Transcrevo um artigo de Foucault acerca do cinismo, ceticismo, niilismo.
Ao contrário de Foucault, penso que o papel desempenhado pela arte (exercer uma crítica ao sistema), transferiu-se para o próprio sistema, fazendo com que aquilo que antes pareceia ser "contracultural" se tornasse "sistema ideológico hegemônico".
Ou seja, ao contrário de Foucault, penso que o prórpio sistema ideológico tornou-se "neo-Dadá" e a crítica fragmentadora perdeu todo sentido que pretendia exercer (ingenuamente) até o início do século XX.
As razões para que esse movimento de reabsorção pudesse ocorrer, em minha opinião, não são acidentais , mas antes, se devem à própria natureza pseudo-crítica dos movimentos artísticos.
(Como diria André Breton, tratar-se-ia (hoje) de realizarmos uma crítica ao "sistema" de outra natureza, pois o que se afiguraria contracultural é um movimento de reagrupamento holístico do homem e da natureza)
Cinismo na arte, segundo Michel Foucault
O jornal La Repubblica, 01-07-2009, publicou um texto do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que se debate a relação do cinismo, do ceticismo e do niilismo, a partir da arte. Segundo Foucault, "em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há uma razão que levou a arte moderna a se tornar o veículo do cinismo: falo da ideia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vá além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Não há dúvida de que essa visão da arte foi se firmando de modo sempre mais marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (com Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu como lugar de irrupção daquilo que está embaixo, do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.
Com relação a isso, pode-se falar de um antiplatonismo da arte moderna. Se vocês viram a mostra sobre Manet neste inverno, entenderão o que eu quero dizer: o antiplatonismo, encarnado de maneira escandalosa por Manet, representa, a meu ver, uma das tendências de fundo da arte moderna, de Manet até Francis Bacon, de Baudelaire até Samuel Beckett ou Burroughs, mesmo que não se identifique atualmente como elemento caracterizador de toda a arte possível. Antiplatonismo: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência.
Em consequencia, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. É esse o elemento que faz da arte moderna, a partir do século XIX, o movimento incessante por meio do qual toda regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada pelo ato sucessivo. Em toda forma de arte, pode-se encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: é o que podemos chamar de antiaristotelismo da arte moderna.
A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada. Esses dois aspectos conferem à arte moderna uma função que, substancialmente, poderia ser definida como anticultural. É preciso opor a coragem da arte, na sua verdade bárbara, ao conformismo da cultura. A arte moderna é o cinismo da cultura, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é sobretudo na arte, mesmo que não só nela, que se concentram, no mundo moderno, no nosso mundo, as formas mais intensas daquela vontade de dizer a verdade que não tem medo de ferir os seus interlocutores.
Naturalmente, ainda ficam muitos aspectos a ser aprofundados, particularmente o da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura. Pode-se ver os primeiros sinais desse processo, destinado a se manifestar de modo clamoroso nos séculos XIX e XX, em "O sobrinho", de Rameau e no escândalo provocado por Baudelaire, Manet, (Flaubert?).
Michel FoucaultO jornal La Repubblica, 01-07-2009, publicou um texto do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que se debate a relação do cinismo, do ceticismo e do niilismo, a partir da arte. Segundo Foucault, "em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há uma razão que levou a arte moderna a se tornar o veículo do cinismo: falo da ideia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vá além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Não há dúvida de que essa visão da arte foi se firmando de modo sempre mais marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (com Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu como lugar de irrupção daquilo que está embaixo, do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.
Com relação a isso, pode-se falar de um antiplatonismo da arte moderna. Se vocês viram a mostra sobre Manet neste inverno, entenderão o que eu quero dizer: o antiplatonismo, encarnado de maneira escandalosa por Manet, representa, a meu ver, uma das tendências de fundo da arte moderna, de Manet até Francis Bacon, de Baudelaire até Samuel Beckett ou Burroughs, mesmo que não se identifique atualmente como elemento caracterizador de toda a arte possível. Antiplatonismo: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência.
Em consequencia, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. É esse o elemento que faz da arte moderna, a partir do século XIX, o movimento incessante por meio do qual toda regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada pelo ato sucessivo. Em toda forma de arte, pode-se encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: é o que podemos chamar de antiaristotelismo da arte moderna.
A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada. Esses dois aspectos conferem à arte moderna uma função que, substancialmente, poderia ser definida como anticultural. É preciso opor a coragem da arte, na sua verdade bárbara, ao conformismo da cultura. A arte moderna é o cinismo da cultura, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é sobretudo na arte, mesmo que não só nela, que se concentram, no mundo moderno, no nosso mundo, as formas mais intensas daquela vontade de dizer a verdade que não tem medo de ferir os seus interlocutores.
Naturalmente, ainda ficam muitos aspectos a ser aprofundados, particularmente o da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura. Pode-se ver os primeiros sinais desse processo, destinado a se manifestar de modo clamoroso nos séculos XIX e XX, em "O sobrinho", de Rameau e no escândalo provocado por Baudelaire, Manet, (Flaubert?).
Depois, existem as relações entre cinismo da arte e vida revolucionária: afinidade, fascinação recíproca (perpétua tentativa de unir a coragem revolucionária de dizer a verdade à violência da arte como irrupção selvagem do verdadeiro); mas também o fato de não serem substancialmente sobreponíveis, devido, talvez, ao fato de que, se essa função cínica está no coração da arte moderna, o seu papel no movimento revolucionário é só marginal, pelo menos desde que este último foi dominado por formas de organização, desde quando os movimentos revolucionários se organizam em partidos, e os partidos definem a "verdadeira vida" como total conformidade às normas, conformidade social e cultural. É evidente que o cinismo, longe de constituir uma ligação, é um motivo de incompatibilidade entre o ethos da arte moderna e o da prática política, seja ela também revolucionária.
Poder-se-ia formular o mesmo problema em termos diferentes: por que o cinismo, que no mundo antigo assumiu as dimensões de um movimento popular, tornou-se, nos séculos XIX e XX, uma atitude elitista e marginal, mesmo que importante para a nossa história, e por que o termo cinismo é utilizado quase sempre em referência a valores negativos?
Poder-se-ia acrescentar que o cinismo tem muitos pontos de contato com uma outra escola de pensamento: o ceticismo – também neste caso, um estilo de vida, mais do que uma doutrina, um modo de ser, de fazer, de dizer, uma disposição a ser, a fazer e a dizer, uma atitude a colocar à prova, a examinar, a colocar em dúvida. Mas com uma diferença extremamente grande: enquanto o ceticismo aplica sistematicamente essa atitude ao campo científico, quase sempre ignorando o exame dos aspectos práticos, o cinismo parece centrado em uma atitude prática, que se articula em uma falta de curiosidade ou em uma indiferença teórica e na aceitação de alguns princípios fundamentais.
Isso não exclui que, no século XIX, a combinação entre cinismo e ceticismo tenha estado na origem do "niilismo", entendido como modo de viver baseado em uma preciosa atitude com relação à verdade. Devemos deixar de considerar o niilismo sob um único aspecto, como destino inelutável da metafísica ocidental, à qual se poderia escapar apenas fazendo um retorno àquilo cujo esquecimento essa própria metafísica tornou possível; ou como uma vertigem de decadência típica de um mundo ocidental que já se tornou incapaz de crer em seus próprios valores.
O niilismo deve ser considerado, em primeiro lugar, como uma figura histórica particular pertencente aos séculos XIX e XX, mas deve também ser inscrito na longa história que o precedeu e preparou, a do ceticismo e do cinismo. Em outras palavras, deve ser visto como um episódio, ou melhor, como uma forma, historicamente bem definida, de um problema que a cultura ocidental começou a se colocar já há muito tempo: o da relação entre vontade de verdade e estilo de existência.
O cinismo e o ceticismo foram dois modos de se colocar o problema da ética da verdade. A sua fusão no niilismo ilumina uma questão essencial para a cultura ocidental, que pode ser formulada deste modo: quando a verdade é colocada continuamente em discussão pelo próprio amor pela verdade, qual é a forma de existência que melhor combina com esse contínuo interrogar-se? Qual é a vida necessária quando a verdade não é mais necessária? O verdadeiro princípio do niilismo não é: Deus não existe, tudo é permitido. A sua fórmula é, pelo contrário, uma pergunta: se devo me colocar diante do pensamento que "nada é verdadeiro", como devo viver?
A dificuldade de se definir a ligação entre o amor da verdade e a estética da existência está no centro da cultura ocidental. Mas não me preocupa tanto definir a história da doutrina cínica, quanto a da arte de existir. Em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade.
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