Atenas estudou direito, economia e filosofia. Foi para França em 1945, fugindo do regime ditatorial grego. Em 1946 fundou a revista Socialismo e Barbárie.


Introduziu o conceito de imaginário radical na cena da filosofia, da política e das ciências humanas. E é a partir deste conceito que inicio minha argumentação.


Em seu artigo "O Imaginário: a criação no domínio sócio-histórico" (5), Castoriadis parte de cinco afirmativas que, ele mesmo, denomina dogmáticas.


Em primeiro lugar, para ele "o Ser" não é um sistema, não é um sistema de sistemas, e não é uma "grande corrente". O "Ser" é "Caos", ou "Abismo", ou Sem-Fundo"(6).


Em segundo lugar: "O Ser não está simplesmente 'dentro' do Tempo, mas ele é através do Tempo (intermediando o Tempo, em virtude do Tempo). Essencialmente, Ser é Tempo"(7).


Em terceiro lugar, afirma: "O Tempo não é nada, ou ele é criação…Criação significa evidentemente aqui, criação autêntica, criação ontológica, a criação de novas Formas ou de novos eidos"(8)…


A quarta afirmativa conclui: "Esses fatos fundamentais relativos ao Ser, ao Tempo e a criação foram recobertos pela ontologia tradicional ( e seguidos pela ciência) porque essa ontologia esteve a serviço, na sua corrente principal, como intermediária da hiper-categoria fundamental da determinação"(9).


Por fim, a quinta afirmativa aporta uma questão: "O que, a partir daquilo que conhecemos, provem do observador (de nós) e o que provem daquilo que é?… [e completa]: essa questão é, e sempre será, indecifrável"(10).


Portanto, compreende-se que para o autor, Ser, Tempo e Criação são inseparáveis e que na medida em que afirma que Ser é Tempo, e que Tempo é Criação ele desmonta um dos paradigmas da física com base na noção de espaço euclidiano, que vincula a noção de tempo à de espaço como extensão/volume que pode ser medido, quantificado, repetido. Na medida que a física quântica constata que quando se quer medir a velocidade de uma partícula, ela se perturba e se move de lugar, ela constata simultaneamente o Princípio da Indeterminação e da implicação do sujeito no processo observar/mudar/interpretar/criar o mundo.


Ora, argumenta Castoriadis, a hiper-categoria da determinação nos induz à negação do tempo, pois se algo é verdadeiramente determinado, ele é determinado depois e para sempre. E afirma: "Para essa ontologia, a negação do Tempo como possibilidade permanente da emergência do Outro é uma questão de vida ou morte"(11).


Portanto, o tempo da determinação é o tempo dos acontecimentos que se sucedem a partir de leis, produtos de modos, modelos e formas pré-estabelecidas, passíveis de medição e quantificação.


Assim, esta concepção não leva em consideração a criação e, simultaneamente, a imaginação e o imaginário; que para o autor são inseparáveis. E provoca: "Os filósofos começam dizendo: Eu quero compreender o que é o Ser, o que é a realidade. Agora observem essa mesa; o que essa mesa me mostra como traços característicos de um ser real ? Nenhum filósofo começou dizendo: Eu quero ver o que é o Ser, o que é a realidade. Agora, eis a lembrança de meu sonho na noite passada; o que ele me mostra como traços característicos de um ser real?"(12). Ele diz que os filósofos (e também os cientistas, naturalmente) nunca se referem aos sonhos, ao poema ou a uma sinfonia como instâncias paradigmáticas do Ser. E pergunta: Em lugar de considerar o modo da existência imaginária, ou seja humana, um modo de ser deficiente ou secundário, porque não pensar o inverso: o modo físico como deficiente do Ser?


Para Castoriadis, o imaginário é fundante do pensamento, instituinte do sentido e também cria esse espaço para a indeterminação do sujeito e da sociedade, vista aqui como instituições de diversas formas socio-históricas, instituintes do sujeito e do seu coletivo. É nessa medida, do imaginário fundante, que ele lhe atribui a definição de radical, ou seja, imaginário radical.



J.L. MORENO E A NOÇÃO DE PROTAGONISTA E ESPAÇO CÊNICO NO PSICODRAMA



A definição de Protagonista, foi trazida para o psicodrama a partir de sua definição no teatro, ou seja, do título dado ao ator principal na tragédia grega.

"Protagonista", escreve Moreno, "significa o homem tomado de frenesi, um louco. Um teatro para o psicodrama é portanto, um teatro do homem enlouquecido, um público de loucos que olha para um deles, que continua sua vida no palco"(13).


Na noção de protagonista, Moreno rompe com o a linearidade do homo sapiens cartesiano, dotado de razão iluminada e aproxima-se do homo sapiens/demens proposto por Edgar Morin, como sujeito da desrazão, da complexidade bio-socio-psico-cultural, que se imagina e ocupa um espaço.


Entretanto, conhecer um pouco da história de como Moreno concebeu o psicodrama vai permitir dar mais clareza à noção de protagonista desenvolvida por ele.


Conta-se que Moreno foi um amante do teatro desde a mais tenra infância.


Psiquiatra judeu de origem romena, viveu entre 1889 e 1974. A familia mudou-se para Viena onde ele formou-se em Medicina em 05 de Fevereiro de 1917.


Em 1925, mudou-se para Nova Iorque, fundou um hospital psiquiátrico em Beacon, e ai viveu até a morte.


Seus primeiros trabalhos terapêuticos como profissional foram desenvolvidos na pequena cidade de Bad Vöslau, no interior da Áustria, onde era o médico da comunidade. Ali, junto com a mulher Marianne, ele fez suas primeiras experiências com o Teatro da Reciprocidade, nome que ele mesmo deu ao trabalho que desenvolvia com casais e famílias, para tratar das dificuldades relacionais.


De volta a Viena, e insatisfeito com a maneira como: 1. em terapia só se explorava o aspecto da expressividade verbal; 2. no teatro a platéia era tratada como mera expectadora de histórias com princípio, meio e fim pré-determinados, drama este, repetido por atores a cada encenação; fundou, então, o Teatro da Espontaneidade.


Em Viena, o Teatro da Espontaneidade assemelhava-se a Commedia dell'Arte, onde atores famosos dramatizavam textos retirados de histórias cotidianas, no sentido de motivar a platéia a participar. Entretanto, percebendo os aspectos terapêuticos dessa prática, propôs a inversão definitiva dos papéis entre platéia e atores. Resolveu colocar a platéia no palco, através da escolha do protagonista que dramatizaria uma história escolhida pela própria pláteia ou grupo de pessoas, com o auxílio de um diretor ou terapeuta, seus assistentes ou egos-auxiliares. Estavam criados os cinco elementos do psicodrama: o palco ou espaço cênico, o paciente ou protagonista, o diretor ou terapeuta, os assistentes ou egos-auxiliares, a platéia ou grupo de pessoas.


Entretanto, há uma proposta teórico-filosófica que sustenta sua concepção metodológica.


Em primeiro lugar, Moreno compeendia o ser humano em relação, em grupo, mesmo numa situação terapêutica bi-pessoal, ou seja, quando interagem apenas diretor e protagonista. Seja a terapêutica grupal ou díadica (apenas terapeuta-paciente) uma rede de interações psico-socio-culturais imaginárias, co-inconsciente, implicando mutualidade, se configura. O papel do diretor é o de dar visibilidade ao drama do protagonista, construir significados através do drama imaginado no espaço cênico, que por sua vez é o drama vivenciado no contexto sócio-cultural, das relações familiares, de amizade, no trabalho, enfim nas instituições que atravessam e constroem a subjetividade do protagonista e de todos os implicados na cena. "O espaço cênico é uma extensão da vida para além dos testes de realidade da própria vida. Realidade e fantasia não estão em conflito; pelo contrário, ambas são funções dentro de uma realidade mais vasta - o mundo psicodramático de objetos, pessoas e eventos"(14). Isso vale para diretores, egos-auxiliares e todos os outros personagens presentes ou presentificados na cena. É nesse jogo de espelhos e duplos, concretizados no aqui e agora existencial que novas versões são concebidas, construidas e outros processos podem ser nomeados, fruto de uma visibilidade recém criada.


Entretanto, essa visibilidade so é possível através do Encontro que é a possibilidade de perceber o outro através de seus próprios olhos, e concebido no psicodrama como terapêutico. E também através da Ação psicodramática.


Eu diria que Moreno não apenas introduziu a imaginação, o imaginário socio-cultural como fator terapêutico, pois que produtores de sentidos, através da criatividade/indeterminabilidade da ação dramática e do encontro; como ele, sutilmente, acabou propondo uma nova noção tempo-espacial de consciência. Não se trata para ele da consciência, faculdade mental situada dentro do indivíduo; mas sim, entre os indivíduos. Para ele , o ser é construido no interrelacional, criado através do imaginário coletivo, dito sócio-histórico segundo Castoriadis, no aqui e agora da cena dramática.


Moreno tornou a criatividade, um dos conceitos principais de sua proposta teórico-filosófica-terapêutica.


Para ele, o objetivo de toda terapia é desenvolver a espontaneidade e criatividade. Enquanto por espontaneidade ele compreende a "prontidão para o ato", criatividade é "o ato de criar"(15). Entretanto, existem as pressões, tradições ou conservas culturais no sentido das pessoas se moldarem a padrões repetitivos de desempenho de papéis. O que seria para Castoriadis, a pressão do instituido, dos magma. O papel do psicodrama seria o de dar fluência a espontaneidade através da criatividade da ação dramática, que na concepção de Castoriadis sobre o papel do imaginário radical seria o de dar fluência aos processos instituintes, de criação através das tensões geradas pelo instituido.



CONCLUSÃO



Guardadas as devidas peculiaridades das propostas teórico-filosóficas de Castoriadis e Moreno, a finalidade mais filosófica do primeiro e socio-psicoterapêutica do segundo, a formação acadêmica e a própria sistemática de produção intelectual de cada autor, ambos trouxeram a imaginação, o imaginário, a criatividade para o centro da cena de sua concepção de ser humano, de sua visão de mundo. Imaginário este, Criatividade esta, que não são naturalizados, mas sim contextualizado sócio-histórico-culturalmente. É o Ser equacionado ao Tempo, Tempo de criação, da construção do sentido na relação com os outros, numa espaço de indeterminação. É o Protagonista.


Apesar de já ter apontado para alguns dados, gostaria de destacar alguns que me parecem de fundamental importância.


É possível afirmar que ambos autores não se inspiraram nas teses do empirismo lógico para construir suas propostas teóricas.


A idéia do imaginário radical em Castoriadis e de imaginação e criatividade em Moreno, como espaço-temporalidade instituinte de sentido, é disruptiva com os pressuposto do conhecimento enquanto representação objetiva da realidade, de sujeito em oposição à realidade, de uma lógica finalista de causalidade e, por fim a mais polêmica, da concepção de verdade essencial e universal.


Ambos tem dificuldade em resolver a questão das verdades essenciais e universais, por outro lado não naturalizam o sujeito. A consciência é construida a partir da sua inserção sócio-histórica para Castoriadis, sócio-cultural para Moreno. Portanto, não formulam uma visão ahistórica, descontextualizada da pessoa. Toda realidade é sempre interpretada, significada, contextualizada. Questões de valores, ética e estética são de fundamental importância para ambos.


Fica a questão da linguagem para ambos os autores. Qual o significado da linguagem para eles?
Desconheço a reflexão de Castoriadis sobre o tema, entretanto, é minha interpretação, que Moreno fundou uma nova, inovadora, complexa linguagem sócio-psico-terapêutica. Mas sobre isso falaremos em outra ocasião.



NOTAS:



1 Trabalho de conclusão do seminário: Imaginário Sócio-Histórico e Modos de Subjetivação. Mestrado - 98.1.PUC-Rio


2 Psicóloga, psicoterapeuta breve e psicodramatista. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.


3 MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.


4 MESQUITA, A.M.O. O psicodrama e as abordagens alternativas ao empirismo lógico como metodologia científica . trabalho apresentado para conclusão da disciplina Métodos de Pesquisa, Mestrado, 1998.


5 CASTORIADIS, C. Domaines de l'homme: les Carrefours du Labyrinthe II, Paris, Sueil, 1986, p. 219.


6 Idem nota 5.


7 Idem nota 5.


8 Idem nota 5.


9 Idem nota 5.


10 Idem nota5.


11 Idem nota 5, p. 220 , no original:"Pour cette ontologie, la négation du Temps comme possibilité permanente de l'émergence de l'Autre est une question de vue e de mort".


12 Idem nota 5, p.221 e 222.


13 MORENO, J.L. Psicodrama . São Paulo: Editora Cultrix, 1993, p. 61.


14 Idem nota 13, p. 17.


15 MORENO, J.L. Sociometry and the Science of Man . New York: Beacon House, 1956, p. 365.

BIBLIOGRAFIA:

CASTORIADIS, C. Dommaines de lhomme: Les Carrefours du Labyrinthe II . Paris: Sueil, 1986.


MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1997.


MESQUITA, A.M.O. O psicodrama e as abordagens alternativas ao empirismo lógico como metodologia científica . Trabalho aceito para publicação na revista Psicologia: Ciência e Profissão do CFP . nº 2, ano 2000.


MORENO, J.L. Psicodrama . São Paulo: Editora Cultrix, 1993.


MORENO, J.L. Sociometry and the Science of Man . New York: Beacon House, 1956.



Psicóloga Ana Maria Otoni Mesquita
Psicoterapeuta Breve e Psicodramatista
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio
e-mail: anotoni@gbl.com.br




2 comentários:

tainá moraes disse...

muito bom!

davidamescurtis disse...

Dear Ana Maria:

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Sincerely,

David Ames Curtis
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