As Raízes do Romantismo Buddhista
Muitos ocidentais, quando novos no Buddhismo, são tocados pela estranha familiaridade do que parecem ser seus conceitos centrais: a interconectividade, a integralidade, a ego-transcendência. Mas o que eles podem não perceber é que os conceitos soam familiares porque são familiares. Em grande medida, eles não vêm de ensinamentos do Buddha, mas sim do portal para o Dhamma que é a psicologia ocidental, através do qual as palavras do Buddha foram filtradas. Esses conceitos recebem menos das fontes raízes do Dhamma que de suas próprias raízes ocultas na cultura ocidental: o pensamento dos românticos alemães.
Os românticos alemães podem estar mortos e quase esquecidos, mas suas ideias ainda estão muito vivas. Seu pensamento tem sobrevivido porque eles foram os primeiros a enfrentar o problema do como nos sentimos ao desenvolver-nos em uma sociedade moderna. A análise do problema, juntamente com a sua proposta de solução, ainda soam verdadeiras.
A sociedade moderna, eles viram, é desumana na medida em que nega aos seres humanos a sua integralidade. A especialização do trabalho leva a sentimentos de fragmentação e isolamento; o Estado burocrático a sentimentos de regimentação e constrição. A única cura para esses sentimentos, os românticos propunham, é o ato criativo artístico. Esse ato integra o ser dividido e dissolve os seus limites em um sentido ampliado de identidade e de interligação com outros seres humanos e a natureza em geral. Os seres humanos são mais completamente humanos quando são livres para criar espontaneamente a partir do coração. Criações do coração são o que permitem às pessoas se conectarem. Embora muitos românticos considerassem as instituições e doutrinas religiosas como desumanizantes, alguns deles voltaram-se para a experiência religiosa – um sen timento direto de unidade com toda a natureza – como fonte primordial para a rehumanização.
Quando a psicologia e a psicoterapia se desenvolveram como disciplinas no Ocidente, elas absorveram muitas das ideias dos românticos e as transmitiram para a cultura em geral. Como resultado, conceitos como integração da personalidade, autorrealização e interconexão, juntamente com os poderes curativos de plenitude, espontaneidade, ludicidade e fluidez têm sido parte do ar que respiramos. Então, há a ideia de que a religião seja, basicamente, uma busca por uma experiência sensorial, e as doutrinas religiosas são uma resposta criativa para tal experiência.
Além de influenciar a psicologia, essas concepções inspiraram o cristianismo liberal e o judaísmo reformista, que propuseram que as doutrinas tradicionais tinham que ser reformuladas de maneira criativa para falar com cada nova geração a fim de manter a experiência religiosa viva e vitalizada. Então foi natural que, quando o Dhamma veio para o Ocidente, as pessoas o interpretassem, também, de acordo com tais concepções. Professores asiáticos – muitos dos quais haviam absorvido as ideias românticas através da educação ocidentalizada antes de aqui chegar – descobriram que podiam se conectar com o público ocidental enfatizando os temas de espontaneidade e fluidez em oposição à “burocracia do ego”. Estudantes ocidentais descobriram que podiam relacionar-se com a doutrina da origem dependente quando interpretada como uma variação da in terconexão e podiam abraçar a doutrina do não-eu como uma negação do eu apartado em favor de uma maior e mais abrangente identidade com todo o cosmo.
Na verdade, a visão romântica da vida religiosa moldou mais do que apenas ensinamentos isolados. Ela tingiu a visão ocidental com respeito ao propósito da prática do Dhamma como um todo. Professores ocidentais de todas as tradições afirmam que o objetivo da prática buddhista é obter a fluidez criativa que supera as dualidades. Como um autor apontou, o Buddha ensinou que “dissolver as barreiras que erguemos entre nós e o mundo é o melhor uso de nossas vidas humanas … [O não-egoísmo] manifesta-se como curiosidade, como adaptabilidade, como humor, como ludicidade… nossa capacidade de relaxar com o não saber”. Ou como outro disse: “Quando a nossa identidade se expande para incluir tudo, encontramos a paz com a dança do mundo”. Acrescenta um terceiro: “Nosso trabalho, para o resto da nossa vida, é o de nos abrirmos para essa imensidão e expressá-la”.
Assim como os chineses tinham o Taoismo como o seu portal para o Dhamma – a tradição local que fornecia conceitos que ajudavam a compreender o Dhamma – nós, no Ocidente, temos no Romantismo o nosso. A experiência chinesa com o seu portal do Dhamma, no entanto, contém uma importante lição que é muitas vezes esquecida. Depois de três séculos de interesse nos ensinamentos buddhistas os chineses começaram a compreender que o Buddhismo e o Taoismo propunham perguntas diferentes. Conforme eles foram erradicando essas diferenças, eles começaram a usar as ideias buddhistas para questionar seus pressupostos taoistas. Foi assim que o Buddhismo, em vez de se transformar em uma gota no mar taoista, foi capaz de injetar algo verdadeiramente novo na cultura chinesa. A questão aqui no Ocidente é se iremos aprender com o exemplo chinês e começar a usar as ideias buddhistas para questionar o nosso portal para o Dhamma, para ver exatamente o quão longe as semelhanças entre o portal e o Dhamma vão realmente. Se não o fizermos, corremos o perigo de confundir o portal com o Dhamma em si e nunca passar por ele para o outro lado.
Tomado em seu todo, o romantismo e o Dhamma veem a vida espiritual de uma forma similar. Ambos consideram a religião como um produto da atividade humana ao invés de uma intervenção divina. Ambos consideram a essência da religião como experiencial e pragmática e o seu papel como sendo terapêutico, visando a cura das doenças da mente humana. Mas se você examinar as raízes históricas de ambas as tradições, você vê que elas discordam fortemente não só com respeito à natureza da experiência religiosa, mas também sobre a natureza das doenças mentais que podem tratar e sobre a natureza do que significa ser curado.
Estas diferenças não são apenas curiosidades históricas. Elas moldam os pressupostos que os meditantes trazem para a prática. Mesmo quando totalmente presente, a mente traz consigo seus pressupostos anteriores, utilizando-os para julgar quais experiências devem ser – ou não – valorizadas. Esta é uma das implicações da doutrina buddhista do kamma. Enquanto esses pressupostos permanecem sem exame, eles detêm um poder desconhecido. Então, para sobrepujar esse poder, precisamos examinar as raízes do Romantismo Buddhista – o Dhamma como visto através do portal romântico. E para o exame estar em acordo com as ideias buddhistas de causalidade, temos que buscar pelas raízes em duas direções: para o passado, para a origem das ideias românticas, e para o presente, para as condições que mantêm as ideias românticas atraentes no aqui e agora.
Os românticos tiveram sua inspiração original de uma fonte inesperada: Kant, o enrugado professor, cujas caminhadas diárias eram tão pontuais que os vizinhos podiam ajustar seus relógios por ele. Em sua Crítica do Juízo, ele ensinou que a criação estética e o sentimento foram as maiores realizações da mente humana, daí que só eles poderiam curar as dicotomias da experiência humana. Friedrich Schiller (1759-1805), talvez o mais influente dos filósofos românticos, incrementou essa tese com a sua noção estética do “impulso lúdico”, o qual seria a expressão definitiva da liberdade humana, para além de ambas as compulsões da existência animal e das leis da razão, trazendo ambas à integração. O homem, ele disse, “é plenamente um ser humano apenas quando brinca”.
Aos olhos de Schiller, este brincar não apenas integra o self, mas também ajuda a dissolver a separação em relação a outros seres humanos e ao ambiente natural como um todo. Uma pessoa com a liberdade interior necessária para a autointegração instintivamente quer que os outros também experimentem a mesma liberdade. Tal conexão explica o programa político romântico de oferecer ajuda e solidariedade aos oprimidos de todas as nações para que possam derrubar os seus opressores. O valor da unidade interna, a seus olhos, foi comprovado pela sua capacidade de criar vínculos de unidade no mundo da ação social e política.
Schiller viu o processo de integração como interminável: a união perfeita nunca poderia ser alcançada. Uma vida significativa seria um envolvimento contínuo com o processo de integração. O caminho era o objetivo.
Era também totalmente não padronizável e não coercitivo. Dada a natureza livre do impulso lúdico, o caminho de cada pessoa para a integração seria individual e único.
O colega de Schiller, Friedrich Schleiermacher (1768-1834), aplicou essas ideias à religião concluindo que, como qualquer outra forma de arte, era uma criação humana e que sua função primordial consistia em curar as divisões dentro da personalidade humana e na sociedade humana em geral. Ele definiu a essência da religião como “a sensibilidade e o gosto pelo infinito”, que começa no estado de mente receptiva onde a consciência se abre para o infinito. Esse sentimento em relação ao infinito é seguido por um ato da imaginação criativa, que articula esse sentimento em relação a si e aos outros. Porque esses atos criativos – e, portanto, todas as doutrinas religiosas – são um passo para fora da realidade da experiência, eles estão constantemente abertos a melhorias e modificações.
Algumas citações de seus ensaios, On Religion, darão uma percepção do pensamento de Schleiermacher.
“O indivíduo não é apenas parte de um todo, mas uma exposição dele. A mente, como o universo, é criativa, não apenas receptiva. Quem quer que tenha aprendido a ser mais do que si mesmo sabe que perde pouco quando perde a si próprio. Ao invés de alinhar-se com a crença na imortalidade pessoal depois da morte, o verdadeiro religioso prefere esforçar-se para aniquilar a sua personalidade e viver na unidade e no todo”.
“Onde a religião deve ser primordialmente procurada? Onde o vívido contato de um ser humano com o mundo se forma como sentimento. As pessoas verdadeiramente religiosas são tolerantes a diferentes traduções desse sentimento, até mesmo à hesitação do ateísmo. Não ter o divino imediatamente presente em seus sentimentos sempre pareceu-lhes mais irreligioso do que hesitação. Insistir em uma concepção particular do divino como sendo a verdade está longe de ser religião”.
Schiller e Schleiermacher tiveram uma forte influência sobre Ralph Waldo Emerson, que pode facilmente ser vista em seus últimos escritos. Algumas vezes somos informados de que Emerson foi influenciado pelas religiões orientais, mas, na verdade, suas leituras do Buddhismo e Hinduísmo simplesmente proveram o formato para as lições que ele já tinha aprendido a partir dos românticos europeus.
“Trazer o passado dentro do presente de 1000 olhos, e viver sempre em um novo dia. Com consistência uma grande alma, de fato, nada tem a fazer. A essência do gênio, da virtude e da vida é o que é chamada de espontaneidade ou instinto. Todo homem sabe que para as suas involuntárias percepções uma fé perfeita é devida”.
“A razão pela qual o mundo carece de unidade é porque o homem é desunido com ele mesmo… Vivemos em sucessão, na divisão, em partes, em partículas. Enquanto isso, dentro do homem está a alma do todo, o sábio silêncio, a beleza universal, com o que cada parte e partícula está igualmente relacionada, o Eterno. E este poder profundo em que nós existimos, e cuja bem-aventurança é toda acessível para nós, não é apenas autossuficiente e perfeito em todas as horas, mas o ato de ver e a coisa vista, o espectador e o espetáculo, o sujeito e o objeto, são um”.
Atualmente, os românticos e transcendentalistas raramente são lidos fora de aulas de literatura ou teologia. Suas ideias têm sobrevivido na cultura geral em grande parte porque foram adotadas pela psicologia e traduzidas em um vocabulário que foi um tanto mais científico e mais acessível ao público em geral. Um dos tradutores mais cruciais foi William James, que deu ao estudo psicológico da religião sua forma moderna a um século atrás, em 1902, com a publicação de As Variedades da Experiência Religiosa. As preferências gerais de James estenderam-se para além da cultura ocidental para incluir o Buddhismo e o Hinduísmo, e além das religiões “aceitáveis” de seu tempo para incluir o Movimento de Cultura Mental, a versão século 19 da Nova Era. Seu interesse na diversidade fez com que ele parecesse incrivelmente pós-moderno.
Ainda assim, James foi influenciado pelas correntes intelectuais existentes em seu tempo, que moldaram a forma como ele converteu sua grande massa de dados em uma psicologia da religião. Embora falasse como cientista, a corrente que mais profundamente influenciou o seu pensamento foi o Romantismo.
Ele seguiu os românticos ao dizer que a função da experiência religiosa era curar o sentimento de “eu dividido”, criando uma forma mais integrada de autoidentidade mais capaz de funcionar em sociedade. No entanto, para ser científica, a psicologia da religião não devem se colocar a favor ou contra qualquer reivindicação de veracidade sobre o conteúdo das experiências religiosas. Por exemplo, muitas experiências religiosas produzem uma forte convicção na unicidade do cosmo como um todo. Embora os observadores científicos devam aceitar o sentimento de unidade como um fato, não devem tomá-lo como prova de que o cosmos seja uno de fato. Em vez disso, eles devem julgar cada experiência por seus efeitos sobre a personalidade. James não foi perturbado pelas muito mutuamente contraditórias alegações a respeito da verdade que as experiências religiosas têm produzido ao longo dos séculos. A seus olhos, temperamentos diferentes precisam de verdades diferentes como remédios para curar suas feridas psicológicas.
Baseando-se no Metodismo para prover duas categorias para a classificação de todas as experiências religiosas – conversão e santificação – James deu uma interpretação romântica para ambas. Para os metodistas essas categorias aplicam-se especificamente à relação da alma com Deus. Conversão seria a inclinação da alma à vontade de Deus; santificação, a sintonia da alma com a vontade de Deus em todas as suas ações. Ao aplicar essas categorias para as outras religiões, James removeu as referências a Deus, deixando uma definição mais romântica: a conversão unifica a personalidade; a santificação representa o curso de integração dessa unificação na vida diária.
Além disso, James seguiu os românticos ao julgar os efeitos desses dois tipos de experiências nesses termos mundanos. Experiências de conversão são saudáveis quando nutrem a santificação saudável: a capacidade de manter a integridade nos altos e baixos da vida diária, atuando como um membro responsável e ético da sociedade humana. Em termos psicológicos, James viu a conversão simplesmente como um exemplo extremo das descobertas normalmente surgidas na adolescência. E ele concordou com os românticos com respeito a que a integração pessoal fosse um processo a ser perseguido ao longo da vida, ao invés de uma meta a ser alcançada.
Outros escritores que adotaram a psicologia da religião após James criaram um vocabulário mais científico para analisar seus dados. Ainda assim, eles mantiveram muitas das noções românticas que James tinha introduzido no campo.
Por exemplo, no Modern Man in Search of a Soul (1933), Carl Jung concorda que o papel adequado da religião reside na cura das divisões no interior da personalidade, embora ele visse a mesma divisão básica em todos: o limitado e temeroso ego X o sábio inconsciente mais amplo. Assim, ele considerava a religião como uma forma primitiva de psicoterapia. Na verdade, ele realmente estava mais próximo dos românticos do que James em sua definição de saúde psíquica. Citando a afirmação de Schiller de que os seres humanos são mais humanos quando estão brincando, Jung viu o cultivo da espontaneidade e fluidez tanto como um meio de integração da personalidade dividida como expressão da personalidade saudável envolvida no processo interminável de inte gração, interna e externa, durante toda a vida.
Ao contrário de James, Jung viu a personalidade integrada como estando acima dos limites rígidos da moralidade. E, embora ele não use o termo, ele exaltou o que Keats chamou “capacidade negativa”: a habilidade de lidar confortavelmente com as incertezas e mistérios, sem tentar impor certezas sobre eles. Assim, Jung recomendou tomar emprestado das religiões qualquer ensinamento que auxiliasse no processo de integração, rejeitando qualquer ensinamento que inibisse a espontaneidade do self integrado.
Em Religions, Values, and Peak-Experiences (1970), Abraham Maslow, o americano “pai da psicologia transpessoal”, dividiu as experiências religiosas nas mesmas duas categorias utilizadas por James. Mas na tentativa de divorciar essas categorias de qualquer tradição particular, ele lhes deu os nomes que delineariam as suas formas posteriormente: experiências culminantes e experiências superiores. Esses termos atualmente já entraram no vernáculo comum. As experiências culminantes são sentimentos de unidade e integração de curta duração que podem vir não só no escopo da religião, mas também no esporte, sexo e arte. Experiências superiores exibem um sentido mais estável de integração e duram muito mais tempo.
Maslow viu pouca utilidade nas interpretações tradicionais de experiências culminantes considerando-as sobreposições culturais que obscureceram a verdadeira natureza da experiência. Assumindo que todas as experiências culminantes, independentemente da causa ou do contexto, são basicamente o mesmo fenômeno, ele as reduziu às suas características psicológicas comuns, tais como sentimento de plenitude, dicotomia-transcendência, ludicidade e ausência de esforço. Assim reduzidas, ele descobriu, não tinham valor duradouro a menos que pudessem ser transformadas em experiências superiores. Para esse fim, ele viu a psicoterapia como necessária para o seu aperfeiçoamento: integrá-las em um regime de orientação e educação que realizasse o pleno potencial do ser humano – intelectual, físico, social, sexual – numa sociedade onde todas as áreas da vida são sagradas e as experiências superiores seriam de senso comum para todos.
Esses três autores da psicologia da religião, apesar de suas diferenças, mantiveram ideias românticas sobre a religião existente no Ocidente, dando-lhes o selo da aprovação científica. Através de sua influência, essas ideias têm formatado a psicologia humanista e – através da psicologia humanista – as expectativas que muitos americanos (ou ocidentais) trazem para a Dhamma.
No entanto, quando comparamos essas expectativas com os princípios originais do Dhamma, encontramos diferenças radicais. O contraste é especialmente forte em torno de três questões centrais da vida espiritual: Qual é a essência da experiência religiosa? Qual é a doença fundamental que a experiência religiosa pode curar? E o que significa ser curado?
A natureza da experiência religiosa. Para a psicologia humanista, como para os românticos, a experiência religiosa é um sentimento direto ao invés da descoberta de verdades objetivas. A sensação essencial é uma unicidade que supera todas as cisões interiores e exteriores. Tais experiências vêm em dois tipos: as experiências culminantes, em que o sentido de unicidade rompe as divisões e dualidades; e as experiências superiores onde – por meio de treinamento – a sensação de unicidade cria um sentido saudável de self, formatando todas as nossas atividades na vida diária.
No entanto, o Dhamma conforme exposto em seus registros antigos, coloca o treino da unicidade e o saudável sentido de selfcomo anteriores às experiências religiosas mais dramáticas. Um sentido saudável de self se dá com o cultivo da generosidade e da virtude. Um senso de unicidade – culminante ou superior – é alcançado nos níveis mundanos de concentração (jhāna) que constituem o caminho, ao invés do objetivo da prática. A derradeira experiência religiosa, o Despertar, é algo completamente diferente. O Despertar é descrito não em termos de sentimento, mas de conhecimento: domínio hábil dos princípios da causalidade subjacentes às ações e respectivos resultados, seguido pelo conhecimento direto da dimensão além da causalidade, onde todo o sofrimento cessa.
A doença espiritual básica. A psicologia romântica/humanista estabelece que a raiz do sofrimento é um sentimento de selfdividido, o que cria não apenas as barreiras internas – entre razão e emoção, ego e sombra – mas também os externos, que nos separam das outras pessoas, da natureza e do cosmo como um todo. O Dhamma, no entanto, ensina que a essência do sofrimento é o apego, e que a forma mais básica de apego é a autoidentificação, independentemente do senso de self ser finito ou infinito, fluido ou estático, unitário ou não.
A cura espiritual bem-sucedida. A psicologia romântica/humanista sustenta que uma cura total e final é inatingível. Em vez disso, a cura é um processo contínuo de integração pessoal. A pessoa iluminada é marcada por um ampliado, fluido senso de si mesmo, livre da rigidez moral. Guiada principalmente pelo que sente ser correto no contexto da interconexão, ajusta-se com facilidade – como um dançarino – aos papéis e aos ritmos da vida. Tendo aprendido a resposta criativa para a pergunta: “Qual é a minha verdadeira identidade?”, foi liberada da necessidade de certezas sobre qualquer um dos outros mistérios da vida.
O Dhamma, no entanto, ensina que o Despertar pleno atinge a cura total, abrindo a porta para o incondicionado além de tempo e espaço, e neste ponto a tarefa está realizada. A pessoa desperta, então, segue um caminho “que não pode ser rastreado”, mas é incapaz de transgredir os princípios básicos da moralidade. Tal pessoa percebe que a questão “Qual é a minha verdadeira identidade?” foi mal formulada, e conhece – por experiência direta – a liberação total do tempo e do espaço que acontecerá no momento da morte.
Quando essas duas tradições são comparados ponto por ponto, fica óbvio que – a partir da perspectiva do Buddhismo antigo – a psicologia romântica/humanista dá apenas uma visão parcial e limitada das potencialidades da prática espiritual. Isso significa que o Romantismo Buddhista, na tradução do Dhamma em princípios românticos, dá apenas uma visão parcial e limitada do que o Buddhismo tem a oferecer.
Agora, para muitas pessoas, essas limitações não importam, porque elas vêm para o Romantismo Buddhista por razões enraizados mais no presente do que no passado. A sociedade moderna está hoje ainda mais esquizofrênica do que qualquer coisa que os românticos tenham conhecido. Fez-nos mais e mais dependentes em círculos cada vez mais amplos de outras pessoas, e ainda mantém a maior parte dessas dependências ocultas. Nossa comida e roupas vêm dos mercados, mas como chegaram lá, ou quem é responsável por garantir um suprimento contínuo, não sabemos. Quando os repórteres investigativos rastreiam a rede de conexões do campo até o produto final em nossas mãos, os fatos se tornam expostos. Nossas camisetas, por exemplo, o algodão vem do Uzbequistão, tecido no Irã, costurado na Coréia do Sul e armazenado em Kentucky – uma teia de interdependê ncias instável que envolvem não um pequeno sofrimento tanto para os produtores quanto para aqueles empurrados para fora da teia produtiva por conta de mãos de obra mais baratas.
Quer saibamos ou não desses detalhes, nós intuitivamente percebemos a fragmentação e a incerteza criada por todo o sistema. Assim, muitos de nós sentimos a necessidade de um sentimento de completude. Para aqueles que se beneficiam das dependências ocultas da vida moderna, um corolário necessário é um sentimento de certeza de que a interconexão é confiável e benigna – ou, ainda que não benigna, que ao menos reformas factíveis possam torná-la nisso. Eles querem saber que podem, com segurança, depositar sua confiança no princípio da interconectividade sem medo de que ele vá consumi-los ou deixá-los para trás. Quando o Romantismo Buddhista fala a essas necessidades, ele abre o portão para as áreas do Dhamma que podem ajudar muitas pessoas a achar o consolo que estão procurando. Ao fazer isso, ele reforça o trabalho da psicoterapia, que p ode explicar porque tantos psicoterapeutas adotaram a prática do Dhamma para suas próprias necessidades e para seus pacientes e por que alguns se tornaram eles mesmos professores de Dhamma.
No entanto, o Romantismo Buddhista também ajuda a fechar o portão para as áreas do Dhamma que desafiam as pessoas em sua esperança de uma felicidade suprema baseada na interconectividade. O Dharma Tradicional chama para a renúncia e o sacrifício, para as bases em que toda a interconectividade é essencialmente instável e que qualquer felicidade baseada nessa instabilidade é um convite ao sofrimento. A verdadeira felicidade tem que ir além da interdependência e interconectividade, tem que ir para o incondicionado. Em resposta, os argumentos românticos chamam esses ensinamentos de dualistas: não essenciais para a experiência religiosa ou expressões inadequadas da mesma. Assim, concluem, eles podem ser ignorados. Dessa maneira, o portão fecha para áreas radicais do Dhamma concebidas para resolver os níveis de sofrimento que ainda restam mesmo ap� �s um sentido de completude ser dominado.
Ele também se fecha para dois grupos de pessoas que de outro modo se beneficiariam grandemente de prática do Dhamma:
1. Aqueles que veem que a interconectividade não vai eliminar o problema do sofrimento e estão procurando uma cura mais radical.
2. Aqueles de setores desiludidos e desfavorecidos da sociedade, que têm investido menos na continuação da interconectividade moderna e abandonaram a esperança de uma reforma significativa ou de felicidade dentro do sistema.
Para ambos os grupos, os conceitos do Romantismo Buddhista parecem coisa de Poliana; a cura que ele oferece, muito fácil. Enquanto portal de Dhamma, é mais como uma porta fechada em seus rostos.
Como tantos outros produtos da vida moderna, as fontes raízes do Romantismo Buddhista têm por muito tempo permanecido escondidas. É por isso que nós não as reconhecemos por aquilo que são ou não percebemos o preço que pagamos por confundir e tomar a parte pelo todo. Obstruindo a possibilidade de grandes mudanças na sociedade americana (ou ocidental), o Romantismo Buddhista certamente sobreviverá. O que se necessita é de mais janelas e portas para lançar luz sobre os aspectos radicais do Dhamma que o Romantismo Buddhista, até agora, manteve no escuro.
© Thanissaro Bhikkhu
© Centro Buddhista Nalanda, 2013 – Traduzido por Jorge Luiz Furtado para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
Thanissaro Bhikkhu
Thanissaro Bhikkhu, também conhecido como Ajahn Geoff, nasceu em1949 e é um monge buddhista americano da Ordem Dhammayut (Dhammayutika Nikaya), da tradição das florestas da Thailândia. Atualmente é o abade do Metta Forest Monastery em San Diego. Thanissaro Bh ikkhu é um prolífico autor e tradutor de muitos livros.
Thanissaro Bhikkhu, também conhecido como Ajahn Geoff, nasceu em1949 e é um monge buddhista americano da Ordem Dhammayut (Dhammayutika Nikaya), da tradição das florestas da Thailândia. Atualmente é o abade do Metta Forest Monastery em San Diego. Thanissaro Bh ikkhu é um prolífico autor e tradutor de muitos livros.
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