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terça-feira, 13 de julho de 2010

Nota do Editor sobre o livro Sinais do Absoluto




"Descobrir um novo autor de mérito genuíno é como descobrir um novo planeta ou estrela no espaço infinito do céu. Enquanto escrevo estas linhas, posso imaginar como William Herschel se sentiu quando descobriu Urano.

Ramesh Balsekar, o autor desta obra, é uma nova luz de cintilante esplendor que adornou o firmamento misterioso da literatura esotérica de grande significação, embora totalmente indiferente a seu próprio brilho. Quando, depois de um rápido olhar para uns poucos capítulos de seu manuscrito, o qual me chegou às mãos através de um amigo comum, eu o encontrei e lhe falei sobre quão gratamente impressionado eu estava, ele me fixou um olhar vazio. Eu não sou o autor, ele disse, e o que escrevi não é para publicação, mas para minha clara compreensão dos ensinamentos do meu mestre, para minha orientação e para minha própria satisfação. Foi difícil convencê-lo de que o que ele havia escrito para sua satisfação poderia ser proveitoso para milhares de outros se fosse publicado como um livro. Ele escutou-me sem responder – um enigmático sorriso nos lábios, com atitude afável, mas totalmente neutra.

Aparentando sessenta anos e muito bem conservado para sua idade, Balsekar tem tez branca, sendo bastante gentil e amigável, mas taciturno por natureza. Quando decide falar, fala com uma circunspecção e distanciamento próprio de um presidente de banco conversando com um solicitante de crédito. Mais tarde, senti-me muito intrigado ao saber que ele realmente tinha sido um banqueiro e que tinha se aposentado como o mais alto executivo de um dos principais bancos da Índia.

Evidentemente, como um solicitante de crédito, fui uma pessoa bastante tenaz, pois fui bem sucedido em tomar emprestado de Balsekar o seu manuscrito por uns poucos dias, para minha iluminação pessoal como um admirador dos ensinamentos de Maharaj. E, quando eu o li, achei-o muito além de minhas melhores expectativas. Não perdi tempo em chamá-lo e a lhe oferecer a publicação da obra. Depois de um breve silêncio, e despreocupadamente, ele abanou a cabeça, expressando seu consentimento.

Li novamente todo o manuscrito, muito cuidadosamente, como um leitor profundamente interessando, mantendo à margem minhas inclinações editoriais. E, enquanto o lia, experimentei em um flash, momentaneamente, minha verdadeira identidade como algo distinto do que penso ser, ou do que pareço ser. Nunca havia tido tal experiência antes. Uns poucos anos atrás, quando tive a boa sorte de editar e publicar as conversações de Nisargadatta Maharaj, Eu Sou Aquilo, senti o impacto de sua originalidade criativa e raciocínio socrático, mas não tive sequer um fugaz lampejo da Verdade ou Realidade ou de minha verdadeira entidade, como agora. E isto porque Balsekar em seus escritos não repete meramente as palavras de Maharaj, mas as interpreta com grande discernimento e lucidez, e um profundo entendimento. Ele escreve com um poder e uma autoridade intrínseca oriunda do próprio Maharaj, por assim dizer. Ele não argumenta; ele anuncia. Suas afirmações são da natureza dos pronunciamentos em nome do Mestre.

Eu nunca fui um visitante regular de Maharaj, mas ouvi suas conversas com bastante freqüência, sempre que minhas ocupações me permitiam um tempo livre. Um dedicado devoto de Maharaj, chamado Saumitra Mullarpattan, que é igualmente bem versado em Marathi e inglês, atuava como intérprete. Em um par de ocasiões, contudo, encontrei uma pessoa desconhecida traduzindo, e fiquei impressionado pelo tom competente com que comunicava as respostas de Maharaj a seus inquiridores. Ele sentava com os olhos fechados e transmitia as sábias palavras de Maharaj com a determinação característica do Mestre. Era como se o próprio Maharaj estivesse falando em inglês, para variar.

Quando perguntei, disseram-me que o tradutor era um devoto novo de Maharaj, chamado Balsekar. No fim da sessão, quando os presentes se dispersavam, apresentei-me a ele e o elogiei por sua excelente tradução das palavras do Mestre. Mas ele mostrou-se impassível, como se nada tivesse ouvido. Surpreendido por sua atitude intratável, afastei-me e nunca voltei a pensar nele até que o encontrei recentemente tendo como motivo este livro. E, agora, compreendi quão deploravelmente errado estava ao formar minha opinião sobre ele. Devia ter-me ocorrido que ele vivia em um diferente nível de existência, o qual estava fora do alcance de elogio ou crítica. Eu devia ter entendido que ele estava em união com o Mestre e nada mais o interessava. E isto é provado por seu presente trabalho no qual encontrei a presença de Maharaj em cada página – sua agilidade mental excepcional, suas conclusões rigorosamente lógicas, seu pensamento total, sua completa identidade com a unidade que aparece na diversidade.



Sri Nisargadatta Maharaj e Ramesh Balsekar



É interessante notar que em seu Prefácio ao livro, Balsekar quase negou sua autoria. Ele disse que o material que apareceu neste volume surgiu espontaneamente, ditado, em um frenesi que sobrecarregou seu ser, por um poder compulsivo que não podia ser negado. Eu acredito no que ele falou. E estou inclinado a pensar que o leitor estará de acordo comigo, conforme avançar na leitura. Não há nada neste trabalho que possa ser tomado como projeção do próprio autor, nenhuma improvisação, nenhuma citação erudita das escrituras; não há nenhum adorno de qualquer tipo tomado emprestado. Os pensamentos apresentados por Balsekar levam a assinatura silenciosa do Mestre. Eles parecem vir de um conhecimento luminoso, de uma exaltação da glória da Verdade que preenche seu interior.

Esta obra, intitulada SINAIS DO ABSOLUTO, é o próprio Maharaj, de modo completo. É, sem dúvida, um tipo de curso de pós-graduação para o leitor que já absorveu o que é oferecido em EU SOU AQUILO. Ela compreende os ensinamentos finais e mais sublimes do Mestre e vai muito além do que ele havia ensinado nos anos anteriores. Eu arriscaria dizer que não pode existir nenhum conhecimento mais elevado do que o que este livro contém. Também arrisco dizer que ninguém, exceto Balsekar, poderia ter exposto este conhecimento, pois nenhum daqueles que estiveram próximos do Maharaj entenderam seu ensinamento tão profundamente como ele.

Alguns dos devotos de Maharaj que conheço assistiram a suas conversas por vinte anos ou mais e, no entanto, suas mentes não mudaram, e eles continuam as mesmas entidades que eram duas décadas atrás. A associação pessoal de Balsekar com Maharaj, por outro lado, estendeu-se por apenas três anos. Mas, tais associações não devem ser medidas no tempo, se pudessem ser medidas de alguma forma. O que é mais importante que a duração da associação é o tipo especial de receptividade que é o forte de Balsekar. Não tenho dúvidas de que o manto de Maharaj tenha caído sobre seus ombros. Na falta de uma expressão melhor, eu diria que Balsekar é o alter ego vivo de Maharaj, embora ele não tenha nenhuma inclinação para desempenhar o papel de um mestre. Que ele está saturado com a Jnana passada pelo Mestre é mais do que evidente por este livro. Todavia, quero atrair a atenção particular do leitor para este artigo especial, “A Essência do Ensinamento”, o qual expõe, em todas as suas facetas, a filosofia única de Maharaj (Apêndice 1) assim como sua nota sobre o desconcertantemente difícil tema da consciência (Apêndice 2). Nenhum leitor deve deixar de ler.

Antes de terminar, posso também relatar um divertido incidente no qual o editor em mim teve um choque com o autor em Balsekar. Sua distância e indiferença sempre me irritaram. Ele obteve a graduação da Universidade de Londres e tinha um bom domínio da língua inglesa. Dificilmente poderia encontrar alguma falha em sua linguagem. Ainda assim eu tentei melhorar sua dicção e expressão aqui e lá, como um editor deve fazer! Ele reparou nos melhoramentos não solicitados e permaneceu quieto, com sua habitual indiferença. Então ficou claro que ele tinha feito de seu silêncio uma virtude, exatamente como eu havia feito com minha verbosidade. Éramos antípodas, senti. Ansiando por um entendimento com ele, queria retirá-lo de sua casca, de qualquer modo. E achei por acaso um artifício. Ataquei sua exposição de um dos aspectos do ensinamento de Maharaj (embora realmente concordasse com ele), e ele explodiu repentinamente. Seu contra-ataque foi devastador e eu me alegrei com a quebra da casca, finalmente. Ele, contudo, rapidamente acalmou-se quando concordei com ele sem muita discussão. E seus olhos irradiavam amizade. As habituais circunspecção e distância desapareceram, dando lugar a uma nova intimidade entre nós. Depois daquilo, nós trabalhamos juntos no livro; de fato, ele me permitiu todas as liberdades com seu manuscrito e nunca se incomodou em olhar os acréscimos e alterações que escolhi fazer. Desenvolvemos um necessário entendimento entre nós, o qual, sem dúvida, apreciei muito. Ele passou os olhos casualmente na cópia final, antes que fosse para a gráfica, e parecia estar totalmente feliz com isto.

Perguntei a ele se iria escrever para nós outro livro sobre os ensinamentos do Mestre. Ele sorriu levemente e talvez houvesse um imperceptível abanar de sua cabeça."

Sudhakar S. Dikshit - Editor

Mumbai
Março, 1982


"Sinais do Absoluto"



Fonte:

http://editoraadvaita.blogspot.com/

sábado, 2 de janeiro de 2010

Você não é o corpo, nem a mente



Pergunta

Se eu sou livre, porque estou em um corpo?

Maharaj:

Voce não está no corpo, o corpo está em você! A mente está em você. Acontecem a você. Existem porque os acha interessantes. A sua própria natureza tem a capacidade infinita de desfrutar. Está cheia de animação e afeto. Ela derrama seu brilho em tudo o que entra no seu foco de consciência, e não exclui nada. Não conhece nem o mal nem a feiúra; ela espera, confia, ama. Você não sabe quanto perde por não conhecer seu próprio ser real. Você não é nem o corpo nem a mente, nem o combustível nem o fogo. Eles aparecem e desaparecem segundo suas próprias leis.

Você ama o próprio ser, isso que você é, e tudo o que faz o faz pela sua própria felicidade. O seu impulso básico é encontrá-lo, conhecê-lo, apreciá-lo. Você ama a si mesmo desde tempo imemorial, mas nunca sabiamente. Use o corpo e a mente sabiamente ao serviço do ser, isso é tudo. Seja fiel a seu próprio ser e o ame absolutamente. Não finja amar os demais como a si mesmo. A menos que os compreenda como um consigo mesmo, não poderá amá-los. Não finja ser o que não é, não recuse ser o que você é. O amor aos demais é o resultado do autoconhecimento, não sua causa. Nenhuma virtude é genuína sem a autorrealização. Quando souber, sem qualquer dúvida, que a mesma vida flui através de tudo o que existe, e que você é esta vida, você amará tudo, natural e espontaneamente. Quando compreender a profundidade e a plenitude do amor a si mesmo, saberá que cada ser vivo e o universo inteiro estão incluídos em seu afeto. Mas, quando você olhar para qualquer coisa como separada de você, não poderá amá-la porque a teme. A alienação causa o medo e o medo aumenta a alienação. É um círculo vicioso. Apenas a autorrealização poderá rompê-lo. Busque-a resolutamente.


(Do livro: "Eu Sou Aquilo - Conversações com Sri Nisargadatta Maharaj", Editora Advaita)


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Há 40 anos morria Thomas Merton (1)



Thomas Merton nasceu na França durante uma tempestade de neve, apenas poucos meses depois do início da Primeira Guerra Mundial. Ele morreu no fim da manhã do dia 10 de dezembro de 1968, em Bangkok, vítima de um acidente inusitado com um ventilador defeituoso.

A reportagem é de Rich Heffern, publicada no sítio National Catholic Reporter, 10-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Formando em Cambridge, na Inglaterra, e na Columbia, em Nova Iorque, entre as duas Guerras Mundiais, Merton experimentou o desencanto com o mundo moderno que muitos dos intelectuais da sua geração sentiram. Sua conversão ao catolicismo romano levou-o a um sistema antigo de valores e doutrinas que se contrapunha ao niilismo e o hedonismo que ele não gostava na sociedade moderna. Em 1941, ele iria encontrar tanto um lar como uma família no claustro monástico da vida comunitária de um mosteiro trapista no Kentucky, nos Estados Unidos.

No começo de sua trajetória lá, ele escreveu a respeito da austera vida trapista: “Os homens que vem aqui são iguais, originalmente, aos homens no metrô [...] mas a diferença é que aqui eles se esqueceram de ser rapazes sábios. Muitos dos meus irmãos são realmente santos”.

Ele desejava estar nesse número, porque “a coisa que faz o maior sentido é estar na presença de Deus e viver sob a Sua vontade, assim como vivemos de ar e de pão”.

Em 1948, sua autobiografia, “A montanha dos sete patamares” (Editora Vozes, 2005), se tornou um best-seller. Nunca deixou de ser impresso e foi traduzido em 15 idiomas. Ele se tornou o monge mais famoso do mundo.

Ele afirmou, ainda, em uma carta a um companheiro monge: “Qualquer um que me imita o faz sob o seu próprio risco. Eu posso prometer a ele alguns finos momentos de desespero nu”.

Em 1965, ele se mudou para uma construção de blocos de concreto de dois quartos, com amplas janelas frontais, a pouco mais de um quilômetro da abadia e começou a viver como um eremita. “Eu estou vivendo como um estilita [1] no topo de um chapéu de eremita. Eu estou completamente sozinho de companhia humana [...] Eu não faço mais biscoitos na fábrica de biscoitos”. Ele compartilhou uma patente próxima de seu eremitério com uma grande cobra preta.

Ao longo dos anos 60, ele escreveu sobre os assuntos controversos: justiça social, direitos civis, armas nucleares, a guerra no Vietnã. “Eu estou do lado das pessoas que estão sendo queimadas, cortadas em pedaços, torturadas, tomadas como reféns, atacadas com gás, arruinadas, destruídas. Elas são as vítimas de ambos os lados. Tomar partido com o poder pesado é tomar partido contra os inocentes”.

Em 1968, “naquele campo de tiro de um ano”, em uma viagem de carro até Bardstown, no Kentucky, ele ouviu no rádio que Martin Luther King Jr. havia sido atingido.

Mais tarde, ele escreveu em seu diário: “Então, o assassino de Martin Luther King [...] pousou no topo daquele carro em viagem como um animal, uma besta do apocalipse. E finalmente confirmou todas as apreensões [...] que as coisas estavam, finalmente, inexoravelmente, se explicando. Por quê? As coisas estão acontecendo porque as pessoas em desespero querem que elas aconteçam? Ou elas têm que acontecer? A raça humana é autodestrutiva? A mensagem cristã de amor é uma lamentável desilusão? Ou alguém deve “amar” só em uma situação impossível?

King estava planejando em fazer mais tarde naquele ano um retiro com Merton como seu diretor espiritual.

Durante o seu último ano de vida, Merton fez viagens aos Alasca, ao norte da Califórnia e finalmente ao Extremo Oriente.

Em seu diário daquelas viagens, ele tomou nota das pichações das paredes de banheiro em Anchorage, no Alasca, e percebeu a sua impaciência com constantes interrupções e pedidos para pequenas conversas entediantes. “Sempre há alguém, em algum lugar, que conhece um trapista”. Ele escreveu um lembrete a si mesmo para futuras viagens de avião: “Pegue o último assento da janela no fundo, próximo da cozinha. Pegue um Bloody Mary [coquetel feito com vodca e suco de tomate] quando as garotas começarem com os seus carrinhos”.

Partindo finalmente em um avião de São Francisco rumo ao Oriente, ele escreveu: “Deixamos o solo, eu com mantras cristãos e um grande sentido de destinação, de estar ao menos no meu verdadeiro caminho depois de anos escrevendo e sonhando e andando à toa. Que eu não possa voltar sem ter estabelecido a grande questão. E sem ter descoberto também a grande compaixão, mahakaruna. [...] Eu estou indo para casa, onde eu nunca estive com este corpo, neste traje lavável”.

No Sri Lanka, no santuário budista de Polonnaruwa, uma antiga cidade abandonada, ele pôde passear entre as ruínas, enquanto seu companheiro, outro padre, esquivava-se da arte pagã à mostra.

Ele olhou uma estátua colossal de Buda dormindo e observou: “A questão a respeito de tudo isso é que não há enigma, não há problema e realmente não há ‘mistério’. Tudo é claro. A rocha, toda a matéria, toda a vida, está carregada com dharmakaya – tudo é vacuidade e tudo é compaixão. Eu não sei quando, em minha vida, eu tive um tal sentido de beleza e de força espiritual correndo juntos em uma iluminação asceta. [...] Eu não sei o que permanece, mas agora eu vi e atravessei a superfície e fui além da sombra e da máscara”.

Ele se encontrou com o Dalai Lama em Dharamsala, no norte da Índia, e então gastou quatro dias de descanso nas montanhas do Himalaia ali perto. Lá ele desenvolveu um relacionamento com Kanchenjunga, a terceira maior montanha do mundo. Ele subiu pela plantação e, primeiro, ele viu a montanha como um enorme cartão postal, mas depois ele escreveu em seu diário que a imensa montanha gelada, o “palácio yin-yang de opostos em unidade”, tinha um lado escondido que não podia ser fotografado. Sua beleza total “não pode ser vista até que você assuma o paradoxo impossível” de saber que a montanha tanto é quanto não é. “Quando nada mais precisa ser dito, a fumaça das idéias se aclara, a montanha é vista”.

Thomas Merton foi um ativista pelo espírito, um Argonauta [2] explorando a alma cristã, uma ponte entre o Leste e o Oeste, um verdadeiro ser humano que compartilhou suas descobertas interiores com todos.

“Nós temos o que procuramos”, ele escreveu. “Nós não precisamos correr atrás disso. Ele estava lá o tempo todo, e, se lhe dermos tempo, ele se fará conhecido para nós”.

Merton esgotou seu tempo muito cedo, mas no fim ele testemunhou esse tempo, e de fato o próprio mundo visível como um todo está construído unicamente sem compaixão. Todo momento e todas as coisas são iluminados pelo amor, amor pelos outros e amor por Deus, que é “misericórdia dentro de misericórdia dentro de misericórdia”.

Notas:

1. Estilita era o nome do monge que, no início do cristianismo, refugiava-se do mundo e passava a viver sobre uma coluna. Diz a tradição que São Simeão (400 d.C.), um asceta sírio, viveu cerca de trinta anos sobre uma coluna de pedras cuja altura chegava a 17 metros.

2. Na mitologia grega, Argonautas eram tripulantes da nau Argo que, segundo a lenda grega, foi até à Cólquida (atual Geórgia) em busca do Tosão de Ouro, ou Velocino de Ouro.



***




Abaixo, um trecho da carta escrita pelo Pe. Mathew Kelty, OCSO, monge do Mosteiro Trapista de Nossa Senhora de Gethsemani, no Kentucky, Estados Unidos, por ocasião da morte do monge Thomas Merton, no dia 10 de dezembro de 1968. Pe. Kelty foi noviço de Merton e seu confessor nos últimos anos de sua vida. A carta foi publicada no blog Reflexões de Thomas Merton:

"Não sei como resumir aquele homem; essa idéia nem vem ao caso. Salvo para dizer que ele era uma contradição. Viveu no centro da cruz, onde os dois braços se encontram. Talvez , poderíamos dizer, no coração da vida. Imagino que em nenhum outro lugar a contradição é reconciliada.

Ele era um problema para muitos aqui e em outros lugares. Sei qual é a razão do problema: quero dizer, as tensões aterrorizantes que aquele homem suportou com um tipo de coragem que só o poder de Deus possibilitava. Quando eu estava ao lado dele, sempre sentia que Deus estava perto. E estar perto de Deus é estar perto de algo ao mesmo tempo maravilhoso e terrível. Como o fogo. Queima. As pessoas ficavam sempre tentando sair do lugar que ele criava (simplesmente sendo o que era) para elas encaixando-o em uma ou outra categoria e fazendo com que ele ficasse ali. Dava tão certo como engarrafar neblina! Decidiam que ele era “monge” e o que o monge deveria fazer. Então esperavam que ele o fizesse. Mas ele não fazia. Não podia.

Quando se tornou eremita, decidiam o que é eremita e então viam se ele estava sendo um bom eremita. E ele não estava! A única maneira como eu conseguia viver com ele era amando-o como um todo, como ele era, com todas as suas contradições, e acho que esta é a única maneira de entendê-lo. Esta era a maneira como ele me amava.

Nunca conheci homem mais alegre, mas com tristezas profundas de que era melhor nem falar. Amava a vida monástica, mas a vivia conforme um estilo todo próprio. Tinha um real amor pela vida solitária, mas ninguém aqui tem o amor que ele tinha pelas pessoas, pelo mundo que Deus fez.

Estava acima de tudo que era trivial e miúdo, mas se mantinha a par de tudo e sabia tudo o que estava acontecendo. Podia ser duro como qualquer pessoa, mas era suave e terno como uma criança com um passarinho. Podia ser loquaz e leve, mas também congelar você com sua intensidade e ardor. Seu andar era lépido como o de um homem de vinte anos, mas não conheço muitos que tenham seu senso de compaixão. Amava o mosteiro, mas era crítico de suas fraquezas e tolices. Discutia e argumentava com seu abade assim como um advogado astuto defende uma causa perdida, mas era obediente até o cerne de seu ser. Sua obediência foi testada várias e diversas vezes, e encontrada pura.

Não consigo continuar. Não se recebe com freqüência esse tipo de pessoa das mãos de Deus. Ele é uma testemunha viva de Deus, de Gethsemani, da vida monástica, da Igreja, do mundo. Louvado seja Deus em seus santos agora e para sempre. Amém.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O saber noturno


Há sujeitos que levam no peito um coração fatigado pela infelicidade, pela dor mais suprema, mas que ainda assim pulsa vigorosamente, pronto para o rejuvenescimento e para a voluptuosa alegria. Esses corpos que buscam simultaneamente os extremos da dor e da alegria engendram um tipo de conhecimento, que podemos nomear de SABER NOTURNO.
O saber noturno é característico de um corpo que sofre porque quer se expandir, tal como o corpo de uma parturiente. Trata-se de um conhecimento que tem a tarefa de parir uma nova vida, livre, intensa, repleta de possibilidades e de venturas. A criação dessas novas possibilidades de existência, desembaraçada dos limites e dos constrangimentos da atualidade, é a grande missão dos poetas, dos pensadores-artistas que desejam livrar o devir das amarras da continuidade, do passado, dos ideais metafísicos e das superstições teleológicas que contaminam e ensombrecem o futuro.
O saber noturno é o corpo da parturiente, as sábias e firmes mãos da parteira, mas é também a criança que cria o seu mundo, seus valores e usufrui do tempo de acordo com os desejos. O "momento da criança" ilustra o tempo da criação, a capacidade lúdica e artística do homem livre do fardo da história, e, portanto, plenamente ligado ao presente.
" O lúdico artista – explica o filósofo Miguel Barrenechea – não olha para trás, nada o prende ao que foi, é 'inocência e esquecimento'. O criador está alheio ao dever e à culpa; nenhum ressentimento, nenhuma vingança o ocupa. Ele vive plenamente o aqui e agora, sem dívidas sobre o que já foi nem preocupações com o que virá."
Com a mesma intensidade e curiosidade da criança, os pensadores-artistas brincam "inocentemente" no lado escuro e terrível da vida. Pois se trata de um corpo que quer se expandir, isto é, que não se limita ao já conhecido, ao já pensado e criado à luz do dia que tudo revela e desencanta. Como afirma Nietzsche, todo " crescer e devir no reino da arte tem que acontecer numa noite profunda."


Os pensadores-artistas sabem que todo ser vivo precisa não só de luz para ver, como também da escuridão para sonhar.


(Fragmento de tese escrita por Tony Hara)



segunda-feira, 28 de julho de 2008

Albert Schweitzer


Por: Rubem Alves

"É um homem grande, 1.90 de altura; obviamente, um homem forte. Seus cabelos castanhos já estão grisalhos. E tem um grande bigode. Seus olhos profundos são azuis e bondosos. E o seu piscar revela humor. Um veadinho se esfrega nele pedindo carinho e sua mão grande deixa a caneta sobre a mesa e delicadamente agrada o bichinho. Lá fora, os crocodilos algumas vezes dormem com suas enormes mandíbulas abertas. E há os hipopótamos, os pelicanos, a vegetação impenetrável que se reflete nas águas barrentas do rio."


A aparência é de um homem sólidamente plantado nesse mundo. Mas não é verdade. Seu coração e sua cabeça se movem de acordo com uma lógica estranha de um outro mundo que só ele vê.

Nasceu em 1875, numa aldeia da Alsácia, filho de um pastor protestante. Desde muito cedo ficou claro que ele era diferente. Sua sensibilidade para a música chegava à dor. Ele mesmo conta que, à primeira vez que ouviu duas vozes cantando em dueto - ele era muito pequeno ainda - ele teve de se encostar na parede para não cair. Outra vez, ouvindo pela primeira vez um conjunto de metais ele quase desmaiou por execesso de prazer. Com cinco anos começou a tocar piano. Mas logo se apaixonou pelo órgão de tubos da igreja na qual o seu pai era pastor. Aos nove anos já era o organista oficial da igreja, e tocava para os serviços religiosos.

Sentimento amoroso idêntico lhe provocavam os animais. Ele relata que, mesmo antes de ir para a escola, lhe era incompreensível o fato de que as orações da noite que sua mãe orava com ele apenas os seres humanos fossem mencionados. "Assim, quando minha mãe terminava as orações e me beijava, eu orava silenciosa-mente uma oração que compus para todas as criaturas vivas" : "Oh, Pai, celeste, protege e abeçoa todas as coisas que vivem; guarda-as do mal e faz com que elas repousem em paz."

Ele conta de um incidente acontecido quando ele tinha sete ou oito anos de idade. Um amigo mais velho ensinou-o a fazer estilingues. Por pura brincadeira. Mas chegou um momento terrível. O amigo convidou-a a ir para o bosque matar alguns pássaros. Pequeno, sem jeito de dizer não, ele foi. Chegaram a uma árvore ainda sem folhas onde pássaros estavam cantando. Então o amigo parou, pôs uma pedra no estilingue e se preparou para o tiro. Aterrorizado ele não tinha coragem de fazer nada. Mas nesse momento os sinos da igreja começaram a tocar, ele se encheu de coragem e espantou os pássaros.

Seu amor pelas coisas vivas não era apenas amor pelos animais. Ele sabia que por vezes era preciso que coisas vivas fossem mortas para que outros vivessem. Por exemplo, para que as vacas vivessem os fazendeiros tinham de cortar a relva florida com ceifadeiras. Mas ele sofria vendo que, tendo terminado o trabalho de cortar a relva, ao voltar para a casa, as suas ceifadeiras fossem esmagando flores, sem necessidade. Também as flores têm o direito de viver.


Também não podia contemplar o sofrimento dos animais em cativeiro. "Detesto exibições de animais amestrados. ´Por quanto sofrimento aquelas pobres criaturas têm de passar a fim de dar uns poucos momentos de prazer a homens vazios de qualquer pensamento ou sentimento por eles."


O nome desse jovem era Albert Schweitzer. Doutorou-se em música, tornou-se o maior intérprete de Bach da Europa, dando concertos continuamente. Doutorou-se em teologia e escreveu um dos mais importantes livros de teologia desse século. Doutorou-se também em filosofia, e era professor na universidade de Estrasburgo, sendo também pastor e pregador.


Schweitzer tinha tudo aquilo que uma pessoa normal pode desejar. Ele era reconhecido por todos. Mas havia uma frase de Jesus que o seguia sempre: "A quem muito se lhe deu, muito se lhe pedirá." E, aos vinte anos, ele fez um trato com Deus. Até os trinta anos ele iria fazer tudo aquilo que lhe dava prazer: daria concertos, falaria sobre literatura, sobre teologia, sobre filosofia. Ao trinta anos ele iniciaria um novo caminho. E foi o que ele fez. Aos trinta anos entrou para a escola de medicina, doutorou-se em medicina, e mudou-se para a África, para tratar de uns pobres homens atacados pelas doenças e abandonados. E lá passou o resto de sua vida.


É preciso entender que Schweitzer não era só um médico curando doentes. Ele não se conformaria com isso. Dentro dele viviam a música, a filosofia, o misticismo, a ética. Schweitzer sabia que somente o pensamento muda as pessoas. E o que ele mais desejava era descobrir o princípio que vivia encarnado nele. E ele conta que foi numa noite - ele e remadores navegavam pelo rio para chegar a uma outra aldeia - seu pensamento não parava - e ele se perguntava - "qual é o princípio ético?". De repente, como um relâmpago, apareceu na sua cabeça a expressão: reverência pela vida. Tudo o que é vivo deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o desejo dos homens.


Há algo estranho na psicologia de Schweitzer. Um dos maiores desejos da alma humana - de todos - é o desejo de reconhecimento. Na Europa Schweitzer era admirado universalmente: organista, filósofo, teólogo, escritor. Aos vinte e poucos anos seu nome já era símbolo. Aí toma uma decisão que o levaria para longe de todos os olhos que o admiravam: a absoluta solidão de uma aldeia miserável. Hoje uma decisão como a dele seria imediatamente notada: os jornais e a televisão logo fariam brilhar a sua imagem de Cavaleiro Solitário - e ele apareceria como heroi. Seria grande, imensamente grande na sua renúncia! Também as renúncias podem ser motivo de vaidade! ( A esse respeito relembro a última cena do filme O Advogado do Diabo. Merece ser visto de novo. )Mas ele opta pela invisibilidade, a solidão, longe de todos os olhos e de todos os aplausos.. Isso só tem uma explicação: ele era, antes de tudo, um místico. O que lhe importava não era a brilho narcísico mas a consciência de ser verdadeiro com o princípio de "reverência pela vida", o seu mais alto princípio religioso.


Esse princípio, Schweitzer viveu intensamente. Não é difícil ter reverência pelas coisas fracas, a relva, os insetos, os animais. Fracos, eles não têm o poder de nos resistir. Difícil é ter reverência pelos homens fortes, que se encontram ao nosso lado. Jesus ordenou "amar o próximo". Porque é fácil amar o distante. O próximo é aquele que está no meu caminho, que tem o poder de me dizer não. Mais difícil que amar os doentes, que são carência pura, fraqueza pura, dependência pura, mendicância pura, é amar aqueles que estão ao meu lado e que são tão fotrtes quanto eu. Reverência pelos que estão ao meu lado. Se Schweitzer se relacionou com os pobres negros doentes por meio da compaixão, ele se relacionou seus próximos, iguais, companheiros de hospital por meio de amizade. E ele formula, na sua Ética, o princípio de que "um homem nunca pode ser sacrificado para um fim."


Schweitzer não era um ser desse mundo. Talvez ele tenha compreendido isso e que essa tenha sido uma das razões porque ele saiu do mundo civilizado, se embrenhando nas selvas da África. No mundo civilizado, das organizações, será possível ter reverência pelo próximo? Na lógica das organizações não há "próximos" nem amigas. A lógica das organizações diz: "cada funcionário é apenas um meio para o fim da organização, não importa quão grandioso ele seja!" Nas organizações os sinos das igrejas não tocam para impedir que o pássaro seja morto.



terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Gibran Khalil Gibran


"Pássaro e o homem têm essências diferentes.
O homem vive à sombra de leis e tradições por ele inventadas;
o pássaro vive segundo a lei universal que faz girar os mundos.
Acreditar é uma coisa; viver conforme o que se acredita é outra.
Muitos falam como o mar, mas vivem como os pântanos.
Muitos levantam a cabeça acima dos montes;
mas sua alma jaz nas trevas das cavernas.
A civilização é uma arvore idosa e carcomida,
cujas flores são a cobiça e o engano e cujas frutas
são a infelicidade e o desassossego.
Deus criou os corpos para serem os templos das almas.
Devemos cuidar desses templos para que sejam
dignos da divindade que neles mora.
Procurei a solidão para fugir dos homens, de suas leis,
de suas tradições e de seu barulho.
Os endinheirados pensam que o sol e a lua e as estrelas se levantam
dos seus cofres e se deitam nos seus bolsos.
Os políticos enchem os olhos dos povos com poeira
dourada e seus ouvidos com falsas promessas.
Os sacerdotes aconselham os outros,
mas não aconselham a si mesmos,
e exigem dos outros o que não exigem de si mesmos.
Vã é a civilização. E tudo o que está nela é vão.
As descobertas e invenções nada são senão brinquedos
com a mente se diverte no seu tédio.
Cortar as distâncias, nivelar as montanhas,
vencer os mares, tudo isso não passa de
aparências enganadoras, que não alimentam ocoração e nem elevam a alma.
Quanto a esses quebra-cabeças, chamados ciências e artes,
nada são senão cadeias douradas com os quais o homem
se acorrenta, deslumbrados com seu brilho e tilintar.
São os fios da tela que o homem tece desde o inicio
do tempo sem saber que, quando terminar sua obra,
terá construído a prisão dentro da qual ficará preso.
Uma coisa só merece nosso amor e nossa dedicação, uma coisa só...
É o despertar de algo no fundo dos fundos da alma.
Quem o sente não o pode expressar em palavras.
E quem não o sente, não poderá nunca conhecê-lo através de palavras.
Faço votos para que aprendas a amar as tempestades em vez de fugir delas."

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Entrevista de TERENCE MCKENNA



Entrevista de TERENCE MCKENNA, concedida a Will Noffke, que foi publicada no n° 1 da revista High Frontiers ("uma revista de ciência psicodélica, potencial humano, irreverência e arte moderna"), em 1984. Esta revista se fundiu com a Reality Hackers e fundou a revista Mondo 2000 tendo William Gibson e Timothy Leary como seus gurus.

Trata-se de uma revista com a seguinte proposta:
“Mondo 2000 está aqui para cobrir a vanguarda em hipercultura. Nós traremos para você as novidades nas formas de mutação interativas entre o humano e o tecnológico. Estamos falando Cyber-Chautauqua: trazendo a cibercultura para as pessoas! Módulos de conhecimento artificiais. Música visual. Tecnologias. A Matrix do ciberespaço de William Gibson – plenamente concretizada! As antigas elites de informação estão morrendo. As crianças estão no controle.Esta revista é sobre o que fazer até que o novo milênio venha. Estamos falando sobre possibilidades totais. Avanços radicais nos limites da biologia, gravidade e tempo. O fim da escassez artificial. O surgimento de um novo humanismo. Tecnologia para o poder individual, diversão e jogos. Tornando a felicidade máxima nosso estado de consciência normal.”.





A revista existiu até meados de 1989.

WILL NOFFKE: Fale-nos da experiência que moldou a sua vida e a sua obra - a viagem à Amazônia.

TERENCE MCKENNA
: Na verdade, participei de várias viagens à Amazônia, a primeira em 1971, a mais recente em 1981. Em 1981, uma expedição etnobotânica conjunta, composta de membros das universidades de Harvard e Colúmbia Britânica, viajou até Iquitos, no extremo leste do Peru. O meu irmão, que trabalha como etnoquímico na Universidade da Colúmbia Britânica, também fazia parte dessa expedição. Estávamos estudando o ayahuasca, bebida alucinógena empregada em uma área muito extensa das selvas litorâneas do Equador, da Colômbia e do Peru, e também um alucinógeno pouco conhecido, chamado oo-koo-hey ou kuri-coo, que é usado pelos índios uitotos, boros e muinanes, tanto um quanto outro tendo por base o DMT ou o DMT combinado com algum outro produto químico que propicia a experiência alucinógena. Trata-se provavelmente dos alucinógenos menos pesquisados de todos, embora o ayahuasca constitua importante religião popular em uma área bastante extensa. É utilizado em curas xamanistas e é bem conhecido pelas classes pobres das planícies litorâneas do Peru e da população de mestiços. Quanto ao kuri-coo, é substância bem menos conhecida. Estávamos estudando-o porque as teorias farmacológicas ortodoxas dizem que ele não deve ser oralmente ativo, mas é. Portanto, havia um problema científico a resolver.

WILL NOFFKE: Algo como descobrir uma nova realidade para a ciência?

TERENCE MCKENNA:
Bom, é preciso que haja um problema científico para justificar essas expedições. No fim, o que se estuda é a fenomenologia da droga, a droga tal como ela é experimentada - o que é bem diferente das questões farmacológicas que hoje estão sendo examinadas em laboratório. Mas a experiência de tomar essas drogas na Amazônia, subindo pequenos tributários do rio principal, entre pessoas pré-letradas, que definitivamente não pertenciam à classe média, e no ambiente da selva equatorial do continente, foi muito interessante, muito instrutiva.

WILL NOFFKE: Como você reagiu a ela? Suponho que, pouco antes de fazer essa viagem, já havia experimentado outros alucinógenos e, de fato, estava querendo conhecer o efeito, a reação psicofísica em seu próprio organismo. No entanto, parece que encontrou algo inteiramente inesperado.

TERENCE MCKENNA:
Exato. Desde meados da década de 60, estávamos interessados na dimetiltriptamina, ou DMT, tanto em virtude da experiên*cia que ela proporciona como da rapidez de sua ação. Quando se fuma essa droga, o efeito se faz sentir em cerca de quinze a trinta segundos. O conteúdo da experiência parecia ir além da noção ortodoxa do que deve ser a experiência psicodélica. Em outras palavras, a experiência psicodélica tem sido discutida em termos da expansão da consciência, ou da exploração do conteúdo do inconsciente pessoal ou coletivo, ou ainda de grande empatia com obras de arte etc. O que verificamos no uso das triptaminas é que parece haver uma dimensão imprevista, envolvendo contato com uma inteligência alienígena. Uso essa expressão por não dispor de outra melhor. Enteléquias organizadas apresentavam-se na experiência psicodélica com informações que pareciam não provir da história pessoal do indivíduo e nem mesmo da experiência humana coletiva. Mais tarde, viemos a perceber que esse efeito era peculiar aos alucinógenos à base de triptamina. Em outras palavras, não só ao DMT, ao ayahuasca e às substâncias mais exóticas da Amazônia, mas também à psilocibina, que é provavelmente a mais empregada dessas drogas. Para mim, era espantoso que uma voz pudesse se dirigir a uma pessoa naquele estado e transmitir informações durante um diálogo. Gordon Wasson, que descobriu o cogumelo portador de psilocibina e o apresentou à ciência ocidental, também escreveu sobre esse fenômeno. O mesmo fez Platão, ao discutir a importância do Logos para a religião helênica.
Essa experiência de uma voz interior que nos guia, dotada de um nível superior de conhecimento, não é estranha à história do Ocidente, mas a aventura intelectual dos últimos mil anos fez com que tal idéia parecesse absurda, senão psicopatológica. Assim, na qualidade de farmacólogos modernos dedicados ao estudo dos alucinógenos, o meu irmão e eu nos deparamos com esse fenômeno. Nos anos seguintes, tratamos de estudá-lo e dirigir para ele a atenção de outras pessoas; diria que hoje há um consenso de que a experiência é real. Não existe, porém, um consenso a respeito do que ela é exatamente. Estaremos lidando com um aspecto - uma entidade psíquica autônoma, como diriam os adeptos de Jung -, um assunto que escapa ao controle do ego? Ou com algo semelhante a uma Supermente da espécie - um tipo de enteléquia coletiva? Ou, de fato, estaremos lidando com uma inteligência alienígena e com tudo o que isso implica? São perguntas difíceis de responder. Até mesmo abordar o assunto é difícil, pois o fenômeno só se manifesta quando se tomam doses heróicas.




WILL NOFFKE: Existem paralelos bastante óbvios. Um dos que me ocorrem é Santa Joana D'Arc ouvindo vozes e recebendo orientação. Acontece que ela era uma moça do campo, e talvez tivesse uma horta onde cultivasse cogumelos. A História está cheia de vozes que são ouvidas no contexto da experiência religiosa, vozes que são sempre atribuídas a um "deus", qualquer que seja a imagem que este conceito evoque na pessoa que as escuta. Essa experiência não resulta - pelo menos não necessariamente - da ingestão de drogas. Pode ocorrer através de alguma outra alteração da consciência humana.

TERENCE MCKENNA:
Certo. Sempre ocorre através de uma alteração da química interna do corpo e do cérebro. Mas essa alteração pode ser induzida por plantas ou por situações de estresse; ou uma pessoa ou linha hereditária pode simplesmente ser predisposta a esse tipo de coisa. Você tem toda a razão: a religião, como concebida em termos pré-modernos, é essencialmente a resposta humana ao problema do estímulo interno, embora muita gente afirme que se trata de um fenômeno que molda a cultura, ou mesmo dirige a cultura.
Infelizmente, nos últimos quinhentos anos a religião passou a ser uma pirâmide hierárquica em cujo topo os dogmas são interpretados por teólogos. As interpretações são transmitidas aos fiéis através de uma hierarquia. Acho que a noção de revelação direta perturba muito as hierarquias religiosas. Não obstante, a revelação direta é certamente bastante comum nas culturas pré-letradas de todo o mundo. Em tais casos, verificamos que os xamãs eram os únicos com os quais podíamos falar sobre o assunto ou que pareciam familiarizados com o fenômeno. E o que eles nos dizem é: "Claro. Naturalmente. É assim que se obtêm informações: de espíritos que habitam aquela dimensão, espíritos que nos ajudam e espíritos que nos atrapalham." A idéia de inteligências alienígenas autônomas na dimensão mental é, para eles, lugar-comum. E creio que provavelmente é mesmo. Acho que a cultura ocidental fez um longo desvio idiossincrático para afas*tar-se do espírito, e só agora estamos começando a perceber que talvez nos falte alguma coisa. Na verdade, não representamos o máximo de conhecimento da natureza da realidade. Possuímos mapas muito interessantes, digamos, do interior do átomo ou de regiões longínquas do universo; mas, nas áreas que nos são mais próximas - nossa própria mente, a maneira como vemos a nós mesmos e aos nossos semelhantes -, acredito que essas culturas primitivas, por serem fenomenológicas, isentas do estorvo da téc*nica e de teorias abstratas de tudo o que acontece, aproximam-se mais da realidade. Em outras palavras, os xamãs são psiquiatras populares, psicanalistas populares, muito mais avançados que nós.
Os antropólogos já observaram a ausência de distúrbios mentais graves em muitas culturas pré-letradas. Acredito que a mediação do xamã e, através dele, o contato com o Logos centralizante, fonte de informação ou gnose, é provavelmente a causa dessa capacidade de curar ou minimizar distúrbios psicológicos.

WILL NOFFKE: Você mencionou algo em relação à religião organizada. Acho que o cristianismo ocidental foi muito bem-sucedido, na tarefa de garantir o seu território, infundindo medo, dúvida e desconfiança em relação a tudo o que provém de fontes internas. Estabeleceu um critério que diz: "Se não está nas escrituras, deve ser ignorado ou podemos suspeitar de que provém de alguma força malsã". Há aí uma clara negativa da validade da experiência pessoal. Acho que, para muitas pessoas, a experiência psicodélica é altamente suspeita, perigosa e incontrolável. Como você acha que as pessoas a encaram?

TERENCE MCKENNA:
É incontrolável na medida em que não é compreendida. Essas culturas pré-letradas possuem uma tradição ininterrupta de conhecimentos e etnomedicina xamanistas, tão ou mais antigos que os tempos paleolíticos. Quanto a nós, não dispomos de nada parecido. Assim, em nossa cultura, a quem recorrem as pessoas que têm problemas com essas plantas? No Peru, vimos pessoas que eram inteiramente despreparadas em relação ao ayahuasca. Pessoas vindas de Lima para fazer a experiência chegaram ao ponto em que estavam definitivamente tendo uma bad trip. Mas o xamã pode vir a elas, soprar-Ihes fumaça de tabaco e cantar - coisas que podem nos parecer simbólicas mas que, ainda assim, funcionam com a mesma eficácia de uma injeção de Demerol. Portanto, o simbolismo de uma pessoa é a tecnologia de outra. Devemos ter isso em mente ao lidarmos com essas culturas. A aparência que as coisas têm para nós não é a mesma que têm para os que estão intimamente envolvidos com elas. A não ser que você se desfaça de sua linguagem e mergulhe inteiramente nessas culturas, o seu ponto de vista será sempre o ponto de vista de um estranho, de um forasteiro.

WILL NOFFKE: Mesmo naquele setor da sociedade que poderia ser classificado de Nova Era, por falta de um termo melhor, onde há um afastamento em relação à educação dogmática e um movimento no sentido da experimentação direta, a experiência psicodélica é vista com suspeita. Coisas como a kundalini, a hipnose, os mantras, as atividades psíquicas - manipulações psicofísicas da consciência - são consideradas seguras e aceitáveis como áreas de investigação. Mas há esse incrível preconceito contra o uso de meios químicos, até mesmo dos meios orgânicos a que você se refere.

TERENCE MCKENNA:
Parece haver um preconceito muito forte contra tudo o que é gratuito. As pessoas repelem a idéia de que seja possível adquirir clarividência espiritual sem sofrimento, sem auto-análise, sem flagelação, pois acreditam que a visão dessas dimensões superiores deveria ser concedida somente aos bons, e provavelmente somente a eles depois que morrem. Acham alarmante pensar que se possa ingerir uma substância como a psilocibina ou DMT e ter esse tipo de experiência. No entanto, trata-se de uma realidade que agora começamos a aceitar. Não creio que essas coisas sejam um substituto da prática espiritual. Por outro lado, não acho que a prática espiritual possa jamais substituir essas experiências. Percorri a índia, a Indonésia e muitos outros lugares, e encontrei as tradições que você menciona, inclusive o tantra da kundalini, a dança em transe de Bali, controlada por sacerdotes e fundamentada em tradições cuja mentalidade você precisa aceitar para ter a experiência. São coisas extremamente impalpáveis. Já a experiência provocada pelas drogas é muito real. E irresistível. Certamente, nada há de impalpável nas triptaminas. A triptamina é o grande fator convincente. É preciso incorporar essas coisas à nossa cultura, e sem sentimento de culpa, com a certeza de que apontam o caminho que leva a algum lugar. Creio que foi Aldous Huxley que as chamou de "graças gratuitas", explicando que elas não são necessárias nem suficientes para a salvação, mas ainda assim constituem um milagre.

WILL NOFFKE: Você atribui grande importância aos fatores de estado de espírito e ambiente como parte da experiência, ao dizer que as drogas não devem ser usadas levianamente nem como recreação, e sim encaradas com respeito. E que é preferível ter alguém por perto para servir de guia. Pretendo ter uma entrevista também com Timothy Leary. Não sei bem qual a atitude dele, se procura diversão e prazer a qualquer preço ou se é mesmo sério.

TERENCE MCKENNA:
Acho que ele é um homem que provavelmente teve ampla oportunidade de mudar de opinião. A euforia dos anos 60, a suposição dos intelectuais que rodeavam Huxley e Humphrey Osmond - de que bastava apresentar essas coisas às pessoas para que a humanidade se transformasse - era terrivelmente ingênua. No entanto, as pessoas jamais tinham se deparado com uma encruzilhada cultural como essa. Ouço dizer que talvez venha a ocorrer um retomo da experiência psicodélica como fenômeno social. Se ocorrer, espero que os que viveram os anos 60 tenham processado essa experiência e aprendido suas lições. Não acho que essas coisas devam ser feitas em grupos muito grandes.
A maneira mais útil de se abordar a experiência psicodélica é em um ambiente de virtual - embora não formal - privação dos sentidos. Você deve deitar-se em completa escuridão e silêncio, e fixar o olhar na superfície interna de suas pálpebras. É espantoso como esse conselho parece exótico a certas pessoas. Trata-se apenas de bom senso.
Você está procurando observar um fenômeno mental. Para ver o fenômeno mental sem a contaminação
de fontes externas de informação, você deve colocar-se em uma situação na qual ele possa manifestar-se em sua totalidade. Se ingerir as doses eficazes dessas substâncias, posso garantir que a experiência não será monótona. Talvez um número muito grande de pessoas já tenha feito meditação e imagine que a experiência psicodélica seja como a meditação. Mas é a antítese exata da meditação. Trata-se, de fato, de sair do corpo e viajar no espaço mental - que é uma área pelo menos tão grande quanto o espaço. sideral. A diferença entre os dois pode ser apenas convenção cultural. Você viaja em um extenso campo de informação que parece medir anos-luz de comprimento. Isso só se torna possível quando os insumos externos são reduzidos ao mínimo. Nessas condições, você vê o que Blake viu, o que Meister Eckhart viu, o que São João da Cruz viu. Talvez não aprenda com essas coisas tanto quanto eles aprenderam, mas, por outro lado, ninguém pode medir o oceano, nem Meister Eckhart nem ninguém. Não é fácil medir o oceano, mas podemos ser medidos por ele, confrontá-lo, e estar dentro dele.
Acho que essas substâncias exerceram, exercem e continuarão a exercer grande impacto na história humana. Talvez elas sejam, de fato, a causa da história humana. Estamos tão habituados à doutrina da evolução - a idéia de que descendemos dos macacos – que tendemos a esquecer o fato de que o homem é, realmente, uma criatura estranha, muito estranha. Considerando que, em um milhão de anos, fomos desde a pedra lascada até o lançamento do ônibus espacial e a colocação de instrumentos fora do sistema solar, parece absurdo afirmar que as forças e fatos da natureza, tal como os conhecemos, nos permitiriam chegar a esse ponto. Prefiro optar por uma noção muito pré-modema: estamos mancomunados com o demiurgo. Somos filhos de uma força que mal podemos imaginar, uma força que nos chega das árvores e através das planícies da História, e que nos chama para ela. Esse processo está levando dez, vinte, cem mil anos - não mais que um instante. Os indivíduos vêm e vão, mas a natureza atua do ponto de vista da espécie, e, nessa escala, mal se passou um instante desde que só existiam neste planeta a pedra lascada e a farmacologia. A farmacologia precedeu a agricultura, uma vez que as propriedades das plantas vieram a ser conhecidas muito antes do seu cultivo. As visões transmitidas pela psilocibina - visões de enormes máquinas em órbita, de planetas distantes, de criaturas estranhas e vastas paisagens biomecânicas - mal podem ser processadas. A pessoa não sabe se está caminhando no interior de um enorme instrumento ou organismo. Mal podemos assimilar tais coisas. No entanto, essas visões constituem a imagem que nos guia no momento, a imagem que está sendo projetada no tempo histórico - da mesma forma como projetou o cálculo diferencial há cerca de duzentos anos, como projetou os grandes progressos da história humana. A história dos avanços científicos ou técnicos tem o caráter de revelação. Os homens aos quais esses avanços ocorrem costumam dizer: "Foi uma coisa que me veio, que me foi dada de repente." Leibniz inventou o cálculo diferencial quando estava estendido na cama, certa manhã. Newton fazia o mesmo a algumas centenas de quilômetros de distância, e os dois nem se conheciam. Ao longo dos milênios, tem havido um diálogo entre o eu individual e o Desconhecido, entre o eu coletivo e o Desconhecido. Demos a isso o nome de Deus. Os sacerdotes passaram a controlar esse diálogo e sobrecarregaram-no com todo tipo de "faça isso" e "não faça aquilo", coisas sem qualquer relação com a verdadeira experiência religiosa. Esta tem a ver com o diálogo com o Logos e aonde ele pode nos levar e o que pode nos mostrar. Hoje, portanto, quando nós, como espécie, estamos a ponto de abandonar ou destruir o planeta, o Logos ressurge com grande intensidade. Não sairemos deste planeta sem que a nossa mente seja transformada. O que está acontecendo é uma transformação global da humanidade em um tipo de criatura inteiramente diferente. Estamos saindo do invólucro do macaco. E essa coisa feita de linguagem, de imagem e de imaginação, que residiu nos macacos durante tanto tempo, está agora superando a evolução biológica e, através da cultura, assumindo as rédeas de sua própria forma e destino. O caos da nossa era, que tanto perturba a todos nós, não é absolutamente incomum. É o que normalmente acontece quando uma espécie se prepara para deixar o planeta. É o caos do fim da História.
Não resta a menor dúvida. Há sinais disso por toda parte. E os sinais que nem todos percebem, que somente os aficionados das substâncias psicodélicas conhecem, são as transformações da cons*ciência, simultaneamente com a transformação da cultura técnica. Essas duas transformações são, de fato, expressões uma da outra.
Os tempos atuais são as dores do parto de uma nova humanidade.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Ramana Maharshi

Bhagavan Sri Râmana Mahârshi


"Como um exemplo de percepção direta todos vão fazer a avaliação da nellikai (fruta similar a groselha) colocada na palma da mão. O Ser é ainda mais diretamente perceptível do que a fruta na palma da mão. Para perceber a fruta, precisa existir a fruta, a palma da mão onde colocá-la, e os olhos para vê-la. A mente, também, deve estar em condições apropriadas [para processar a informação]. Sem nenhuma dessas quatro coisas, mesmo aqueles com muito pouco conhecimento, podem dizer, fora da experiência direta, "eu sou". Por que o Ser existe, assim como o sentimento de "eu sou", atma vidya, é facilmente interiorizado. O caminho mais fácil é ver aquele que está indo alcançar o atma (Ser).”



Questionador: “ Porque o Ser não pode ser percebido diretamente?"



Bhagavan: “Somente o Ser pode ser percebido diretamente [pratyaksha]. Nada mais é pratyaksha. Embora sejamos pratyaksha, o pensamento 'Eu sou esse corpo' está ocultando-o. Se abandonamos esse pensamento, o Atma (Ser), que está sempre presente com a experiência de todos, irá brilhar." Um verso do Kaivalya Navanitam explica a gênesis desse pensamento. "Por que sua natureza não é determinável, maia é inexprimível. Estão em suas garras os que pensam: 'Isto é meu, eu sou o corpo, o mundo é real.' Oh, filho, ninguém pode determinar como essa ilusão acontece. E ela surge porque falta na pessoa o discernimento para inquirir. "
Se vemos o Ser, o objeto que está sendo visto, não irá aparecer como separado de nós. Tendo visto todas as letras no papel, falhamos em ver esse papel como a base. Da mesma maneira, o sofrimento somente surge porque vemos o que está superposto à base, sem olharmos para a própria base. O que está superposto não deveria ser visto, sem que o substrato fosse visto, também. Como ficamos quando estamos dormindo? Quando estamos dormindo, os vários pensamentos como: "este corpo", "este mundo" não estão aí. Deve ser difícil se identificar com esses estados [acordado e sonhando]que aparecem e desaparecem, [mas todos fazem isso]. Todos têm a experiência ,"eu sou sempre ". Ao invés de dizer, "eu dormi bem", "eu acordei", "eu sonhei", "quando inconsciente não sabia nada", é necessário que a pessoa exista, e que saiba que existe, em todos esses três estados. Se a pessoa procura o Ser dizendo: "Não me vejo" , como poderá encontrá-lo? Para sabermos que tudo o que vemos é o Ser, é suficiente que o pensamento eu-sou-o-corpo deixe de existir.






terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Sobre a música...


À medida em que apuramos nossa sensibilidade, parece ocorrer um fenômeno ímpar: não apenas ficamos mais à vontade com a diversidade, como também a percebemos em todos os lugares. É como se começássemos a enxergar beleza onde antes víamos o caos ou confusão. Ao sentirmos beleza e harmonia, por sua vez, abrimos as linhas de defesa, e tornamo-nos ainda mais receptivos, num ciclo virtuoso.
Esse processo atinge também nossos gostos: começamos a tomar contato com o diverso e também a apreciá-lo, não mais nos sentindo estranhos, entediados ou desconfortáveis, mas ficamos instigados e tocados diante dele. Esse fenômeno não é de maneira alguma trivial, mas produz um efeito profundo no nível inconsciente - e quiçá em outros niveis... - provocando uma verdadeira mudança de perspectiva acerca do mundo.
É sabido que nosso inconsciente é sensível não apenas ao discurso "manifesto" - aquele que o consciente racional identifica de maneira imediata - mas antes à forma como a mensagem é dita. Em outros termos, para o inconsciente, "a estrutura é a própria mensagem". Se, por exemplo, algém te diz "eu te amo" de maneira pouco sincera, é bem provável que no nível inconsciente você entenda: "esse sujeito é um mentiroso etc" e você ficará inseguro(a) na relação.
É como se estivéssemos diante de vários níveis de linguagem e de conexão com o mundo: 1) um nível mais grosseiro, consciente, "manifesto", racional, explícito. Esse é o nível do pensamento, onde as idéias são formadas de maneira aparentemente autônoma. É o nível lógico; 2) um nível já mais sutil de ser apreendido, que poderíamos chamar de linguagem emocional e que já finca raízes no inconsciente; 3) um nível ainda mais sutil, que poderia chamar "espiritual", onde apreendemos que a harmonia subjaz exatamente onde os níveis "racional-consciente" e "emocional" percebem apenas o tédio ou o caos (ou seja, onde esses níveis não atribuem significado algum). Aqui, eu situaria a compaixão, o respeito, a delicadeza...; 4) outros níveis, que, sinceramente, ainda não vivenciei...
Fiquemos, portanto apenas nos três primeiros níveis.
Esses níveis de linguagem e de apreensão-interpretação do mundo interagem entre si, de alguma forma produzindo a visão total pelo qual o indivíduo apreende o mundo e sente sua vida. Porém, conforme a "perspectiva" adotada pelo indivíduo, haverá uma cisão maior ou menor entre eles. Ou melhor, penso que a real ou mais significativa diferença entre os seres - a maneira pela qual eles apreendem o mundo e vivenciam suas existências - reside e resulta exatamente no/do grau de separação entre os níveis; e que se traduz no grau de liberdade e de felicidade com que cada um vivencia sua existencia. Em suma, não importa o grau de erudição, de riqueza etc., o que importa é: até que ponto sou um ser livre, até que ponto sou realmente feliz, mesmo que trancado sozinho em um quarto escuro ? A resposta a essas indagações encontram-se exatamente no grau de cisão psíquica, de separação entre os níveis acima.
É nesse sentido que gostaria de falar algo sobre a música pop.
Ainda que estejamos diante de uma música "discursivamente" contestadora (portanto, no nível "consciente"), parece-me que a estrutura musical (no nível "inconsciente") consiste em uma infindável repetição e, sobretudo, em previsibilidade (basta voce ouvir os primeiros segundos da música, que voce já sabe o que esperar do resto; e, o que é pior, uma música tanto fará mais sucesso quanto mais competente for no cumprimento dessa previsibilidade). É como se, para o inconsciente, a mensagem musical fosse: É ISSO, É ISSO, É ISSO, É ISSO... O que também significa dizer: ESPERE ISSO MESMO, É ISSO QUE VAI ACONTECER, ESPERE ISSO MESMO, É ISSO QUE VAI ACONTECER... etc. Independentemente do discurso adotado. Ou seja, um processo ideológico de reafirmação é produzido em consonância com (e por) um universo simbólico que busca suprimir o inesperado, o diverso, o singular. Uma ideologia que apenas reafirma o senso-comum e, mais ainda, busca convencer os indivíduos de que "fora do senso-comum, só há barbárie...".
Ora, aqui surge, em minha opinião, um diferencial importante em relação à música erudita. Esta expressa algo bem diverso daquela reafirmação, pois sua estrutura é infinitamente mais complexa, harmoniosa e, sobretudo, inesperada.

É normal, portanto, que no processo de sensibilização, o gosto musical se transfira para a música clássica, cuja linguagem é mais harmoniosa ao nível inconsciente para o indivíduo agora "mais desperto" para as singularidades.

Porém, mesmo no interior do campo da chamada "musica erudita", penso haver uma diferenciação nesse sentido. Pois se a música romântica tem um inegável apelo emocional, compositores como Bach, Vivaldi, Mozart inserem-se dentro de um campo de maior harmonia, mais sutil, diria mesmo "espiritual".

E é nessa mesma linha que avanço um pouco mais, ao propor que o mais harmonioso dos sons é o som produzido pelo próprio mundo, com sua infinita diversidade, imprevisibilidade e, por que não dizer, harmonia !


sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Cotidiano ?




Texto de Rudolf Steiner


Podemos habituar-nos a ser homens vigilantes. Então, muito se poderá observar. Se estivermos vigilantes, não passará um só dia sem que aconteça um milagre em nossa vida. Podemos inverter esta proposição, dizendo que, caso não nos aconteça um milagre em qualquer dia de nossa vida, será simplesmente porque o perdemos de vista. Tentem fazer à noite uma retrospectiva da vida: nela encontrarão um acontecimento pequeno, grande ou médio do qual poderão dizer que entrou e aconteceu em sua vida de maneira totalmente curiosa. Conseguimos perceber isso quando pensamos de forma suficientemente abrangente, quando compreendemos com a visão espiritual as circunstâncias da vida de maneira bastante ampla. No entanto, normalmente não procedemos assim, pois deixamos de indagar, por exemplo, que acontecimento pode ter sido impedido por um fato qualquer.
Em geral não nos preocupamos com os acontecimentos impedidos, os quais, se realizados teriam alterado profundamente nossa vida.Muito daquilo que nos torna vigilantes oculta-se atrás dessas coisas que, de uma maneira ou de outra, são eliminadas de nossa vida. Quantas coisas poderiam ter-me acontecido hoje? Se eu me fizer esta pergunta todas as noites, tendo em vista determinados fatos capazes de apontar esta ou aquela conseqüência, tal pergunta engendrará reflexões que introduzirão a vigilância na autodisciplina.
Isto pode constituir um começo que nos conduzirá cada vez mais longe, finalmente a não só investigar o que significa em nossa vida o fato de que, ao nos termos disposto a sair de casa às dez e meia da amanhã, no último momento um homem qualquer veio-nos reter; ficamos furiosos pelo atraso que causou, mas não indagamos: o que poderia ter acontecido se tivéssemos saído na hora planejada? O que mudou com isso?

sábado, 12 de janeiro de 2008

Auto-Observação...(2)


Eu estava, certa vez, ao longo da Liteiny, em direção à Nevsky, e, apesar de todos os meus esforços, não conseguia manter minha atenção na lembrança de si. O barulho, o movimento, tudo me distraía. A cada minuto perdia o fio da atenção, encontrava-o de novo e tornava a perdê-lo. Por fim, senti uma espécie de irritação ridícula comigo mesmo, e dobrei a esquina, à esquerda, decidido a manter a atenção no fato de que haveria de me lembrar de mim mesmo pelo menos por algum tempo, pelo menos até alcançar a próxima rua. Cheguei à Nadejdinskaya sem perder o fio da atenção, exceto talvez por breves momentos. Depois, retornei à Nevsky ainda me lembrando de mim mesmo, e já começava a experimentar o estranho estado emocional de paz e confiança interiores que surge depois de muitos esforços desse tipo. Bem na esquina, em Nevsky, havia uma charutaria onde eram fabricados os meus cigarros. Ainda lembrando-me de mim, pensei em entrar e encomendar alguns.
"Duas horas depois, acordei na Tavricheskaya, isto é, bem longe de lá. Eu ia de carro até a editora. A sensação de acordar era extremamente viva. Posso quase dizer que voltei a mim. Lembrei-me imediatamente de tudo. De como tinha estado a andar pela Nadejdinskaya, de como me lembrava de mim mesmo, de como pensara nos cigarros e de como, ao pensar nisso, parece que caí, desaparecendo em um sono profundo.
Ao mesmo tempo, enquanto imerso neste sono, continuara a realizar ações coerentes e expedientes. Saí da tabacaria, voltei ao meu apartamento na Leiteiny, telefonei à editora...No caminho, de carro, ao longo da Tavricheskaya, comecei a sentir um desconforto estranho, como se tivesse me esquecido de alguma coisa. E, de repente, me lembrei que tinha me esquecido de lembrar de mim." (Ouspensky, In Search of the Miraculous, p. 120)

In: O Outsider, Colin Wilson, pag.269)

AUTO-OBSERVAÇÃO





...."TUDO QUE AS MINHAS TENTATIVAS DE LEMBRANÇA DE SI ME MOSTRARAM, ME CONVENCEU BEM CEDO DE QUE EU ESTAVA DIANTE DE UM PROBLEMA NOVO COM QUE A CIÊNCIA E A FILOSOFIA NÃO TINHAM, ATÉ ENTÃO, SE DEPARADO"... P.D Ouspensky - Livro (Consciência) Editora Martins Fontes.




Todo o trabalho deriva do homem que começa a observar-se. A auto-observação é que nos permite mudar interiormente.Não devemos confundir o observar com o conhecer. Falando superficialmente, podemos dizer que alguém sabe, por exemplo, que está sentado em uma cadeira, mas isto não quer dizer que a está observando. Falando mais profundamente, talvez uma pessoa saiba que está em um estado negativo, mas isto não quer dizer que o está observando.
A auto-observação é um ato de atenção dirigida para dentro, para o que está acontecendo na pessoa. A atenção deve ser ativa, isto é, dirigida. No caso, por exemplo, de uma pessoa a quem se tem antipatia, é possível notar os pensamentos que se acumulam na mente, o coro de vozes que falam dentro de nós, o que estão dizendo, as emoções desagradáveis que surgem, etc. Também notamos que estamos tratando interiormente muito mal à pessoa a quem temos antipatia. Para ver tudo isso é necessária uma atenção dirigida.
A atenção vem do lado observante, os pensamentos as emoções e os movimento pertencem ao lado observado, isto é, há que dividir-nos em dois, observador e observado. O lado do observador é interior ao lado observado, ou está por cima dele; mas seu poder de consciência independente varia, porque a qualquer momento poderá ficar submerso. Nesse caso ficará completamente identificado com o estado negativo. Aí a pessoa não observa o estado, porque ela mesma é o estado. Cabe dizer que o fato de ser negativo é conhecido, mas não é observado.
Muitas vezes também se confunde o pensar com o observar. Pensar e observar são bem diferentes. Um homem pode pensar todo dia a respeito de sua pessoa e não auto-observar-se sequer por um momento. Observar nossos pensamentos não é a mesma coisa que pensar. O 4c ensina que o homem deve observar tudo nele, sempre como se não fosse ele, mas sim outro. Isto significa que ele deve chegar a dizer: "o que está fazendo esse eu?" E não "o que eu estou fazendo?" Então vê os pensamentos que se sucedem, as emoções, as comédias privadas, os dramas pessoais, as elaboradas mentiras, as desculpas e justificativas, os discursos, que passam sucessivamente. No instante seguinte, cai outra vez no sono e desempenha seu papel em todos eles, isto é, atua na comédia que compôs e crê que é verdadeira.
É preciso que um homem seja capaz de dizer: "isto não sou eu", a todas as peças e canções estabelecidas, a todas as representações que se sucedem nele, a todas as vozes que toma pela sua. Sabe-se que, às vezes, antes de dormir, ouvimos fortes vozes na cabeça. São os eus que estão falando. Durante o dia, passam o tempo todo falando, só que os tomamos por Eu, por nós mesmos.
Quando você encontra-se em um estado desagradável e auto-observa-se durante alguns minutos, notará grupos diferentes de eus desagradáveis que tentam, um após o outro, ocupar-se da situação e tirar proveito dela. Isto se deve a que os eus negativos vivem sendo negativos. Sua vida consiste em pensar negativamente ou sentir negativamente, isto é, em proporcionar-lhe pensamentos negativos e sentimentos negativos. Deleitam-se em fazê-lo porque para eles assim é a vida.
No trabalho sobre si, é preciso observar sinceramente quando se goza dos estados negativos, em especial quando se goza secretamente deles. Se um homem sente prazer sendo negativo, sejam quais forem as formas de ser negativo, e são muitas, não poderá separar-se delas. Não é possível separar-se de algo pelo qual sente-se um afeto secreto Em realidade, o que ocorre é que a pessoa identifica-se com os eus negativos por meio de um afeto secreto e assim sente seu gozo, porque seja qual for a coisa com a qual uma pessoa identifique-se, converte-se nela.
É preciso observar a fala interior (VERBALIZAÇÃO) e o lugar de onde provém. A fala interior automática é a semente de muitos estados desagradáveis futuros e também da fala exterior equivocada.
Existe a prática do Silêncio Interior. Não se trata de impedir que algo penetre na mente, mas pratica-se o silêncio interior com relação a algo que já está na mente e do qual deve-se ter percepção, mas é preciso não tocá-lo com a língua interior, com o discurso interior, ou seja não usar a verbalização. A fala interior sempre se ocupa dos estados negativos e forja muitas frases desagradáveis que, de súbito, acham expressão na fala exterior, talvez muito tempo depois.
A fala interior mecânica produz confusão interior, é feita de diferentes formas de mentiras, de meias verdades ou de verdades que se relacionam entre si de modo incorreto, com algo que se agregou ou se omitiu. Em outras palavras, é mentir para si mesmo.
Tudo isso pertence à purificação da vida emocional. Mecanicamente, só simpatizamos com nós mesmos e temos antipatia ou ódio daqueles que não simpatizam conosco. Não é possível o desenvolvimento interior, a menos que as emoções deixem de fundamentar-se unicamente na auto-simpatia (AUTO IDENTIFICAÇÃO). Talvez uma pessoa se dê conta que diz coisas que, se as recebesse, não as toleraria. Dentro de nós mesmos, todos os outros são impotentes. Podemos arrastar uma pessoa para nossa caverna secreta e fazer com ela o que quisermos. Podemos ser naturalmente corteses mas, neste trabalho, cujo propósito é purificar e organizar a vida interior, isto não basta. O que realmente conta é a maneira como os homens se comportam interna e invisivelmente uns com os outros.
Todo ensinamento esotérico, desde a mais remota Antigüidade, refere-se ao conhecimento de si. O trabalho psicológico aplica-se à nossa realidade invisível, na qual moramos psicologicamente; refere-se à conquista de si, ao domínio de si. Mas uma das maiores dificuldades é justamente, imaginarmos que nos vemos e nos conhecemos integralmente, e isto nos impede de compreender o que significa verdadeiramente a auto-observação e o que quer dizer começar a conhecer-se a si mesmo.
Só quem compreende plenamente a dificuldade de despertar pode compreender a necessidade de um prolongado e árduo trabalho sobre si, com o fim de despertar. VEJAMOS BEM, PROLONGADO TRABALHO SOBRE SI.
Neste trabalho, é preciso dissolver a fantasia e a imaginação negativa. A fantasia pode satisfazer todos os centros, de modo que o homem fica satisfeito com o imaginário em lugar do real. O poder da fantasia mantém os homens hipnotizados, porque o homem sonha que está desperto ou a ponto de despertar. Contudo, geralmente passa-se muito tempo neste trabalho antes que uma pessoa comece a observar sua fantasia. E é difícil observá-la, porque quando a observamos, ela se detém, isto é, tão logo chega a atenção dirigida, a fantasia cessa.Nosso estado de hipnose impede toda observação real e direta. Imaginamos que somos pessoas respeitáveis e agradáveis, e não podemos ver através da bruma de nossa fantasia que não o somos em absoluto.
Por isso é imperativo conhecer o modo correto para trabalhar o que se observa, por enquanto estamos apenas estudando o básico do sistema, e comprovando em nós que assim é, mas muito cuidado para não cair na armadilha de acharmos que podemos realizar um trabalho de auto-observação correta para alcançar a consciência de SI sem ajuda e sem preparo. Já foi dito aqui nesta lista que neste caminho sem vontade é impossível evoluir e que sem ajuda é igualmente impossível evoluir.Será que tem alguém aqui que pode dizer que desenvolveu a vontade plenamente? Vamos então criar as condições para que a vontade se desenvolva em nós, ainda é muito cedo para tentar saltos maiores que as pernas, é bem melhor um passo seguro de cada vez que dar um salto para o desconhecido e bater com a cara no muro. temos muita coisa para conversar sobre o sistema, oportunamente veremos as técnicas para criarmos um observador eficiente. Por hora é solicitado a auto-observação como forma de constatar em si a veracidade do que dizemos aqui sobre os muitos "eus", centros, funções,estados de presença, consciência, compartimentos, amortecedores, emoções negativas, sono, vigília, observação de si, consideração interior, identificação, 4c , Gurdjieff, evolução possível, abordagem do sistema, contexto, aqui agora etc, para que possamos partir para algo mais profundo se realmente a nossa vontade para isso se prestar.



escrito por Flávio, praticante do 4º Caminho, membro do Instituto Gurdjieff



(Fonte: www.holosgaia.blogspot.com )

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lou Andreas Salomé


"Ouse, ouse... ouse tudo!! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda ... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!"

(Extraído de: http://www.holosgaia.blogspot.com/)