quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Sobre o neoliberalismo

 


 

O termo “neoliberalismo” foi cunhado no Colóquio Walter Lippmann 1938 , uma reunião de acadêmicos que lançou as bases político-institucionais daquilo que uma década depois se tornaria a Sociedade Mont Pèlerin.

Ele é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos , reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros.

Tais eram precisamente as políticas impostas ao Chile por Augusto Pinochet e seus assessores, os “Chicago Boys” , em 1973 e logo depois levadas para outras partes do Sul Global, muitas vezes impostas pelo FMI na forma de mandatos de “ajustes  estruturais”  vinculados à reestruturação de empréstimos e dívidas.

[Nota do Blog: é de se notar que grande parte dos países ditos em desenvolvimento passavam por um doloroso processo de endividamento, ocasionado,  sobretudo ,  pelo brutal aumento dos juros norte-americanos ocorrido no final da década de 1970 e início dos anos 1980. Esse processo é muito bem descrito por Yanis Varoufakis. Oportunamento publicaremos neste Blog comentários mais detalhados sobre esse momento histórico e sua importância para o Capitalismo. Vide também o livro de Naomi Klein – Doutrina do Choque.]

O que começou no Hemisfério Sul logo fluiu para o Norte, mesmo que com poderes executivos bem diferentes. Por volta do final dos anos 1970, explorando uma crise de lucratividade e estagflação, os programas neoliberais foram implementados por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, novamente focados na desregulação do capital , no combate ao trabalho organizado, na privatização de bens e serviços públicos , na redução da tributação progressiva e no encolhimento do Estado social. Tais políticas se espalharam rapidamente por toda a Europa Ocidental, e o colaplso do Bloco Soviético  no final dos anos 1980 significou que boa parte da Europa Oriental realizou uma transição do comunismo de Estado para o capitalismo neoliberal em menos de meia década. [Nota do Blog: novamente, a esse respeito, recomendamos a obra de Naomi Klein, A Doutrina do Choque].

 

Extraído de : “Nas Ruínas do Neoliberalismo , Wendy Brown – Ed. Politeia.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Comentário ao livro de Mark Lilla: O Progressista de Ontem e o do Amanhã

 

Dando continuidade às reflexões sobre a centralidade que o identitarismo assumiu  no debate público nos últimos 50 anos , deparei-me com o livro de Mark Lilla, que trata justamente  desse assunto. Tendo por subtítulo “Desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias”, o livro foi escrito sob impacto da ascensão de Donald Trump (2016) e  é uma análise crítica sobre as transformações por que passaram os partidos Republicano e Democrata nos EUA nas décadas anteriores - sendo assim uma espécie de genealogia necessária para explicar a polarização que se instalou na sociedade americana.  Acaba, também, por realizar um corte analítico mais amplo sobre as transformações por que passou a cultura política norte-americana.

Principiando sua análise sobre as transformações do Partido Republicano, Lilla considera que o neo-liberalismo instalado no poder a partir do governo Reagan (1981) teve por  princípio norteador o individualismo em sua forma mais exacerbada.  Esse processo normalizou em uma vasta parcela da sociedade norte-americana a idéia de atomização dos indivíduos, que é resumido na seguinte expressão formulada pelo ideólogo de extrema-direita Grover Norquist:

Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada.

Se a Europa Oriental vivia uma efervescência do debate político após  a queda do Muro de Berlim (1989), a sociedade norte-americana vivia seu oposto: o novo presidente fora eleito por pessoas que já não viam sentido em discutir o bem-comum e envolver-se politicamente para tentar realiza-lo.

A nova ideologia, segundo o autor, trazia consigo uma espécie de catecismo, resumido em quatro fórmulas:

1.     A boa vida é a vida dos indivíduos autônomos – talvez alicerçados em famílias, igrejas e pequenas comunidades – mas não cidadãos de uma república com objetivos comuns e obrigações mútuas;

2.     A prioridade é acumular riqueza, em oposição à distribuição da mesma;

3.     Quanto mais livres são os mercados, mais eles crescem e enriquecem todo mundo;

4.     O governo é o problema, qualquer que seja ele. A idéia de governo é intrinsecamente nefasta.

Essa ideologia:

·       trata como axiomática a primazia da autodeterminação sobre os vínculos tradicionais de dependência e obrigação.

·       Não tem quase nada a dizer sobre as necessidades naturais das coletividades – das famílias às nações.

·       Tem um vocabulário para discutir o meu e o teu, mas não para invocar o bem comum ou tratar de classes ou outras realidades sociais.

Ela representou uma profunda ruptura com os 50 anos anteriores iniciados com o que o autor chama de Dispensação Roosevelt, em alusão ao New Deal e ao consenso político que se estabelece em resposta à Grande Depressão e à ameaça do  Fascismo (e, acrescento,  do Stalinismo).

Na visão de Roosevelt, quatro liberdades universais haviam sido declaradas e aceitas como evidentes pela maioria:

1.     Liberdade de expressão;

2.     Liberdade religiosa;

3.     Liberdade de viver sem penúria;

4.     Liberdade de viver sem medo.

Com efeito, nota o autor, mesmo os republicanos estavam até então de acordo com as principais linhas do New Deal. (Não por acaso, Nixon criou uma vasta rede de verbas federais para governos estaduais e locais para programas sociais, fundou uma importante agência para regular emissões de ar e água, e outra para regular a saúde e a segurança dos trabalhadores. Tentou estabelecer uma renda mínima garantida para todas as famílias trabalhadoras e propôs um plano de saúde nacional que teria fornecido seguros governamentais para famílias de baixa renda, exigido que empregadores cobrissem todos os empregados e estabelecido padrões para seguro privado.)

Note-se que o autor não se debruça sobre as razões sociais ou econômicas que teriam dado origem a tal ruptura, mas se atem sobretudo à esfera da cultura,  concentrando-se nas transformações ideológicas.

O que teria então levado a uma ruptura tão marcante ?

Aqui ,podemos ler, como complemento, a análise de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt , em “Como As Democracias Morrem”, já mencionada em outra postagem deste Blog, que considera que a quebra do consenso racial ocorrida com as Leis de Direitos Civis do governo democrata de Lyndon Johnson (1964) foi talvez a principal razão para a polarização do debate público dentro da sociedade norte-americana até os dias de hoje.

Por essa interpretação, as normas que sustentam o sistema politico norte-americano repousavam até os anos 1960/70, em um grau considerável, na exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos de 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a “desdemocratização” do Sul e a consolidação das leis Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no sec. XX.

 

Ou seja, para aqueles  autores, o consenso politico só fora  possível graças à segregação de boa parte da população.

 

Para isso, dois acontecimentos foram decisivos.

O primeiro foi o infame Compromisso de 1877. O pacto acabou efetivamente com a Reconstrução, pois ao retirar as proteções federais para os afro-americanos , permitiu aos democratas sulistas anular direitos democráticos e consolidar o domínio de um partido único.

O segundo acontecimento foi o fracasso do Projeto de lei de Eleições Federais de Henry Cabot Lodge, em 1890, o qual teria permitido a supervisão federal de eleições legislativas a fim de garantir a implementação do sufrágio negro. O fracasso do projeto deu fim aos esforços federais para proteger o direito ao voto dos afro-americanos no sul, ocasionando, consequentemente, a sua extinção.

Paradoxalmente, portanto, as normas que mais tarde serviriam como fundação para a democracia norte-americana emergiram de um arranjo profundamente antidemocrático: a exclusão racial e a consolidação da predominância de um partido único no Sul.

 

Depois que democratas e republicanos se aceitaram como rivais legítimos, a polarização declinou gradativamente, dando origem ao tipo de politica que caracterizaria a democracia americana nas décadas seguintes. A cooperação bipartidária viabilizou uma serie de reformas importantes, inclusive a 16 Emenda (1913), que legalizou o IR Federal, a 17 Emenda que estabeleceu a eleição direta para senadores, a 19 Emenda (1919) que concedeu às mulheres o direito de voto.

 

O movimento pelos direitos civis, que culminou com a Lei dos Direitos Civis em 1964 e a Lei do Direito de Voto em 1965, deu fim a esse arranjo partidário. Não só ele finalmente democratizou o Sul, emancipando os negros e acabando com o domínio de um único partido, mas acelerou um realinhamento em longo prazo do sistema partidário cujas consequências estão se desdobrando ainda hoje.

 

Seria a Lei dos Direitos Civis – que o presidente democrata Lyndon Johnson abraçou e o candidato republicano de 1964, Barry Goldwater, combateu – que definiria os democratas como o partido dos direitos civis e os republicanos como o partido do status quo racial.

 

Nos anos 2000, os partidos Republicano e Democrata já não eram mais “grandes tendas” ideológicas. Com o desaparecimento dos democratas conservadores e dos republicanos liberais, as áreas de sobreposição entre os dois partidos aos poucos desapareceram. E, como a maioria dos senadores e deputados acabou passando a ter mais em comum com seus aliados partidários do que com membros do partido de oposição, eles começaram a cooperar com menos frequência e a votar consistentemente com seu próprio partido. À medida que tanto eleitores como seus representantes eleitos iam se agrupando em “campos” cada vez mais homogêneos, as diferenças ideológicas entre os partidos iam se tornando cada vez mais marcadas. " (from "Como as democracias morrem" by Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, tradução: Renato Aguiar)

 

Nesse ponto, podemos voltar ao livro de Mark Lilla.

Se, como dizíamos, os republicanos abraçaram sem pudor e com radicalismo a nova ideologia neo-liberal, no campo oposto, ou seja, no campo democrata, um outro movimento de matiz diferente ocorria, porém, segundo o autor, com efeitos igualmente danosos para o debate público (ou melhor, Político, em seu sentido mais amplo ou, ainda, se preferirem, para o espaço cívico).

E aqui, parece-me, o autor faz um longo e sinuoso raciocínio para descrever o que aconteceu no campo liberal-democrata a partir dos anos 1960/70.  Nesse percurso, ele principia em admitir que o liberalismo americano exagerou na dose, “acrescentando a profissão de fé de que impostos, gastos, regulamentos e decisões judiciais eram sempre a melhor maneira de alcançar o bem público”.

“Nos anos 1980, havia incontáveis razões para questionar o pressuposto de que o governo sabia o que estava fazendo e merecia a confiança do povo – Vietnã, Watergate , impotência diante da estagflação e assim por diante. Introduziram-se programas demais na Grande Sociedade, com rapidez desmedida e uma retórica muito elevada.”

Um outro componente muito salientado pelo autor diz respeito à formação de quadros especificamente treinados para assumir cargos eletivos e na burocracia. Paradoxalmente, ele localiza o sucesso de tal  programa no Partido Republicano e na Nova Direita – ou seja, justamente entre aqueles que advogam um radical posicionamento anti-establishment e anti-governo – asseverando que os liberais-democratas negligenciaram o papel que os think tanks e escolas de formação de líderes e seminários temáticos teriam a desempenhar no futuro. Dessa forma, no longo prazo, foram os republicanos e a direita que dominariam a mídia e se tornariam aptos a convencer o público a votar em seus quadros e a assumir postos chave na Administração pública e no Congresso.

Os esforços de manipulação do processo eleitoral pelo Partido Republicano também provocaram consequencias imprevisíveis. Durante anos o partido canalizara recursos para os legislativos estaduais a fim de redesenhar distritos congressionais e garantir o controle republicano.

E aqui chegamos naquilo que realmente nos importa e que, penso, é o núcleo da argumentação do autor, o ponto forte da obra, a “Pseudopolítica” (Cap.2).

Diante da ofensiva da direita republicana, ultra individualista, era de se esperar que o campo liberal respondesse com uma visão mais profundamente coletiva (ou Política). Entretanto, esse campo sofria seu próprio processo, de natureza inversa: a política identitária – que produziu efeitos igualmente danosos sobre a esfera pública (ou cívica).

Eles se perderam no matagal da política identitária e desenvolveram uma retórica da diferença – ressentida, desagregadora – para competir com ela.”

Num certo sentido, o autor localiza o eixo central desse processo naquilo que poderíamos chamar de auto-centramento ou mesmo o nascimento de um modo excessivamente narcisista de ser e estar no mundo, que o autor localiza nas Universidades seu polo máximo.

treinaram os alunos para serem exploradores de caverna da própria identidade, tirando-lhes qualquer curiosidade pelo mundo que há fora de sua cabeça.”

Dessa forma, haveria, para o autor, uma diferença fundamental entre a primeira fase dos movimentos de direitos civis – incluindo os  movimentos feminista e gay - e a segunda fase, ocorrida a partir das décadas de 1970 e 1980. A atenção passou a se concentrar menos na relação entre a identificação com os Estados Unidos como cidadãos democratas e mais na identificação com diferentes grupos sociais dentro do país.

A cidadania desapareceu do mapa”. E o lema de Kennedy, inspirador da geração dos anos 60, “O que posso fazer pelo meu país?” foi substituído por “o que meu país me deve em virtude de minha identidade ?”.

Penso que, nesse ponto, o Lilla identifica os primórdios das bolhas identitárias e ideológicas, também descritas e analisadas por diversos autores nas análises sobre a mais recente  ascensão da extrema-direita. A originalidade então está em que essas bolhas teriam nascido antes da Internet e do império das redes sociais.

E à medida que o interesse lentamente se deslocou dos movimentos centrados em problemas específicos para os movimentos centrados em identidade, o foco do liberalismo também se deslocou – do que havia em comum para a diferença. E o que substituiu a ampla visão política foi uma retórica pseudopolítica e distintamente americana do indivíduo senciente e sua luta por reconhecimento. Que acabou não sendo tão diferente da retórica antipolítica de Reagan do indivíduo que produz e luta por lucro.

(grifos nossos)

Vemos assim que o espaço cívico sofreu ataques à direita e à esquerda do espectro político.

A locução  mais típica dessa nova situação é : “Falando como X...”.

Dessa forma,

Ela ergue uma barreira contra perguntas, que, por definição, vêm da perspectiva de um não-X. E o encontro se converte numa relação de poder: o vitorioso da discussão será aquele que invocar a identidade moralmente superior e expressar mais indignação com as perguntas que lhe forem feitas.(...) Isso significa que não há espaço imparcial para i diálogo. Homens bramcos têm uma epistemologia. Mulheres negras têm outra. Se é assim, o que resta a dizer ?

O que substitui o argumento, então, é o tabu. (...) Hipóteses revelam-se puras ou impuras e não verdadeiras ou falsas.”

E assim, conclui melancolicamente o autor, identidade é o reaganismo para esquerdistas.

Não há uma visão política. Há apenas duas ideologias individualistas esgotadas e intrinsecamente incapazes de enxergar o bem comum e unir o país para garanti-lo nas atuais circunstâncias.”

E assim, o autor formula algumas proposições:

1.     Prioridade da política institucional sobre a política de movimentos: oficinas e seminários universitários não bastam. Mobilização pela internet e súbita manifestações de rua não bastam. Não basta protestar, transgredir, extravasar. A era da política de movimentos acabou, por ora. Não precisamos de mais manifestantes.Precisamos de mais prefeitos , governadores, legisladores, membros do Congresso...

2.     Prioridade da persuasão democrática sobre a autoexpressão sem propósito: o identitarismo caracterizou-se também pela fuga do contato com boa parte do país e com muitas pessoas cujas opiniões não são exatamente a nossa em todas as questões. Vejamos. Depoias de 1968, as regras do Partido Democrata foram significativamente reformuladas, a pretexto de abrir o partido para grupos e interesses que tinham sido ignorados pelos sindicatos e chefes políticos locais. A maioria dos historiadores concorda que a consequência involuntária foi marginalizar os sindicatos operários e os funcionários públicos que haviam sido os pilares da estrutura partidária, substituindo-os por militantes instruídos ligados a determinadas questões ou a campanhas presidenciais particulares. Isso isolou a elite partidária, privando de uma corrente de transmissão com aquilo que acontecia no restante da sociedade.

3.     Prioridade da cidadania sobre a identidade grupal ou pessoal: a cidadania é uma arma crucial na batalha contra o dogma reaganista, porque expressa o fato de que somos parte de um empreendimento comum legítimo que nós, o povo, trabalhamos para produzir. Que não somos partículas elementares.

4.     Necessidade urgente de educação cívica num país cada vez mais individualizado e atomizado.

 

 

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Conflitos distributivos e a ascensão da extrema-direita

 Na última postagem, introduzi o tema da ascensão da extrema direita no Brasil dentro do contexto do conflito distributivo. Nesta sequência - pretendo postar outros textos sobre o tema - reproduzo trecho de artigo de André Luis L.R Saraiva (a fonte encontra-se mencionada ao final da postagem).


Focalização x universalização

 

Atacar  os  problemas  expostos  anteriormente  passa,  entre  outras coisas, por uma opção entre a focalização e a universalização das políticas sociais. No caso de política universalizada, “todos os indivíduos têm direito de acesso a determinados serviços públicos (...). Na focalização, os  recursos  disponíveis  são  concentrados  em  uma  população  de beneficiários. Os indivíduos-alvo das políticas focalizadas são, geralmente, aqueles  em  maior  (desvantagem),  como  os  pobres,  as  minorias,  etc.” (MEDEIROS , 1999, p. 5-6).

Existem basicamente três tipos de argumentos com relação a esse tema:

1)    A  defesa da universalização  tem inspiração no modelo sueco de Welfare State , em que há elevada carga tributária que financia inúmeras políticas sociais que atingem indistintamente todos os cidadãos. Segundo essa perspectiva, deveria haver a universalização total das políticas sociais, dado que essas estão intimamente relacionadas com direitos de  cidadania , com “conquistas” sociais (MEDEIROS , 1999, p. 5). Alguns autores, como é o caso  de Weffort (1992), entendem que os direitos sociais estão intimamente ligados aos pressupostos de um regime democrático. Seguindo ainda essa linha de raciocínio, as políticas focalizadas seriam basicamente compensatórias. Ou seja, seriam desenhadas apenas para amenizar a situação de determinados indivíduos ou, então, as externalidades negativas dedeterminada política pública. Desse modo, ao não abarcarem setores mais amplos  da  população,  elas  não  reverteriam  efetivamente  o  quadro  de exclusão  social.  O  problema  em  torno  desta  abordagem  está  nas  condições de financiamento dessas políticas exclusivamente pelo Estado, bem como no efetivo acesso que as camadas mais baixas têm a determinados recursos,  como  bolsas  para  estudantes  universitários  (PIO,  sd),  emboraseja sabido que a maior parte dos estudantes das universidades públicas écomposta por indivíduos de classe média e alta. Ou seja, o Estado acabagastando mal um recurso que já é escasso, sendo que poderia direcionar sua  alocação  para  a  população  mais  necessitada.  É  importante  ainda mencionar o velho problema de eficiência estatal na execução desse tipode política.

2)    A defesa da focalização está fundamentada na idéia de maior eficiência e racionalidade na aplicação dos recursos, já que esse tipo de programa social é mais barato que os universais, pois atende apenas aqueles que mais necessitam. Nesse caso, a idéia seria tratar os diferentes diferentemente, ou seja, por exemplo, garantir educação gratuita para aqueles que efetivamente não tenham condições de ter acesso a esse tipo de bem ou serviço por seus próprios meios. Um dos problemas da focalização está também na eficiência estatal tanto na execução do programa, como na localização precisa do público-alvo. A dificuldade de produção de cadastros confiáveis e a escassez de determinados dados dificultam a implementação desse tipo de programa social (MEDEIROS, 1999, p. 5).

3)     A defesa  da  focalização  +  universalização   defende  que  a focalização e a universalização não são, necessariamente, excludentes, ou seja, existem determinadas políticas que, “obrigatoriamente”, deveriam ser  universais,  como  saúde  e  educação  básica,  e  serviriam  especificamente para a redução da desigualdade social.

 

(Extraído de Saraiva, A. L. L. R. (2014). Políticas sociais: focalização versus universalização. Revista Do Serviço Público55(3), p. 91-95. https://doi.org/10.21874/rsp.v55i3.253)


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Dilemas da extrema-direita

 

Numa sociedade em que a cultura é  republicana, em que todos são iguais perante a lei, ou seja , perante o Estado, de que forma os cidadãos canalizam suas reivindicações e, no outro sentido, de que forma o Estado atende a essas reivindicações (verbas)? Classicamente e precipuamente, por meio dos partidos políticos. As politicas públicas são ditadas em maior ou menor grau, por meio das coalizões partidárias. Temos aqui as politicas universalistas, posto que os partidos, por definição, anseiam representar a todos.

Numa sociedade onde os indivíduos são tratados a partir de suas identidades, pós-moderna (alguns identificam até mesmo no fascismo/corporativismo a origem desse modelo) , os canais de representação não são mais universais.  Têm que se dar por meio das entidades - que representam essas identidades. São os movimentos sociais, ONGs etc., que se fazem representar no Estado. Este, por sua vez, reconhecendo como legítimos esses lobies, canalizam seus recursos e politicas públicas para e por meio  dessas entidades/identidades. 

Essa teria sido a opção do lulopetismo.

Se foi esse o modelo que faliu, (lembrando que as manifestações de 2013 reivindicavam mais e melhores serviços públicos PARA TODOS), então temos uma ironia da historia - veremos isso ao final deste texto.

Ora, esse debate não pertence à direita, mas , de certo modo, foi capturado por ela.

Com efeito, o debate "focalização versus universalismo" é antigo, remonta aos anos 80 e se deu principalmente no âmbito da esquerda do espectro político. 

Teria, de fato, a ênfase pós-moderna no "identitarismo" se refletido em políticas públicas, nos respectivos canais de representação, pressão e execução orçamentária ? Será isso verdade ? No imaginário senso-comum, sim. Mas voltaremos a esse ponto em outra postagem, pois essa pergunta requer um aprofundamento na análise e uma verificação empírica mais aprofundada.

Ora, o discurso direitista aproveita esse imaginário (de que politicas públicas foram capturados pelos grupos identitários), para reivindicar para si o exclusivismo do universalismo. 

O bolsonarismo parece mesmo que veio para contestar essa politica de identidades e sua suposta captura do Estado, das verbas e das politicas públicas por grupos identitários. Mas vai além, pois ao reivindicar para si um pseudo universalismo, o faz em nome, também ele, de uma suposta maioria. "Nosso povo" contra "eles".  Se a esquerda abriu mão da maioria em nome de um caleidoscópio de minorias, a direita vai no sentido de um autoritarismo de uma suposta maioria, tentação essa contra a qual nos advertiram, há muito tempo, todos os teóricos do liberalismo clássico.

Porém, há aqui uma inflexão importante. Pois, na medida em que também despreza o sistema partidário, o universalismo da direita acaba sendo capturado por um discurso "do governo sem mediações", um discurso povo/estado, dando margem ao populismo fascista. Porém, mesmo nesse caso, quem irá fazer a mediação das politicas públicas ? Ora, essa é uma questão prática: se há uma Estado, há, necessariamente, mediações. E esse é o dilema da extrema direita. Ou o governo se torna disfuncional ou é capturado por novos grupos de pressão, que assumindo discursos ideológicos extremados, caem na ditadura de minorias, tais como seitas religiosas e similares.
O Rei está nu.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A Ascensão dos Trabalhos de Merda

 

Imagem: Public Domain Pictures.

Tradução

Fábio Fernandes

O antropólogo anarquista David Graeber nos deixou essa semana. Publicamos a sua última entrevista à Jacobin, onde conta como um emprego de merda é um trabalho tão inútil que até mesmo a pessoa que o faz acredita que ele não deveria existir – e por que se prolifera como nunca nos dia de hoje.




Em seu livro mais recente, David Graeber, o autor do best-seller Dívida: os Primeiros 5000 Anos, argumenta que muitos empregos hoje são essencialmente inúteis – ou, como o título do livro os chama, Bullshit Jobs (Trabalhos de Merda).

Suzi Weissman, da Jacobin Radio, conversou com Graeber para descobrir o que são trabalhos de merda e por que eles proliferaram nos últimos anos.


Uma Taxonomia

SW

Vamos direto ao assunto. Qual é a definição de um trabalho de merda?

DG

Um trabalho de merda é um trabalho tão inútil, ou mesmo pernicioso, que até a pessoa que o faz acredita secretamente que ele não deveria existir. Claro, você tem que fingir – esse é o elemento de merda, que você meio que tem que fingir que existe uma razão para esse trabalho estar aqui. Mas, secretamente, você acha que se esse trabalho não existisse, ou não faria qualquer diferença ou o mundo seria na verdade um lugar um pouco melhor.

SW

No livro, você começa distinguindo entre trabalhos de merda e merdas de trabalhos. Talvez devêssemos começar a fazer isso aqui agora, para depois podermos conversar sobre quais são os trabalhos de merda?

DG

Sim, as pessoas costumam cometer esse erro. Quando você fala sobre trabalhos de merda, elas pensam apenas em trabalhos que são ruins, trabalhos que são degradantes, trabalhos em condições terríveis, sem benefícios e assim por diante. Mas, na verdade, a ironia é que esses trabalhos não são realmente de merda. Você sabe, se você tem um emprego ruim, é provável que ele esteja realmente fazendo algo de bom no mundo. Na verdade, quanto mais o seu trabalho beneficia outras pessoas, menos provavelmente elas pagarão a você e mais provavelmente será uma merda de trabalho nesse sentido. Então, você quase pode ver isso como uma oposição.

Por um lado, você tem trabalhos que são uma merda de trabalho, mas são realmente úteis. Se você está limpando banheiros ou algo assim, os banheiros precisam ser limpos, então pelo menos você tem a dignidade de saber que está fazendo algo que está beneficiando outras pessoas – mesmo que você não consiga muito mais que isso. E, por outro lado, você tem trabalhos onde é tratado com dignidade e respeito, recebe um bom pagamento, recebe bons benefícios, mas trabalha secretamente com o conhecimento de que seu emprego, seu trabalho, é totalmente inútil.

SW

Você divide seus capítulos em diferentes tipos de trabalhos de merda. Existem lacaios, paus-mandados, tapa-buracos, preenchedores de caixinhas, mestres de obras e o que eu chamo de contadores de feijão. Talvez possamos ver quais são essas categorias.

DG

Certo. Isso veio do meu próprio trabalho, de pedir às pessoas que me enviassem testemunhos. Reuni centenas de depoimentos de pessoas que tinham trabalhos de merda. Eu perguntei às pessoas: “Qual é o trabalho mais inútil que você já teve? Conte-me tudo sobre isso; como você acha que aconteceu, qual é a dinâmica, seu chefe sabia?” Eu recebia esse tipo de informação. Fiz pequenas entrevistas com as pessoas depois, material de acompanhamento. E assim, de certa forma, criamos sistemas de categorias juntos. As pessoas me sugeriam ideias e, gradualmente, elas acabaram se reunindo em cinco categorias.

Como você disse, temos, primeiro, os lacaios. Isso é meio evidente. Um lacaio existe apenas para fazer outra pessoa parecer bem. Ou se sentir bem consigo mesmo, em alguns casos. Todos nós sabemos que tipo de trabalho eles são, mas um exemplo óbvio seria, digamos, recepcionistas em lugares que na verdade não precisam de recepcionistas. Alguns lugares obviamente precisam de recepcionistas, que estão ocupados o tempo todo. Em alguns lugares, o telefone toca talvez uma vez por dia. Mas você ainda tem que ter alguém – às vezes duas pessoas – sentado lá, com ar de importância. Então, eu não tenho que ligar para ninguém no telefone, eu terei alguém que dirá apenas: “Há um corretor muito importante que quer falar com você.” Isso é um lacaio.

Um pau-mandado é um pouco mais sutil. Mas eu meio que tive que criar essa categoria porque as pessoas sempre me diziam que achavam que seus empregos eram uma merda – se eles fossem do telemarketing, advogados corporativos, se estivessem em RP, marketing, coisas assim. Eu tive que entender por que eles se sentiam assim.

O padrão parecia ser que esses são trabalhos realmente úteis em muitos casos para as empresas para as quais trabalham, mas eles sentiam que toda a indústria não deveria existir. Eles são basicamente pessoas que estão ali para irritar e pressioná-lo de alguma forma. E, em termos de serem necessários, só eram necessários porque outras pessoas os têm. Você não precisa de um advogado corporativo se seu concorrente não tiver um advogado corporativo. Você não precisa de um operador de telemarketing, mas na medida em que você pode inventar uma desculpa para dizer que precisa dele, é porque os outros caras têm um. Tudo bem, isso aí é até fácil.

Tapa-buracos são pessoas que estão lá para resolver problemas que não deveriam existir em primeiro lugar. Na minha antiga universidade, a impressão era que tínhamos apenas um carpinteiro, e carpinteiros eram muito difíceis de conseguir. Um dia, a prateleira do meu escritório na universidade onde eu trabalhava na Inglaterra desabou. O carpinteiro deveria ter vindo, e havia um buraco enorme na parede, dava para ver o estrago. E ele nunca aparecia, ele sempre tinha outra coisa para fazer. Finalmente descobrimos que havia um cara sentado ali o dia todo, se desculpando pelo fato de o carpinteiro nunca ter vindo.

Ele é muito bom no trabalho, é um sujeito muito simpático, que sempre parecia um pouco triste e melancólico, e era muito difícil ficar com raiva dele, e é claro que trabalho dele era para isso. Ele era efetivamente um sujeito que estava ali para tomar esporro. Mas aí eu pensei, se eles demitissem aquele cara e contratassem outro carpinteiro, não iam precisar mais dele. Então, esse é um exemplo clássico de tapa-buracos.

SW

E os preenchedores de caixinhas?

DG

Preenchedores de caixinhas existem para permitir que uma organização diga que está fazendo algo que na verdade não está fazendo. É como uma comissão de inquérito. Se o governo fica constrangido com algum escândalo – digamos, os policiais estão atirando em muitos cidadãos negros – ou se alguém aceita suborno, há algum tipo de escândalo. Eles formam uma comissão de inquérito, fingem que não sabiam o que estava acontecendo, fingem que vão fazer algo a respeito, o que é completamente falso.

Mas as empresas também fazem isso. Elas estão sempre criando comissões. Existem centenas de milhares de pessoas em todo o mundo que trabalham com compliance em bancos, e isso é uma besteira completa. Ninguém jamais teve a intenção de seguir qualquer uma dessas leis que lhe são impostas. Seu trabalho é simplesmente aprovar todas as transações, mas é claro que não é suficiente aprovar todas as transações porque isso parece suspeito. Então você tem que inventar razões para dizer que há algumas coisas que você investigou. Existem rituais muito elaborados de fingir que se está olhando para um problema que você não está realmente olhando.

SW

Então você vai para o mestre de obras.

DG

Mestres de obras são as pessoas que estão lá para dar às pessoas trabalho que não é necessário, ou para supervisionar pessoas que não precisam de supervisão. Todos nós sabemos de quem estamos falando. A gerência média, é claro, é um exemplo clássico disso. Eu tinha pessoas que me diziam sem rodeios: “Sim, eu tenho um emprego de merda, estou na gerência média. Fui promovido. Eu costumava fazer o trabalho de verdade, e eles me colocaram no andar de cima e disseram para supervisionar as pessoas, fazer com que elas fizessem o trabalho. E eu sei perfeitamente bem que eles não precisam de alguém para supervisioná-los ou obrigá-los a fazer isso. Mas eu tenho que inventar alguma desculpa para existir de qualquer maneira.” Então, eventualmente, em uma situação como essa, você diz: “Tudo bem, vamos apresentar estatísticas de destino, para que eu possa provar que você está realmente fazendo o que eu já sei que você está fazendo, para que eu possa sugerir que eu fui o cara que fez você fazer isso.”

Na verdade, você pede que as pessoas preencham uma série de formulários, de forma que elas gastam menos tempo fazendo o trabalho. Isso acontece cada vez mais em todo o mundo, mas nos EUA alguém fez algum estudo estatístico e descobriu que algo como 39% do tempo médio que um funcionário de escritório deveria estar trabalhando, ele está de fato trabalhando em seu emprego. Cada vez mais, são e-mails administrativos, reuniões inúteis, todos os tipos de preenchimento de formulários e papelada, basicamente.

Inchaço Administrativo

SW

No pensamento radical ou marxista, existe o conceito de trabalho produtivo e improdutivo. Eu me pergunto como a categoria do trabalho de merda se conecta à ideia de trabalho ou emprego improdutivos.

DG

É diferente. Porque produtivo e improdutivo significa a existência de produção de mais-valia para os capitalistas. Essa é uma pergunta bem diferente. É uma avaliação subjetiva do valor social do trabalho pelas pessoas que o executam.

Por um lado, as pessoas meio que aceitam a ideia de que o mercado determina o valor. Isso é verdade na maioria dos países agora. Você quase nunca ouve pessoas no varejo ou em serviços dizendo: “Eu vendo bastões para selfies, por que as pessoas querem bastões para selfies? Isso é burrice, as pessoas são imbecis.” Elas não dizem isso. Elas não dizem: “Por que você precisa gastar cinco dólares em uma xícara de café?” Então, as pessoas em trabalhos de serviços não acham que têm trabalhos de merda, em quase nenhum caso. Eles aceitam que se há um mercado para algo, as pessoas querem. Quem sou eu para julgar? Eles compram a lógica do capitalismo nesse grau.

No entanto, eles olham para o mercado de trabalho e dizem: “Espere aí, eu recebo 40 mil dólares por ano para sentar e fazer memes de gatos o dia todo e talvez atender um telefonema, isso não pode estar certo.” Portanto, o mercado nem sempre está certo; claramente o mercado de trabalho não funciona de forma economicamente racional. Existe uma contradição. Eles têm que apresentar outro sistema, um sistema tácito de valor, que é muito diferente da relação produtivo/improdutivo para o capitalismo.

SW

Como o aumento desses trabalhos de merda se relaciona com o que consideramos trabalhos produtivos?

DG

 

Bem, isso é muito interessante. Temos uma narrativa da ascensão da economia de serviços. Você sabe, desde os anos oitenta, estamos abandonando a manufatura. Da forma como é apresentado, nas estatísticas econômicas, parece que a mão-de-obra agrícola em grande parte desapareceu, a mão-de-obra industrial diminuiu – não tanto quanto as pessoas parecem pensar, mas diminuiu – e os serviços estão em alta.

Mas isso também ocorre porque eles dividem os serviços para incluir cargos de escritório, gerenciais, de supervisão e administrativos. Se você os diferenciar, se olhar para os serviços nesse sentido, para as pessoas que estão cortando seu cabelo ou servindo sua comida – bem, na verdade, o serviço permaneceu praticamente estável em 25% da força de trabalho nos últimos 150 anos. Não mudou em nada. O que realmente mudou foi essa explosão gigantesca de burocratas de papel, e esse é o setor de trabalhos de merda.

SW

Você chama isso de burocracia, setor administrativo, setor de gerência média.

DG

Exatamente. É um setor onde o público e o privado se fundem. Na verdade, uma área para a proliferação maciça desses trabalhos é exatamente onde não está claro o que é público e o que é privado: a interface, onde privatizam os serviços públicos, onde o governo está detendo o avanço dos bancos.

A seção bancária é uma loucura. Há um cara com quem eu começo o livro, na verdade. Eu o chamo de Kurt, não sei seu nome verdadeiro. Ele trabalha para um subempreiteiro de um subempreiteiro para um subempreiteiro do exército alemão. Basicamente, há um soldado alemão que deseja mover seu computador de um escritório para outro. Ele tem que fazer um pedido a alguém para ligar para alguém para ligar para alguém – isso passa por três empresas diferentes. Por fim, ele tem que dirigir 500 quilômetros num carro alugado, preencher os formulários, colocar na embalagem, transportar, outra pessoa desempacota, e ele assina outro formulário e vai embora. Esse é o sistema mais ineficiente que você poderia imaginar, mas tudo é criado por essa interface entre as coisas público-privadas, que supostamente tornaria as coisas mais eficientes.

SW

Grande parte do ethos, como você assinala, dos tempos Thatcher-Reagan, é que o governo é sempre o problema e o governo é onde estão todos esses trabalhos. Então, foi um ataque ao setor público. Ao passo que você mostra que muito disso vem do setor privado, dessa burocratização. A necessidade de maximizar lucros e cortar custos – que é o que pensamos em termos de capitalismo e do estresse da competição – não milita contra a criação desses trabalhos inúteis no setor privado?

DG

Seria de imaginar que sim, mas parte da razão pela qual isso não acontece é que, quando imaginamos o capitalismo, ainda estamos imaginando um monte de empresas de médio porte engajadas na manufatura e no comércio, e competindo umas com as outras. Não é bem assim que a paisagem se parece hoje em dia, especialmente no setor FIRE.

Além disso, se você olhar para o que as pessoas realmente fazem, há toda essa ideologia de enxuto e eficiente. Se você é um CEO, é elogiado por quantas pessoas pode demitir, reduzir e acelerar. Os caras que estão sendo reduzidos e acelerados são os operários, os produtivos, os sujeitos que estão realmente fazendo as coisas, movendo-as, mantendo-as, fazendo o trabalho de verdade. Se eu sou UPS, os motoristas estão sendo taylorizados constantemente.

No entanto, você não faz isso com os caras que estão nos escritórios. Acontece exatamente o contrário. Dentro da corporação, há todo esse processo de construção de impérios, por meio do qual diferentes gerentes competem entre si, principalmente para ver quantas pessoas trabalham sob seu comando. Eles não têm nenhum incentivo para se livrar das pessoas.

Você tem esses caras, equipes de pessoas, cujo trabalho todo consiste em escrever os relatórios que executivos importantes apresentam em grandes reuniões. Grandes reuniões são como o equivalente a justas feudais, ou os rituais elevados do mundo corporativo. Você entra lá e tem todo esse equipamento, e tem tudo isso, seus pontos de energia, seus relatórios e assim por diante. Portanto, há equipes inteiras que estão lá apenas para dizer: “Eu faço as ilustrações para os relatórios desse cara” e “Eu faço os gráficos” e “Eu tabulo os dados e mantenho o banco de dados”.

Ninguém nunca lê esses relatórios, eles estão lá apenas para dar uma olhada. É o equivalente a um senhor feudal – tenho um cara cujo trabalho é apenas aparar meu bigode e outro cara que está polindo meus estribos e assim por diante. Só para mostrar que eu posso fazer isso.

SW

Você também vê um paralelo com o aumento dos trabalhos de merda, que é o aumento dos trabalhos que não são de merda. Você os chama de trabalhos de cuidar ou prestar cuidados. Pode descrever esses trabalhos? Por que há um aumento nesses trabalhos, e em que setores eles estão?

DG

Estou pegando o conceito em grande parte da teoria feminista. Eu acho que é muito importante, porque a ideia tradicional de trabalho, eu acho, é muito teológica e patriarcal. Temos essa ideia de produção. Vem com a ideia de que o trabalho deve ser doloroso, é o castigo que Deus infligiu a nós, mas também é uma imitação de Deus. Quer seja Prometeu ou seja a Bíblia, os humanos se rebelam contra Deus, e Deus diz: “Ah, você quer meu poder? Tudo bem: você pode criar o mundo, mas será terrível, você vai sofrer para fazer isso.”

Mas também é visto como um negócio essencialmente masculino: as mulheres dão à luz e os homens produzem coisas, é a ideologia. Claro, isso torna todo o trabalho real que as mulheres fazem, de manter o mundo, invisível. Essa ideia de produção, que está no cerne das teorias do movimento operário do século XIX, a teoria do valor-trabalho – é um pouco enganosa.

Você pergunta a qualquer marxista sobre trabalho e valor-trabalho, eles sempre vão imediatamente para a produção. Bem, aqui está uma xícara. Alguém tem que fazer a xícara, é verdade. Mas fazemos um copo uma vez e lavamos dez mil vezes, certo? Esse trabalho simplesmente desaparece por completo na maioria desses relatos. A maior parte do trabalho não é produzir coisas, é mantê-las iguais, é mantê-las, cuidar delas, mas também cuidar de pessoas, cuidar de plantas e animais.

Houve um debate, se não me engano, em Londres sobre os trabalhadores do metrô. Eles estavam fechando todas as bilheterias do metrô de Londres. Muitos marxistas disseram: “Ah, você sabe, de certa forma esse é provavelmente um trabalho de merda, porque você realmente não precisaria de compradores de ingressos no comunismo pleno, o transporte seria gratuito, então talvez não devêssemos defender esses trabalhos.” Lembro-me de pensar que havia algo um tanto superficial ali.

E então eu vi um documento que foi na verdade publicado pelos grevistas, onde eles diziam: “Boa sorte no novo metrô de Londres sem ninguém trabalhando na estação de metrô. Vamos torcer para que seu filho não se perca, vamos torcer para que você não perca suas coisas, vamos torcer para que não haja acidentes. Vamos torcer para que ninguém surte e tenha um ataque de ansiedade ou fique bêbado e comece a assediar você.”

Eles examinam a lista de todas as coisas diferentes que eles realmente fazem. Você percebe que mesmo muitos desses trabalhos clássicos da classe operária são realmente uma mão de obra de cuidado, é sobre cuidar das pessoas. Mas você não pensa nisso, você não percebe isso. É muito mais como uma enfermeira do que como um operário.

Além da Merda

SW

Uma das coisas que você diz em seu livro é que você pensou que o Occupy poderia ser o início da rebelião da classe assistencial.

DG

Havia uma página no Tumblr chamada “Somos os 99%”, e era para pessoas que estavam ocupadas demais trabalhando para realmente tomar parte nas ocupações de forma contínua. A ideia era que você pudesse escrever uma pequena placa onde falasse sobre a sua situação de vida e porque apoia o movimento. Sempre terminaria, “Eu sou o 99%.” Teve uma grande resposta; milhares e milhares de pessoas fizeram isso.

Quando eu analisei isso, percebi que quase todos eles estavam no setor de assistência em algum sentido. Mesmo que não fossem, os temas pareciam ser muito semelhantes. Eles estavam basicamente dizendo: “Olha, eu queria um emprego onde pelo menos não estivesse machucando ninguém. Realmente, onde eu estivesse fazendo algum tipo de benefício para a humanidade, eu queria ajudar as pessoas de alguma forma, eu queria cuidar dos outros, eu queria beneficiar a sociedade”. Mas se você acabar na saúde ou na educação, no serviço social, fazendo algo onde você cuida de outras pessoas, eles vão te pagar tão pouco, e vão te deixar tão endividado, que você não consegue nem cuidar de sua própria família. Isso é totalmente injusto.

Foi aquele sentimento de injustiça fundamental que acho que realmente impulsionou o movimento mais do que qualquer outra coisa. Percebi que eles criam esses empregos fictícios, onde basicamente você está lá para fazer os executivos se sentirem bem consigo mesmos. Eles têm que inventar trabalho para outras pessoas fazerem. Na educação, na saúde, isso é incrivelmente realçado. Você vê isso o tempo todo. Frequentemente, os enfermeiros passam metade do tempo preenchendo papelada. Professores, professores do ensino fundamental, pessoas como eu – não é tão ruim no ensino superior quanto se você estiver ensinando na quinta série, mas ainda é ruim.

SW

Todos nós sonhamos com esta sociedade que nos liberta de um trabalho destruidor, para que possamos perseguir nossas paixões e nossos sonhos e cuidar uns dos outros. Então, é apenas uma questão política? É algo que a RBI, renda básica universal, poderia resolver?

DG

Bem, acho que seria uma demanda de transição, faz sentido para mim. Em algum lugar, Marx realmente sugeriu que não há nada de errado com as reformas, desde que sejam reformas que amenizem um problema, mas criem outro problema, que só pode ser resolvido por reformas ainda mais radicais. Se você fizer isso continuamente, pode eventualmente chegar ao comunismo, disse ele. Mas ele é um pouco otimista demais.

Sabe, sou anarquista, não quero criar uma solução estatizante. Uma solução que torne o estado menor, mas ao mesmo tempo melhore as condições e torne as pessoas mais livres para desafiar o sistema, não vai encontrar muita argumentação da minha parte. E é isso que eu gosto na RBI.

Não quero uma solução que crie mais trabalhos de merda. Uma garantia de emprego parece algo bom, mas, como sabemos pela história, tende a criar pessoas pintando pedras de branco ou fazendo outras coisas que não precisam necessariamente ser feitas. Também requer uma administração gigante para administrar isso. Muitas vezes parece que são as pessoas com as sensibilidades da classe profissional-gerencial que preferem esse tipo de solução.

Ao passo que a renda básica universal significa dar a todos o suficiente para que possam sobreviver; depois disso, cabe a você. (Refiro-me às versões radicais, obviamente; não sou a favor da versão de Elon Musk.) A ideia é separar trabalho e compensação, de certa maneira. Se você existe, você merece um meio de vida. Você poderia chamar isso de liberdade na esfera econômica. Eu posso decidir como quero contribuir para a sociedade.

Uma das coisas que é muito importante sobre o estudo que fiz sobre trabalhos de merda é como as pessoas são miseráveis. Isso realmente transpareceu nos relatos. Em teoria, você está recebendo algo por nada, você está sentado aqui sendo pago para fazer quase nada, em muitos casos. Mas isso simplesmente destrói as pessoas. Há depressão, ansiedade, todas essas doenças psicossomáticas, locais de trabalho terríveis e comportamento tóxico, agravados pelo fato de que as pessoas não conseguem entender por que tem motivos justos para estar tão chateadas.

Porque, sabe, por que estou reclamando? Se eu reclamar com alguém, eles vão dizer: “Pô, você está ganhando algo por nada e ainda está reclamando?” Mas isso mostra que nossa ideia básica da natureza humana, que é inculcada em todos pela economia, por exemplo – que todos nós estamos tentando obter a maior recompensa com o mínimo de esforço – não é realmente verdade. As pessoas querem contribuir com o mundo de alguma forma. Então, isso mostra que se você dá às pessoas uma renda básica, elas não vão sentar e assistir TV, o que é uma das objeções.

A outra objeção, claro, é que, talvez eles queiram contribuir com a sociedade, mas eles vão fazer algo estúpido, para que a sociedade fique cheia de poetas ruins e músicos de rua irritantes, mímicos de rua por toda parte, gente desenvolvendo seus dispositivos de movimento perpétuo de manivela e outras bugigangas. Tenho certeza de que haverá um pouco disso, mas veja: se 40 por cento das pessoas já pensam que seus trabalhos são completamente inúteis, como pode ser pior do que já é? Pelo menos eles ficarão muito mais felizes fazendo essas coisas do que preenchendo formulários o dia todo.