terça-feira, 17 de novembro de 2009

Ideias de Heidegger sob novo ataque



Por décadas, o filósofo alemão Martin Heidegger foi tema de debates acalorados. Sua crítica do pensamento e da tecnologia ocidentais penetrou profundamente na arquitetura, na psicologia e na teoria literária e inspirou alguns dos mais importantes movimentos intelectuais do século XX. Mas Heidegger foi também um nazista fanático.


A reportagem é de Patricia Cohen, do jornal New York Times, e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-11-2009.


Agora, um livro a ser lançado brevemente em inglês, retoma o debate quanto a se o homem pode ser separado da sua filosofia. Baseado em novas evidências, o autor, Emmanuel Faye, afirma que as ideias racistas e fascistas estão tão entremeadas nas teorias de Heidegger que não merecem mais ser chamadas de filosofia. Assim, as obras e as muitas áreas criadas a partir dessas teorias têm que ser reexaminadas, diz o autor, de modo a não disseminarem ideias sinistras e perigosas para o pensamento moderno quanto foi sinistro e perigoso o "movimento nazista para os povos exterminados".


Publicado pela primeira vez na França em 2005, o livro, Heidegger: Introdução do Nazismo na Filosofia, exorta professores de filosofia a tratarem a obra de Heidegger como discurso odioso. E também as livrarias deveriam abandonar a classificação dos trabalhos do filósofo (que foram saneados e condensados pela família) como filosofia para incluí-los dentro da história do nazismo. Essas medidas funcionariam como sinal de advertência, do mesmo modo que a caveira na etiqueta de uma garrafa de veneno, para impedir a difusão descuidada das suas mais odiosas ideias, que Faye cataloga como a exaltação do Estado em relação ao indivíduo, a impossibilidade da moralidade, o anti-humanismo e a pureza racial.


O livro é o mais violento ataque feito até hoje a Heidegger (1889-1976) e invalidaria o tratamento pela área filosófica da sua obra nos EUA, e ainda mais na França, onde sua leitura é exigida em graus de estudo mais avançados. Faye, professor da Universidade de Paris, em Nanterre, não só deseja tirar Heidegger da classe dos filósofos, como desafia seus colegas a repensar o real objetivo da filosofia e sua relação com a ética. Ao mesmo tempo, estudiosos de disciplinas tão distintas da filosofia, como a poesia e a psicanálise, se obrigariam a reconsiderar o uso das ideias de Heidegger. Embora Faye se refira à estreita correlação entre Heidegger e a atual política de extrema direita, os intelectuais da esquerda quase sempre foram inspirados pelas ideias dele. O existencialis mo e o pós-modernismo, como também os ataques concomitantes ao colonialismo, bombas atômicas, ruína ecológica e noções universais de moralidade, tudo isso está baseado na sua crítica da razão e da tradição culturais ocidentais.


Richard Wolin, autor de diversos livros sobre Heidegger e leitor atento do livro de Faye, diz não estar convencido de que o pensamento do filósofo alemão esteja inteiramente contaminado pelo nazismo, como afirma Faye. Mas reconhece quão longe as ideias de Heidegger se espalharam para a cultura mais geral. "Não estou, absolutamente, subestimando qualquer dessas áreas por causa da influência de Heidegger", ele escreveu num e-mail, referindo-se à influência do pós-modernismo sobre o mundo acadêmico. "Estou simplesmente afirmando que devemos saber mais a respeito dos resíduos e conotações ideológicas de um pensador como Heidegger antes de aceitarmos seu discurso pronto ingenuamente."


Apesar de o texto em inglês editado pela editora da Universidade Yale só estar à venda nos EUA dentro de algumas semanas, ele já está chamando atenção, como foi assinalado por um ensaio na The Chronicle Review, revista de ideias e opinião do The Chronicle of Higher Education. No texto, intitulado Heil Heidegger! , o crítico Carlin Romano qualifica Heidegger como um "falastrão da Floresta Negra" e uma fraude que foi "supervalorizado no seu apogeu" e "bizarramente venerado pelos acólitos ainda hoje". Poucas pessoas leram o livro, mas o artigo gerou mais de 150 comentários online de defensores e detratores ferozes, mais do que qualquer outro trabalho publicado pela The Review este ano, segundo a editora Liz McMille.


Outros entraram na briga. Ron Rosenbaum, autor de Explaining Hitler (Explicando Hitler), chega até a estender o argumento à filósofa judia alemã Hannah Arendt, ex-aluna e amante de Heidegger. Citando ensaio recente do historiador Bernard Wasserstein, Rosenbaum escreveu no website Slate.com. que a ideia de Hannah sobre o Holocausto e a sua famosa formulação da "banalidade do mal" foi corrompida por Heidegger e por outros escritores antissemitas. Comentaristas rejeitam veementemente a noção de que ideias importantes não podem ser extraídas de ideias infames. Escrevendo para o website do The New Republic, o tnr.com, Damon Linker declarou ser "absurdo implicar toda a bibliografia filosófica de Heidegger". Ele e outros repercutiram a opinião do importante filósofo americano Richard Rorty, que, num artigo no The New York Times, escreveu: "Você não pode ler a maioria dos grandes filósofos mais recentes sem levar o pensamento de Heidegger em conta." Rorty acrescentou, contudo, que "o cheiro da fumaça dos crematórios sobreviverá nas suas páginas".


Aos olhos de Faye, a filosofia de Heidegger não pode ser separada da sua política da maneira, digamos, que a verve poética de T.S. Elliot ou a técnica cinematográfica de D.W. Griffith podem ser apreciadas independentemente das suas próprias crenças. Embora não discuta o lugar de Heidegger no panteão intelectual, Faye revisa suas conferências não publicadas e conclui que a filosofia de Heidegger baseava-se nas mesmas ideias do Nacional Socialismo. Sem compreenderem o solo em que a filosofia heideggeriana tem raízes, afirmou, as pessoas não podem entender que suas ideias possam avançar em direções preocupantes. O ditame de Heidegger para ser autêntico e livre das limitações convencionais, por exemplo, pode levar a uma rejeição da moralidade. A denúncia da razão e do modernismo sem alma pode levar a um anti-intelectuali smo grosseiro.


Heidegger juntou-se ao partido nazista em 1933, ao se tornar reitor da Universidade de Freiburg e supervisionou a demissão de professores judeus. Após a guerra, foi proibido de lecionar por um tribunal. Nos anos 50, Hannah Arendt reatou o relacionamento com ele e se empenhou para refazer sua reputação. Heidegger foi um grande crítico da sociedade tecnológica moderna e da tradição filosófica ocidental que propiciou a ascensão dessa sociedade. Segundo ele, nós temos que vencer essa tradição e repensar a real natureza da existência ou do ser humano. Sua prosa é tão densa que, para alguns estudiosos, ela pode ser interpretada para significar qualquer coisa, enquanto outros a rechaçam completamente como sandices. No entanto, ele é considerado um dos maiores e mais influentes pensadores do século.


Teólogos usaram sua crítica da razão para explicar o ato de fé; arquitetos foram inspirados pela sua rejeição das regras convencionais para introduzir uma série de novos estilos, materiais e formas nos projetos de construção. Sua crítica da tecnologia mecanicista atraiu ambientalistas e urbanistas. Mas uma disputa verbal sobre as teorias de Heidegger não deve causar surpresa. Afinal, a posição americana clássica sobre como as sociedades liberais devem tratar ideias perigosas vale a pena ser discutida também. E é isso que Faye diz pretender. Na sua opinião, ensinar as ideias de Heidegger sem revelar suas profundas simpatias pelo nazismo é como levar uma criança a um espetáculo de fogos de artifício sem alertá-la de que um rojão também pode explodir no rosto de alguém.

2 comentários:

Matheus Mello disse...

Muito interessante o post.

Acho que as críticas a Heidegger e outros pensadores são extremamente válidas, mas não dessa forma simplista, ou até ingênua. Não vamos acabar com os pensamentos racistas, sexistas, homofóbicos, etc simplesmente retirando das prateleiras e jogando numa fogueira os livros como faziam os nazistas!

Temos é que saber sempre localizar esses autores em sua época, região e cultura, e fazer qualquer leitura levando em conta que nada é neutro. Isso implica saber aproveitar alguns elementos de Heidegger que consideremos úteis para o que nos interessa, como a crítica ao ocidente, sempre fazendo adaptações necessárias; e rejeitar aquilo que não interessa como seus apelos chegados ao nazismo.

Uma tarefa sem dúvida nada fácil, mas mais sensata e consciente de que o fazer filosófico (e não só ele) não se faz no vácuo.

Se quisermos simplesmente eliminar aqueles autores e textos que difundem um pensamento que dá embasamento a violência contra as diferenças, teremos que jogar fora também Descartes, Hegel, Kant, etc, pois sua visão já é vista por muitos como eurocêntrica e violentadora das experiências não-ocidentais.
E se fossemos ainda mais a fundo nessa investigação, certamente descobriríamos que quase todo mundo tem pelo algum vestígio de pensamento que instiga preconceito, nos levando a achar que não há solução.

Mas se tem alguma coisa que podemos afirmar, é que esse mundo não é nada simples. Devemos aprender tomar atitudes que levam em conta essa complexidade, como saber localizar esses pensamentos, critíca-los e ainda saber aproveitá-los; e difundir outras possibilidades não pensadas ou não visibilizadas para não cairmos no mesmo engano desses pensadores "preconceituos" que estamos criticando, de tentar reduzir a diversidade do mundo a apenas uma posição válida.

jholland disse...

Olá Matheus,

Seus comentários são muito perspicazes.
De fato, a questão é polêmica e certamente não se esgotará com o livro em questão.
De certo modo, seria interessante perguntar-nos "por que só agora ?" e "qual o interesse ou propósito dessa obra e de sua repercussão neste momento histórico específico".
Obrigado por sua participação !

Abs