Entrevista com Renato Ortiz
“Se pensarmos que Maio de 68 tinha uma proposta política, certamente diríamos: algo deu errado”, reflete o professor da Unicamp, Renato Ortiz. Em entrevista à edição do dia 14-07-2008 do Jornal da Unicamp, Ortiz analisa, 40 anos depois, o ano de 1968 e reflete sobre as conseqüências dos movimentos ocorridos na contemporaneidade. A entrevista foi concedida ao jornalista Álvaro Kassab.
Eis a entrevista.
Quais são, na sua opinião, as dimensões simbólica e histórica dos episódios de 1968. Eles sintetizaram, de alguma forma, o século XX?
Renato Ortiz – Creio que é necessário dizer, antes de mais nada, de que 68 estamos falando. A data é emblemática quando se refere ao Maio francês, mas sua extensão a outros contextos deve ser feita com uma certa prudência. O Brasil de 68 não é a França de 68. O espírito libertário que soprava partilhava alguns elementos comuns, mas ele era também distinto. Na França a revolta foi uma surpresa, uma espécie de “falha” geológica da sociedade capitalista, como se subitamente o seu solo desmoronasse. O 68 francês não foi programado, tampouco era um movimento programático. Ele tinha como alvo crítico qualquer tipo de programa ou ideologia, da Igreja ao Partido Comunista, da família ao liberalismo.
No Brasil, lutava-se contra a ditadura e o ideal socialista era uma utopia palpável, encarnada em partidos políticos que, em princípio, o implantariam. Na França lutava-se contra a noção de partido; no Brasil almejava-se a criação de novos partidos, desde que, claro, fossem revolucionários. Talvez fosse possível dizer que os movimentos, brasileiro e latino-americano, sintetizavam, de alguma forma, as aspirações políticas que floresceram ao longo do século XX. Maio de 68 marca provavelmente o início de uma outra época.
Quais das utopias do período ainda sobrevivem?
Renato Ortiz – Vou desdobrar a pergunta em duas dimensões: 1) quais as utopias que sobrevivem e 2) é possível uma utopia no mundo contemporâneo? A resposta varia em função do que estamos considerando. Os movimentos latino-americanos, cujos ideais eram o socialismo ou o comunismo, fazem parte de todo um processo que se inicia com a modernidade do século XIX. Ao longo do século XX ele se consolida e se expande – revolução russa, cubana, advento dos sociais-democratas na Europa etc. Este ideário da esquerda entrou em crise, embora não tenha desaparecido. Crise significa: não possui a mesma legitimidade que antes desfrutava. Não se deve esquecer que o século XX foi calcado num conjunto de experiências que muitas vezes se realizaram de maneira perversa – penso no stalinismo. Dizer, porém, que este ideário, mesmo em crise, permanece significa considerá-lo no interior de um outro contexto. Daí a indagação: “qual seria uma proposta socialista para o século XXI?”. Somos incapazes de dar uma resposta convincente para tal questão.
Neste sentido, uma nova utopia necessitaria de uma outra formulação, conseguindo projetar “à frente” a esperança coletiva. Porém, se fizermos a pergunta da segunda maneira, eu diria que Maio de 68, por ser uma “brecha” na ordem da sociedade, uma “falha” no status quo, nos ensina que o futuro, apesar de todas as tendências objetivas que o definem, encerra um elemento aleatório. Neste nicho encerra-se o espírito utópico.
Quais são, na sua opinião, as mudanças comportamentais tributárias de 68?
Renato Ortiz – É difícil responder a este tipo de pergunta sem cairmos num certo reducionismo. Não se pode atribuir às mudanças comportamentais apenas a um movimento político específico. Elas decorrem de um conjunto de transformações, sociais, culturais, econômicas e até mesmo demográficas – por exemplo, o tamanho da unidade familiar. Eu diria, entretanto, que o 68 francês avança um elemento novo, que posteriormente ficará mais explícito com o caminhar dos anos. Eu me refiro à idéia de que a política encontra-se, também, fora das instituições consagradas – partido, governo, sindicato – e se estende para as práticas comportamentais. Ela invade o espaço simbólico da cultura para materializar-se no cotidiano.
Os operários tiveram um papel importante nas manifestações de 68. Contudo, viu-se depois, muitas das conquistas caíram no limbo. A flexibilização, o desemprego e o discurso (predominante) das estruturas enxutas acabaram prevalecendo, esvaziando sobremaneira o papel dos sindicatos, sobretudo a partir dos anos 90. O que ocorreu?
Renato Ortiz – Eu faria novamente a distinção entre o 68 francês e o brasileiro. No caso francês, os atores principais da revolta – os estudantes – tinham a ilusão de eliminar os sindicatos da luta política e romanticamente pensavam estabelecer uma relação “sem intermediários” entre os ideais da revolta e o “povo”. Não se deve esquecer: lutava-se também contra as lideranças comunistas e sindicais. Elas teriam se “aburguesado”. No Brasil, o movimento sindical, após o golpe de 64, foi desmantelado pelo governo autoritário. Em 68, os estudantes pretendiam estar juntos com o que restava do movimento sindical na sua luta contra a intransigência ditatorial. A questão da flexibilização do trabalho é de outra natureza. Ela diz respeito às transformações estruturais do mundo do trabalho, e dificilmente poderiam ser imediatamente associadas ao quadro político da época.
Há quem defenda a tese de que o capitalismo não apenas mimetizou muitas das bandeiras anticapitalistas do movimento como soube usá-las para causar uma espécie de “entorpecimento” de uma sociedade que teria caminhado a passos largos para o individualismo – e, não raro, para o conservadorismo. O senhor concorda com essa tese?
Renato Ortiz – Eu desconfio das teses que situam as transformações históricas, para falar como os marxistas, apenas na “superestrutura” da sociedade. Maio de 68, principalmente o francês, tinha um forte elemento existencialista, ou seja, individual. O Ser da revolta era um Eu que não queria resignar-se à ordem institucional estabelecida – da família ao partido. Mas ele diferia do existencialismo tipo sartriano. A revolta era individual, porém, somente poderia se manifestar como algo coletivo. Foi esta junção entre indivíduo e sociedade, pessoal e coletivo, que tornou a explosão fascinante, e de uma certa forma inédita.
O individualismo da sociedade de consumo tem traços em comum com a revolta anterior. Não se pode negar isso. Um deles diz respeito ao uso da dimensão simbólica na esfera da política. Mas não nos esqueçamos: 68 paralisou todo um país, mobilizou intelectuais, artistas, operários, o governo e as forças policiais, o que é distinto de uma festa rave na qual após a descarga frenética das emoções individuais, todos retornam ao lar.
Uma das bandeiras de 1968 era o discurso contra a sociedade de consumo – em última instância contra a “mercadorização”. Porém, o mercado – e conseqüentemente o consumo – avançou sobre todos os quadrantes do planeta. O que deu errado?
Renato Ortiz – Se pensarmos que Maio de 68 tinha uma proposta política, certamente diríamos: algo deu errado. Mas creio que 68 não continha nada desta natureza. Tratava-se, como diziam os franceses, de um “acontecimento”, algo que nos desvendava, não a forma como deveríamos atuar, mas muito mais a idéia de que o “sonho” era possível.
Em que medida, na sua opinião, a globalização pulverizou – ou banalizou – as conquistas pós-68?
Renato Ortiz – A globalização da economia e a mundialização da cultura configuram uma nova situação na qual se organiza a ordem mundial. Isso tem implicações políticas que vão muito além do tema de 68. A existência de uma modernidade-mundo, na qual operam instituições transnacionais, a emergência de uma esfera planetária do consumo, redimensionam a forma de se fazer e pensar a política – que já não mais se limita ao Estado-nação. Não se trata apenas das “conquistas de 68”, é todo um quadro político que se redefine.
As bandeiras hoje são outras, a começar da própria sobrevivência da espécie, em todas as suas dimensões – na ambiental, nas hordas de imigrantes, no sem número de excluídos, no advento de novas tecnologias (e suas conseqüências) etc. O senhor acredita no advento de um novo 68?
Renato Ortiz – As bandeiras são certamente outras. Há inclusive o surgimento de utopias novas como a Ecologia – embora não me seduzam tanto, malgrado sua importância inconteste – e até mesmo o ressurgimento de esperanças de natureza religiosas. Muito se falou sobre o “fim das utopias”. Eu sempre fui cético em relação a certas posturas intelectuais: “fim” da história, das ideologias, da cultura de massa, da arte, do trabalho. Esse tipo de afirmação tem muito de retórico e pouco de realidade. O que 68 nos ensina é que a ordem social, qualquer que seja ela, nunca é imutável. Nas suas frestas insinuam-se as inconsistências – dizia-se antes, as contradições. Neste sentido, 68 pode ser visto como uma metáfora. Ela é uma janela para o futuro, um espaço no qual se aninharia o indeterminado.
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